sexta-feira, 26 de abril de 2019

Relato de um certo oriente. Milton Hatoum. Vestibular UFPR.

Cheguei a este livro pela via de uma lista de livros para o vestibular. No caso, tratava-se do vestibular da Universidade Federal do Paraná. O livro indicado é Relato de um certo oriente, de Milton Hatoum, o hoje consagrado escritor, nascido em Manaus e descendente de libaneses. Aí já estão os primeiros elementos necessários para a compreensão deste complexo livro. Trata-se de seu primeiro romance, datado de 1989.
Edição da CompanhiaDeBolso, 9ª. reimpressão. 2018.

A complexidade do livro está na sua estrutura narrativa, desenvolvida ao longo de oito capítulos que se interligam. A narradora é uma filha de Manaus, que se distanciara de sua cidade natal, morando em São Paulo por vinte anos e que decide voltar à cidade de seu passado e lá ter um reencontro com os personagens de sua infância e primeira socialização. Por adoção, Emilie será a sua mãe e também a personagem central da recomposição de sua viagem de regresso e incursão nas memórias de seu passado.

É a oportunidade que o escritor tem para mostrar as peculiaridades de uma família de imigrantes, libaneses no caso, em busca de fazer a vida, numa cidade tão peculiar, quanto é a cidade de Manaus, uma cidade eminentemente fluvial. A ocupação da família, por óbvio, será o comércio. Ela é a proprietária da loja Parisiense. As relações familiares não vão bem. Um pai silencioso, sempre com o livro ao alcance, uma mãe muito presente e o desencontro com os filhos e deles entre si. Já no primeiro capítulo, quando a narradora chega à cidade e é recebida por uma filha de Anastácia, uma velha criada da casa, ela faz a seguinte descrição: "Talvez (ela) já soubesse da existência dos quatro filhos de Emilie: Hackim e Samara Délia, que passaram a ser nossos tios, e os outros dois, inomináveis, filhos ferozes de Emilie, que tinham o demônio tatuado no corpo e uma língua de fogo" (Página 9).

Já no sétimo capítulo teremos uma referência explícita a esta situação familiar, quando Emilie tentou reconciliar, sem sucesso, os inomináveis com Samara Délia, que praticamente assumira os negócios da Parisiense e que lhes garantia o sustento material. Um deles assim se dirige à sua mãe: "A senhora deu à luz a uma mulher da vida; a senhora devia se odiar e mais que ninguém entender o ódio" Página 136). Samara Délia, como vimos na fala do filho, fora uma mulher da vida. O pai, pelo livro que sempre o acompanhava, a acolhia com o seu perdão. Mas a intriga estava plantada na família. Uma semana após esse incidente Emilie morre. Às vésperas desta morte é que a narradora chega a cidade.

Incidentes trágicos serão os que mais emergem neste mergulho no passado, como o desaparecimento de Emir, irmão de Emilie, por um afogamento suicida e o atropelamento de Soraya Ângela, a filha de Samara Délia. A relação Emilie, Samara Délia e Soraya Ângela ganha belíssimas páginas, evocando sentimentos de ternura e de culpa, já ao final do quinto capítulo, o mais longo de todos. Também Dorner, um fotógrafo alemão entra em cena e na memória aparecem também os alemães ao longo da guerra e os seus mecanismos de defesa, como se fossem os culpados pelos acontecimentos ocorridos na Alemanha. 

Outro ponto forte do livro é a descrição das relações sociais estabelecidas. Especialmente as que Emilie travava com Anastácia, a empregada/lavadeira da casa. As relações eram absolutamente verticalizadas e incluíam castigos físicos. As relações sociais eram um simples prolongamento ou extensão dos tempos da escravidão. A fome e a miséria, além das precárias condições de higiene e as condições de insalubridade provocadas pelo clima também são vivamente descritas. A fuga era impossível, pois, significava morte certa, em virtude das muitas doenças tropicais. Da mesma forma ganham destaque também as ervas e as curas.

A beleza do romance chega ao seu auge no capítulo final. Ele trata da solidão, quando as pessoas, especialmente, na figura de Emilie, alcançam a velhice e são excluídas do diálogo, tornando-se "corpos sem fala" e buscando refúgio no bordar. Que imagem! Introspeção e existencialismo tomam conta das páginas finais. Nela a narradora tenta, em carta, sintetizar os fatos envolvendo a morte e os funerais de Emilie para o seu irmão, que mora em Barcelona. Praticamente esta carta dá a estrutura narrativa para o romance. Transcrevo os seus dois últimos parágrafos.

