sábado, 25 de fevereiro de 2017

Moonlight - Sob a luz do luar. Barry Jenkins.

O que faz com que um filme receba a indicação para concorrer ao prêmio maior do cinema americano? Obviamente que a simples indicação já é um grande prêmio, que necessariamente se traduzirá em maior bilheteria. Méritos ele terá que ter. Moonlight - sob a luz do luar, não apenas recebeu a indicação. É apontado como um dos favoritos.

Moonlight. Temas humanos complexos tratados com muita sensibilidade.

O maior mérito do filme reside na abordagem de um delicado tema universal, qual seja, a da busca de identidade, situação agravada por se tratar de alguém, um menino negro, gay e residir na periferia. E não é qualquer periferia. Trata-se de Miami,  a cidade que deve produzir o maior PIB de ódio do mundo. Junto com o ódio, o destilar de preconceitos. Mas esta abordagem o filme não faz. Ele é de uma delicadeza extraordinária. Nele não são feitos juízos morais, tão próprios ao nosso tempo.

Na periferia de Miami existe um pequenino (Little), frágil e vulnerável menino, que nem nome direito tem, muito menos uma identidade. Apenas a sua mãe o chama de Chiron. O seu olhar diz tudo. Em suas primeiras cenas ele já aparece em fuga. Mas a história não se escreve por linhas retas e, entre as suas tortuosidades e entrecruzamentos, um traficante (Juan - Mahershala Ali), aquele que fornece as drogas para Paula (Naomie Harris), a mãe, ampara o menino, numa espécie de papel de um pai inexistente. Um mínimo de palavras são arrancadas do tímido e afugentado menino. O silêncio e o isolamento são a sua defesa. Por uma pergunta ao seu protetor, busca uma resposta por aquilo que o incomoda em seu bullying infantil. O que é ser bicha? A triste infância do pequenino é a primeira parte do filme (Little). Juan além de protetor permanecerá na vida de Little, também como uma espécie de inspirador, de modelo.

Com a ajuda de seu protetor entra em sua fase de vida adolescente. O bullying só aumenta e é acrescido com fortes doses de violência. Apanha pesadamente. Não conta mais com ninguém. Quem lhe é mais próximo será Kevin, com quem fuma um baseado e quem lhe dará o apelido que o acompanhará na vida adulta, Black. Os dois se tocam. Chiron também sonha vendo relações sexuais. É a sexualidade aflorando e buscando identidade.

Na fase adulta de Chiron, o Black aparece bem diferente. Continua silencioso, mas é tomado de força. Toma decisões. O seu personagem lembra o de Juan, do primeiro episódio. Anda num carro semelhante ao de Juan. Kevin lhe liga. Fala de sua vida, da profissão de cozinheiro e das lembranças que dele tem. Black vai ao seu encontro. O encontra em um restaurante e lhe faz o prato do chefe. Trocam poucas palavras, entre três garrafas de vinho, mas o suficiente para saber que Black mudara para Atlanta, onde agora se ocupa com o tráfico. Perdeu toda a timidez e se dá bem no negócio. Trocam algumas palavras, agora sim em meio a timidez, sobre a sexualidade. Black confessa a Kevin que ele foi o único a lhe tocar o corpo.

Litle, Chiron e Black, o mesmo personagem em três momentos diferentes, encontrara a sua identidade. Um menino negro, gay e da periferia encontrou o seu caminho. Na abordagem serena destes temas da busca da identidade, da definição da sexualidade e das travas da sociedade, embora o sistema capitalista seja chamado de sociedade aberta, voltada para a abertura de oportunidades, para o encaminhamento na vida econômica pelo trabalho. O jeito foi reproduzir a continuidade do que herdara de sua infância. Um protetor, espécie de pai, traficante e uma mãe usuária de drogas. Este foi o mundo que lhe abriu oportunidades.

Um dos grandes méritos do filme é o de não fazer nenhum juízo moral. Apenas mostra a realidade. O filme tem direção e roteiro (gosto destes filmes - me evocam a práxis) de Barry Jenkins e tem indicação a oito Oscars, alguns na parte técnica, o que também indica para a sua qualidade neste campo. As indicações são as de melhor filme, melhor diretor e melhor roteiro adaptado (Barry Jenkins), melhor ator coadjuvante (Mahershala Ali no papel de Juan, o protetor de Little), melhor atriz coadjuvante (Naomie Harries, Paula, a mãe), melhor fotografia, edição e trilha original. Divide com La, la lande o favoritismo pelo troféu maior. A luz do luar, referida no título, torna o negro azul. Deve ter dados biográficos do diretor, ao menos de sua infância.

quarta-feira, 22 de fevereiro de 2017

Lion: Uma jornada para casa. Garth Davis.

Mais um grande filme, entre os que levam a indicação ao Oscar máximo, nesta temporada de 2017. Trata-se de Lion: Uma jornada para casa. Trata-se de um filme extremamente sensível e humano, com a abordagem de relevantes temas, como o são os da adoção e das relações familiares que passam a se estabelecer. A reconciliação com o passado também está fortemente presente. Pobreza extrema e bem-estar, também.


O filme é baseado em uma história real. No interior da Índia vivia, em extrema pobreza, uma mãe e seus dois filhos, Guddu e Saroo. Os dois a ajudam na difícil tarefa da sobrevivência. Saroo, aos cinco anos se mostra extremamente prestativo em ajudar nas tarefas, mas numa delas, se desprende do irmão e vai parar a 1.600 quilômetros de distância, na cidade grande de Calcutá. A sobrevivência se torna mais pesada ainda. O seu drama apenas começa.

Aí cenas ligadas à pobreza são mostradas. Como são bem conhecidas, não precisamos explicitá-las. Por esperteza e desconfiança o menino se salva do tráfico de crianças, mas acaba parando num orfanato, no pior conceito da palavra. Contudo, auxiliado pela sorte, é adotado por pais australianos, da ilha de Tasmânia. Aí encontra todo o conforto, que nunca tivera. Aparentemente, todos os seus problemas acabaram.

Vai crescendo, levando uma vida normal e chega à vida universitária. Se enamora, tem relações difíceis com um irmão, Mantosh, também adotado, e mantém com os pais adotivos uma relação aparentemente razoável. Mas aí o seu passado começa a falar. Sonha com ele e busca um reencontro com a sua família biológica e com a sua Índia natal. Esta busca é mediada pela tecnologia, pelo Google.

A partir desse momento as relações se complicam. Só desentendimentos, com o irmão, com a namorada e até com os seus compreensivos pais. Fixa-se na obsessão do reencontro com o seu passado. Entre as constantes buscas, ocorre uma das cenas mais bonitas do filme, um encontro de conversa franca com a mãe, que lhe explica as razões e a felicidade pela adoção. Os adotaram por opção. O casal poderia ter filhos, mas por opção, escolheram proporcionar o bem-estar a dois meninos pobres. Os seus problemas, aparentemente não impediam a felicidade do casal. Mantosh é bem mais problemático, desde a sua infância.

 Finalmente Saroo localiza a sua cidadezinha na Índia e, vinte anos após dela ter-se perdido, busca a volta. O Google o ajudou a localizar até a casa em que morara, mas ali não encontrou mais ninguém. O problema foi resolvido pelos moradores, que logo promoveram o reencontro com a mãe, mas não com Guddu, vitimado logo após o desencontro. Cenas de grande emoção estão reservadas para momentos de tão difíceis reencontros. A população inteira festeja.

Nas cenas finais são revividos os principais acontecimentos e é mostrada a questão da adoção, especialmente das crianças mais pobres da Índia e louvores são feitos às organizações que a ela se dedicam.

O filme, uma produção dos Estados Unidos, Inglaterra e Austrália, tem a direção do australiano Garth Davis, conhecido no meio publicitário como diretor de comerciais. O filme tem seis indicações a Oscar. O de melhor filme, de melhor roteiro adaptado, o de melhor ator coadjuvante (Dev Patel, no papel do jovem Saroo), o de melhor atriz coadjuvante (Nicole Kidman, a mãe adotiva de Saroo), o de melhor fotografia e de melhor trilha sonora. Mas quem ganhou mesmo o público foi o Saroo menino, interpretado por uma criança indiana, de nome Sunny Pawar. A indicação de Dev Patel como melhor ator coadjuvante causou estranheza, não pelo desempenho, mas pelo papel de protagonista, certamente pela divisão do papel de Saroo.

