segunda-feira, 7 de dezembro de 2015

O Outro. Inferno ou Paraíso.

 “Eu sou os vínculos que vou tecendo com os outros”. Esta frase me acompanha há muito e é retirada do livro Filosofia para não filósofos, de Albert Jacquard. Qual é o significado desta frase? É pelo outro que eu construo a minha individualidade. Apenas isso, ou melhor, tudo isso. Eu só tenho a percepção do meu eu, graças ao tu, que a mim se  contrapõe. É o outro, o tu, que constitui a percepção do meu eu, da minha individualidade. E é do encontro dos “eus” e dos “tus”, em relação, que se forma a sociedade. Vejamos Jacquard ilustrando esta situação.

“É justamente porque não é idêntico a mim que o outro participa da minha existência. Uma carga elétrica só é definível em presença de outra carga. É essa coexistência que é fonte de tensão; ela inicia uma dinâmica, a da comunicação. Comunicar é colocar em comum; e colocar em comum é o ato que nos constitui. Se alguém considera esse ato impossível, recusa qualquer projeto humano”.
Filosofia para não filósofos. Uma espécie de dicionário com um texto para cada letra do alfabeto. De A - Alteridade.

Gostaria de avocar um segundo pensamento, que me acompanha há mais tempo ainda, e que ilustra e complementa o significado do outro em minha existência. É de D. Hélder Câmara, retirado de um livrinho com o nome, O Deserto é Fértil. Neste livrinho encontramos um título, sob as palavras Partir... Caminhar... É a ideia do devir, do tornar-se, ou ainda, do construir-se. Aí se soma o movimento com o futuro, da transcendência, dimensões profundas do humano. Vejamos D. Hélder:

“Abrir-se as ideias, inclusive contrárias às próprias, demonstra fôlego de bom caminheiro. Feliz de quem entende e vive este pensamento: ‘Se discordas de mim, tu me enriqueces’”. E, complementa: “Ter ao próprio lado quem só sabe dizer amém, quem concorda sempre, de antemão e incondicionalmente, não é ter um companheiro mas, sim, a sombra de si mesmo. Desde que a discordância não seja sistemática e proposital, que seja fruto de visão diferente, a partir de ângulos novos, importa de fato em enriquecimento”. D. Hélder ainda dá um complemento importante: “Companheiro é, etimologicamente, quem come o mesmo pão”.
                                    
De ideias contrárias e opostas nasce o plural e o múltiplo.

Na mesma direção e sentido, outra frase também me acompanha. É de um rei inglês, que assim se dirigia a um súdito seu: “De vez em quando discorda de mim, para eu sentir que somos dois”.

Mas, voltamos à comunicação, ao colocar em comum, às relações. Qual deverá ser a sua marca? A da verticalidade ou a da horizontalidade? Se a sociedade tiver a marca da verticalidade, na verdade, não haverá comunicação, haverá comunicados. Comunicados que se revestem de hierarquia (ordem sagrada) sob a forma de dominar a relação. Por essa relação vertical e hierárquica eu vou querer ter o domínio sobre o outro e submetê-lo, impedindo assim, a sua individuação, desfigurando-o ou configurando-o a mim. Politicamente, estas são as chamadas sociedades autoritárias, em que o máximo atingível será a tolerância, palavra que não vai além do suportar. A linguagem entre estes seres será a do discurso, da prédica, da catequese. Tudo sob a certeza da verdade.

Se, ao contrário, houver a reciprocidade, isto é, a verdadeira comunicação, as relações serão as de horizontalidade, entre iguais, e a grande marca será, agora, a do respeito, o respeito gerado pela condição da igualdade. Esta será uma sociedade democrática. E a linguagem entre estes seres será a do diálogo, que se aprofunda, na exata medida do conhecimento, da troca, da incorporação do diverso, do múltiplo e do plural, aprofundado com a presença da busca, da pergunta, da interrogação.

Em nossa sociedade, ao menos aparentemente, a democracia parece ser um valor de reconhecimento universal. Quero trazer para a análise mais dois livros. Um chama-se O ódio à democracia, de Jacques Rancière. O outro é - Como conversar com um fascista – reflexões sobre o cotidiano autoritário brasileiro, de Márcia Tiburi. Do primeiro vou ficar com a orelha do livro, escrita pelo filósofo Renato Janine Ribeiro e do segundo, com o prefácio de autoria do juiz de direito, Rubens Casara. Os dois enfocam o violento ódio que está hoje presente na sociedade brasileira.

