terça-feira, 29 de abril de 2014

A Alegoria da Caverna. A República de Platão.

Como obtive êxito ao publicar o texto de Kant sobre o que é a ilustração, repito hoje a experiência com o texto de Platão, retirada de A República. É um texto básico da filosofia e ele abre os caminhos para o mundo da racionalidade. Vamos ao texto, sem delongas e sem comentários.
Uma representação. Se a aparência fosse igual a essência não haveria a necessidade da ciência.

Sócrates: Agora imagine a nossa natureza, segundo o grau de educação que ela recebeu ou não, de acordo com o quadro que vou fazer. Imagine, pois, homens que vivem em uma espécie de morada subterrânea em forma de caverna. A entrada se abre para a luz em toda a largura da fachada. Os homens estão no interior desde a infância, acorrentados pelas pernas e pelo pescoço, de modo que não podem mudar de lugar nem voltar a cabeça para ver algo que não esteja diante deles. A luz lhes vem de um fogo que queima por trás deles, ao longe, no alto. Entre os prisioneiros e o fogo, há um caminho que sobe. Imagine que esse caminho é cortado por um pequeno muro, semelhante ao tapume que os exibidores de marionetes dispõem entre eles e o público, acima do qual manobram as marionetes e apresentam o espetáculo.
Glauco: Entendo.
Sócrates: Então, ao longo desse pequeno muro, imagine homens que carregam todo tipo de objetos fabricados, ultrapassando a altura do muro; estátuas de homens, figuras de animais, de pedra, madeira ou qualquer outro material. Provavelmente, entre os carregadores que desfilam ao longo do muro, alguns falam, outros se calam.
Glauco: Estranha descrição e estranhos prisioneiros.
Sócrates: Eles são semelhantes a nós. primeiro, você pensa que, na situação deles, eles tenham visto algo mais do que as sombras de si mesmos e dos vizinhos que o fogo projeta na parede da caverna à sua frente?
Glauco: Como isso seria possível, se durante toda a vida eles estão condenados a ficar com a cabeça imóvel?
Sócrates: Não acontece o mesmo com os objetos que desfilam?
Glauco: É claro.
Sócrates: Então, se eles pudessem conversar, não acha que, nomeando as sombras que veem, pensariam nomear seres reais.
Glauco: Evidentemente.
Sócrates: E se, além disso houvesse um eco vindo da parede diante deles, quando um dos que passam ao longo do pequeno muro falasse, não acha que eles tomariam essa voz pela da sombra que desfila à sua frente?
Glauco: Sim, por Zeus.
Sócrates: Assim sendo, os homens que estão nessas condições, não poderiam concluir nada como verdadeiro, a não ser as sombras dos objetos fabricados.
Glauco: Não poderia ser de outra forma.
Sócrates: Veja agora o que aconteceria se eles fossem libertados de suas correntes e curados de sua desrazão. Tudo não aconteceria naturalmente como vou dizer? Se um desses homens fosse solto, forçado subitamente a levantar-se, a virar a cabeça, a andar, a olhar para o lado da luz, todos esses movimentos o fariam sofrer, ele ficaria ofuscado e não poderia distinguir os objetos, dos quais via apenas as sombras, anteriormente. Na sua opinião, o que ele poderia responder se lhe dissessem que, antes, ele só via coisas sem consistência, que agora ele está mais perto da realidade, voltado para objetos mais reais, e que está vendo melhor? O que ele responderia se lhe designassem cada um dos objetos que desfilam, obrigando-o, com perguntas, a dizer o que são? Não acha que ele ficaria embaraçado e que as sombras que ele via antes lhe pareceriam mais verdadeiras do que os objetos que lhe mostram agora?
Glauco: Certamente, elas lhe pareceriam mais verdadeiras.
Sócrates: E se o forçassem a olhar para a própria luz, não achas que os olhos lhe doeriam, que ele viraria as costas e voltaria para as coisas que pode olhar e que as consideraria verdadeiramente mais nítidas do que as coisas que lhe mostram agora?
Glauco: Sem dúvida alguma.
Sócrates:E se o tirassem de lá à força, se o fizessem subir o íngreme caminho montanhoso, se não o largassem até arrastá-lo para a luz do sol, ele não sofreria e se irritaria ao ser assim empurrado para fora? E, chegando à luz, com os olhos ofuscados pelo seu brilho, não seria capaz de ver nenhum desses objetos, que nós afirmamos agora serem verdadeiros.
Glauco: Ele não poderá vê-los, pelo menos nos primeiros momentos.
Sócrates: É preciso que ele se habitue, para que possa ver as coisas do alto. Primeiro, ele distinguirá mais facilmente as sombras, depois, as imagens dos homens e dos outros objetos refletidas na água, depois os próprios objetos. Em segundo lugar, durante a noite, ele poderá contemplar as constelações e o próprio céu, e voltar o olhar para a luz dos astros e da lua mais facilmente que durante o dia para o sol e para a luz do sol.
Glauco: Sem dúvida.
Sócrates: Finalmente, ele poderá contemplar o sol, não o seu reflexo nas águas ou em outra superfície lisa, mas o próprio sol, o sol tal como é.
Glauco: Certamente.
Sócrates: Depois disso, poderá raciocinar a respeito do sol, concluir que é ele que produz as estações e os anos, que governa tudo no mundo visível, e que é, de algum modo, a causa de tudo o que ele e seus companheiros viam na caverna.
Glauco: É indubitável que ele chegará a essa conclusão.
Sócrates: Nesse momento, se ele se lembrar de sua primeira morada, da ciência que ali se possuía e de seus antigos companheiros, não acha que ficaria feliz com a mudança e teria pena deles?
Glauco: Claro que sim.
Sócrates: Quanto às honras e louvores que eles se atribuíam mutuamente outrora, quanto às recompensas concedidas àquele que fosse dotado de uma visão mais aguda para discernir a passagem das sombras na parede e de uma memória mais fiel para se lembrar com exatidão daquelas que precedem certas outras ou que ou que lhes sucedem, as que vêm juntas, e que, por isso mesmo, era o mais hábil para conjeturar a que viria depois, acha que nosso homem teria inveja dele, que as honras e a confiança assim adquiridas entre os companheiros lhe dariam inveja? Ele não pensaria antes, como o heroi de Homero, que mais vale "viver como escravo de um lavrador" e suportar qualquer provação do que voltar à visão ilusória da caverna e viver como se vive lá?
Glauco: Concordo com você. Ele aceitaria qualquer provação para não viver como se vive lá.
Sócrates: reflita ainda nisto: suponha que esse homem volte à caverna e retome o seu antigo lugar. Desta vez, não seria pelas trevas que ele teria os olhos ofuscados, ao vir diretamente do sol?
Glauco: Naturalmente.
Sócrates: E se ele tivesse que emitir de novo um juízo sobre as sombras e entrar em competição com os prisioneiros que continuaram acorrentados, enquanto sua vista ainda está confusa, seus olhos ainda não se recompuseram, enquanto lhe deram um tempo curto demais para acostumar-se com a escuridão, ele não ficaria ridículo? os prisioneiros não diriam que, depois de ter ido até o alto, voltou com a vista perdida, que não vale mesmo a pena subir até lá? E se alguém tentasse retirar os seus laços, fazê-los subir, você acredita que, se pudessem agarrá-lo e executá-lo, não o matariam?
Glauco: Sem dúvida alguma, eles o matariam.
Sócrates: E agora, meu caro Glauco, é preciso aplicar exatamente essa alegoria ao que dissemos anteriormente. Devemos assimilar o mundo que apreendemos pela vista à estada na prisão, a luz do fogo que ilumina a caverna à ação do sol. Quanto à subida e à contemplação do que há no alto, considera que se trata da ascensão da alma até o lugar inteligível, e não te enganarás sobre minha esperança, já que desejas conhecê-la. Deus sabe se há alguma possibilidade de que ela seja fundada sobre a verdade. Em todo o caso eis o que me aparece tal como me aparece; nos últimos limites do mundo inteligível aparece-me a ideia do Bem, que se percebe com dificuldade, mas que não que não se pode ver sem concluir que ela é a causa de tudo o que há de reto e de belo. No mundo visível, ela gera a luz e o senhor da luz, no mundo inteligível ela própria é a soberana que dispensa a verdade e a inteligência. Acrescento que é preciso vê-la se quer comportar-se com sabedoria, seja na vida privada, seja na vida pública.