Eu não ia fazer referência a uma crítica que eu vi, por ser ela meio desairosa. O crítico fez uma comparação do filme com um programa de televisão em que o apresentador patrocina a volta para casa de personagens nordestinos que moram em São Paulo. Só o faço, porque na hora do final, eu mesmo me lembrei de um programa de noticiário aqui de Curitiba, que promove o reencontro de pessoas desaparecidas. Mas nem por isso o filme deixa de ser grandioso, emocionante e com um bela mensagem em um mundo que rapidamente trilha pelos caminhos da desumanização.

Quanto ao nome Lion, no título do filme, eu não conto. Tem que assistir o filme até o seu final. E quem quiser saber tudo sobre esta incrível história real poderá encontrá-la no livro Uma longa jornada para casa, escrita pelo próprio Saroo Brierley. Uma edição da Editora Record, 224 páginas, a R$ 34,90.


terça-feira, 21 de fevereiro de 2017

Manchester à beira mar. Kenneth Loregan.

Manchester à beira mar nada tem a ver com a cidade inglesa, berço da industrialização. A Manchester do filme é uma pequena cidadezinha, à beira mar, sim. É um centro pesqueiro e de turismo. O cenário é de um inverno extremamente rigoroso. Nas primeiras cenas aparece um barco e um pai brincando com o seu filho adolescente.


Em outro cenário, agora em Boston, aparece um fac totum, que vai levando a sua vida, não tão tranquila. Ele é zelador em vários prédios e se ocupa da remoção da neve, de reparar torneiras pingando e desentupindo pias, para pessoas nem sempre bem humoradas. O seu humor era ácido e pouco procurava conversar, mesmo com aquelas pessoas que, explicitamente, lhe manifestavam as suas carências. O personagem chama atenção. Raros momentos de conversas e cenas solitárias em bar era a monotonia de sua vida. Um olhar meio atravessado bastava para tudo terminar em pancadaria. Lee Chandler era o seu nome e, seguramente, era uma pessoa muita perturbada.

Esta sua rotina é interrompida por um telefonema que chega de Manchester. Neste telefonema veio a triste notícia do falecimento de seu irmão, que é exatamente aquele pai que brincava com o filho no barco pesqueiro. Cenas de duro cotidiano da burocracia se seguem. Liberação do cadáver, busca de funerária e realização do enterro. Mais encontros de mau humor entre as pessoas envolvidas.

Lee pretendia voltar logo para Boston, continuar o seu trabalho. Não lhe agradava a permanência em Manchester. Mas, a guarda do menino que brincava com o pai no barco pesqueiro a ele foi confiada. Patrick agora era órfão e a mãe não tinha condições para os cuidados com o filho. Esta missão o retinha na cidade. Patrick, 16 anos, era um adolescente razoável, normal. Tinha duas namoradas, estudava, participava de uma banda de rock e jogava hoquei no gelo.

As esquisitices de Lee, as suas cervejas e o seu constante mau humor complicavam a relação entre o tio e o sobrinho. A situação ficava mais tensa, quando Lee falava em voltar para Boston. Lee era absolutamente taciturno e se refugiava em seu silêncio. Tinha com a vida uma relação trágica. Sua falta de cuidado provoca um incêndio, onde morrem as suas filhas. Sim, antes de ir para Boston, ele era casado. É absolvido do caso, fato que ele próprio estranha e busca o suicídio. Vai acumulando tragédias e nada indica que haverá bons termos, tipo final feliz. As complexidades da vida.

Patrick sente o peso de um tutor a lhe interromper uma vida natural de adolescente. Mantém com o tio uma relação, ao mesmo tempo distante, de poucas aproximações e, no entanto, em momentos decisivos, sempre repletas de profunda afeição, que lhe é devolvida, em bela reciprocidade. São cenas de beleza e de ternura. Mas a história terá a sua acomodação. Patrick terá um jeito de continuar a sua vida em Manchester e Lee volta para Boston. O empregado do barco era também um amigo e com ele ficou a guarda de Patrick. 

Também as mulheres ocupam o seu espaço. Randi Chandler, a ex de Lee, busca uma reconciliação enquanto que a mãe de Patrick, que já se livrara dos problemas com o alcoolismo, encontra um novo companheiro junto a um homem extremamente religioso. O filme está sendo um grande êxito de público e de crítica. Tem direção e roteiro de Kenneth Loregan, um homem procedente do mundo do teatro. Tem seis indicações a Oscar: Melhor filme, melhor direção e roteiro original (Kenneth Loregan), melhor ator (Casey Affleck no papel de Lee), melhor atriz coadjuvante (Michelle Williams no papel de Randi Chandler, a ex de Lee) e o de melhor ator coadjuvante (Lucas Hedges, no papel de Patrick).

Um filme que aborda a difícil questão das relações humanas e, ainda mais, as relações familiares. Um filme profundamente existencial e de reflexão sobre perdas e desencontros, especialmente, os de Lee, consigo mesmo. Lee tem uma interpretação fenomenal. É favorito ao Oscar de melhor ator. O seu olhar fala e convence muito mais do que as poucas palavras que ele profere ao longo do filme.

segunda-feira, 20 de fevereiro de 2017

De Martí a Fidel. Moniz Bandeira.

Em julho de 2016, junto com amigos, realizei o sonho de uma viagem a Cuba. Havana, Santa Clara, Cienfuegos, Trinidad e a paradisíaca Varadero estavam no roteiro. Mas acima de tudo, queria conhecer o país, que por tão longo tempo, afrontou e continua afrontando o poder da "maior democracia do mundo". Agora termino de completar esta viagem com a leitura de De Martí a Fidel - A Revolução Cubana e a América Latina, do professor Luiz Alberto Moniz Bandeira. Um complemento simplesmente maravilhoso. Aliás, não é um mero complemento.
797 páginas de informação e análise.

O título do livro merece as primeiras observações. José Martí foi o grande mártir das guerras de independência, que se travaram tanto contra a Espanha, quanto contra os Estados Unidos e das quais sobrou a nefasta experiência de Guantânamo. José Martí é o grande heroi histórico, sempre presente na memória das lutas do povo cubano. Outra referência é a questão da América Latina, onde o espírito revolucionário sempre esteve presente, muito mais pelas questões do nacionalismo do que da doutrina do marxismo - leninismo propriamente dito. E neste sentido entra em cena a história dos Estados Unidos e a aludida vocação "natural" da expansão de suas fronteiras e os desígnios de Deus para com o seu  "novo povo" escolhido.

O livro tem um prólogo maravilhoso. É de autoria do professor de Política Externa dos Estados Unidos, da Universidade John Hopkins, Piero Gleijeses. Nele o professor acusa a arrogância da maior democracia do mundo, como a causa da Revolução de 1959, bem como a de sua radicalização e permanência. E esta causa vem de longos tempos de prepotência e agressividade. Em maio de 1895, pouco antes de morrer em combate contra as tropas espanholas, Martí advertia sobre o perigo de cair sob a dominação dos Estados Unidos e fez a conclamação para que isso não ocorresse: "Vivi no monstro (Estados Unidos) e conheço suas entranhas, e a minha funda é a de Davi".

Na introdução do livro Moniz Bandeira destaca o caráter nacionalista da Revolução de 1959 e, por isso também, o seu caráter popular e a sua longa permanência. Como os Estados Unidos são apontados como a grande causa da Revolução, ele remonta à história deste país para lhe analisar o seu espírito de arrogância e prepotência para, a partir deste pressuposto analisar as relações entre Theodore Roosevelt e José Martí por ocasião das guerras da independência.

