sexta-feira, 22 de setembro de 2023

Princípios básicos de uma vida. Enunciados por Clara. Personagem de "Como poeira ao vento" de Leonardo Padura.

Ao ler um livro, costumo fazer páginas e páginas de anotações num caderno que sempre acompanha as minhas leituras. Isso não foi diferente com o romance Como poeira ao vento, de Leonardo Padura. Uma dessas anotações é referente a Clara, uma das protagonistas do romance. Personagem fantástica, aglutinadora e apresentada como o ímã de um clã de amigos que se formou em Havana, por jovens estudantes que se encontraram nos anos 1990, no maravilhoso bairro de El Vedado e continuaram se encontrando em Fontanar, na casa de Clara. Na resenha que fiz desse livro, eu o apresentei, como o mais cubano dos livros de Padura. Ele versa sobre a última década do século XX e as duas primeiras do XXI da história cubana, na continuidade dos ganhos e perdas de sua Revolução. Deixo a resenha.

http://www.blogdopedroeloi.com.br/2023/09/como-poeira-ao-vento-leonardo-padura.html

O romance apresenta a diáspora cubana, a partir dos personagens reunidos no clã, na casa de Clara, em Fontanar, bairro nas proximidades do aeroporto José Martí, de Havana. Clara é aglutinadora e extremamente generosa. Vamos procurar conhecê-la, ela e o seu pensar, um pouco mais de perto:

Como poeira ao vento. Leonardo Padura. Boitempo 2022.

"Clara não se considerava um ser político, como talvez tivesse sido Elisa (filha de um político ligado ao governo e, outra protagonista do romance), nem uma filósofa essencial, como Horácio (um físico), tampouco uma bala de um alvo preciso, como Darío (marido de Clara e que tinha por alvo o seu doutorado em neurologia em Barcelona, cidade na qual passou a viver uma vida burguesa), nem sequer uma mística como o novo Bernardo (livre do álcool e, agora, depois do novo, companheiro de Clara, que antes fora marido de Elisa). Talvez por isso a dramática complexidade da conjuntura histórica que lhes coubera por destino viver, no momento em que alcançavam sua maturidade vital e profissional, justificasse para ela todas aquelas decisões e as tornasse igualmente respeitáveis.

E, pensava, aquele devia ser o princípio básico da liberdade essencial da espécie que criara o universo social: o direito pessoal de respeitar as escolhas dos outros, a liberdade de ter voz e dizer o que se pensa (a favor ou contra), a exigência de que fossem aceitas as decisões de cada um, com um limite único e inviolável marcado pela fronteira onde a vontade de uns não se transformasse na falta de opção de outros, em que um bem individual ou social não derivasse no mal individual e social de outros. Isso era exigido pelos vetustos Dez mandamentos entregues no monte Sinai e pelo Contrato Social que regulava (ou pretendia regular) a lei do mais forte, a lei do mais poderoso e os protegia delas.

Tudo podia ser simples assim? Não, não era simples assim e pelo visto nunca seria. Porque sempre haveria outros, aqui ou ali, antes e agora, alegando que sua fé era a única verdadeira ou porque detinham o poder por causa de seu dinheiro, ou de sua força, ou de seu ódio, atacariam de uma trincheira ou de outra, de dentro ou de fora, quem não visse o mundo da mesma perspectiva. Sempre haveria os videntes encarregados de exigir que a sociedade se entendesse a partir de seu prisma ou que os demais fossem cegos, surdos, mudos. E esses supostos iluminados se dedicariam, como se dedicavam (aqui e ali, é claro), a agredir, macular, desqualificar os heterodoxos, a dividir o universo em certos e equivocados, em fiéis e traidores, em ganhadores e perdedores históricos.

Ao fim, sim, veja que coisa. Pois na verdade tudo era simples assim: ou você me segue e apoia, ou eu te ataco. Ou aceita o que eu digo, ou se condena com sua negação. Mais elementar ainda, maniqueísta, como dizia Bernardo: ou você está comigo, ou está contra mim, com a razão ou com a loucura, com o bem ou com o mal, com os tírios (cidade de Tiro) ou com os troianos. Aqui e também ali. A isso se chegara e, para os fundamentalismos dominantes entre os que estavam vivendo, os demais caminhos possíveis eram inconcebíveis, puramente inadmissíveis. Ser ou não ser: essa era a máxima que quase todos aplicavam, em todas as partes, para dominar os que constituíam o objeto de sua aplicação.

Dessa maneira inquietante, Clara o pensou e entendeu em 1996". As reflexões de Clara. Apenas para refletir. O itálico foi uma opção minha. Essas reflexões são encontradas nas páginas 325-326.

quarta-feira, 20 de setembro de 2023

COMO POEIRA AO VENTO. Leonardo Padura.

Dust in the wind -All we are is dust in the wind... - Poeira ao vento/Tudo o que somos é poeira ao vento. Dessa canção nasceu o título do novo romance de Leonardo Padura, que ele concluiu em Mantilla, o seu bairro na cidade de Havana, em abril de 2020 e que iniciara dois anos antes. "Tudo o que somos é poeira ao vento". É uma definição da vida. Poeira ao vento.