Texto extraído de Textos Básicos de Filosofia - dos pré-socráticos a Wittgenstein, de Danilo Marcondes. O livro é da Zahar.Se você dividir esta história em três partes, ela ficará mais fácil de ser entendida. O que acontece dentro da caverna, o que acontece na saída e, finalmente, o que acontece na sua volta.

segunda-feira, 28 de abril de 2014

Em Busca de Iara.

Iara era filha de uma rica família judaica de São Paulo. Sua educação escolar ocorrera em escola judaica e ela tinha todas as perspectivas e condições de viver uma vida absolutamente normal. Aos 16 anos já estava casada com um estudante de medicina. No documentário Em Busca de Iara,um irmão seu dá o depoimento de que em sua educação básica não havia nenhuma preocupação com a formação política. A grande transformação em sua vida ocorreu, quando foi estudar psicologia, na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP. A famosa, aquela localizada na rua Maria Antônia. O casamento logo deu vez para os debates políticos.
 
Cartaz promocional do filme documentário, Em busca de Iara. Sessão especial em São Paulo.

Iara Iavelberg e também o seu irmão se envolveram profundamente na efervescência política que se seguiu ao golpe de 1964 e que instaurou a ditadura militar. Com o endurecimento do regime, a partir de 1968, passou a integrar organizações clandestinas, que optaram pela guerrilha e a luta armada para combater a ditadura que ingressava em seus anos de chumbo. Sucessivamente pertenceu à POLOP, à VAR-Palmares e finalmente ao MR-8. Treinou para a guerrilha, junto com o capitão Lamarca, no Vale do Ribeira e por ele se apaixonou perdidamente. Viveram como companheiros ao final de suas vidas, abreviadas pela implacável ditadura. Iara foi a grande professora de marxismo e de política de seu companheiro.

Com o cerco se fechando em São Paulo, eles partem para a Bahia, para iniciar a fase final, a guerrilha rural que fatalmente derrubaria o regime opressivo, segundo suas esperanças. Iara vai viver em Salvador e Lamarca irá para o interior. Nesta fase já integram o MR-8. O aparelho em que Iara se encontrava em Salvador cai em mãos da polícia e ela morre nestas circunstâncias, em 1971. Lamarca morrerá executado, mais ou menos, um mês depois. Segundo a versão oficial, Iara optou pelo suicídio, em vez de se entregar para a polícia. O laudo cadavérico nunca foi encontrado, apenas algumas anotações.
Divulgação

O seu enterro ocorreu em São Paulo, na ala dos suicidas do cemitério israelita. A versão do suicídio nunca foi aceita pela família e o fato de ser enterrada na ala dos suicidas causou muitos constrangimentos aos familiares. Alguns, inclusive, abandonaram o Brasil, em consequência. Esta é a história. E é aí que começa a luta em busca da verdadeira versão da morte de Iara. Desmentir a versão oficial e estabelecer a verdade é a grande finalidade deste documentário, Em busca de Iara.

Mariana, filha de Rosa, irmã de Iara e, portanto, sobrinha de Iara, é que se empenhou na realização do documentário do qual é produtora, junto com o diretor Flávio Frederico. Sete anos foram consumidos em pesquisa para a sua realização. Parece ser uma questão de honra familiar estabelecer a verdade em torno da morte de Iara. As pesquisas buscaram documentos históricos, notícias da imprensa da época, entrevistas com os jornalistas que fizeram a cobertura, com os familiares e com os companheiros irmanados na mesma luta. Chamou-me muita atenção nestes depoimentos, especialmente os da irmã e de um médico simpatizante, sobre as convicções que ela alimentava e a crença absoluta de que, em muito breve, sairiam vitoriosos nesta empreitada.

Em 2003, por decisão judicial, o corpo de Iara é exumado. O corpo de Iara, quando de sua morte fora entregue à família em urna lacrada. Na exumação os legistas desmentem a versão do suicídio, constatando a distância em que o tiro que a vitimou foi dado. A distância era incompatível com o fato de ela mesmo ter atirado em si. Assim, a família obteve a remoção de sua sepultura, da ala dos suicidas, para repousar junto a seus pais. Creio que, para a família, esta foi a maior vitória.
Capitão Lamarca
Iara foi ainda mais procurada pela organismos da repressão depois de ser a companheira de Lamarca.