Moniz Bandeira faz longas análises sobre os movimentos revolucionários na América Latina e em todos eles aponta para o espírito nacionalista, como a causa primeira, mais mesmo do que a doutrina marxista leninista. Mesmo porque sob o stalinismo prevalecia a tese do fortalecimento do socialismo em único país e em seus satélites e, em consequência, a doutrina da convivência pacífica e a contenção de novas revoluções. A esta altura, o autor já está na análise do pós Segunda Guerra e lamenta o fato de não ter havido um Plano Marshall para o desenvolvimento da América Latina, como houve para os países europeus.

Quanto ao foco específico na Revolução cubana, ele mostra a total dependência de sua economia dos Estados Unidos, que absorvia todo o açúcar de sua monocultura canavieira. Isso causava grandes insatisfações, oriundas da extrema miséria do povo, e focos de constantes insurreições, dominadas por cruéis ditaduras, como foi a de Batista, derrubada em 1959. Havia uma grande variedade de grupos que disputava a liderança dos movimentos revolucionários. Entre eles surgiu um que praticou o audacioso assalto ao quartel de Moncada, no dia 26 de julho, data que deu o nome ao grupo revolucionário vencedor. Os sobreviventes deste assalto se refugiaram no México e, a partir desta base, se estruturaram para voltar a Cuba, o que fizeram com o conhecido episódio do iate Granma. Entre estes sobreviventes estavam os irmão Fidel e Raul Castro e Camilo Cienfuegos. A eles se somara Chê Guevara, associado ao grupo por intermédio de Raul. O iate foi interceptado e poucos sobreviveram. Estes sobreviventes empreenderam a guerra de guerrilhas na Sierra Maestra.

Com a vitória, no Reveillon de 1959, vem também as dificuldades, tanto de ordem interna, quanto externa. Na ordem interna, a disputa entre os grupos e na parte externa, os eternos Estados Unidos e a sua luta pela restauração da democracia e da liberdade. Neste momento, já no capítulo VII, o livro atinge o seu ponto central, que é o da análise da resistência da Revolução e a sua política interna e externa. Chamam a atenção as enormes dificuldades impostas pelos Estados Unidos. Destaco alguns capítulos que mais marcaram a minha leitura. No capítulo VIII estão as sabotagens estimuladas pelos governos Eisenhower e Kennedy e, no IX, o grande fiasco da invasão de Girón, na Baía dos Porcos e o grande clima de tensão provocado. O medo da invasão soviética a Berlim Ocidental pairava no ar. O Bloqueio e o Plano Moongose continuam ocupando muitas páginas, até chegarmos a questão dos mísseis.

Esta é tratada no capítulo XIII. O desarmamento veio em função dos medos recíprocos. Kennedy receava, além de ataques ao território americano, por Berlim e pelas bases militares na Turquia, enquanto os russos ficavam na defensiva, temendo a eclosão da terceira Guerra Mundial. Planos de desarmamento esfriaram a questão. Já estamos no ano de 1962, quando João Goulart é o presidente do Brasil, que obviamente também será merecedor de análises. Antes dele, houve a condecoração ao Chê, por Jânio Quadros.
 Na Praça da Revolução, monumento em homenagem a José Martí.

O capítulo XVI é dedicado a Chê Guevara. Toda a sua visão é mostrada. A sua formação, a sua visão sobre o marxismo, sobre o stalinismo, a percepção da necessidade da industrialização de Cuba para fugir da dependência de sua commodity, o açúcar e os seus desentendimentos com Fidel. A sua inteligência rebelde o fez se aproximar da China e sua visão trotskista o compelia para a revolução permanente. Chê partiu para novas revoluções, primeiro na África e, depois, numa aproximação com a sua Argentina, foi para as terras bolivianas onde se encontrou com a morte.

A abrangência do livro chega até o ano de 2008. Há, portanto, tempo para abordar as dificuldades do pós colapso soviético  de 1991. Seguramente foram os anos mais difíceis para a manutenção da Revolução. Cuba teve uma diminuição em suas atividades econômicas em torno de 35% de seu PIB. Além disso o Bloqueio continuava, assim como a dependência do açúcar e a falta de petróleo, impossibilitava o movimento das máquinas agrícolas. Além disso havia a presença constante de furacões que causavam bilhões de dólares de prejuízos. Além do mais, os Estados Unidos passou por governantes cada vez mais intolerantes, com a exceção apenas de Jimmy Carter. Mas a Revolução sobreviveu. No Museu da Revolução existe o Rincon de los cretinos, em que são prestadas quatro homenagens: A Batista, contra o qual fizeram a Revolução; a Ronald Reagan, que a fortaleceu; a Bush pai, que a consolidou e a Bush filho, que tornou o socialismo irrevogável.

Nos anos 1990, a enfermidade de Fidel prenunciava uma morte próxima, que marcaria o fim da Revolução. Esta ao menos era a visão da maioria dos cubanos e americano cubanos residentes em Miami (Em torno de 1,6 milhões de pessoas). Muitos, já em festa. Fidel, no entanto, sobreviveu até 2016 e promoveu uma tranquila transição de poder. Raul Castro, que sempre fora comandante do exército revolucionário nunca teve o seu poder contestado. Aos poucos, promoveu transformações econômicas, abrindo a sua economia, especialmente para o turismo. Também houve uma significativa mudança na situação política da América Latina, a começar pela Venezuela, o novo parceiro comercial de Cuba. China, Canadá e Espanha tornaram-se outros parceiros importantes. A economia melhorou significativamente com a sua diversificação. Mas 2008, o ano final das análises do professor Moniz Bandeira, já trazia em seu bojo uma nova crise do capitalismo mundial, que como o professor antevia, traria novos problemas para a economia e para a Revolução cubana.
A história da Revolução cubana está maravilhosamente contada no Museu da Revolução.


Na minha viagem em 2016 fiz as minhas observações. O igualitarismo, como o livro bem assinala, foi abandonado. Ele foi substituído pelo conceito de avanços sociais na saúde, na educação e no atendimento às necessidades básicas. O livro também aponta para a existência de duas moedas, uma de circulação entre os turistas (CUC) e outra que regula a economia interna (CUP). É óbvio que quem tem acesso ao euro e ao dólar dos turistas, nem que seja sob a forma de gorjetas, leva vantagem sobre os salários pagos em moeda local. E isso é um problema, Ou, o problema.

Enfim, a Revolução tida como impossível de acontecer e de sobreviver, continua fortemente enraizada na mente e no coração do povo, como vimos pelas manifestações da apreço a Fidel em seus cerimoniais fúnebres. E como nos aponta Moniz Bandeira em seu fabuloso livro de 797 páginas, isto se deve muito mais ao seu caráter nacionalista (Patria o muerte) e sentimento de autonomia do que qualquer outra razão. Esta também foi uma constatação que eu fiz. Cuba só será um país independente e autônomo sob o sistema socialista. 1959 foi a data da verdadeira proclamação da sua independência.

sábado, 18 de fevereiro de 2017

Sem industrialização não há desenvolvimento.

Ágora é a revista mensal do Sindicato dos Funcionários da Prefeitura Municipal de Curitiba. Com ela contribuo regularmente. Em sua edição número 12, de dezembro de 2016, ela fez uma abordagem sobre a desindustrialização brasileira. Como a questão é grave, quero permanecer no tema, a partir de algumas leituras recentes.

Em janeiro li uma interessante dissertação de mestrado sobre o tema, sob o título Entre a história e a economia - O pensamento de Roberto Simonsen. Sabe-se que o Brasil começou a industrialização  no governo de Getúlio Vargas, isto é, pela primeira vez houve uma deliberada vontade política de promover a industrialização, pela chamada substituição de importações. Tudo começou pela siderurgia. Rompia-se assim com o modelo agrário exportador.
A exposição do pensamento econômico de Roberto Simonsen.