"Quantas vezes recomecei a ordenação de episódios, e quantas vezes me surpreendi ao esbarrar no mesmo início, ou no vaivém vertiginoso de capítulos entrelaçados, formados de páginas e páginas numeradas de forma caótica. Também me deparei com um outro problema: como transcrever a fala engrolada de uns e o sotaque de outros? Tantas confidências de várias pessoas em tão poucos dias como um coral de vozes dispersas. restava então recorrer à minha própria voz, que planaria como um pássaro gigantesco e frágil sobre as outras vozes. Assim, os depoimentos gravados, os incidentes e tudo o que era audível e visível passou a ser norteado por uma única voz, que se debatia entre a hesitação e os murmúrios do passado. E o passado era como um perseguidor invisível, uma mão transparente acenando para mim, gravitando em torno de épocas e lugares situados muito longe da minha breve permanência na cidade. Para te revelar (numa carta que seria a compilação abreviada de uma vida) que Emilie se foi para sempre, comecei a imaginar com os olhos da memória as passagens da infância, as cantigas, os convívios, a fala dos outros, a nossa gargalhada ao escutar o idioma híbrido que Emilie intentava todos os dias.

Era como se eu tentasse sussurrar no teu ouvido a melodia de uma canção sequestrada, e que, pouco a pouco, notas esparsas e frases sincopadas moldavam e modulavam a melodia perdida". Páginas 147-148.

O livro exige uma leitura extremamente atenta e que dificilmente se revelará, por inteiro, já na sua primeira leitura. Na contracapa do livro se lê a seguinte breve apresentação: "Após um longo período de ausência, uma mulher regressa a Manaus, cidade de sua infância. Deseja encontrar Emilie, a extraordinária matriarca de uma família libanesa há muito radicada ali. Encontra a casa desfeita - como desfeitas para sempre estão as casas da infância. Situado entre o Oriente e o Amazonas, este relato é a busca de um mundo perdido, que se reconstrói nas falas alternadas das personagens, longínquos ecos da tradição oral dos narradores orientais".



quinta-feira, 25 de abril de 2019

Fake news, crise epistêmica e epistemologia tribal. Wilson Gomes. CULT nº 244.

Estes dias, numa roda informal de conversa, discutíamos o atual momento desolador da política brasileira. A questão era ver se já houve, na história deste país, algo semelhante ao que estamos passando hoje. Óbvio que nos referíamos ao surto de ignorância que assolou o país com a eleição do mais ignorante dos candidatos a presidente já registrados ao longo de toda a nossa história. E o mais incrível, ele venceu. Disso se deduz...
A capa da revista Cult nº 244, onde se encontra a coluna de Wilson Gomes.

A minha ponderação foi que, embora tivéssemos tido governos conservadores e, mesmo ditaduras, nunca tivemos um governo nitidamente antiintelectual, como já ocorrera na história dos Estados Unidos. O governo Bolsonaro seria o primeiro. Confesso que eu não havia percebido todo o alcance da questão. O atual momento vivido é muito pior, infinitamente pior. Está  praticamente fora do alcance da imaginação. Me dei conta disso, ao ler a coluna de Wilson Gomes, na revista Cult, nº 244, de abril de 2019, sob o título de Fake news, crise epistêmica e epistemologia tribal. É estarrecedor. Vivemos uma crise epistêmica, não provocada pela dúvida cartesiana, mas simplesmente, a negação do conhecimento, bem como todos os caminhos traçados ao longo de sua construção, os caminhos da racionalidade ocidental. Além da negação desta racionalidade, são negados e vilipendiados também todos os espaços e agentes de sua construção, como as escolas, universidades e agências de pesquisa científica e tecnológica. O mesmo ocorre com os órgãos de informação e dos espaços culturais e artísticos. Esta é a razão da existência de tanto ódio.

"À raiz de tudo", afirma Wilson Gomes, "está o fato de que uma parcela cada vez maior de pessoas no mundo acredita surpreendentemente em um monte de histórias malucas, usando-as para tomar decisões políticas (escolhas eleitorais, apoios à políticas públicas) ou para fomentar a guerrilha política permanente entre lados e facções". E numa espécie de síntese de seu texto, em destaque lemos: "Como os grupos ultraconservadores promovem a confusão entre o verdadeiro e o falso e buscam desacreditar o conhecimento intelectual e científico".

O mundo sempre foi bom em inventar mentiras, afirma Gomes, mas a diferença está hoje, na possibilidade de sua rápida propagação pela, cada vez maior, digitalização da vida. Ainda na abertura de seu texto elenca algumas da fake news, como o pizzagate, pelo qual se alardeou que os democratas tocavam uma rede de prostituição infantil a partir de uma pizzaria de Washington, ou ainda, que os mesmos democratas estavam envolvidos com uma organização internacional de tráfico de crianças, que Hilary Clinton contava com vários assassinatos em sua biografia e que Obama, de fato, era muçulmano e que não nascera em território estadunidense. Ou ainda, que Trump teve roubados milhares votos e que um movimento antifascista desejava iniciar uma guerra civil, promover a derrubada Trump, matar brancos e implantar uma ditadura socialista. Vejam bem, isto tudo nos Estados Unidos e sempre envolvendo os conservadores. Esta nova realidade é uma invenção conservadora.