Mas resta ainda uma questão muito maior. Hoje é fartamente sabido que no período da ditadura militar a tortura era uma política de Estado e uma prática comum, assim como houve também pessoas desaparecidas e outras versões de suicídio, como a do jornalista Vladimir Herzog, por sinal também judeu, e que, pela ação do rabino Henry Sobel, que, recusando a versão do suicídio, não o enterrou na ala dos suicidas do cemitério judaico, num episódio memorável. Em nome da lei da Anistia, de agosto de 1979, todas as ações praticadas neste período, de ambos os lados, seriam beneficiados com a lei. Mas existe uma legislação superior, que estabelece crimes imprescritíveis, como é o caso dos crimes de tortura cometidos pelo Estado.

Outra coisa é a questão da verdade. Muitas verdades já desmentiram versões falsas e que foram falseadas exatamente em nome do ocultamento de atos hediondos praticados. A Comissão Nacional da Verdade, bem como as comissões estaduais estão desenvolvendo um trabalho memorável de restauração da memória e da verdade, mas ainda não se sabe sobre o que será feito após a verdade restabelecida. Em outros países que também sofreram horrores semelhantes a legislação já está mais avançada.

Neste sentido o documentário é notável. Ele resgata não só a verdade para o círculo familiar de Iara, o que por si só já é bastante, mas ele presta uma enorme contribuição para que o Brasil, ao conhecer a sua verdade, não mais repita a possibilidade de que tamanhas atrocidades e tormentos possam se repetir. O diretor Flávio Frederico e, especialmente a Mariana Pamplona, produtora e sobrinha de Iara, merecem um tributo de gratidão de todos os brasileiros que prezam  os valores da democracia, da liberdade e da verdade.





quinta-feira, 24 de abril de 2014

Dianópolis. Goiás. O campo de treinamento de guerrilha das ligas Camponesas.

O ano de 1963 era para ser o grande ano do presidente João Goulart. Ele finalmente governaria o Brasil sob o regime presidencialista. O plebiscito realizado em 6 de janeiro foi muito mais do que a consagração popular de Jango. Foi uma vitória fora de qualquer parâmetro e proporção. Até farto dinheiro da FIESP irrigou a campanha do Não. Do não ao parlamentarismo e do sim ao presidencialismo. De um total de 11,5 milhões de eleitores 9,5 milhões votaram no não, ou seja, 5 em cada grupo de 6 eleitores queriam ver Jango presidente do Brasil, sob o regime presidencialista. Uma consagração popular inimaginável.
O episódio de Dianópolis é narrado neste livro de Jorge Ferreira e Angela de Castro Gomes.
Mas em dezembro de 1962 aconteceu um fato totalmente inesperado e que daria muita dor de cabeça ao presidente, especialmente no campo de sua política externa. Esta era autônoma, na medida do possível. Não havia um alinhamento automático à política americana. Jango já havia contrariado Kennedy, especialmente, com referência a questão cubana.  Uma notícia foi publicada no jornal O Estado de S.Paulo, o único órgão da grande mídia, contrário ao presidencialismo, no dia 4 de dezembro e dava conta do descobrimento de um campo de treinamento de guerrilha das Ligas Camponesas, na cidade de Dianópolis, em Goiás. Nada ainda estava esclarecido, mas a notícia foi dada. Foram encontrados alguns livros com ensinamentos em técnicas de guerrilha, munições e propaganda comunista.

Depois se ficou sabendo que o coronel José de Seixas ficara encarregado de apurar denúncias de um contrabando de geladeiras, que eram descarregadas em um lugar onde nem sequer havia energia elétrica. O coronel facilmente tomou o lugar, não conseguindo prender ninguém, mas encontrando as "geladeiras". O coronel descobriu que tinha descoberto um campo de treinamento militar das Ligas Camponesas. As caixas continham bandeiras cubanas, manuais de instrução de combate, retratos e textos de Fidel e de Julião, planos de sabotagem e de implementação de outros focos guerrilheiros no país. Além disso havia registros de contabilidade, que demonstravam a origem do apoio cubano para o aparelhamento guerrilheiro no país.
Francisco Julião, o líder das Ligas Camponesas.

O coronel Seixas entregou o material apreendido diretamente ao presidente Jango, que imediatamente convocou o embaixador cubano e lhe mostrou toda a sua indignação. O governo de Cuba, que fora ajudado por Jango, recebe deste armas para desestabilizá-lo no poder. Mas Jango agiu com toda a discrição, devolvendo o material, diretamente para o governo cubano. Aí acontece o pior. O avião da VARIG, que levava o material apreendido de volta para Cuba, sofreu um acidente no aeroporto de Lima, no Peru, e a CIA descobre o material. Assim o governo dos Estados Unidos está munido de provas concretas  do treinamento de guerrilha urbana no Brasil, com o patrocínio cubano. A revolução cubana estava se expandindo na América latina. Era a prova que os Estados Unidos precisavam.
Jango em Washington. Relações complicadas com o presidente Kennedy.

Nada de pior poderia ter ocorrido para Jango. No exato momento em que estava às vésperas de reaver a plenitude de seu mandato presidencial ele ganha um enorme problema internacional, pelo qual passa a ser visto, sempre com desconfiança pelos Estados Unidos. Já internamente os seus inimigos conseguem colar mais facilmente nele o estigma de ser um perigoso comunista que queria transformar o Brasil numa enorme Cuba. A vida de Jango foi uma vida nada fácil. Dianópolis foi uma enorme pedra no sapato do presidente. E, como incomodou.  Este post foi elaborado a partir do livro: 1964 - O golpe que derrubou um presidente, pôs fim ao regime democrático e instituiu a ditadura no Brasil, de Jorge Ferreira e Angela de Castro Gomes, do capítulo 9. O plebiscito: a hora e a vez de João Goulart.


quarta-feira, 23 de abril de 2014

Almanaque 1964. Ana Maria Bahiana.

O que é, afinal de contas um almanaque? O Aurélio nos dá a resposta precisa. Almanaque "publicação que, além de um calendário completo, contém matéria científica, literária, informativa e, às vezes, recreativa e humorística". O livro de Ana Maria Bahiana  Almanaque 1964 - Fatos, histórias e curiosidades de um ano que mudou tudo (e nem sempre para melhor) se encaixa perfeitamente na definição do grande dicionário do Aurélio. É um calendário que esmiúça o ano de 1964, mês a mês e dia a dia, contém muita informação sobre os acontecimentos e fatos históricos daquele ano e tudo narrado com um leveza que leva você a deslizar por suas páginas, sempre com um ah! para soltar e com um risinho meio irônico nos lábios.
Lançamento do mês de março, da Companhia das Letras - Almanaque 1964 - da jornalista cultural e escritora Ana Maria Bahiana.