Se este processo teve em Getúlio Vargas o seu realizador, Roberto Simonsen (1889 - 1948) foi o seu idealizador. Ele foi um grande industrial, grande intelectual, cumpriu missões políticas e foi senador e presidente da Fiesp. Os seus estudos se voltaram para além dos economistas ingleses, defensores do livre mercado, considerando que na análise econômica, também os fatores históricos precisam ser considerados e não apenas os de ordem econômica. Vejam o título da dissertação, entre a história e a economia. Voltou-se assim para o estudo dos economistas alemães, pois a Alemanha, ao contrário da Inglaterra, era um país de industrialização tardia. Na Inglaterra primeiro ocorreu a industrialização e depois se formou a nação. Já na Alemanha, primeiramente se formou o Estado/Nação, e este a impulsionou. Segundo estes economistas, não existe a possibilidade de desenvolvimento e autonomia de uma nação, sem o processo de industrialização.

Para desenvolver este processo, a Alemanha contou com os conceitos de nacionalismo e de protecionismo para o por em execução. Simonsen, vendo que tínhamos condições históricas semelhantes às alemãs, isto é, a industrialização tardia, percebeu que deveríamos levar em conta estes economistas e não os ingleses. Superou suas divergências de paulista, com relação a Vargas e passou a ser seu colaborador. Lançou assim os fundamentos do nacionalismo e do protecionismo brasileiro, que promoveu, ao longo de cinco décadas (1930 - 1980), a nossa industrialização básica. Foram anos de grande crescimento econômico.

Isso não se deu de forma pacífica. Houve grandes debates, especialmente, os que Simonsen travou com Eugênio Gudin, defensor do liberalismo em sua concepção ortodoxa. Li, em outros livros, que o Brasil tinha uma espécie de modelo próprio de desenvolvimento, isto é, que o Estado deveria ser o grande indutor da industrialização e, sempre que adotava este modelo, o crescimento econômico vinha como resposta. Já o contrário acontecia, quando adotava o modelo da espontaneidade dos mercados, como ocorreu nos governos Dutra, Castelo Branco e especialmente nos anos 1990, com Collor e Fernando Henrique Cardoso.

Pois bem. Hoje os dados sobre a desindustrialização são alarmantes. Padecemos da chamada doença holandesa, ao cumprir a dita vocação natural de nossa economia, para a agricultura. Bresser Pereira, em seu magnífico livro A construção política do Brasil, nos apresenta números. Em 1984 a participação da indústria no PIB brasileiro era de 35,8%. Já em 2011 ela representava apenas 15,3%. Em 1986 ela contribuía com 27% dos empregos e em 2009 eles foram reduzidos para 17,9%. Ainda em 2006, os produtos manufaturados nos davam um saldo positivo na balança comercial, de US$ 29,8 bilhões, saldo que se tornou negativo em 2011, na ordem de US$ 48,7 bilhões. As commodities compensaram a diferença, especialmente as do setor agrícola.
Um livro monumental de interpretação de Brasil.


Bresser Pereira também nos alerta que em uma economia globalizada, para manter as condições de competitividade industrial dentro dos parâmetros de decência, dois fatores ganham destaque: A política de juros e a política de câmbio. São exatamente estes dois, os fatores responsáveis pela desindustrialização em nossos dias. Moeda valorizada pode ajudar a combater a inflação, viajar para Miami, mas com certeza que ajuda a promover a desindustrialização. E quando, em 2013, sob o governo da presidente Dilma, os juros baixaram para níveis relativamente civilizados, 7,5% da taxa SELIC e houve uma desoneração de impostos, superior a cem bilhões de reais, estes foram aplicados mais em atividades rentistas do que em tecnologia visando a competitividade. E isso nos faz perguntar sobre a natureza das atividades e finalidades da Fiesp. Ela hoje representa interesses industriais ou interesses de rentistas?

Em 10 de janeiro, em artigo na Folha de S.Paulo, Benjamin Steibruch, diretor da CSN e um dos diretores da Fiesp, faz, simultaneamente, um lamento e um apelo pela salvação da indústria. Assim ele termina o seu texto: "A indústria brasileira precisa de socorro, sem preconceitos: apoio à acumulação de capital, acesso a crédito com juros civilizados, programas de compras governamentais, políticas macroeconômicas e fiscais estimuladoras de crescimento, taxas de câmbio que deem competitividade à produção e escolha de setores com prioridades e sob controle de desempenho".

Para terminar, mais duas coisas. Depois das desonerações de 2013, a Fiesp passou a fazer intensa campanha pelo impeachment/golpe contra a presidente Dilma Rousseff e, para tal finalidade, passou a produzir os gigantes Patos amarelos. Hoje apoia o governo Temer e as suas reformas, especialmente a reforma na legislação trabalhista e isto me faz lembrar mais uma vez de Roberto Simonsen. Dizia ele que a industrialização só se torna possível com um forte mercado interno, com a garantia do pagamento de bons salários. Lembrando ainda, que a Previdência Social é um dos fatores mais importantes de estabilização deste mercado interno. Hoje, se pensarmos na grandeza de nossa nação, não podemos nos conformar em ser a grande fazenda do mundo, olhando passivamente para a China como a sua grande fábrica. Vejam aí o fenômeno Trump.



quarta-feira, 15 de fevereiro de 2017

A Qualquer Custo. David Mackenzie.

Cumprindo a maratona para ver os filmes com indicação a Oscar, chegou a vez de A Qualquer Custo. O filme é uma espécie de western moderno, que tem um belíssimo cenário de fundo, o Texas. David Mackenzie, o seu diretor, é escocês e lança este belo olhar escocês sobre o Texas e, assim também , sobre todo o território americano. O tema é a propriedade da terra em tempos de capitalismo financeiro. É roubar o banco para pagar o próprio banco.

Dois irmãos, Toby Howard (Chris Pine) e Tanner Howard (Ben Foster), depois de uma longa separação, se reencontram e procuram meios para salvar a propriedade rural da família, hipotecada junto a um banco. Toby é frio, racional, divorciado e que encarna uma pessoa boa, porém em dificuldades. Já Tanner é ex presidiário, irascível e tempestuoso. Facilmente recorre à violência, se ela representar uma saída para determinada situação.

Para levantar a hipoteca eles decidem assaltar o banco credor, em pequenas agências e em pequenos volumes de dinheiro, apenas o que está sendo manipulado nos caixas, para não deixarem pistas sobre a origem do dinheiro. Estão sendo bem sucedidos em sua tarefa. Estes assaltos garantem a dinâmica do filme, com muita ação e tiroteios, tão próprios dos westerns.

Do outro lado está a lei, na figura do velho xerife. Marcus Hamilton (Jeff Bridges) que está prestes a se aposentar mas que ainda quer prestar um último grande serviço no seu emprego. Desvendar os assaltos a banco que estão ocorrendo. Pretende usar mais a inteligência, estudando o caso e preparar a emboscada final contra os assaltantes, fato que ocorre quando os irmãos assaltam uma agência em uma cidade maior e com um movimento também maior. Aí sim ocorre tiroteio digno de bang bang, fugas espetaculares com carrões e a morte de um dos protagonistas.

Bem, o enredo é mais ou menos este. O que então existe de tão grandioso no filme, que o fez merecedor da indicação para o melhor filme e também o de melhor roteiro original? Vamos aos seus méritos. Primeiramente o tema. A propriedade em tempos de capitalismo financeiro. O tempo em que se passa o filme reporta ao ano de 2008 e a grave crise americana e internacional do capitalismo, provocada pela astúcia do mundo financeiro e a voracidade dos bancos. Levanta-se assim um grave questionamento sobre a legalidade da ação dos bancos, em criarem dificuldades financeiras e, depois, se apropriarem dos bens de seus clientes.

Por outro lado temos a voz da lei, que seja ela qual for, precisa ser cumprida. Se é uma loucura assaltar bancos, também é uma loucura ver o que eles estão fazendo, questionam os irmãos que os assaltam. É a velha questão já levantada por Bertolt Brecht, quando questionava sobre a fundação ou o assalto a um banco, sobre qual dos dois atos seria o mais imoral e indecente.