Um pouco a frente, Gomes se volta ao Brasil e aponta o sucesso do Kit Gay e da mamadeira de piroca na campanha eleitoral de Bolsonaro, alertando para os perigos que o PT representava no  estímulo a uma iniciação sexual precoce, para a homossexualidade ou para se levar uma vida devassa. Outras fakes ainda diziam que Jean Wyllys havia contratado Adélio Bispo para matar Bolsonaro e que ele fora o coordenador da campanha de Dilma Rousseff, em sua reeleição. E ainda, que o mesmo Jean Wyllys teria apresentado um PL propondo uma revisão da Bíblia. Já Manuela D'Ávila teria profetizado o fim do cristianismo e que "somos mais populares que Jesus Cristo neste momento". E, ainda, mais outra afirmação de Jean Wyllys de que "a pedofilia é uma prática normal em diversas espécies de animais, anormal é o seu preconceito". Outras aberrações foram mais corriqueiras, como não acreditar no aquecimento global, que a terra seja redonda ou no valor das vacinas.

O objetivo disso tudo é claro. Confundir o povo. Muitos já não tem condições de diferenciar o falso do verdadeiro e o certo do errado. O mais grave é que os critérios e as referências fundamentais em que o mundo se firmava estão sendo removidos. É a isso que Gomes chama de crise epistêmica. Contra os critérios e referenciais históricos estão sendo apresentadas as chamadas verdades tribais, que simplesmente são afirmadas. Outros termos já consagrados são os de "morte da verdade", ou as "falsidades da era Trump".

O autor ainda observa que não se trata efetivamente de uma crise epistemológica, mas o tratamento como se assim o fosse. Trata-se de um movimento para desacreditar as instituições tradicionais que lidam com o conhecimento e assentar em seu lugar blogueiros conservadores ou os digital influencers. Esse expediente foi largamente usado na eleição de Trump, na campanha do Brexit, e no caso brasileiro, a eleição de Bolsonaro.

O último aspecto abordado por Gomes em sua coluna, é sobre a atuação dos difusores desta nova situação. Cita David Roberts, que afirma que essas instituições são "de direita para a direita", e que as categorias de objetividade e de neutralidade não mais fazem sentido. Sobrou apenas o Nós e o Eles, sempre em competição. O critério para a verdade é simplesmente o que é bom para nós e, consequentemente, ruim para eles. Vale o que é bom para a tribo. Isso ocorre porque todas as instituições epistêmicas foram corrompidas pela esquerda. Por esquerda se entende tudo o que, e quem, contraria os seus interesses: os comunistas, os ambientalistas, os globalistas, os gayzistas, as feministas, os marxistas culturais,os ateístas e gente que o valha.

Daí decorre a hostilidade a professores, cientistas, intelectuais, jornalistas, artistas, e, ultimamente, até os "impolutos" juízes do STF, quando esporadicamente contrariam algum de seus muitos interesses. Em suma, um novo conhecimento está em processo de construção, sob a garantia de Olavo de Carvalho, Rush Limbaugh, Steve Bannon, discípulos e assemelhados. A coluna termina com uma leve alfinetada na esquerda: "Que, enfim, há também, e em abundância, epistemologia tribal em movimentos identitários de esquerda".

É. E uma constatação final minha. O momento que estamos vivendo é bem pior do que eu imaginava. É o mundo sob o domínio absoluto da ignorância promovida pelo grande capital, a liquidar qualquer princípio de democracia, cidadania, autonomia, de humanidade e de princípios civilizatórios.
A impressionante experiência da participação no processo eleitoral do Rio Janeiro, como candidata a governadora nas eleições de 2018.

Um adendo (25 de setembro de 2019). "A verdade não é um valor há tempos". TIBURI, Márcia. Delírio do Poder. São Paulo e Rio de Janeiro. Record. 2019.

segunda-feira, 22 de abril de 2019

Henry Ford. Fascista e antissemita?

No livro Espelho do Ocidente - o nazismo e a civilização ocidental li que Hitler admirava Henry Ford. O admirava a tal ponto que mantinha sobre a sua estante uma única estatueta e esta era de Henry Ford. Quis saber mais e fui buscar. Encontrei muita coisa na ficção de Philip Roth, Um complô contra a América. Depois da ficção, ao final do livro há um post-scriptum, em que nos apresenta os fatos e os personagens envolvidos em seu mundo real. Tomo deste pós escrito os dados sobre Ford, sem tecer comentários. Não há necessidade.
Da Companhia de Bolso. Complô contra a América.