O caráter científico do Almanaque está garantido pelo uso de fontes primárias, numa pesquisa de fôlego pelos jornais e revistas do ano e com o complemento do uso de bons livros de história que se ocupam deste ano em que o Brasil conheceu um golpe que, infelizmente, o levou a sua mais longa e mais horrorosa ditadura. O livro é fartamente ilustrado, como o eram as revistas daquele ano. Os anos 1960 foram realmente anos extraordinários, cravados com o signo da mudança, e nem sempre para melhor, como nos adverte a autora, já no título do livro. As mudanças tiveram um caráter essencialmente conservador. Se tivéssemos que escolher o ano mais representativo dentro dos anos 1960, certamente escolheríamos o ano de 1968, mas as mudanças ocorridas já em 1964 também foram extremamente significativas.
 1964, o recrudescimento da mais terrível guerra dos Estados Unidos, a guerra do Vietnã.

Ana Maria Bahiana é jornalista cultural. É muito conhecida dos brasileiros pelos seus trabalhos no Jornal do Brasil, na Folha de S.Paulo e na Rede Globo de Televisão. Mora em Los Angeles. Sobre o Almanaque, ela mesma revela a intenção de escrevê-lo: "O que quero, aqui, é dar uma visão o mais completa possível de como se vivia, como se pensava, como se falava em 1964, no Brasil e no mundo" e já nos dá, na apresentação do livro, uma valiosa dica do contexto do cenário internacional: "A Guerra Fria, os direitos civis, a nova geopolítica, as novas estéticas, os Beatles e os Rolling Stones". 

A autora nos conta que, ao refazer a viagem ao tempo passado, de cinquenta anos atrás, que "as descobertas foram muitas" e que deseja que o mesmo se repita com os leitores, ao lerem este Almanaque. Confesso que, ao menos comigo, o objetivo foi alcançado. Fiz inúmeras descobertas e as maiores estão realmente no campo cultural. Pela minha reclusão ao seminário, neste ano de 1964, concluindo o meu ensino médio em Gravataí -RS, percebo o quanto os padres nos mantinham à distância dos fatos do mundo real.
1964, O ano notável do surgimento dos Beatles.
Como se trata efetivamente de um almanaque, o livro é, em primeiro lugar, um calendário e este calendário lhe confere a sua estrutura básica. Depois de uma introdução sobre os anos 1960, os doze meses do ano formam os doze capítulos do livro. Cada mês ganha, digamos uma manchete, com destaques do noticiário e com fotografias de página inteira. Segue a observação pessoal da autora na captação e interpretação de cada mês, para na sequência, apresentar a linha do tempo, onde são apresentados os fatos mais importantes ocorridos no mês. Praticamente não escapa nenhum dia, em que não tenha ocorrido um fato relevante. Tudo é fartamente ilustrado com memoráveis fotografias e com recortes de jornais e revistas.

A própria autora, numa espécie de introdução Os 60 até aqui, seleciona os grandes temas que ocuparam as manchetes. Assim o cenário das guerras e conflitos está dominado pelo Vietnã, pela Argélia, pela África portuguesa em suas lutas pela descolonização, pelo Congo, pelo Chipre e por Cuba. Sob o tópico Sociedade e Cultura os grandes fatos serão o Muro de Berlim e a divisão da Alemanha, a afirmação dos direitos civis e o assassinato de John Kennedy (1963) nos Estados Unidos, a continuidade da realização do Concílio Vaticano II, e a juventude que surge no contexto do pós-guerra.
Martin Luther King, o mais jovem ganhador de um Nobel da Paz, no ano de 1964.

Enquanto isso o cenário brasileiro passa pela eleição e renúncia de Jânio Quadros e a ascensão de João Goulart ao poder e o seu conturbado governo que termina com o golpe que o depõe. As interferências do governo no contexto golpista ganham um merecido destaque. Já ao longo do ano de 1964 dá para perceber, acompanhando a narrativa dos fatos, os descaminhos do golpe e a consequente ditadura, cada vez mais aterradora.

Alguns fatos para aguçar a curiosidade. É o anos dos Beatles e dos Rolling Stones, o ano do Nobel de Literatura para Sartre e do Nobel da paz para Martin Luther King, o ano do discurso de Che Guevara na ONU, da realização dos jogos olímpicos em Tóquio e do lançamento do primeiro trem bala, ligando Tóquio a Osaka, ano de lançamento do filme, Zorba o grego. No Brasil, a vila de pescadores de Búzios entra no mapa brasileiro com a vinda de Brigitte Bardot, foi o ano da morte de Ary Barroso, em pleno domingo de carnaval, e o ano do lançamento da Enciclopédia Barsa, que foi a enciclopédia básica para a realização de tarefas escolares de toda uma geração, que tinha um mínimo poder aquisitivo. E numa coincidência, quando Lyndon Johnson abole a segregação racial nos Estados Unidos, aqui no Brasil é eleita a primeira mulata num concurso de beleza. Vera Lúcia Couto Santos é eleita Miss Guanabara.
1964 também foi o ano do memorável discurso de Che Guevara na Assembleia das Nações Unidas.

O livro tem um complemento intitulado Trivial Variado, com as principais músicas, discos, filmes e livros que foram destaque neste ano de 1964. Ana Maria Bahiana já publicou um outro livro, entre muitos, Almanaque anos 70. Poderia muito bem lançar um almanaque do ano de 1968, o mais emblemático de todos e assim formar a sua trilogia.

Almanaque 1964 - Fatos, histórias e curiosidades de um ano que mudou tudo (e nem sempre para melhor) de Ana Maria Bahiana é lançamento da Companhia das Letras, do mês de março. Quando recebi o livro e dei uma primeira olhada, a ideia que imediatamente me veio à cabeça é a de que o livro é especial para ser dado de presente. É um livro da leveza de uma almanaque mas que em momento algum deixa de ser um livro de elevado valor e qualidade, sem o caráter massivo de muitos livros da academia.  






















terça-feira, 15 de abril de 2014

Brizola e os "comandos nacionalistas" de 11 companheiros. 1963.