Janine Ribeiro, depois de constatar que recentemente houve no Brasil programas de inclusão social que mudaram a sua fisionomia, afirma: “Entretanto, um número expressivo de membros da classe média os desqualifica, alegando diversos pretextos. Para eles o Brasil era bom quando pertencia a poucos. Assim, quando os polloi – a multidão – ocupam os espaços antes reservados às pessoas de “boa aparência”, uma gritaria se alastra em sinal de protesto”. E continua:

“O que é isso, senão o enorme mal-estar dos privilegiados quando se expande a democracia? Democracia é hoje um significante poderoso, palavra bem-vista e que agrega um número crescente de possibilidades, indo da eleição pelo povo até a igualdade entre os parceiros no amor. Mas a expansão da democracia incomoda”. Já no corpo do livro, encontramos uma definição de democracia como sendo “o reino dos desejos ilimitados dos indivíduos da sociedade de massa moderna”. Por isso a democracia precisa ser contida. Busco mais algumas afirmações sobre a raiz do ódio à democracia:
O ódio é à democracia que movimenta as classes sociais, que as faz transitar.,

“É do povo e de seus costumes que eles se queixam, não das instituições de seu poder. Para eles, a democracia não é uma forma de governo corrompido, mas uma crise da civilização que afeta o Estado através dela”, para esclarecer, logo em seguida: “O governo democrático, diz, é mau quando se deixa corromper pela sociedade democrática que quer que todos sejam iguais e que todas as diferenças sejam respeitadas”. Ou ainda, “Só existe uma democracia boa, a que reprime a catástrofe da civilização democrática”. Por isso o ódio à democracia, que transforma aeroporto em rodoviária e avião em lotação.

No livro de Márcia Tiburi, o juiz Rubens Casara inicia o seu prefácio com uma fábula oriental. Um homem teve a sua boca invadida por uma serpente, enquanto ele dormia, e ela passou a dominá-lo. Narra essa fábula para aludir ao ódio tão vivamente presente em nossa sociedade. A evocação a esta fábula também é uma alusão ao filme O ovo da serpente de Ingmar Bergman. Hoje não precisamos tomar cuidado com o ovo da serpente, pois, ela, a serpente, já está alojada nas entranhas da sociedade.  Afirma, ainda, que em nossa sociedade existe uma cultura autoritária, transformada numa espécie de segunda natureza, para depois se perguntar pelas razões desta constatação. E busca explicações.

O fascismo, de origem italiana, é uma força que disputa com o liberalismo e o socialismo a doutrina hegemônica na condução da sociedade. Deriva de fascio - fascis, feixe de varas, símbolo dos magistrados romanos, que as usavam “com o objetivo de abrir espaços para que passassem (exercício de poder sobre o corpo do indivíduo que atrapalhava o caminho)". Eram símbolos do poder do Estado.
Márcia Tiburi lança o desafio do diálogo com o fascista.

O esforço legitimador desta teoria, desprovida de racionalização, decorre da necessidade de ação imediata, de uma vontade de conquista, para impor a sua visão de mundo sobre a dos outros, estabelecendo uma relação, que Paulo Freire, define como uma relação de contatos, de um sujeito sobre um objeto. Querem impor a sua visão, mesmo sem a definição clara de um projeto alternativo. Casara elenca, ainda, algumas características desta ideologia fascista.

Ela é portadora de negação, da negação do conhecimento e do diálogo, o instrumento da superação da ausência do saber. Por isso ela é cinza e monótona. Ela não suporta o colorido do plural, expresso na democracia, aquela democracia que é dinâmica, participativa e que torna concretos os direitos fundamentais de todos. Pela negação do conhecimento e do diálogo estão sempre próximos dos fundamentalismos e predispostos ao uso da força e da violência.

Buscam a edificação de um Estado Total, de um Estado hobbesiano, que se sobreponha aos indivíduos, anulando-os. A intolerância é constante. A pluralidade e as diferenças são sempre reprimidas. O outro, o alter, é um inimigo. O fascismo sempre se apresenta como um fenômeno natural, da naturalização da dominação de uns sobre os outros. São também portadores de desconfiança, Acima de tudo desconfiam do conhecimento, o único meio capaz de abalar as suas crenças, que recusam ver abaladas. O conhecimento faz ver as contradições da realidade e é por isso que incomoda. Esta desconfiança, em consequência, também se estende aos seus portadores. Suas convicções não se fundamentam na racionalidade e buscam amparo no irracional e no antinatural.

Ao ódio se soma o medo da liberdade. Por não saberem exercê-la, negam-na ao outro. Se fundem a uma idealizada força, a que se submetem, julgando assim resolver os seus graves problemas. Tem compulsão à submissão. Por fim, Casara pergunta sobre o objetivo do livro de Márcia Tiburi. E ele responde:

“O desafio é confrontar o fascista com aquilo que para ele é insuportável: o outro. O instrumento? O diálogo, na melhor tradição filosófica atribuída a Sócrates”. Hoje sabemos que Sócrates, ao propor o diálogo, não se deu bem. O mesmo risco correm todos os seus adeptos, também nos dias de hoje. Enfim, Casara nos diz que a proposta do livro de Márcia Tiburi é a de vomitar a serpente entranhada no ventre das pessoas pela cultura reinante na sociedade.


 O instrumento? Agora a conclusão é nossa. O instrumento é o diálogo formalizado pelo encontro do “eu” com o “tu”, no respeito à alteridade, pois, “eu sou os vínculos que vou tecendo com os outros”. E que o resultado deste tecer, seja o de uma obra de arte. E que esta obra de arte seja, como recomendava a paideia grega, “ constituído de modo correto e sem falha, nas mãos, nos pés e no espírito”.

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