HENRY FORD - 1863-1947.

"1903- 1905. O primeiro automóvel Ford, o Model A de dois cilindros e oito cavalos, projetado por Henry Ford e fabricado pela recém-criada Ford Motor Company, é lançado em 1903, ao preço de oitocentos e cinquenta dólares. Modelos mais caros aparecem nos anos seguintes.

1908. Projetado para o meio rural, surge no mercado o Ford Model T; único modelo fabricado pela empresa até 1927, ele torna Ford o maior fabricante de automóveis do país, realizando seu plano de 'fazer um carro para as multidões'.

1910-1916. Com seus sócios, cria um processo de fabricação por meio de produção em sequência e divisão do trabalho, resultando na linha de produção contínua - considerada o maior progresso na indústria desde o advento da Revolução Industrial - e possibilitando a produção em massa do Model T. Em 1914, Ford anuncia o salário básico  de cinco dólares para uma jornada de oito horas; na verdade, essa oferta só se aplica a parte dos empregados de Ford. Não obstante, graças ao 'dia de cinco dólares', Ford é elogiado e ganha fama como um empresário esclarecido, ainda que não como um pensador esclarecido. 'Não gosto de ler livros', ele explica. 'Eles confundem minha cabeça'. Afirma também: 'A história é, de modo geral, uma bobagem.

1916-1919. Seu nome é proposto como candidato à Presidência na Convenção Nacional Republicana, e recebe trinta e dois votos no primeiro escrutínio. Consegue ter o apoio absoluto sobre todas as empresas Ford. Em 1916, a companhia já produz dois mil carros por dia; o total da produção do Model T até esse ano chega a um milhão. Quando eclode a Primeira Guerra Mundial, atua como militante pacifista contra o conflito.. Numa reunião de funcionários da Ford afirma: 'Eu sei quem causou a guerra. Os banqueiros judeu-alemães. Tenho as provas aqui. São fatos. Os banqueiros judeu-alemães causaram a guerra'. Quando os Estados Unidos entram na guerra, promete 'atuar sem lucrar um centavo' nos contratos com o governo, mas não cumpre o prometido. Por insistência do presidente Wilson, concorre ao Senado como democrata - embora anteriormente se identificasse como republicano - e é derrotado por pequena margem de votos. Atribui sua derrota aos 'interesses' de Wall Street e aos 'judeus'.

1920. Em maio, o Dearborn Independent - um hebdomadário local comprado por Ford em 1918 - publica o primeiro de uma série de noventa e um detalhados artigos cujo tema é 'O judeu internacional: problema mundial'; em números subsequentes, publicam em folhetim os apócrifos Protocolos dos sábios de Sião, afirmando que o documento - que revela um plano judaico para dominar o mundo - é autêntico. A circulação do hebdomadário alcança quase trezentos mil exemplares em seu segundo ano de publicação; os revendedores de produtos Ford são obrigados a fazer assinaturas, e os artigos de cunho fortemente antissemita são depois reunidos numa edição em quatro volumes: The International Jew: The World's Foremost Problem ('O judeu internacional: o principal problema mundial').

Década de 1920. Em 1921, a Ford atinge cinco milhões de carros produzidos; o Model T responde por mais da metade dos automóveis vendidos no país. Ford constrói a imensa fábrica de River Rouge e uma cidade industrial em Dearborn. Adquire florestas, minas de ferro e carvão para abastecer sua empresa com matérias-primas. Diversifica a linha Ford. Em 1922, sua autobiografia, My Life and Work, torna-se um best-seller na categoria não ficção; o nome e a lenda de Ford ganham fama no mundo todo. Pesquisas de opinião mostram que ele é mais popular do que o presidente Harding, e seu nome começa a ser sugerido como ideal para uma possível candidatura à Presidência pelo Partido Republicano; no outono de 1922, pensa em se candidatar. Adolf Hitler, numa entrevista em 1923, afirma: 'Consideramos Heinrich Ford um líder do crescente movimento fascista nos Estados Unidos'. Em meados da década, um advogado judeu de Chicago o processa por difamação, e o caso é encerrado com um acordo extrajudicial; em 1927, retira seus ataques aos judeus, resolve interromper suas publicações de material antissemita e fecha o deficitário Dearborn Independent, que já lhe custara quase cinco milhões de dólares. Quando Lindbergh vai a Detroit em agosto de 1927 no Spirit of St. Louis, encontra-se com Ford no aeroporto Ford e o leva a voar pela primeira vez no famoso avião. Lindbergh desperta o interesse de Ford na produção de aviões. Os dois se reúnem posteriormente muitas vezes, e numa entrevista concedida em 1940, em Detroit, Ford observa: 'Quando Charles vem aqui, nós só conversamos sobre os judeus'.

