Em meus arquivos encontrei este precioso texto do geógrafo, professor da USP, Milton Santos. Este artigo foi publicado pela Folha de S.Paulo, no dia 24 de janeiro de 1999. Eu o usei em sala de aula à exaustão. Ele faz uma análise da educação em tempos de Globalização. A globalização foi um dos grandes temas do final de sua vida. Os resultados da educação em tempos de globalização foram desastrosos. Formou verdadeiros deficientes cívicos. Como Milton Santos morreu em 2001, este artigo também pode ser considerado como uma de suas despedidas da vida. Vejamos.
O artigo do professor Milton Santos. Os deficientes cívicos seriam o resultado do processo educacional sob os valores da globalização. A competição substituiu a solidariedade.
Os Deficientes Cívicos.
O artigo do professor Milton Santos. Os deficientes cívicos seriam o resultado do processo educacional sob os valores da globalização. A competição substituiu a solidariedade.
"Em tempos de globalização, a discussão sobre os objetivos da educação é fundamental para a definição do modelo de país em que viverão as próximas gerações.
Em cada sociedade, a educação deve ser concebida para atender, ao mesmo tempo, ao interesse social e ao interesse dos indivíduos. É da combinação desses interesses que emergem os seus princípios fundamentais e são estes que devem nortear a elaboração dos conteúdos do ensino, as práticas pedagógicas e a relação da escola com a comunidade e com o mundo.
O interesse social se inspira no papel que a educação deve jogar na manutenção da identidade nacional, na ideia de sucessão das gerações e de continuidade da nação, na vontade de progresso e na preservação da cultura. O interesse individual se revela pela parte que é devida à educação na construção da pessoa, em sua inserção afetiva e intelectual, na sua promoção pelo trabalho, levando o indivíduo a uma realização plena e a um enriquecimento permanente. Juntos, o interesse social e o interesse individual da educação devem também constituir a garantia de que a dinâmica social não será excludente.
Uma formação plena se daria pelo equilíbrio entre a formação filosófica e a formação para o trabalho.
Uma formação plena se daria pelo equilíbrio entre a formação filosófica e a formação para o trabalho.
Em todos os casos a sociedade será sempre tomada como um referente, e, como ela é sempre um processo e está sempre mudando, o contexto histórico acaba por ser determinante dos conteúdos da educação e da ênfase a atribuir aos seus diversos aspectos, mesmo se os princípios fundamentais permanecem intocados ao longo do tempo. Foi dessa forma que se deu a evolução da ideia e da prática da educação durante os últimos séculos, paralelamente à busca de formas de convivência civilizada, alicerçada em uma solidariedade cada vez mais sofisticada.
As modalidades sucessivas da democracia como regime político, social e econômico levaram, no após guerra, à social democracia. A história da civilização se confundiria com a busca, sempre renovada, e o encontro das formas práticas de atingir aqueles mencionados princípios fundamentais da educação, sempre a partir de uma visão filosófica e abrangente do mundo.
Esse esforço, para o qual contribuíram filósofos, pedagogos e homens de Estado, acaba por erigir como pilares centrais do sistema educacional: o ensino universal (isto é, concebido para atingir a todas as pessoas), igualitário (como garantia de que a educação contribua a eliminar desigualdades), progressista (desencorajando preconceitos e assegurando uma visão de futuro). Daí, os postulados indispensáveis de um ensino público, gratuito e leigo (esta palavra sendo usada como sinônimo de ausência de visões particularistas e segmentadas de mundo) e, dessa forma, uma escola apta a formar cidadãos integrais e indivíduos fortes. Aliás, foram essa as bases da educação republicana, na França e em outros países europeus, baseada na noção de solidariedade social exercida coletivamente como um anteparo, social e juridicamente estabelecido, às tentações da barbárie.
O professor Milton Santos foi exilado político durante a ditadura militar. Na volta, professor na USP.
O professor Milton Santos foi exilado político durante a ditadura militar. Na volta, professor na USP.