Lendo a crítica vi coisas para além do que realmente o filme mostra, como a desolação dos texanos, de um país desolado e tomado pela tristeza, após o tradicional american way of life ter sido interrompido. O que é bem visível, no entanto, é velho xerife  alfinetando o seu companheiro de trabalho, um velho descendente de indígenas comanches, sempre ironizado em sua condição de descendente de indígenas. A questão é tratada mais sob a forma de humor do que maldade. O companheiro aceita as brincadeiras.

Bem, o filme que tem também um surpreendente final. Tobby e Marcos se encontram frente a frente mas, inesperadamente não se matam. Em vez disso trocam confissões de mútua admiração. Marcos evoca o passado de Tobby.  Tanner, este sim, com passado mais comprometedor, mais afoito e impetuoso, morrera no tiroteio que se seguiu ao assalto. Outro destaque do filme é a sua bela paisagem, a paisagem texana. O filme concorre ao Oscar em quatro indicações: melhor filme, melhor roteiro original, melhor ator coadjuvante para a interpretação de Jeff Bridges, no papel do velho delegado e ao de melhor edição.  Entre os que eu vi, este não é, com certeza, o meu preferido.

sábado, 11 de fevereiro de 2017

Estrelas além do tempo. Theodore Melfi.

Vamos começar por uma contextualização. O filme Estrelas além do tempo se passa no início dos anos 1960, quando pairava pelo mundo o clima da Guerra Fria e da Bipolaridade. Este ambiente contagiou por completo a corrida espacial, na qual a União Soviética saltou na frente com o envio de um homem ao espaço (Iuri Gagarin), fato que obrigou os Estados Unidos a redobrar seus esforços para não perder esta corrida. Se recuperam, com o tempo, enviando os primeiros astronautas à lua.



Outro dado importante. A era dos computadores estava apenas começando. Assim, cabeças privilegiadas faziam o seu papel. Inteligências e memórias privilegiadas eram extremamente necessárias. O ambiente específico em que se desenrola o enredo do filme é o da NASA, a agência espacial americana. Lembrando ainda, que nos anos 1960 o clima de hostilidades raciais fervilhava em resposta às primeiras leis que visavam extinguir esta chaga de sua cultura.

O cenário do interior da NASA é um cenário em que existe espaço apenas para homens brancos. Mulheres ocupam apenas funções "naturais" e "inerentes" às mulheres. Negros, em ambiente tão seletivo como o da NASA, nem pensar. Mas a necessidade obriga a fazer coisas fora, ou para além do script. É neste momento que entram em cena três mulheres negras, que para vencerem contavam apenas com a arma de suas inteligências.

Katherine Johnson (Taraji P. Henson) Dorothy Vaughn (Octavia Spencer) e Mary Jackson (Janelle Monáe) são as três mulheres negras, ou as estrelas além do tempo, ou então ainda, as Hidden figures, as figuras ocultas, do título no original, as protagonistas do enredo. A primeira era tida, desde a infância, uma menina prodígio, verdadeiro gênio da matemática. Assume a preponderância dentro do grupo. Ela é que recebe todas as atenções de Al Harrison (Kevin Costner), o diretor da NASA. A segunda lida com o nascente computador. Já teme a perda de espaço em seu trabalho para a máquina emergente. Já a terceira, teimosamente, insiste em ser a primeira engenheira negra do país. No início, parecia ser ela a mais destacada no grupo.

Creio que uma das partes mais notáveis do filme seja a de mostrar o ambiente de trabalho. As hostilidades raciais são expostas, quais chagas vivas. As negras são discriminadas, exercendo funções menores na divisão do trabalho, no tratamento dispensado pelos brancos, na hora do cafezinho ou do chá e, especialmente, com o uso do banheiro e participação em reuniões em que são tomadas decisões. Apenas em um prédio anexo existia banheiro para elas. Al Harrison vai quebrando estas barreiras pela absoluta e imprescindível necessidade de seus trabalhos.

As cenas mais edificantes são as das conquistas de espaço destas mulheres negras, especialmente, as de Katherine junto com Harrison, o diretor da Nasa e a luta de Mary para ingressar na Universidade e fazer o seu tão sonhado curso de engenharia, enfrentando o poder judiciário. O juiz capitula diante de seus argumentos e lhe abre o devido espaço restringindo-o, mesmo assim, ao período noturno. Também a solidariedade do grupo é um ponto relevante.

Numa das críticas que vi, está a da falta de uma maior contextualização do clima de hostilidades raciais da época. As mulheres não lutaram, ou não se integraram em lutas mais amplas, confiando apenas na força de sua inteligência. Concordo com a crítica, lembrando todo o cenário dos anos 1960, principalmente nas lutas como as de Martin Luther King e da profunda crise institucional provocada por Malcom X, no terrível 1968 nos Estados Unidos. Mas é preciso lembrar que as vitórias individuais são outra forte característica da cultura americana. Talvez não fosse esta a intenção do diretor. Não deixa de ser, no entanto, um filme de grande valor, pela temática trazida ao debate. A luta da mulher e especialmente da mulher negra em nossa sociedade.

O filme tem direção e roteiro de Theodore Melfi. O roteiro é dividido com Alisson Schroeder. As estrelas protagonistas já estão apresentadas e cumpriram um belo trabalho. A indicação ao Oscar de melhor filme, bastante contestada pela crítica, deve estar vinculada ao tema, tão próprio do mea culpa, num rito de expiação dos erros históricos cometidos ao longo da escravidão e da abolição mal metabolizada. Além da estatueta de melhor filme, mais duas são disputadas, a de melhor roteiro adaptado e a de melhor atriz coadjuvante para Octavia Spencer. Esta indicação também está sendo bastante contestada. Um filme que seguramente merece ser visto e debatido.




sexta-feira, 10 de fevereiro de 2017

A Chegada. Denis Villeneuve.

Quando fui ao cinema para ver A Chegada eu já sabia que eu não iria ver um filme de simples entretenimento. Li as críticas e já sabia que se tratava de um filme de ficção científica e estes filmes, de uma maneira geral, não são de fácil assimilação. Ao assisti-lo, fiquei em estado de concentração total, dedicando um grande esforço para, especialmente, entender a mensagem do filme ou então compreender as intenções de seu diretor. Não foi e continua não sendo uma tarefa fácil.


Ao sair do cinema, entretido em reflexões, permaneci bastante confuso em relação ao roteiro, que tem duas histórias entrelaçadas, com belíssimas conexões, mas não tão simples de serem estabelecidas. Para compreender bem este filme, ele necessariamente precisa ser visto mais vezes. Mas em hipótese alguma, deixa de ser um belo filme.

Acessando os sites de crítica cinematográfica estranhei a existência de poucos comentários sobre o mesmo. Os existentes, de maneira geral são curtos e me pareceram receosos de entrar mais profundamente na temática. Mas vamos a alguns elementos fundamentais do roteiro. Como nos diz o título do filme, A Chegada, se refere à chegada de alienígenas ao planeta terra. Eles chegam a diferentes locais, determinados pela importância geopolítica dos tempos de hoje, embora a ocorrência do fato nos remeta ao futuro. 

Também a cobertura midiática é dos tempos atuais. Da mesma forma também se deu a entrada em contato com estes alienígenas, marcada pelo confronto, pelo enfrentamento militar. Mas aí entra em cena um coronel americano que se diferencia (O filme é canadense), contratando especialistas em comunicação para com eles estabelecer contato e lhes decifrar as intenções. Se estão em missão de paz ou então, com a visão dos humanos, em missão de conquista, de dominação.

Aí já temos a centralidade do enredo estabelecida, bem como os personagens protagonistas. O militar americano é o coronel Weber (Forest Withaker) que será o encarregado de contratar os especialistas para a decifração dos sinais e assim estabelecer, com os alienígenas, um processo de comunicação e verificar as intenções que eles tem a sua Chegada à terra. Esta missão é confiada à Doutora Louise Banks (Amy Adams) renomada linguista, auxiliada por um físico, Ian Donelli (Jeremy Renner). Estes personagens não conhecem limites para cumprirem sua missão, arriscando suas vidas e o próprio destino da humanidade, em caso de recepção hostil.