1931- 1937. A concorrência da Chevrolet e da Plymouth, mais o impacto da Depressão, trazem grandes prejuízos à Ford, apesar da inovação representada pelo motor V-8. Surgem dificuldades nas relações com os empregados na fábrica de River Rouge, causadas pela aceleração do ritmo de trabalho, insegurança no emprego e espionagem industrial. Quando o sindicato United Auto Workers tenta fazer campanha na Ford, tal como na General Motors e na Chrysler, Ford reage com violência e intimidação; grupos paramilitares de Detroit espancam sindicalistas em River Rouge. As políticas trabalhistas da Ford Company são condenadas pelo Conselho Nacional de Relações Trabalhistas e consideradas as piores da indústria automobilística.

1938. Em julho, ao completar setenta e cinco anos, aceita a Cruz de Serviço da Águia Alemã oferecida pelo governo nazista de Hitler num jantar comemorativo de seu aniversário em Detroit, para o qual foram convidados mil e quinhentos cidadãos importantes. (Quando a mesma medalha é concedida a Lindbergh em cerimônia realizada na Alemanha em outubro, o secretário do Interior, Ickes afirma numa reunião da Sociedade Sionista de Cleveland, em dezembro: 'Henry Ford e Charles A.Lindbergh são os dois únicos cidadãos livres de um país livre que, com subserviência, aceitaram essas homenagens desprezíveis numa época em que aquele que as concedeu considera perdido o dia em que não cometeu nenhum novo crime contra a humanidade'). Sofre o primeiro de seus dois derrames.

1939-1940. Quando tem início a Segunda Guerra Mundial, passa a defender, com seu amigo Lindbergh, o isolacionismo e o Comitê América em Primeiro Lugar. Pouco depois de Ford ingressar na Comissão Executiva do movimento, Lessing J. Rosenwald, diretor judeu da Sears, Roebuck and Company, renuncia por causa da reputação antissemita de Ford. Durante algum tempo, tem encontros regulares com o padre Coughlin, que faz pronunciamentos antissemitas no rádio; Roosevelt e Ickes acreditam que Ford o esteja financiando. Dá apoio financeiro ao demagogo antissemita Gerald L.K. Smith, pagando seus programas radiofônicos semanais e suas despesas cotidianas. (Anos depois, Smith reedita The International Jew; na década de 1960, ainda afirma que Ford 'nunca mudou sua opinião a respeito dos judeus). 

1941-1947. Sofre o segundo derrame. A companhia passa a produzir artigos bélicos à medida que a guerra se aproxima; durante o conflito, produz o bombardeiro B-24 na imensa fábrica de Willow Run, onde Lindgergh é contratado como assessor. Por motivo de saúde, Ford não consegue mais dirigir a empresa e se aposenta em 1945. Morre em abril de 1947; uma multidão de cem mil pessoas comparece ao velório. A maior parte da imensa fortuna em ações da empresa vai para a fundação Ford, que em pouco tempo se torna a mais rica fundação privada do Mundo".

ROTH, Philip. Complô contra a América. São Paulo, Companhia das Letras, 2015. Páginas 420-423.

quinta-feira, 18 de abril de 2019

Complô contra a América. Philip Roth.

A leitura de Complô contra a América marca um retorno meu à obra de Philip Roth. Quem me levou a esta volta foi o grande livro de Jean-Louis Vullierme Espelho do Ocidente. O nazismo e a civilização ocidental. A referência mais específica foi em relação a Henry Ford e o seu envolvimento com o nazismo. O tema me interessou de imediato. Há tempos eu me propunha a investigar. Deixo aqui a resenha do Espelho do Ocidente. http://www.blogdopedroeloi.com.br/2019/03/espelho-do-ocidente-o-nazismo-e.html .
A tragédia do nazismo vista por dentro. Dentro dos Estados Unidos.


O livro de Roth é uma ficção, mas, poderíamos dizer, uma ficção meio real. Sabemos que o presidente Roosevelt foi presidente de 1933 até 1945, quando acabara de se reeleger para o seu quarto mandato, quando então veio a morrer. Mas não pensem que teve vida fácil. Primeiro instituiu a política do New Deal, na terra do "livre mercado" e, depois, teve que enfrentar o problema da Segunda Guerra Mundial, em meio a uma forte pregação de isolacionismo e de francas simpatias pelo regime de Hitler, entre os meios empresariais e, até por parte de alguns judeus, especialmente, entre os mais ricos, como nos conta o grande escritor. 