Um dos maiores protagonistas do ocorrido nos idos de 1964, sem dúvida nenhuma, foi Leonel Brizola. O seu feito maior ocorrera em 1961, quando, como governador do Rio Grande do Sul, garantiu a posse de João Goulart, com a chamada campanha da legalidade. Foi um ato de bravura ímpar, heroico e épico.  Depois se elegeu deputado federal pela Guanabara, mas mirava chegar à presidência da República. Disputava com o próprio Jango, o seu cunhado, a liderança do PTB, um partido em ascensão. Brizola foi o líder de maior expressão que existiu na esquerda brasileira.
Os fatos ocorridos entre agosto de 1961 e abril de 1964 estão detalhados neste belo livro.

No interminável ano de 1963, Brizola articulava em todas as frentes e a sua radicalização crescia a cada dia que passava. Certamente causou mais dissabores a Jango do que efetivamente apoio partidário sólido. Tanto Jango, quanto Brizola já miravam a sucessão presidencial que ocorreria em outubro de 1965. Pela legislação em vigor, nenhum dos dois poderia ser candidato. Não havia o instituto da reeleição e Brizola não podia, por ser cunhado do presidente. Brizola lançou o slogan de que cunhado não era parente e, portanto, Brizola  para presidente.

Brizola agitava a vida política brasileira. Criou, no Parlamento brasileiro e a Frente de Mobilização Popular e o seu grupo tinha um jornal com o nome Panfleto. Tinha um programa diário de rádio, transmitido em cadeia e às sextas feiras ficava horas seguidas em suas conversas com o povo, na rádio Mayrink Veiga. Mas as suas atividades não paravam aí. Temendo ser ofuscado pelo presidente Jango, dentro do PTB, organiza o seu próprio partido, que vai para muito além de um simples partido político. Organiza os grupos formados por 11 companheiros. Jorge Ferreira e Angela de Castro Gomes, os autores do livro em exame, assim apresentam estes grupos:
 
Leonel Brizola, protagonista dos fatos políticos do início dos anos 1960.

"A 'organização do povo', em sua proposta, seria conseguida com a formação dos 'grupos de 11 companheiros' ou 'comandos nacionalistas'. O líder trabalhista queria reunir os trabalhadores, das mais distantes localidades do país, em pequenos grupos. Por meio deles haveria uma articulação com organizações maiores e já existentes, como  a FMP, o CGT, a UNE, a FPN, as Ligas Camponesas, o PTB e o PSB. Segundo Brizola, o povo compreenderia facilmente do que se tratava. A correlação estava no futebol, esporte praticado por 11 jogadores, cada um atuando em uma posição e com uma função complementar na equipe, sendo um deles escolhido como capitão". Brizola definiu os objetivos destes seus grupos, no manifesto de fundação da organização, ainda de acordo com os historiadores:


Como se manter no poder numa correlação de forças tão complicada como no governo de Jango. Com quem sustentar a governabilidade?

"Os objetivos dos 'comandos nacionalistas' eram a defesa das conquistas democráticas do povo, a resistência contra tentativas de golpes, a luta pelas reformas de base, a determinação em libertar a Pátria da espoliação estrangeira e a 'instauração de uma democracia autêntica e nacionalista'". Havia também uma ata padrão para a fundação de novos grupos. Ela  tinha o seguinte teor:

Nós, os 11 brasileiros abaixo assinados, constituímos um "Comando Nacionalista" (Rua__________, n.________, telefone__________________). Escolhemos para líder e comandante o companheiro___
____________e, nesta data, estamos também comunicando nossa decisão ao líder nacionalista Leonel Brizola de nossos objetivos: Defesa das conquistas democráticas de nosso povo, realização imediata das Reformas de Base (principalmente a Reforma Agrária), e a libertação de nossa Pátria da espoliação internacional, conforme a denúncia que está na Carta-Testamento do Presidente Getúlio Vargas.

Pelos cálculos do deputado Neiva Moreira, entre 60 e 70.000 militantes integraram os "grupos de 11 companheiros". Segundo o próprio Brizola, se formaram no Brasil em torno de 24.000 grupos. Formaram o embrião de um Partido Revolucionário. Todos estes movimentos foram contidos pela violência do regime implantado em 1964. Os dados para este post foram retirados do livro: 1964 - O golpe que derrubou um presidente, pôs fim ao regime democrático e instituiu uma ditadura no Brasil, de Jorge Ferreira e Angela de Castro Gomes, da Civilização Brasileira.

O livro é uma monumental peça para entender o período e proporciona uma bela reflexão do que, efetivamente, se entende por ordem e por legalidade. Nos obriga a buscar as suas origens, a sua constituição. Quem a constituiu e nos interesses de quem, é uma pergunta fundamental a ser feita. Ao longo de minha vida, repeti à exaustão o pensamento de Brecht que diz mais ou menos assim: "O que é violento: A água revolta e agitada de um rio ou as calmas e tranquilas margens que as comprimem?

quarta-feira, 9 de abril de 2014

A Ditadura que mudou o Brasil. 50 anos do golpe de 1964.

Não se assuste com o título do livro. Normalmente associamos a palavra mudança com melhoras, mas não é este o sentido do título deste livro. Ele faz análise das mudanças, das transformações, das consequências de um regime que demorou um tão longo tempo. Afinal, governar durante 21 anos e, da forma como eles bem entendiam, não poderia deixar de provocar mudanças. O regime militar interferiu em todos os setores da vida brasileira e provocou mudanças no que poderíamos chamar de  modernização conservadora autoritária, com profundas implicações sobre todos os setores da vida brasileira. O livro foi escrito no sentido de se entenderem estas mudanças.

Desta nova bibliografia que está surgindo e que até agora eu li, este é o livro mais significativo e objetivo. Cada um dos seus treze capítulos daria, perfeitamente, um livro inteiro. Então ele é marcado pela síntese dos temas que aborda, numa estrutura de conjunto. Ótimo material didático. São treze capítulos de umas 15 páginas, mais ou menos. Como são sínteses também fica difícil fazer o trabalho de resenha, pelos limites do texto. Mas vamos ver se conseguimos dar, ao menos, uma pequena ideia de cada capítulo. Alguns dos capítulos ganharão um post especial.
A Ditadura que Mudou o Brasil
Capa do livro organizado por Daniel Aarão Reis, Marcelo Ridenti e Rodrigo Patto Sá Motta, A Ditadura que mudou o Brasil - 50 anos do golpe de 1964, da Zahar.

Capítulo 1. A ditadura faz cinquenta anos: história e cultura política nacional estatista. Este capítulo leva a assinatura de Daniel Aarão Reis. Ele explana o conceito da cultura política nacional-estatista, mostra a sua gênese na ditadura do Estado Novo, sua continuidade com o governo JK, a sua retomada na ditadura civil-militar (Médici-Geisel) e ainda pela política econômica do governo Lula. Um texto interessantíssimo. O contraponto ao nacional-estatismo só poderia ser o internacionalismo liberal.