Em seu trabalho a Dra. Louise é tomada por reminiscências de sua memória e estabelece relações magistrais com a sua filha, uma criança que também alça as suas primeiras investidas na busca da interpretação e compreensão do mundo. Para mim estas foram as cenas mais primorosas do filme, embora feitas por imagens não tão explícitas. A morte desta filha, a relação com o pai não estão bem explicitadas. Também, já ao final, como coroação do trabalho, uma compensação amorosa, com a intenção de geração de um filho entre os dois cientistas ocorre. Seria este um sinal de que a humanidade não é tão ruim assim e que ainda há motivos para novas vidas serem geradas.

A missão dos extra terrestres era a de salvar a humanidade. Salvá-la do quê? Isto também não está explicitado, mas creio que não haveria nenhuma necessidade de explicitação, uma vez que conhecemos a sua realidade. A Dra. Banks recebe inclusive um envolvente agradecimento do comandante chinês da operação desta missão. Também existe uma bela mensagem de "soma de esforços", de cooperação entre as missões dos diferentes locais em que os extra terrestres apareceram, deixando de lado os princípios norteados pela competição.

O filme é canadense, com roteiro de Eric Heisserer e direção de Denis Villeneuve. Mereceu oito indicações ao Oscar, a saber: melhor filme, melhor diretor, melhor roteiro adaptado, melhor fotografia, melhor mixagem de som, melhor edição de som, melhor edição de arte e melhor edição. Um filme a ser observado e muito bem observado.

quinta-feira, 9 de fevereiro de 2017

A idade do humanismo está acabando. Achille Mbembe.

Vi, pelas redes sociais, um chamado para o texto que anunciava o fim da era do humanismo, de autoria do historiador camaronês (francês), Achille Mbembe, nascido em 1957, que estudou na França e nos Estados Unidos e que hoje leciona em uma Universidade na África do Sul. Encontrei o texto, devidamente traduzido, no site do Instituto Humanitas, ligado à UNISINOS, uma universidade dos padres jesuítas. O texto é desesperado grito de alerta.

Confesso que é um dos textos mais vigorosos que li nestes últimos tempos. É uma reflexão profunda sobre os destinos do ser humano numa era de total transmutação de paradigmas, com o fim da era do iluminismo e do racionalismo e da construção da chamada democracia liberal, que bem ou mal norteou o mundo da chamada modernidade, até o começo deste nosso século. Este mundo está em processo de desconstrução. O artigo foi publicado em dezembro de 2016.

No mundo do capitalismo financeiro não haverá mais espaço para as palavras cuidado, compaixão e generosidade.

O autor começa fazendo algumas constatações: 2017 não será diferente do que foi 2016, pois, a Faixa de Gaza continuará sendo a maior prisão, a céu aberto, do mundo, negros continuarão sendo assassinados nos Estados Unidos e o autoritarismo liberal continuará triunfando na Europa. Também continuará a destruição ecológica mundo afora, como também as desigualdades sociais continuarão crescendo e, em vez de serem confrontadas com a tradicional luta de classes, elas serão confrontadas pelo racismo, pelo ultra nacionalismo, sexismo, rivalidades étnicas e religiosas, xenofobia, homofobia, e outras paixões mortais.

As virtudes tradicionais como o cuidado, a compaixão e a generosidade estão condenadas e serão substituídas por uma única e nova virtude, que é a de "ganhar", não importando os meios. Imperará um novo darwinismo social e surgirão novos apartheid, novos separatismos e mais muros, protegidos com a militarização das fronteiras e com métodos letais de policiamento, que por sua vez gerarão guerras intestinas nestes países. 

O mundo do pós guerra, de descolonização, da Guerra Fria acabou e um outro jogo mortal começou. "O principal choque da primeira metade do século XXI não será entre religiões ou civilizações. Será entre a democracia liberal e o capitalismo neoliberal, entre o governo das finanças e o governo do povo, entre o humanismo e o niilismo", adverte o historiador. Se a segunda metade do século XX foi marcada pelo triunfo do capitalismo, com a derrota do fascismo e do comunismo, ele nos trouxe a globalização e os seus princípios, como uma nova ameaça, nos alerta mais uma vez o historiador "A crescente bifurcação entre a democracia e o capital é a nova ameaça para a civilização".

O mundo da democracia liberal, fundado em direitos individuais e sociais, está hoje sob ameaça, pois, a democracia liberal não é compatível com a lógica do capitalismo financeiro e o confronto que decorrerá desta incompatibilidade será marcado não pela razão, mas pelas paixões, pela emoção e pelos afetos, fora portanto, dos domínios da racionalidade, principal fundamento do mundo moderno.

Quanto ao conhecimento, o único a ter valor será aquele voltado para o mercado. Em vez de pessoas com corpo, carne e história, seremos levados em conta apenas por inferências estatísticas. Tudo derivará da computação e quem nada terá para vender, nada valerá e merecerá o mais absoluto desprezo (Me lembrou Adorno, o seu texto - Educação após Auschwitz). O sujeito racional, fruto do iluminismo e do racionalismo, capaz de fazer escolhas será substituído pelo homem consumidor e, para formatar este novo homem, um novo mundo de vontades, impulsos e desejos está sendo construído. E seguem algumas reflexões sobre as alterações psicológicas que esta realidade provocará, uma total reconfiguração de paradigmas.

Já na conclusão do texto o autor aponta para as implicações políticas destas suas considerações, afirmando que o fim desta era do humanismo anda de mãos dadas com o desprezo pela democracia. O neoliberalismo se converterá em estado de guerra total (Olha aí o diagnóstico hobbesiano), de guerra de classes, que, no entanto, nega a sua natureza classista. Será uma guerra contra os pobres, uma guerra racial e contra as minorias, de gênero contra as mulheres, religiosa contra os muçulmanos e contra os deficientes.

Afirma ainda que o capitalismo neoliberal deixou uma multidão de sujeitos destroçados, submetidos à violência e à ameaças existenciais. Para estes destroçados já não existe mais um mundo de certezas, do sagrado, de hierarquias, de religião e de tradição. Para eles o mundo se apresenta como um pântano mal drenado, que precisa ser limpo. A ordem natural deverá ser restaurada pela violência e somente ela fará imperar o mundo da masculinidade e da virilidade. Somente os políticos que abraçarem estas ideias é que triunfarão.

Deixo com vocês a força dos parágrafos finais. "Neste contexto, os empreendedores políticos de maior sucesso serão aqueles que falarem de maneira convincente aos perdedores, aos homens e mulheres destruídos pela globalização e pelas suas identidades arruinadas.

A política se converterá na luta de rua e a razão não importará. Nem os fatos. A política voltará a ser um assunto de sobrevivência brutal em um ambiente ultracompetitivo.

Sob tais condições, o futuro da política de massas de esquerda, progressista e orientada para o futuro, é muito incerto. Em um mundo centrado na objetivação de todos e de todo ser vivo em nome do lucro, a eliminação da política pelo capital é a ameaça real. A transformação da política em negócio coloca o risco da eliminação da própria possibilidade da política.

Se a civilização pode dar lugar a alguma forma de vida política, este é o problema do século XXI".

Os dados estão aí colocados. Como fazer o confronto? Com toda a certeza, este é um gigantesco trabalho de um esforço coletivo. Horizontes pautados, com certeza os temos. São os tradicionais valores do humanismo, da dignidade e da autonomia do ser humano, seres humanos pertencentes ao reino da liberdade.

quarta-feira, 8 de fevereiro de 2017

A Desordem Mundial. Moniz Bandeira.

Elaborar uma resenha do livro do professor Luiz Alberto Moniz Bandeira - A Desordem Mundial - O espectro da total dominação - Guerras por procuração, terror, caos e catástrofes humanitárias - não é uma tarefa fácil. São 643 páginas, divididas entre uma introdução, 24 capítulos e um epílogo, além de fotografias e muitos mapas, em que é mostrada toda a geopolítica mundial, comandada pelos Estados Unidos, após a Segunda Guerra Mundial.
O monumental livro do professor Moniz Bandeira.