Roth altera a história. O herói da aviação americana Charles Lindbergh se elege presidente, contando com a sua enorme popularidade e o apoio do Partido Republicano, sob a pregação de que os Estados Unidos não deveriam se imiscuir nas guerras que diziam respeito, exclusivamente, a Europa. O ataque de Hitler a União Soviética provocava verdadeira histeria eufórica entre muitos americanos. A ficção de Roth se estende de junho de 1940, até outubro de 1942. Os ataques dos japoneses a Peral Harbour, no final do ano anterior, não dão mais sustentação a sua narrativa. Os acontecimentos ao longo do ano de 1942, já são desdobramentos dos acontecimentos anteriores. A ficção é narrada em nove capítulos, ao longo de 437 páginas. Também tem um post-scriptum, onde relata a história verdadeira dos fatos e dos principais personagens envolvidos. A tradução é de Paulo Henriques Britto.

Do lado político os envolvidos são obviamente o presidente Roosevelt, mas o personagem principal será o fictício presidente Charles Lindbergh, um hitlerista convicto e que, com ele mantinha pactos de que não se envolveria na guerra. Henry Ford integrou o seu ministério. Chegou a recepcionar von Ribbentrop, o ministro das relações exteriores de Hitler. Um dos convidados para esta recepção foi o rabino Lionel Bengelsdorf, casado com Evelyn, a tia de Philipp, o narrador. Também ganha destaque um jornalista, muito popular,  Walter Winschell, que será o candidato anti-Lindbergh, pelos democratas. Ele  será assassinado em um atentado, fato que provocará pogroms, assassinatos em série e muitas desordens.

Bem, vamos ao núcleo narrativo, de quem observa todos estes acontecimentos. Será o menino Philipp, que na ocasião tinha algo em torno de sete anos. Uma criança muito atenta, sem muita compreensão das razões dos acontecimentos mas que o abalam profundamente, na medida exata em que uma criança inocente pode ser abalada. Philip é o filho mais novo de Herman e Bess Roth. Uma família de origem judaica. Eles constituem uma família pobre, sendo ele um corretor de seguros, em meio a grande depressão dos anos 1930.Tem ainda um irmão mais velho, chamado Sandy. Um primo, tornado órfão, de nome Alvin, é assumido pela família mas se alista no exército canadense para  ir a Europa combater os nazistas. Volta com uma perna mecânica e uma pequena pensão do exército canadense. Já Sandy se alistara nos programas do governo Lindbergh de integração ou assimilação de imigrantes judeus. Foi trabalhar nas plantações de fumo de Kentucki.

A tia Evelyn também ganha grande destaque. Ela se casa com um rabino famoso, sr. Bengelsdorf, que exercerá grande influência sobre a esposa do presidente Lindbergh. Passa a ser considerado uma espécie de Rasputin do governo. A intriga está sendo introduzida dentro da família Roth. Já Alvin, certamente em função dos traumas da guerra e da perda de parte de uma perna se torna um desajustado e cai numa espécie de marginalidade, no mundo do jogo. Afronta abertamente ao senhor Roth, cuspindo-lhe na cara. Estes incidentes levaram ambos a um hospital. Além disso, também o tio Monty faz parte da história. Ele se transformou num rico comerciante de frutas e verduras, chegando a ostentar o título de rei do tomate. A família contava agora com três posições diferentes com relação aos acontecimentos. A adesão de tia Evelyn, a oposição tenaz do senhor Roth e a absoluta indiferença de tio Monty. Este vivia em função do dinheiro.

O romance ganha as dimensões de tragédia, após o assassinato de Winchel e do desaparecimento do presidente Lindbergh. Nas novas eleições, Roosevelt vence, mas no governo provisório do vice, Burton Wheeler, ocorrem as políticas abertamente anti semitas e de apoio a Hitler. (Nos anos 1950 ele se tornará um dos grandes aliados do senador McCarthy). Era grande o temor de um confronto com o Canadá, já envolvido na guerra, ao lado dos aliados. Cenas de rara sensibilidade ocorrem com relação a senhora Selma Wishnow e o seu filho Seldon. A família Roth ampara Seldon, que já era órfão de pai, vítima de suicídio e que agora perde também a mãe, morta nos atentados anti judaicos. A senhora Bess ampara a este menino com muita bondade e generosidade.

A ficção de Roth não é uma mera ficção. Ao final do livro, num Post-scriptum, de esclarecimento ao leitor, lemos: "Este post-scriptum tem o propósito de fornecer referências aos leitores interessados em saber até onde vão os fatos históricos e onde tem início a imaginação histórica". Segue quase uma página de referências, entre dissertações e teses, a respeito do tema.