Capítulo 2. As oposições à ditadura: resistência e integração. A assinatura é de Marcelo Ridenti. Mostra as diferentes oposições que se formaram contra o golpe, como as pessoas identificadas e comprometidas com o regime anterior, demorando-se em descrever a oposição clandestina que se formou e que optou pela luta armada. Na sequência vem a abertura e toda a história da relação com a oposição institucional e os caminhos para a redemocratização.

Capítulo 3. A modernização autoritário-conservadora nas universidades e a influência da cultura política. A autoria é de Rodrigo Patto Sá Motta. Um capítulo extraordinário em que a palavra fundamental é modernização. Esta modernização necessitaria de suportes que foram buscados nas instituições universitárias e de pesquisa. Aparentemente uma grande contradição. Mas a pesquisa recebeu estímulos.

Capítulo 4. Mudanças sociais no período militar (1964-1985). Este capítulo leva duas assinaturas; Francisco Vidal Luna e Herbert S. Klein. A análise é bem abrangente e vai além das análises dos simples arrochos salariais. Mortalidade infantil, expectativa de vida, deslocamentos populacionais também entram na análise.

Capítulo 5. Transformações econômicas no período militar (1964-1985). Este capítulo leva as mesmas assinaturas do capítulo anterior. A análise mostra os diferentes modelos econômicos que foram adotados, bem como as divergências dentro do próprio sistema. O "milagre econômico" e o seu esgotamento também recebe a sua análise e de quebra, estes modelos dentro da conjuntura internacional também são destacados.

Capítulo 6. Revisitando o tempo dos militares. O texto de Renato Ortiz. No meu livro eu fiz uma anotação junto ao texto: Indústria cultural. Aqui vale de novo uma observação fundamental. A ditadura teve um caráter modernizador. O modernizador deste período foi a televisão como instrumento de comunicação de massa. Também a propaganda ganha destaque.

Capítulo 7. Para onde foi o "novo sindicalismo"? Caminhos e descaminhos de uma prática sindical. Duas assinaturas: Ricardo Antunes e Marco Aurélio Santana. Um capítulo para todos os sindicalistas lerem. Relata desde as origens do sindicalismo no Brasil, na era Vargas e o seu controle nos tempos da ditadura. Desta ditadura emanou o chamado "novo sindicalismo", fundamental na redemocratização do país e que forneceu ao país o seu líder mais popular e o seu ator político maior. Já no poder, os descaminhos. A verticalização.

Capítulo 8. A grande rebelião: os marinheiros de 1964 por outros farois. O capítulo é assinado por Anderson da Silva Almeida e ganhou no meu livro a seguinte anotação: memorável. A descrição é dos antecedentes do golpe. Uma história da elitizada marinha e a sua relação com os marinheiros, que eram os serviçais dos navios. Talvez a mais justificada de todas as revoltas e a que mais problemas causou para Jango.

Capítulo 9. O aparato repressivo: da arquitetura ao desmantelamento. A assinatura é de Mariana Joffily. Vejam a clareza de um título. Nele são mostrados os meios de repressão já existes e os novos que foram criados, bem como os meios de tortura que foram mais utilizados e de como ela virou política e prática de Estado. Os novos organismos estavam diretamente vinculados à presidência. Com a redemocratização desaparece a sua nomenclatura.

Capítulo 10. A Anistia de 1979 e seus significados, ontem e hoje. Outro título muito bem colocado por Carla Simone Rodeghero, a autora do texto. Ela trata de conceitos e de história de anistia no Brasil, a de 1945 e a de 1979 e faz belas análises sobre a anistia, que poupou os torturadores do regime militar, de seus crimes. Isto está sendo novamente discutido. Tenho a lembrar que o Brasil é o país que está mais atrasado na investigação dos crimes de Estado cometidos ao longo do regime.

Caricatura do General Médici, o homem de Bagé. Os anos de chumbo soterraram os anos de ouro. A memória negativa prevaleceu sobre os efeitos da propaganda e do milagre econômico.

Capítulo 11. Por que lembrar? A memória coletiva sobre o governo Médici e a ditadura em Bagé. Adorei este capítulo assinado por Janaína Martins Cordeiro. Ela analisa o comportamento dos cidadãos de Bagé em relação ao seu conterrâneo presidente. O presidente dos anos de ouro do regime, do milagre econômico, mas que foram sobrepostos e soterrados pelos anos de chumbo da repressão.

Capítulo 12. O engajamento, entre a intenção e o gesto: o campo teatral brasileiro durante a ditadura militar. O texto é de autoria de Miriam  Hermeto. A análise do teatro brasileiro é feita tendo como base a peça Gota D'Água, de Chico Buarque de Holanda.

Capítulo 13. Política externa do Brasil: continuidade em meio à descontinuidade, de 1961 a 2011. Um texto muito rico de análise das diferentes teses da diplomacia brasileira, entre tentativas de autonomia e de atrelamento à política americana. Como o título dá a entender, houve idas e voltas nestas políticas. O texto tem a autoria de Miriam Gomes Saraiva e Tullo Vegevani.

É muito difícil, num livro desta amplitude, você não ter algo mais específico, que te chame a atenção mais diretamente. Ele contém ótimos elementos para serem debatidos em sala de aula e em outros grupos de estudos e de debates. 

segunda-feira, 7 de abril de 2014

1964 - O golpe que derrubou um presidente, pôs fim ao regime democrático e instituiu a ditadura no Brasil.

Um dos livros mais completos que apareceu sobre o entorno do golpe civil militar de 31 de março, 1º de abril de 1964 é o livro de Jorge Ferreira e Angela de Castro Gomes, 1964 - O golpe que derrubou um presidente, pôs fim ao regime democrático e instaurou a ditadura no Brasil. O autor e a autora são historiadores. A edição é da Civilização Brasileira. É um, entre tantos livros, que apareceram por ocasião da passagem dos cinquenta anos deste triste evento do golpe, que se transformou na mais brutal e na mais longa ditadura no Brasil.
Um relato minucioso do que foi o Brasil de 1961 a 1964, ou seja, do governo de Jango.