A tese fundamental é a de que os Estados Unidos, a partir de Wall Street e consorciada com Washington, estão no rumo de um poder ou domínio total do mundo, a partir dos comandos emanados pelo capitalismo, já em sua roupagem de capitalismo financeiro parasitário. Mostra como os fascismos europeus, combatidos ao longo da Segunda Guerra, foram gradativamente incorporados à governança global com a supressão das liberdades e das garantias individuais. A democracia americana não passa de um mito, sustentado por uma poderosa mídia.

O livro passa por uma análise do que foi a geopolítica da Guerra Fria e da Bipolaridade e o seu desfecho com o fim da União Soviética e com o 11 de setembro, quando se instituiu o poder único no mundo, sob a ditadura da ideologia do liberalismo econômico, sem levar em conta a contrapartida dos direitos preconizados pelo liberalismo político. Combate ao terror, não mais ao comunismo, guerras preventivas e mortes milimetricamente planejadas com a utilização de drones passaram a ser os componentes desta nova desordem mundial. 

Na introdução encontramos uma preciosa frase buscada na mitologia nórdica que mostra, tanto uma concepção de história, quanto um método de análise: "O tempo, na mitologia germano-nórdica, é indivisível. O passado mantém-se vivo e desdobra-se no presente, que flui continuamente, como poderosa realidade" (25). Mostra ainda a estrutura complexa dos fatos, o que poucas vezes é levado em consideração, quando governantes tomam decisões de fundamental importância para o mundo. Nesta introdução ainda é mostrada a central do poder, donde emanam as determinações da política externa dos Estados Unidos, nas questões que envolvem a Síria e a Ucrânia. É também mostrada a força da Rússia, que após o desastroso governo neoliberal de Yéltsin, recuperou o seu prestígio internacional com o governo de Putin. Putin é hoje um personagem decisivo em tudo o que acontece, tanto na Síria, quanto na Ucrânia.

Os primeiros seis capítulos são dedicados ao mundo do pós Segunda Guerra, de como o fascismo se transformou no modus operandi do capitalismo, uma vez que os princípios do liberalismo econômico se sobrepuseram aos do liberalismo político. Vejamos: "Onde e quando a oligarquia e o capital financeiro não mais conseguem manter o equilíbrio da sociedade pelos meios normais de repressão, revestidos das formas clássicas da legalidade democrática" (37) os interesses desta oligarquia se sobrepuseram à sociedade por atos de força e atrofiaram as liberdades e, assim salvaguardaram os seus interesses. Assim, com os poderes concentrados e com ampla utilização dos meios ideológicos, nem mesmo necessitam do uso dos meios repressivos mais violentos. Aglutinam também setores da sociedade civil, especialmente entre as organizações católicas e evangélicas conservadoras, através de sedutores financiamentos, formando o complexo ideológico dos neocons.

Depois, nos próximos três capítulos, o estudo se volta mais para a Rússia. Busca as suas raízes históricas, passa pela Revolução de 1917, pela sua atuação nas guerras, pela geopolítica nos tempos  da Guerra Fria e da Bipolaridade, pela desintegração da URSS e terminando com a reconquista da proeminência russa no mundo sob o governo de Putin. Neste momento o livro atinge um de seus pontos mais elevados, com alguns capítulos dedicados à Ucrânia. A sua dúbia participação na Segunda Guerra e nas deserções ao Exército Vermelho para se posicionarem lado a lado com as forças nazistas alemãs.  A análise termina com as mais recentes ações como o golpe contra o governo democrático de Yanukovych e a sua substituição por um governo nacionalista e neonazista, sob o comando do miliardário Poroshenko. Nos apresenta ainda o fato de que as relações da Ucrânia com a Rússia são historicamente umbilicais e impossíveis de serem rompidas sem graves implicações sociais, políticas, econômicas e culturais.


Os últimos capítulos se voltam para o Oriente Médio e, em particular, para a Síria. Antes o olhar se voltara para as desastrosas intervenções militares de Obama, um belicista Nobel da Paz, na Primavera árabe, em particular na Líbia, na destruição de Gaddafi e o seu regime, deixando o país em catástrofe total. Com relação à Síria, mostra o envolvimento de vários países, bem como os interesses que os movem. Estes países, aliados dos Estados Unidos são Israel, Arábia Saudita e Turquia. Por sua vez a Rússia de Putin é aliada do governo laico de Bashar Al Assad, o que incomoda outros países islâmicos. E como fica o problema do combate ao Estado Islâmico e em especial a organização do grupo Da'ish?

Esta e outras questões são abordadas e respondidas a seguir. São questões extremamente complexas pois envolvem o financiamento do Estado Islâmico e as diferentes formas como ele ocorre. Daí segue a denúncia de que tudo é feito a céu aberto, pois os Estados Unidos simplesmente  fecham os olhos para a corrupção de seus aliados envolvidos no processo. Tráfico de armas e de combustíveis.

No epílogo encontramos mais uma frase de fundamental importância, retirada do pensamento de Spengler, de que "não há ideais, verdades, razão, honestidade e equidade, mas apenas fatos". C'est la realité des faits. A partir desta citação o autor conclui o monumental trabalho deste livro.

"E os fatos, ao longo da história, sempre mostraram que os Estados Unidos e as grandes potências capitalistas jamais efetivamente entraram em guerra pela democracia e pela liberdade, para proteger civis ou direitos humanos, senão tão somente a fim de defender suas necessidades e interesses econômicos e geopolíticos, seus interesses imperiais. E palavras não mudam a realidade dos fatos" (513). Lembrando que estes conceitos sempre estiveram presentes nas guerras feitas ou patrocinadas pelos Estados Unidos, e, diga-se de passagem, foram muitas. O complexo industrial militar agradece.

O livro foi lançado em 2016, pela Civilização Brasileira. É um livro para curiosos e estudiosos, especialmente para professores e alunos de geopolítica, em particular, para os que estudam nos cursos de Relações Internacionais e Jornalismo. Moniz Bandeira me acompanha desde os anos 1970, com o seu livro Presença dos Estados Unidos no Brasil. 




domingo, 5 de fevereiro de 2017

O Wall Street Plot de 1933. O Putsch da Casa Branca.

Luiz Alberto Moniz Bandeira me acompanha ao longo dos meus anos de formação. O seu livro Presença dos Estados Unidos no Brasil, lançado em 1973 me marcou profundamente. Agora vi o seu lançamento de 2016, A Desordem Mundial - O espectro da total dominação - guerras por procuração, terror, caos e catástrofes humanitárias e me pus a lê-lo. Mas já ao final do primeiro capítulo quero compartilhar esta experiência da "democracia" americana em seu mito inabalável. Quero falar sobre a tentativa de golpe de Estado ocorrido em 1933, contra o presidente Franklin Delano Roosevelt e a sua política do New Deal.
Um livro portentoso - espectro da total dominação sob o capitalismo financeiro.


O episódio é narrado no primeiro capítulo, que tem os seguintes subtítulos: Nazifascismo * O fenômeno da mutazione dello stato * Wall Street plot contra o governo de Franklin Delano Roosevelt em 1933 * Os big businessman americanos, a família de Prescott Bush e a remessa de recursos para Hitler * A denúncia do general Smedley D. Butler * O complô fascista abortado * Os documentos do McCormack-Dickstein Committee. O capítulo  ocupa 13 páginas, 10 de texto e o restante de notas e de fontes. Dou este dado para mostrar as diligências em sua pesquisa.

O texto começa apresentando o fenômeno do fascismo na Itália e na Alemanha e a sua extensão por Portugal e Espanha. Depois segue uma definição: "O fenômeno político denominado nazifascismo no século XX podia e pode ocorrer, nos Estados modernos, onde e quando a oligarquia e o capital financeiro não mais conseguem manter o equilíbrio da sociedade pelos meios normais de repressão, revestidos das formas clássicas da legalidade democrática, e assumir características e cores diferentes, conforme as condições específicas de tempo e de lugar. Porém sua essência permanece como um tipo peculiar de regime, que se ergue por cima da sociedade, alicerçado em sistema de atos de força, com a atrofia das liberdades civis e a institucionalização da contrarrevolução, tanto no plano doméstico quanto no plano internacional, mediante perpétua guerra, visando implantar e/ou manter uma ordem mundial subordinada aos seus princípios e interesses nacionais e favorável à sua segurança assim como à prosperidade nacional" (página 37-8).