Philip Roth costuma, em seus livros, atacar amargamente a cultura e os costumes dos Estados Unidos.  A crítica, desta vez, não atinge o núcleo familiar e, o pequeno Philip até se dá muito bem com o seu pai e a sua mãe. Mas o entorno... Sobra para a tia, o tio, o sobrinho e, especialmente, para o marido da tia, um rabino nazista. Consegue imaginar a figura? Mas a costumeira acidez de Roth com relação a América está fortemente presente, ao constatar que os Estados Unidos não são efetivamente a América para todos os seus filhos e que estes, absolutamente, não são tratados com igualdade.

Quero ainda deixar a resenha de mais dois livros lidos recentemente. O livro de Richard Hofstadter, Antiintelectualismo nos Estados Unidos. http://www.blogdopedroeloi.com.br/2019/01/antiintelectualismo-nos-estados-unidos.html e o livro que decorreu de uma palestra de Umberto Eco, na universidade de Colúmbia, em 1995, sobre o fascismo eterno. http://www.blogdopedroeloi.com.br/2019/03/fascismo-eterno-umberto-eco.html. Tudo a ver. Creio não ser necessário estabelecer relações com o Brasil pós golpe de 2016 e o atual governo, pela primeira vez, explicitamente antiintelectual.

quarta-feira, 10 de abril de 2019

Os Demônios. Fiódor Dostoiévski.

Ler é acima de tudo contextualizar. Isto se torna verdade, ainda maior, quando estamos diante de obras complexas, como é o caso de Os Demônios de Fiódor Dostoivski (1821- 1881). A Rússia, ao longo de todo o século XIX, passa pelas convulsões sociais e políticas que a Europa ocidental passara no século anterior. É a era das revoluções burguesas a marcar o fim do tsarismo, como era denominado o absolutismo na Rússia. Tomo como data referência o ano de 1861, ano da abolição do regime de servidão. Na Rússia estas convulsões atingem o seu auge, apenas no século seguinte, com as revoluções de 1917, sob o comando de Kerensky e de Lênin.
Para muitos, a obra prima do autor.

Quando mais jovem, Dostoiévski participou ativamente de grupos revolucionários socialistas, fato que o levou à prisão em 1849 e à condenação à morte. Pouco antes de ser cumprida esta sentença de morte, ela foi comutada pela prisão perpétua na Sibéria, acrescida da prática de trabalhos forçados. Dostoiévski cumpriu parte da pena e foi, mais uma vez beneficiado por indulto, experimentando  de novo a liberdade. A prisão tornou-o um homem mais paciente e profundamente observador, além de  mudar radicalmente as suas convicções.

Tornou-se profundamente conservador e extremamente católico. Para a prisão, conta-se, levara um único livro, o Evangelho. A observação rigorosa e detalhada forneceu personagens exemplares para o escritor. As memórias destes anos de infortúnio estão registradas na Memória da casa dos mortos, com relatos impressionantes. O grande escritor estava sendo forjado. Deixo a resenha deste memorável livro. http://www.blogdopedroeloi.com.br/2018/12/memorias-da-casa-dos-mortos-fiodor.html

Confesso que tive enorme dificuldade para ler Os demônios.  Além dos nomes, o russo sempre usa três, dois pré nomes e o sobrenome. Vejamos, como exemplo, Piotr o personagem principal Piotr Stiepánovitch Vierkhoviénski. Ora ele é chamado pelo nome, pelos dois nomes, ou então pelo sobrenome. E os personagens do romance/crônica são inúmeros. Além disso, você precisa de toda uma contextualização da história e dos movimentos político/culturais russos deste período para se localizar. Não gosto de ler resenhas antes da leitura de um livro, porém, neste caso específico, recorri a esse expediente, além de elaborar uma relação com os nomes completos de todos os principais personagens. Facilitou bastante.

O próprio livro que eu li, da editora 34 com tradução direta do russo de Paulo Bezerra, tem dele também, ao final do livro, dez páginas de um pequeno ensaio/resenha, contextualizando a obra. Usarei deste texto para trazer elucidações sobre o complexo livro. O tempo histórico é de formação de grupos, sob orientação externa, com as mais diferentes tendências revolucionárias. No caso específico serão as ideias de Bakunin, bem ou mal assimiladas.

Paulo Bezerra nos relata que no dia 21 de novembro de 1869 ocorreu o assassinato de um jovem estudante por um quinteto de uma organização clandestina intitulada Justiça Sumária do Povo. Este quinteto era comandado por Nietcháiev. O jovem assassinado queria deixar a organização. Este assassinato é seguido por outros e também por outros atos terroristas, como o incêndio de um bairro por operários de uma fábrica. Os relatos ocorrem, não na capital, mas em província distante. Havia na Rússia da época milhares destes quintetos. Paulo Bezerra observa que Os demônios é o primeiro romance que aborda o tema do terrorismo. Nietcháiev ganha o nome de Piotr Stiepánovitch Vierkhoviénski e em seu entorno se constrói o cerne da crônica de época ou o famoso romance.

