“Eu sou os vínculos que vou tecendo com os
outros”. Esta frase me acompanha há muito e é retirada do livro Filosofia para não filósofos, de Albert
Jacquard. Qual é o significado desta frase? É pelo outro que eu construo a
minha individualidade. Apenas isso, ou melhor, tudo isso. Eu só tenho a
percepção do meu eu, graças ao tu, que a mim se contrapõe. É o outro, o tu, que
constitui a percepção do meu eu, da minha individualidade. E é do encontro dos
“eus” e dos “tus”, em relação, que se forma a sociedade. Vejamos Jacquard
ilustrando esta situação.
“É justamente porque não é
idêntico a mim que o outro participa da minha existência. Uma carga elétrica só
é definível em presença de outra carga. É essa coexistência que é fonte de
tensão; ela inicia uma dinâmica, a da comunicação. Comunicar é colocar em comum;
e colocar em comum é o ato que nos constitui. Se alguém considera esse ato
impossível, recusa qualquer projeto humano”.
Filosofia para não filósofos. Uma espécie de dicionário com um texto para cada letra do alfabeto. De A - Alteridade.
Gostaria de avocar um segundo
pensamento, que me acompanha há mais tempo ainda, e que ilustra e complementa o
significado do outro em minha existência. É de D. Hélder Câmara, retirado de um
livrinho com o nome, O Deserto é Fértil. Neste
livrinho encontramos um título, sob as palavras Partir... Caminhar... É a ideia do devir, do tornar-se, ou ainda,
do construir-se. Aí se soma o movimento com o futuro, da transcendência,
dimensões profundas do humano. Vejamos D. Hélder:
“Abrir-se as ideias, inclusive
contrárias às próprias, demonstra fôlego de bom caminheiro. Feliz de quem
entende e vive este pensamento: ‘Se discordas de mim, tu me enriqueces’”. E,
complementa: “Ter ao próprio lado quem só sabe dizer amém, quem concorda
sempre, de antemão e incondicionalmente, não é ter um companheiro mas, sim, a
sombra de si mesmo. Desde que a discordância não seja sistemática e proposital,
que seja fruto de visão diferente, a partir de ângulos novos, importa de fato
em enriquecimento”. D. Hélder ainda dá um complemento importante: “Companheiro
é, etimologicamente, quem come o mesmo pão”.
De ideias contrárias e opostas nasce o plural e o múltiplo.
Na mesma direção e sentido, outra
frase também me acompanha. É de um rei inglês, que assim se dirigia a um súdito
seu: “De vez em quando discorda de mim, para eu sentir que somos dois”.
Mas, voltamos à comunicação, ao
colocar em comum, às relações. Qual deverá ser a sua marca? A da verticalidade
ou a da horizontalidade? Se a sociedade tiver a marca da verticalidade, na
verdade, não haverá comunicação, haverá comunicados. Comunicados que se
revestem de hierarquia (ordem sagrada) sob a forma de dominar a relação. Por
essa relação vertical e hierárquica eu vou querer ter o domínio sobre o outro e
submetê-lo, impedindo assim, a sua individuação, desfigurando-o ou configurando-o a mim. Politicamente, estas são as chamadas sociedades
autoritárias, em que o máximo atingível será a tolerância, palavra que não vai
além do suportar. A linguagem entre estes seres será a do
discurso, da prédica, da catequese. Tudo sob a certeza da verdade.
Se, ao contrário, houver a
reciprocidade, isto é, a verdadeira comunicação, as relações serão as de horizontalidade,
entre iguais, e a grande marca será, agora, a do respeito, o respeito gerado
pela condição da igualdade. Esta será uma sociedade democrática. E a linguagem
entre estes seres será a do diálogo, que se aprofunda, na exata medida do
conhecimento, da troca, da incorporação do diverso, do múltiplo e do plural,
aprofundado com a presença da busca, da pergunta, da interrogação.
Em nossa sociedade, ao menos
aparentemente, a democracia parece ser um valor de reconhecimento
universal. Quero trazer para a análise mais dois livros. Um chama-se O ódio à democracia, de Jacques Rancière.
O outro é - Como conversar com um
fascista – reflexões sobre o cotidiano autoritário brasileiro, de Márcia
Tiburi. Do primeiro vou ficar com a orelha do livro, escrita pelo filósofo
Renato Janine Ribeiro e do segundo, com o prefácio de autoria do juiz de
direito, Rubens Casara. Os dois enfocam o violento ódio que está hoje presente
na sociedade brasileira.