O livro, de 419 páginas, faz um retrato amplo e detalhado do que foi o governo de João Goulart, em seus quase três anos a frente do governo brasileiro, primeiro sob o regime parlamentarista e depois com os poderes amplos do regime presidencialista, poderes que lhe foram restituídos por plebiscito. Este foi um dos períodos mais conturbados de nossa história, em que nenhum único fato, foi obra do acaso. Havia forças políticas em disputa, tão díspares, que um equilíbrio para a sustentação no poder, era uma tarefa quase impossível. A narrativa abrange, desde o mês de agosto de 1961, com a renúncia de Jânio Quadros, até os idos de abril de 1964, quando já se vislumbrava que o golpe desembocara numa ditadura, de desfechos imprevisíveis. A história é contada ao longo de 23 capítulos.

As fontes usadas pelos historiadores são os editoriais da imprensa deste período, pronunciamentos oficiais dos governantes e parlamentares, das lideranças sindicais e dos líderes dos movimentos sociais, como as Ligas Camponesas. O olhar dos historiadores observa a dinâmica histórica do período, com a movimentação das forças que disputavam o poder, em busca da construção de hegemonia. Assim, eles se detém no governo de Jânio Quadros, especialmente na sua renúncia e no quadro de sua sucessão. Para o ministro da guerra de Jânio, o marechal Odílio Denys, Jango não era um homem confiável e, portanto, não deveria assumir. Coisas da guerra fria e da ideologia da segurança nacional.

A historiadora Angela de Castro Gomes, uma das autoras do livro, no seu lançamento no RJ.

Jango, nestes dias de turbulência, se encontrava em missão diplomática na China. Poderosas forças articulam no sentido de que Jango não tomasse posse. Jango tinha todo um passado vinculado a Vargas e ao trabalhismo e o seu nome causava fortes reações. O marechal Odílio Denys, ministro da guerra de Jânio, tudo fez para que Jango não assumisse o poder, o que implicava numa quebra da constitucionalidade. Leonel Brizola garante a legalidade, num movimento heroico e épico. Em negociações posteriores Jango concorda em assumir o poder de forma limitada, sob o regime parlamentarista, para a irritação de Brizola. Um plebiscito popular devolve a Jango o poder sob o sistema presidencialista. A marca registrada que Jango queria deixar de seu governo, seriam as reformas de base, em especial, a reforma agrária. As forças em disputa se tornaram então beligerantes.
 
Os historiadores, autores de 1964, Jorge Ferreira e Angela de Castro Gomes, no lançamento do livro no RJ.

Jango procurava conciliar, o que convenhamos, não é nada fácil, quando as diversas forças já se encontravam em estado de guerra. Este clima ocupa muitas e muitas das páginas do livro. De um lado estão os grupos há muito tempo conhecidos na história brasileira, que são as forças do liberalismo internacional e os seus asseclas brasileiros, capitaneados pela UDN, de Carlos Lacerda e dos governadores Magalhães Pinto e Ademar de Barros, que tinha um partido próprio. A estas forças somavam-se as instituições do IBAD e do IPES, amplamente financiadas pela CIA e que se encarregavam da propaganda e da agitação política. Eram as forças civis que se articulavam com setores do exército e que estariam, mais tarde, à frente do golpe.

 Jango buscava a governabilidade e a maioria parlamentar para viabilizar as reformas de base, com o seu PTB, aliado ao PSD.  Mesmo dentro destes blocos não havia unidade. Interesses particulares, egos inflados e a sucessão fazia com que cada um guiasse os seus próprios passos. As esquerdas, numa expressão de San Tiago Dantas, eram divididas em esquerda positiva (Jango, Arraes e o próprio Dantas) e a esquerda negativa (Brizola, Prestes e Francisco Julião e, ainda, a poderosa CGT)). Os dias começam a ficar mais difíceis para Jango, quando ele se aproxima da esquerda negativa, usando a expressão de Dantas. Antes Jango já abandonara o Plano Trienal, o seu plano de governo, elaborado por San Tiago Dantas e Celso Furtado. A inflação começa a pesar contra Jango. No cenário externo, Jango terá em John Kennedy, um "mui amigo".
Jorge Ferreira também é autor de uma bela biografia de João Goulart, lançada em 2011.

Jango começa a perder o aparelho militar com a questão dos sargentos em Brasília, ainda em 1963, e com a questão dos marinheiros, já em março, quase às vésperas, no Rio de Janeiro. Estes dois episódios são preponderantes para a compreensão da sequência da crise. O Comício da Central do Brasil, o levante dos marinheiros e as últimas tentativas de se manter no poder ocupam as páginas finais do livro, quando também envereda pelos primeiros e desastrados movimentos do golpe, do qual derivou a mais longa e a mais violenta ditadura da história brasileira.  Volto ao livro, em novos posts, com alguns temas mais específicos.
É um livro imprescindível para quem efetivamente quiser fazer um julgamento criterioso deste período, sem se deixar levar pelo senso comum, normalmente eivado de paixões, tanto pelo lado dos defensores de Jango, bem como por parte de seus detratores. Se me permitirem, apresento a sugestão de verem o documentário deste período, intitulado Jango,dirigido por Sílvio Tendler. Este documentário é narrado pelo José Wilker. Desta forma também homenageamos este grande nome do cinema e da televisão brasileira, que acabamos de perder.

terça-feira, 1 de abril de 2014

Gracias a la Vida. Memórias de um militante. Cid Benjamin.

Por ocasião da passagem dos cinquenta anos do golpe militar que quebrou a ordem democrática e instaurou a ditadura civil-militar no Brasil, uma nova e variada bibliografia está surgindo. Muitos destes livros são memórias de militantes, outros são frutos de pesquisa, com a disponibilização pública de alguns documentos do período, outros são de novas reflexões e interpretações do período. Em suma já existe uma farta literatura a respeito do mais tenebroso período de nossa história. Outros ainda deverão vir, com os trabalhos da Comissão Nacional da Verdade e com a abertura de arquivos que ainda permanecem secretos. Comprei um série destes novos livros e também alguns que estão por aí, há um bom tempo.
Gracias a la vida, memórias de um militante, de Cid Benjamin, da José Olympio.