A globalização, como agora se manifesta em todas as partes do planeta, funda-se em novos sistemas de referência, em que noções clássicas, como a democracia, a república, a cidadania, a individualidade forte, constituem matéria predileta do marketing político, mas, graças a um jogo de espelhos, apenas comparecem como retórica, enquanto são outros os valores da nova ética, fundada num discurso enganoso, mas avassalador.
Em tais circunstâncias, a ideia de emulação é compulsoriamente substituída pela prática da competitividade, o individualismo como regra de ação erige o egoísmo como comportamento quase obrigatório, e a lei do interesse sem contrapartida moral supõe como corolário a fratura social e o esquecimento da solidariedade. O mundo do pragmatismo triunfante é o mesmo do "salve-se quem puder", do "vale tudo", justificados pela busca apressada de resultados cada vez mais autocentrados, por meio de caminhos sempre mais estreitos, levando ao amesquinhamento dos objetivos, por meio da pobreza das metas e da ausência de finalidades. O projeto educacional atualmente em marcha é tributário dessas lógicas perversas. Para isso, sem dúvida, contribuem: a combinação atual entre a violência do dinheiro e a violência da informação, associadas na produção de uma visão embaralhada do mundo; a perplexidade diante do presente e do futuro; um impulso para ações imediatas que dispensam a reflexão, essa cegueira radical que reforça as tendências à aceitação de uma existência instrumentalizada.
É nesse campo de forças e a partir desse caldo de cultura que se originam as novas propostas para a educação, as quais poderíamos resumir que resultam da ruptura do equilíbrio, antes existente, entre uma formação para a vida plena, com a busca do saber filosófico, e uma formação para o trabalho com a busca do saber prático.
A globalização foi tema que muito preocupou o grande estudioso. Ela poderia ter efeitos perversos.
Esse equilíbrio, agora rompido, constituía a garantia da renovação das possibilidades de existência de indivíduos fortes e de cidadãos íntegros, ao mesmo tempo em que se preparavam as pessoas para o mercado. Hoje, sob o pretexto que é preciso formar os estudantes para obter um lugar num mercado de trabalho afunilado, o saber prático tende a ocupar todo o espaço da escola, enquanto o saber filosófico é considerado como residual ou mesmo desnecessário, uma prática que, a médio prazo, ameaça a democracia, a República, a cidadania a individualidade. Corremos o risco de ver o ensino reduzido a um simples processo de treinamento, a uma instrumentalização das pessoas, a um aprendizado que se exaure precocemente ao sabor das mudanças rápidas e brutais das formas técnicas e organizacionais do trabalho exigidas por uma implacável competitividade.
Daí a difusão acelerada de propostas que levam a uma profissionalização precoce, à fragmentação da formação e a educação oferecida segundo diferentes níveis de qualidade, situação em que a privatização do processo educativo pode constituir um modelo ideal para assegurar a acumulação das conquistas sociais dos últimos séculos. A escola deixará de ser o lugar de formação de verdadeiros cidadãos e tornar-se-á um celeiro de deficientes cívicos.
Já os gregos se preocupavam a formação integral do ser humano. Um dos mais belos livros sobre a educação. O homem -"Constituído de modo correto e sem falhas, nas mãos, nos pés e no espírito".
É a própria realidade da globalização - tal como é praticada atualmente - que está no centro desse debate, porque com ela se impuseram ideias sobre o que deve ser o destino dos povos, mediante definições ideológicas sobre o crescimento da economia, como a chamada competitividade entre os países. As propostas vigentes para a educação são uma consequência, justificando a decisão de adaptá-la para que se torne ainda mais instrumental à aceleração do processo globalitário. O debate deve ser retomado pela raiz, levando a educação a reassumir aqueles princípios fundamentais com que a civilização assegurou a sua evolução nos últimos séculos - os ideais de universalidade, igualdade e progresso -, de modo que ela possa contribuir para a construção de uma globalização mais humana, em vez de aceitarmos que a globalização perversa, tal como agora se verifica, comprometa o processo de formação das novas gerações".
