Se eu soubesse como pedir autorização para o Dr. Lênio Streck para publicar este texto no meu blog, eu pediria. Mas mesmo sem consultá-lo tomo a liberdade de o fazer. Tenho duas razões principais para isso: a primeira é a de sua divulgação. Foi o mais belo texto que eu li sobre o julgamento; a segunda é a sua preservação. Quero ter um arquivo onde eu possa revê-lo e dispô-lo constantemente. Também recebi pedidos para que o fizesse. Isso posto segue o artigo:
A foto do desembargador que aparece junto com a publicação.
"Coincidentemente, no dia do julgamento do recurso do ex-presidente
Lula no TRF-4 me encontro na Grécia. E visitei o templo da deusa Palas
Atena.
Fiquei pensando sobre a história. Eu estava ali, no berço da
civilização. E vendo o “lugar” em que a mitologia coloca o primeiro
julgamento da história.
Os gregos inventaram a democracia. E, acreditem, também inventaram a autonomia do Direito.
O primeiro tribunal está lá na trilogia de Ésquilo, Oresteia,
nas Eumênides, peça representada pela primeira vez em 458 a.C. Agamenon,
no retorno da guerra de Troia, é assassinado na banheira de sua casa
por sua mulher, Clitemnestra, e seu amante, Egisto.
Orestes, o filho desterrado de Agamenon, atiçado pelo deus Apolo, é induzido à vingança.
Até então, essa era a lei. Era a tradição. Orestes deveria matar sua
mãe (Clitemnestra) e seu amante, Egisto. E ele mata os dois.
Aí vem a culpa. É assaltado pela anoia, a loucura que acomete quem
mata sua própria gente. Ao assassinar sua mãe, Orestes desencadeia a
fúria das Eríneas, que eram divindades das profundezas ctônicas (eram
três: Alepho, Tisífone e Megera).
As Eríneas são as deusas da fúria, da raiva, da vingança (hoje todas
as Eríneas e seus descendentes estão morando nos confins das redes
sociais).
Apavorado, Orestes implora o apoio de Apolo. Pede um julgamento, que é aceito pela deusa da Justiça, Palas Atena.
Constitui-se, assim, o primeiro tribunal, cuja função era parar com
as mortes de vingança. Antes, não havia tribunais. A vingança era “de
ofício”.
As Eríneas berram na acusação. É o corifeu, o Coro que acusa. Não
quer saber de nada, a não ser da condenação. E da entrega de Orestes à
vingança.
Apolo foi o defensor. Orestes reconheceu a autoria, mas invoca a
determinação de Apolo. E este faz uma defesa candente de Orestes.
Os votos dos jurados, depositados em uma urna, dão empate.Palas Atena absolve Orestes, face ao empate. O primeiro in dubio pro reo.
Moral da história: rompe-se um ciclo. Acabam as vinganças. É uma antevisão da modernidade.
Em pleno século XXI, autoridades não escondem e acham normal que o Direito valha menos que seus desejos morais e políticos.
Na Oresteia, os desejos de vingança sucumbiram ao Direito. Embora a
moral seja uma questão da modernidade, é possível dizer que o Direito,
nesse julgamento, venceu a moral. Não aprendemos nada com isso.
Como falei alhures, o julgamento de Lula não é o Armagedom jurídico. Mas que o Direito já não será o mesmo, ah, isso não será.
Na verdade, o Direito foi substituído por uma TPP (teoria política do
poder). O PCJ (privilégio cognitivo do juiz) vale mais do que as
garantias processuais e toda a teoria da prova que já foi escrita até
hoje.
O mundo apreendeu muito com a Oresteia. Depois do segundo pós-guerra,
aprendemos que a democracia só se faz pelo Direito e com o Direito. E o
Direito vale mais que a moral. E, se for necessário, vale mais do que a
política.
Sim, quem não entender isso deve fazer qualquer coisa — como
Sociologia, Ciência Política, Filosofia, religião, moral etc. —, menos
praticar ou estudar Direito.
Temos um milhão de advogados, parcela dos quais se comporta como as Eríneas das Eumênides.