O primeiro que li foi Gracias a la vida - Memórias de um militante,de autoria de Cid Benjamin. Por que este? É muito simples. Tive um período de proximidade com outro Benjamin, o César, que vim a saber, ser o seu irmão mais novo. César foi meu professor num projeto de formação de quadros, na escola do Cajamar, uma escola de formação de quadros para o Partido dos Trabalhadores. Isto foi ao final da década de 1980. Nos anos 1990 fui para a direção estadual da APP-Sindicato e volta e meia convidávamos o César para os nossos congressos e trabalhos de formação. Depois ainda o acompanhei no movimento chamado Consulta Popular. Chegou a ser candidato a vice-presidente, pelo PSOL, na chapa com Heloísa Helena. O perdi, após a publicação de um certo artigo na Folha de S.Paulo. César foi uma das inteligências mais brilhantes que eu conheci.

O livro de memórias de Cid faz muito sentido. Ele é dividido em capítulos e cada capítulo tem uma frase em epígrafe, sempre com um extraordinário significado. A sua abrangência vai dos anos 1970, após os anos de chumbo e a opção de muitos grupos de militantes da esquerda, pela luta armada. Fala ainda da fundação e da ascensão do PT ao poder e a sua desilusão com ele e, à sua nova opção de militância política através do PSOL. Cid iniciou a sua militância numa dissidência estudantil do PCB, o partidão, da qual resultou o MR-8. Gosto dos livros que tem uma certa distância dos fatos. O tempo amadurece a análise e a interpretação. O livro foi escrito ao longo do ano de 2013.
Avivamento da memória. Visitando os locais terríveis.


Os horrores na vida de Cid começaram no 21 de abril, dia de Tiradentes, do ano de 1970. O dia de sua queda. Descreve todo o cenário que levou à ditadura e a opção da esquerda pela luta armada, vista à época, como a única opção de enfrentamento. Narra os horrores das torturas no DOI-CODI do Rio de Janeiro, a sua passagem pelo Dops para os inquéritos militares, um paraíso perto do inferno que fora o DOI-CODI. Passa pela narrativa do sequestro do embaixador americano Charles Burke Elbrick, do qual participou, pelas ações da guerrilha urbana, pela sua libertação após o sequestro do embaixador alemão Von Holleben e pela sua longa vida de exilado político, na Argélia, no Chile, no México, em Cuba e finalmente na Suécia. De cada período sobram observações muito interessantes e perspicazes.

Um dos mais belos capítulos é A opção pela militância. Nele narra a sua convivência familiar e estudantil e dá um belo perfil de seu pai, Ney, que construiu toda a sua vida através da carreira militar. Valorizava os atributos como "honestidade, lealdade, coerência e coragem" e nunca passou aos filhos "a ideia de que 'vencer na vida' era ganhar dinheiro". De sua mãe, Iramaya, destaca o espírito irrequieto e o seu gosto pela militância, especialmente adquirida na luta pela liberdade de seus filhos. Teve destaque especial nas lutas pela anistia. Seus estudos básicos foram feitos na Escola de Aplicação da UFRJ, universidade na qual ingressou, no curso de engenharia, num período em que já se dedicava mais à militância do que aos estudos.

Junto a um amigo. Hoje Cid Benjamin milita no PSOL.

As descrições sobre o exílio são interessantes e fornecem dados sobre a vida do Chile de Allende, de Cuba e as suas experiências socialistas, especialmente no campo da economia e nos dá também uma bela ideia do que foi a social democracia sueca. Foi na Suécia que viveu por mais tempo. Adaptações e readaptações em todos os setores da vida, sem nunca atingir estabilidade. A sua volta ao Brasil se deu em 1979, pela Lei da Anistia, de 28 de agosto daquele ano. Novas adaptações e novas lutas.

A sua trajetória pós exílio pode ser vista em três capítulos em que um jogo com a palavra estrela nos dá as pistas de sua nova caminhada. A hora e a vez da estrela, A estrela perde o brilho e A estrela se apaga. A hora e a vez da estrela ganha a seguinte frase em epígrafe: "Estrela de luz - Que me conduz - Estrela que me faz sonhar", do samba de Paulinho Mocidade, Dico da Viola e Moleque Silveira. Já A estrela perde o brilho ganha epígrafe com esta frase de Oscar Wilde: "Chamamos de ética as coisas que as pessoas fazem quando todos estão olhando. Chamamos de caráter as coisas que as pessoas fazem quando ninguém está olhando" e, finalmente, um outro samba é escalado para A estrela se apaga. "O que soube a seu respeito - Me entristeceu, ouvi dizer - Que pra subir, você desceu - Você desceu". Mauro Duarte, no samba "Lama". Creio que comentários não são necessários.

Estes capítulos mostram a importância histórica do PT e o seu desvio de rumos. São excelentes para o PT fazer uma autocrítica, se isso é possível. Mostra os avanços sociais representados pelo PT, enquanto governo, o que faz com que, quando em segundo turno, ainda vote neste partido. Mas não vê mais no PT o caminho para as transformações republicanas e socialistas de que o país necessita. Fala das denúncias feitas por Paulo de Tarso Venceslau, ainda no governo de Jacob Bittar em Campinas e a atuação de Roberto Teixeira, o super amigo de Lula. As acusações de Paulo de Tarso não encontraram eco no partido. Pelo contrário, este o expulsou de seus quadros.

Memórias dos tempos da repressão.

Cid Benjamin praticamente ganhou a vida como jornalista. Fez coberturas que tiveram repercussão, mas que também o incompatibilizaram com dirigentes do PT. Uma importante cobertura que fez, para o Jornal do Brasil, foi a morte de Celso Daniel. Fala que se o PT tivesse ouvido e tivesse tirado as lições do caso de Santo André e antes, da CPEM, a empresa do amigo de Lula, o Roberto Teixeira, certamente não teria chegado até o caso do mensalão. Também faz ásperas críticas aos chamados consultores dentro do PT, nome de fachada para o exercício de tráfego de influências. Os nominados são todos conhecidos da imprensa brasileira. Também aponta para onde o PT não conseguiu chegar e que seriam os pontos essenciais para uma verdadeira transformação socialista e republicana no Brasil.

Sim, o título do livro. Iramaya, sua mãe fora visitá-lo no Chile. Mais tarde ela escreveu um livro, Ofício de mãe. Nele se lê o seguinte, sobre esta visita: "Todos os móveis - mesa, cadeira e cama - eram rústicos, feitos pelo próprio Cid. O que ele tinha mesmo era um violão. Cheguei lá e encontrei o Cid, feliz, sentado na cama feita por caixotes, recostado na parede, tocando violão e cantando "Gracias a la vida, que me ha dado tanto...' E aquela pobreza franciscana". No Chile, Cid frequentava um bar - Peña de los Parra - de Isabel e Angel, filhos de Violeta Parra.