As descrições tem forte carga nas tintas. O escritor não poupa a ação dos grupos e mostra suas contradições, especialmente, a enorme distância entre aquilo que pregam e o que fazem. Quem tem um pouco de prática em militância política sabe do que o escritor está falando. Dostoiéski relata em carta, que quis dar ao livro um caráter panfletário, nem que comprometesse a estética de sua obra.  Mas também nisso ele foi genial. Ganhou a crônica política e a história. Também inovou na forma narrativa. Demorei um pouco para descobrir quem era o narrador. Paulo Bezerra assim descreve a trajetória do romance: Do 'panfleto' á obra prima. Um crítico de esquerda qualificou o escritor como possuidor de um talento cruel. Sob o regime de Stálin a obra ficou por muito tempo proibida.

As críticas são ácidas, especialmente no que diz relação às principais categorias da política como a liberdade, a igualdade e a identidade. Existe uma forte aproximação com Nietzsche. Mas voltamos ao tradutor para definir os objetivos do grupo e os meios para consegui-los: "Seu objetivo final é conseguir transformações anarcorrevolucionárias de toda a Rússia. Para atingir tais fins, são indispensáveis a subordinação irrestrita e incondicional de todos à direção do movimento, o uso de todos os meios, a espionagem mútua, o derramamento de sangue para cimentar a unidade dos participantes".

Mais adiante mostra as contradições dos dirigentes dos quintetos: "Dostoiévski o vê (Nietscháiev ou Piotr) em seu contraditório movimento interior e mostra em Os demônios como grandes e generosas ideias, uma vez manipuladas por indivíduos desprovidos de consciência cultural e princípios éticos, podem se transformar na sua negação imediata, assim como a utopia da liberdade e da felicidade do homem pode  degenerar na sua negação, no horror, na morte, na destruição. Grandes ideias, quando geridas por tipos intelectualmente broncos, acabam em farsa ou paródia. É o que ocorre com Piotr Stiepánovitch, que em diálogo com Stavróguin declara cinicamente que é 'um vigarista e não um socialista'". Paulo Bezerra segue falando que para o escritor é "impossível alguém liderar à altura uma grande causa sem compreender a essência profunda da natureza humana e sem prezar a liberdade do homem". Dostoiévski, apesar de, agora conservador, não abdicara de nobres sentimentos humanos, com o seu sonho de uma Idade de Ouro.

Paulo Bezerra continua mostrando  como o escritor detona o líder e os membros do quinteto: "Não os censura pelas ideias em si (e isso ele declara em várias oportunidades), mas pelo inacabamento de suas teorias, pelas lacunas aí deixadas, que acabaram degenerando na sua negação, no simulacro, na sua impostura. O simulacro, o quinteto de Piotr Stiepánovitch, é a redução das várias tendências de um movimento à sua caricatura grotesca sob a égide de indivíduos possuídos pela ideia do poder pelo poder, que, querendo autoafirmar-se a qualquer custo, ultrapassam todos os limites, obliteram todas as objeções teóricas e obstáculos morais e criam uma engrenagem que transforma em 'salvadores' e 'vanguarda' da humanidade indivíduos sem consistência moral e ideológica nem condição cultural para tais papéis".

Para terminar, uma passagem narrada por um dos membros do quinteto, Nikolai Stavróguin: "Na época, mantive durante certo tempo três apartamentos. Em um deles eu mesmo morava com cama e criadagem, e na ocasião morava também Mária Lebiádkina, hoje minha legítima esposa. Aluguei os outros dois apartamentos por mês para amoricos". Do que você se lembrou? Eu lembrei de um asqueroso personagem brasileiro que dizia usar o auxílio moradia de deputado para "comer gente". Digo isso também para emparelhar com os movimentos de direita.

Deixo ainda a frase em epígrafe: "Ora, andava ali, pastando no monte, uma grande manada de porcos; rogaram-lhe que lhes permitisse entrar naqueles porcos. E Jesus o permitiu. Tendo os demônios saído do homem, entraram nos porcos, e a manada precipitou-se despenhadeiro abaixo, para dentro do lago, e se afogou. Os porqueiros, vendo o que se passara, e foram ter com Jesus. De fato acharam o homem de quem saíram os demônios, vestido, em perfeito juízo, assentado aos pés de Jesus; e ficaram dominados pelo terror. E algumas pessoas que tinham presenciado os fatos contaram-lhes também como fora salvo o endemoninhado". Lucas, 8, 32-6. Também é citada várias vezes a passagem do Apocalipse sobre o quente, o frio e o morno. Dostoiévski abominava a neutralidade.