Janine Ribeiro, depois de
constatar que recentemente houve no Brasil programas de inclusão social que mudaram a sua fisionomia, afirma: “Entretanto, um número expressivo de membros da classe média
os desqualifica, alegando diversos pretextos. Para eles o Brasil era bom quando
pertencia a poucos. Assim, quando os polloi
– a multidão – ocupam os espaços antes reservados às pessoas de “boa
aparência”, uma gritaria se alastra em sinal de protesto”. E continua:
“O que é isso, senão o enorme
mal-estar dos privilegiados quando se expande a democracia? Democracia é hoje
um significante poderoso, palavra bem-vista e que agrega um número crescente de
possibilidades, indo da eleição pelo povo até a igualdade entre os parceiros no
amor. Mas a expansão da democracia incomoda”. Já no corpo do livro, encontramos
uma definição de democracia como sendo “o reino dos desejos ilimitados dos
indivíduos da sociedade de massa moderna”. Por isso a democracia precisa ser
contida. Busco mais algumas afirmações sobre a raiz do ódio à democracia:
O ódio é à democracia que movimenta as classes sociais, que as faz transitar.,
“É do povo e de seus costumes que
eles se queixam, não das instituições de seu poder. Para eles, a democracia não
é uma forma de governo corrompido, mas uma crise da civilização que afeta o
Estado através dela”, para esclarecer, logo em seguida: “O governo democrático,
diz, é mau quando se deixa corromper pela sociedade democrática que quer que
todos sejam iguais e que todas as diferenças sejam respeitadas”. Ou ainda, “Só
existe uma democracia boa, a que reprime a catástrofe da civilização
democrática”. Por isso o ódio à democracia, que transforma aeroporto em
rodoviária e avião em lotação.
No livro de Márcia Tiburi, o juiz
Rubens Casara inicia o seu prefácio com uma fábula oriental. Um homem teve a
sua boca invadida por uma serpente, enquanto ele dormia, e ela passou a
dominá-lo. Narra essa fábula para aludir ao ódio tão vivamente presente em
nossa sociedade. A evocação a esta fábula também é uma alusão ao filme O ovo da serpente de Ingmar Bergman.
Hoje não precisamos tomar cuidado com o ovo da serpente, pois, ela, a serpente, já está
alojada nas entranhas da sociedade. Afirma, ainda, que em nossa sociedade existe uma
cultura autoritária, transformada numa espécie de segunda natureza, para depois se
perguntar pelas razões desta constatação. E busca explicações.
O fascismo, de origem italiana, é
uma força que disputa com o liberalismo e o socialismo a doutrina hegemônica na
condução da sociedade. Deriva de fascio -
fascis, feixe de varas, símbolo dos magistrados romanos, que as usavam “com
o objetivo de abrir espaços para que passassem (exercício de poder sobre o
corpo do indivíduo que atrapalhava o caminho)". Eram símbolos do poder do
Estado.
Márcia Tiburi lança o desafio do diálogo com o fascista.
O esforço legitimador desta
teoria, desprovida de racionalização, decorre da necessidade de ação imediata,
de uma vontade de conquista, para impor a sua visão de mundo sobre a dos outros,
estabelecendo uma relação, que Paulo Freire, define como uma relação de
contatos, de um sujeito sobre um objeto. Querem impor a sua visão, mesmo sem a
definição clara de um projeto alternativo. Casara elenca, ainda, algumas
características desta ideologia fascista.
Ela é portadora de negação, da negação
do conhecimento e do diálogo, o instrumento da superação da ausência do saber. Por
isso ela é cinza e monótona. Ela não suporta o colorido do plural, expresso na
democracia, aquela democracia que é dinâmica, participativa e que torna
concretos os direitos fundamentais de todos. Pela negação do conhecimento e do
diálogo estão sempre próximos dos fundamentalismos e predispostos ao uso da
força e da violência.
Buscam a edificação de um Estado
Total, de um Estado hobbesiano, que se sobreponha aos indivíduos, anulando-os.
A intolerância é constante. A pluralidade e as diferenças são sempre
reprimidas. O outro, o alter, é um
inimigo. O fascismo sempre se apresenta como um fenômeno natural, da
naturalização da dominação de uns sobre os outros. São também portadores de
desconfiança, Acima de tudo desconfiam do conhecimento, o único meio capaz de
abalar as suas crenças, que recusam ver abaladas. O conhecimento faz ver
as contradições da realidade e é por isso que incomoda. Esta desconfiança, em
consequência, também se estende aos seus portadores. Suas convicções não se
fundamentam na racionalidade e buscam amparo no irracional e no antinatural.
Ao ódio se soma o medo da
liberdade. Por não saberem exercê-la, negam-na ao outro. Se fundem a uma idealizada
força, a que se submetem, julgando assim resolver os seus graves problemas. Tem
compulsão à submissão. Por fim, Casara pergunta sobre o objetivo do livro de
Márcia Tiburi. E ele responde:
“O desafio é confrontar o
fascista com aquilo que para ele é insuportável: o outro. O instrumento? O
diálogo, na melhor tradição filosófica atribuída a Sócrates”. Hoje sabemos que
Sócrates, ao propor o diálogo, não se deu bem. O mesmo risco correm todos os
seus adeptos, também nos dias de hoje. Enfim, Casara nos diz que a proposta do
livro de Márcia Tiburi é a de vomitar a serpente entranhada no ventre das
pessoas pela cultura reinante na sociedade.
O instrumento? Agora a conclusão é nossa. O instrumento é o diálogo formalizado pelo encontro do “eu” com o “tu”, no respeito à alteridade,
pois, “eu sou os vínculos que vou tecendo com os outros”. E que o resultado
deste tecer, seja o de uma obra de arte. E que esta obra de arte seja, como
recomendava a paideia grega, “
constituído de modo correto e sem falha, nas mãos, nos pés e no espírito”.
Magnífico! \o/
ResponderExcluirMuito obrigado, Renan. São as filosofias da vida, que ajudam a viver em tempos tão turbulentos.
ResponderExcluirSábias reflexões!
ResponderExcluirGlória, muito obrigado pelo seu estimulante comentário.
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