Em tais circunstâncias, a ideia de emulação é compulsoriamente substituída pela prática da competitividade, o individualismo como regra de ação erige o egoísmo como comportamento quase obrigatório, e a lei do interesse sem contrapartida moral supõe como corolário a fratura social e o esquecimento da solidariedade. O mundo do pragmatismo triunfante é o mesmo do "salve-se quem puder", do "vale tudo", justificados pela busca apressada de resultados cada vez mais autocentrados, por meio de caminhos sempre mais estreitos, levando ao amesquinhamento dos objetivos, por meio da pobreza das metas e da ausência de finalidades. O projeto educacional atualmente em marcha é tributário dessas lógicas perversas. Para isso, sem dúvida, contribuem: a combinação atual entre a violência do dinheiro e a violência da informação, associadas na produção de uma visão embaralhada do mundo; a perplexidade diante do presente e do futuro; um impulso para ações imediatas que dispensam a reflexão, essa cegueira radical que reforça as tendências à aceitação de uma existência instrumentalizada.
É nesse campo de forças e a partir desse caldo de cultura que se originam as novas propostas para a educação, as quais poderíamos resumir que resultam da ruptura do equilíbrio, antes existente, entre uma formação para a vida plena, com a busca do saber filosófico, e uma formação para o trabalho com a busca do saber prático.
A globalização foi tema que muito preocupou o grande estudioso. Ela poderia ter efeitos perversos.
Esse equilíbrio, agora rompido, constituía a garantia da renovação das possibilidades de existência de indivíduos fortes e de cidadãos íntegros, ao mesmo tempo em que se preparavam as pessoas para o mercado. Hoje, sob o pretexto que é preciso formar os estudantes para obter um lugar num mercado de trabalho afunilado, o saber prático tende a ocupar todo o espaço da escola, enquanto o saber filosófico é considerado como residual ou mesmo desnecessário, uma prática que, a médio prazo, ameaça a democracia, a República, a cidadania a individualidade. Corremos o risco de ver o ensino reduzido a um simples processo de treinamento, a uma instrumentalização das pessoas, a um aprendizado que se exaure precocemente ao sabor das mudanças rápidas e brutais das formas técnicas e organizacionais do trabalho exigidas por uma implacável competitividade.
Daí a difusão acelerada de propostas que levam a uma profissionalização precoce, à fragmentação da formação e a educação oferecida segundo diferentes níveis de qualidade, situação em que a privatização do processo educativo pode constituir um modelo ideal para assegurar a acumulação das conquistas sociais dos últimos séculos. A escola deixará de ser o lugar de formação de verdadeiros cidadãos e tornar-se-á um celeiro de deficientes cívicos.
Já os gregos se preocupavam a formação integral do ser humano. Um dos mais belos livros sobre a educação. O homem -"Constituído de modo correto e sem falhas, nas mãos, nos pés e no espírito".
É a própria realidade da globalização - tal como é praticada atualmente - que está no centro desse debate, porque com ela se impuseram ideias sobre o que deve ser o destino dos povos, mediante definições ideológicas sobre o crescimento da economia, como a chamada competitividade entre os países. As propostas vigentes para a educação são uma consequência, justificando a decisão de adaptá-la para que se torne ainda mais instrumental à aceleração do processo globalitário. O debate deve ser retomado pela raiz, levando a educação a reassumir aqueles princípios fundamentais com que a civilização assegurou a sua evolução nos últimos séculos - os ideais de universalidade, igualdade e progresso -, de modo que ela possa contribuir para a construção de uma globalização mais humana, em vez de aceitarmos que a globalização perversa, tal como agora se verifica, comprometa o processo de formação das novas gerações".
Oi Antonio. Este texto é uma espécie de testamento do Milton Santos. ´Realmente fantástico. Agradeço o seu belo comentário.
ResponderExcluirFormidável!
ResponderExcluirÉ um dos textos mais fabulosos sobre educação que eu conheço. Obrigado pela sua manifestação.
ResponderExcluirPROFESSOR MILTON SANTOS E SEU LEGADO . Referência brasileira no mundo todo. Gratidão professor!
ResponderExcluirLeni, que bela percepção do Milton Santos. Não canso de repetir que este é um dos mais belos textos sobre a educação. Muito agradecido pelo seu comentário.
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