Pois bem. Este fenômeno ocorreu nos Estados Unidos em consequência da Grande depressão em virtude do outubro de 1929. Dou voz ao autor para melhor manter a força do argumento. "... Alguns grupos financeiros e industriais - cerca de 24 das mais ricas e poderosas famílias dos Estados Unidos,  entre as quais Morgan, Robert Sterling Clark, DuPont, Rockefeller, Mellon, J. Howard Pew e Joseph Newton Pew, da companhia Sun Oil, Remingron, Anaconda, Bethleem, Goodyear, Bird's Eye, Maxwell House, Heiz Schol e Prescott Bush - conspiraram. Planejaram financiar e armar veteranos do Exército, sob o manto da American legion, com a missão de marcharem sobre a Casa Branca, prender o presidente Franklin D. Roosevelt (1933-1945) e acabar com as políticas do New Deal. O objetivo consistia na implantação de uma ditadura fascista, inspirada no modelo da Itália e no que Hitler começava a construir na Alemanha"(página 38).

O Wall Street Polt abortou. Os bigbusinessmen tentaram cooptar o general Smedley Butler, mas ele os denunciou a um repórter, que por sua vez tornou o fato público através do Philadelphia Record e do New York Evening Post. Nas investigações no Congresso o general contou detalhes do plano. Lhe dariam um exército de 500.000 ex-soldados e outras pessoas e lhe ofereceram, inicialmente, US$ 100.000 para a execução do plano. Houve um coover up (cobrir - tapar) e a imagem da democracia americana, o país onde nunca houve um golpe de Estado foi preservada. Todos os inquéritos não deram em nada e ninguém foi processado.

Enquanto isso aqui no Brasil... , conforme nos relata Chico Oliveira, entre os anos de 1930 e a transição democrática dos anos 1980 tivemos duas longas ditaduras e uma tentativa de golpe de Estado a cada três anos. E todos os golpes, como pudemos constatar ainda no golpe de 2016, uma das forças mais ativas a impulsionar o golpe, foram a televisão, o rádio, os jornalões e os ruidosos panfletos, apelidados de revistas semanais.

O capítulo continua mostrando como os banqueiros americanos financiaram a ascensão de Hitler na Alemanha, inclusive entre eles, os banqueiros judeus. Vejam uma de suas justificativas para tal, assim apresentada pelo autor: "Os banqueiros judeus justificaram, dizendo que o antissemitismo lhes parecia certo, sob o regime nazista, porque era contra os pobres, refugiados e trabalhadores" (página 42).

E mais um adendo, para lembrar que quatro presidentes morreram em pleno exercício de suas funções. Vejamos: Abraham Lincoln, eleito em 1860. Lincoln foi assassinado enquanto assistia a uma peça de teatro no dia 15 de abril de 1865, quando ele ainda era presidente dos Estados Unidos.

James Abram Garfield, eleito em 1880. Garfield foi assassinado em 19 de setembro de 1881, apenas um ano depois de se tornar presidente.

William McKinley. McKinley foi eleito em 1896 e reeleito em 1900. O presidente também morreu no escritório, foi assassinado em 14 de setembro de 1901.

John Fitzgerald Kennedy, eleito em 1960. Kennedy foi assassinado em 22 de novembro de 1963.

quarta-feira, 1 de fevereiro de 2017

EU, Daniel Blake. Um drama humano.

Certamente você já passou por situações semelhantes, mas com desfechos não tão dramáticos. Aquela ligação telefônica infindável, aquele preenchimento de fichas e de dados via virtual, ou mesmo um atendimento pessoal, em que o funcionário que te atende, o faz com muito má vontade. Pois bem, Daniel Blake passou por todas estas situações. Elas o deprimiram e ele só encontrou um conforto entre as pessoas que viveram dramas similares ao seu.

Eu, Daniel Blake, Palma de Ouro em Cannes - 2016.

Daniel Blake, viúvo de 59 anos e marceneiro de profissão, sofre um ataque cardíaco que o afasta temporariamente do trabalho, obrigando-o a recorrer aos serviços de seguridade social. Isso ocorre na Inglaterra em que estes sistemas são bem avançados e protegidos em legislação, mas que os governantes, ao que parece, tem muito pouca vontade em conceder. Pelo que me consta, os últimos governantes ingleses pertenceram, todos eles, a partidos conservadores e não simpáticos a estes benefícios. Problemas do indivíduo. Enredá-los na burocracia é a forma encontrada pela qual muitos desistem de buscar tais benefícios. Outros morrem nas filas de espera.

Daniel Blake, particularmente, sofre ainda mais com a situação. Ele, como muitos em sua idade, é um analfabeto digital. Eu fiquei me imaginando neste processo de alfabetização. O sistema trava, expira o prazo, os dados somem, as sequências falham e o sistema nervoso parece querer explodir. Eu pessoalmente me lembrei preenchendo, ou inserindo, o meu currículo na plataforma Lattes. Isso dificultou muito a vida do prático marceneiro. Mesmo nos atendimentos pessoais, ele teria que comprovar fatos por via virtual. Os atendentes mostravam muito pouca boa vontade e até o ameaçavam com punições.

Em sua via crucis, cruzou com jovens da vizinhança, que buscavam na falsificação de produtos de marca, tanto a sua liberdade, quanto a sua sobrevivência. Não estavam dispostos a ganhar a vida em empregos formais. Com eles se deu bem e, deles recebeu auxílio nas lides com a informática. Mas o enredo cresce em dramaticidade quando encontra Katie, uma jovem mãe, que também busca na seguridade social o seu principal meio de subsistência. Cenas profundamente humanas envolvem Blake, Katie e as crianças. Eles, mutuamente, se ajudam em todas as dificuldades. Mas a submissão e as constantes humilhações faz com que as pessoas guardem as tristezas para si, buscando solução no isolamento. As crianças então interferem positivamente, fazendo com que se reencontrem. Cenas dramáticas, porém, revestidas de profunda ternura.

Daniel Blake resolve expor publicamente o seu drama, pichando o seu problema em um muro. A ordem prevaleceu. Recolheram-no em nome desta mesma ordem, mas por ser um cidadão de vida exemplar lhe concedem a liberdade. Com a ajuda de Katie e de um advogado amigo, Blake consegue marcar o dia decisivo para o seu afastamento definitivo do trabalho, que marcaria o fim de seu drama. O dia chega. Ele está profundamente alterado, extremamente nervoso. Katie o acompanha. Quase na hora decisiva ele pede para passar uma água no rosto, uma cena muito comum. E com este último gesto, o seu drama realmente chega ao fim. Uma vítima da burocracia.

Ainda uma cena final. O pequeno mundo de Daniel Blake assiste ao seu velório. As poucas pessoas presentes ouvem o que Daniel iria dizer aos que o examinariam, no seu encontro decisivo com a burocracia, fazendo o relato de seu drama, certamente o drama de milhares de cidadãos britânicos. Ken Loach, o seu diretor, foi premiado com a Palma de Ouro em Cannes - 2016. Já no alto de seus 80 anos continua a sua incansável batalha por um mundo mais humano e sensível.

E continuando a estabelecer paralelos, milhares de cidadãos brasileiros estão sendo convocados por órgãos burocráticos da Previdência Social para rever a concessão de seus benefícios. Certamente serão submetidos a processos muito semelhantes aos enfrentados pelo cidadão britânico Daniel Blake. Filme absolutamente imperdível, especialmente em tempos de tanto ódio e revolta, aqui entre nós, pelo simples fato de existirem esses benefícios sociais e em que, as políticas de construção de cidadania são vistas como a fonte de todos os males e a razão da falência do Estado.