Vi, entristecido, aqui da Grécia, nas redes sociais brasileiras,
pessoas formadas em Direito — muitas delas com pedigree — torcendo por
coisas como “domínio do fato”, “ato de ofício indeterminado” e
quejandos.
Parece que esquecemos que o Direito é/foi feito exatamente para impedir o triunfo das Eríneas.
Meus 28 anos de Ministério Público e quase 40 de
magistério mostraram-me que, por mais que um discurso moral, político ou
econômico seja tentador, ele deve pedágio ao Direito.
Alguém pode até confessar que matou alguém, mas, se essa confissão
for produto de uma intercepção telefônica ilícita, deve ser absolvido,
porque a prova foi ilícita. Esse é o custo da democracia.
Você pode pensar o que quiser sobre o réu; mas, como autoridade, só pode agir com responsabilidade política.
Dworkin, para mim o jurista do século XX, sempre disse que juiz decide por princípio, e não política ou moral. Simples assim.
E, assim, o custo da democracia é que a acusação, o Estado, deve ter o
ônus da prova. Não é o juiz que faz a prova nem é o juiz que intui
provas.
A teoria da prova é condição de possibilidade. Ou vamos apagar centenas de anos de teoria da prova.
Isso quer dizer, de novo — e minha chatice é produto de minha LEER
(Lesão Por Esforço Epistêmico Repetitivo) —, Direito não pode ser
corrigido pela moral. Isso tem me conduzido.
Disse isso nos momentos mais difíceis, inclusive no caso das
nulidades contra Temer, de Aécio e dos indevidos pedidos de prisão do
ex-presidente Sarney.
Bueno: é só acessar minhas mais de 300 colunas neste site. E meus mais de 40 livros. E 300 artigos.
Todas as semanas denuncio, aqui na ConJur, a predação do Direito
pelos seus predadores naturais — a moral, a política e a economia.
E me permito repetir o poeta T. S. Eliot: numa terra de fugitivos,
aquele que anda na direção contrária parece que está fugindo. Mais: faz
escuro, mas eu canto, diria Thiago de Mello, eternizado pela voz de Nara
Leão.
Por tudo isso, fazendo minha oração à deusa Palas Atena ao cair da
tarde do dia 24 — com o peso de mais de mais de 2.500 anos de história e
mitologia —, fico pensando no que vai acontecer com o Direito
brasileiro depois disso tudo.
Se a moral e os subjetivismos valem mais do que o Direito, o que os
professores ensinarão aos alunos? Teoria Política do Poder? Mas de quem?
A favor e contra quem?
Por isso, de forma ortodoxa, mantenho-me nas trincheiras do Direito. É mais seguro.
Aliás, foi o que fez a diferença para a modernidade: a interdição entre a civilização e a barbárie se faz pelo Direito.
Até porque, se hoje você gosta do gol de mão, amanhã seu time pode perder com gol de mão. E aí não me venha com churumelas.
Post Scriptum: Há um momento do julgamento de Lula em que o
presidente da turma diz: “Terminamos a primeira fase — a das
sustentações orais. Faremos um intervalo de 5 minutos e, na volta, o
relator lerá seu voto”.
Ups. Ato falho? O relator lerá seu voto? E as sustentações?
Lembro que, no julgamento mitológico de Orestes, os jurados não
tinham o voto pronto. Cada um votou depois de ouvirem a defesa e a
acusação.
É incrível como, no Brasil, 2.500 anos depois, os votos vêm prontos e
não levam em conta nada do que foi dito nas sustentações orais. Nem
disfarçam.
Afinal, por que manter, então, esse teatro? Se a decisão está tomada? Isso não é um desrespeito a quem sustenta?
Insisto: o ensino jurídico no Brasil tem futuro? Ficções da realidade e realidade das ficções!
E pior: há milhares de professores que, por aí afora, não protestam
contra isso tudo. Aliás, de quem é a culpa do livre convencimento?
Os professores são coautores. Artigo 29 do CP na veia. Mesmo assim, resisto.Lenio Luiz Streck é jurista, professor de Direito Constitucional e pós-doutor em Direito. Sócio do escritório Streck e Trindade Advogados Associados: www.streckadvogados.com.br
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