Como poeira ao vento. Leonardo Padura. Boitempo. 2022.

(Clara) "remexeu a bolsa, tirou suas chaves, abriu a porta e entrou na casa em que a receberam a solidão, o silêncio e suas lembranças. Clara e seu caracol". É a frase final do romance. A casa em que ela entrou é uma casa no bairro de Fontanar, um  bairro nas proximidades do aeroporto José Martí, da cidade de Havana. Nessa casa se reuniram, a partir dos anos 1990, um grupo de jovens, amigos desde os tempos universitários e que formaram uma espécie de CLÃ. O ÍMÃ desse clã era Clara, uma das protagonistas, senão a protagonista do romance. Clara teve dois filhos, Ramsés e Marcos, que por sua vez tiveram seus filhos (netos de Clara), um nascido na França e outro nos Estados Unidos. É a diáspora cubana.

"A poeira ao vento", ou seja, a vida dos diferentes personagens que se reuniam na casa de Fontanar (há uma foto de uma dessas reuniões), é o teor do romance. Da casa de Fontanar, os personagem irão se espalhar pelos Estados Unidos (Nova York, Miami, Hialeah), Madri, Barcelona, San Juan, Buenos Aires, Toulouse, e outros recantos do mundo. Em suas vidas carregam as marcas de uma Revolução e os diplomas universitários que adquiriram no país que se esmerou em lhes dar uma formação universitária de elevadíssima qualidade, mas que lhes exigiu também muitas perdas. Para mim, a maior riqueza do romance é a construção desses personagens. As sua reflexões sobre perdas e ganhos em suas vidas. Reflexões filosóficas, profundamente existenciais.

Mas, vejamos o teor do livro, por sua contracapa: "Um encontro amoroso entre Adela, jovem nova-iorquina de ascendência cubana, e Marcos, rapaz cubano recém chegado aos Estados Unidos. O Clã: grupo de amigos que estudaram na mesma época em El Vedado, Havana, e mantiveram uma forte amizade e uma intrigante cumplicidade. Os destinos dos integrantes do Clã e a vida de Marcos e Adela se entrelaçam surpreendentemente e resultam neste novo romance de Leonardo Padura. Num enredo cheio de suspense, encontros, desencontros e reencontros, o autor acompanha a vida de cada um dos personagens, todas buscando soluções para as difíceis circunstâncias que se abateram sobre o povo cubano no fim do século XX e no início do século XXI. É a história de uma Cuba e de muitos destinos".

Na orelha, encontramos mais informações: "Uma fotografia captura o momento em que amigos aparentemente inseparáveis aparecem juntos. Estão alegres e sorriem. Parece que continuarão unidos pelo resto da vida. A partir de então, porém, tudo começa a mudar. As trajetórias pessoais, marcadas pelos tropeços da história cubana recente, se transformam em meio a despedidas, paixões, traições e reencontros. Perguntas que ficaram no ar ou sonhos que não se realizaram. Feridas que vieram com as decepções e por surpresas que encontraram no caminho. Todas, no fundo, remetendo de modo dramático e nostálgico àquela imagem.

Como poeira ao vento é um romance escrito em forma de coro. Aos poucos, vamos conhecendo cada um dos integrantes do chamado Clã. Cada amigo encarna, de certa forma, as diferentes reações humanas à diáspora cubana, numa cadeia temporal que se inicia nos anos 1990 e viaja até nossos dias.

Por meio de uma narrativa envolvente, Leonardo Padura nos leva a um país complexo, em que as coisas são muito mais que o preto e branco que a polarização política dos últimos anos nos faz crer.

Há personagens que saem da ilha, outras que nascem fora de lá, as que desejam voltar, as que retornam e não se reencontram de nenhuma maneira e as que permanecem e resistem. Ainda que sejam pessoas diferentes, todas parecem refletir parte das emoções do próprio autor.

Embora a trama nos leve também aos Estados Unidos, à Europa e à América do Sul, todos os lugares surgem desenhados pelas linhas que a citada diáspora neles contorna, assim como hoje o fenômeno da imigração vem transformando tantos cantos do mundo, consolidando-se como tema urgente.

Escritor cubano que segue vivendo na casa em que nasceu e cresceu, Padura reafirma sua posição de observador atento a cada característica do caráter cubano: a sensualidade, a música, o amor, a gastronomia, as paixões políticas.

Fazendo referência à canção "Dust in the Wind" (Kansas), o autor convida a refletir sobre a vida e a amizade. De forma incisiva, também questiona os comportamentos geracionais dos cubanos: tanto o discurso muitas vezes duplo da geração que fez a Revolução como a dos que saíram da ilha.

Uma boa história de ficção é aquela que nos faz mirar a realidade e compreendê-la em todas as suas dimensões. É justamente a esse gênero literário que pertence Como poeira ao vento". O texto da orelha é assinado por Sylvia Colombo.

Mas creio que a mais preciosa indicação nos vem do próprio escritor em - nota e agradecimentos. Vejamos o seu primeiro parágrafo: "Como poeira ao vento é um romance e deve ser lido como tal. Os acontecimentos históricos a que se faz referência no livro aconteceram na realidade, mas sua presença no romance é assumida sob a perspectiva da ficção. Muitas das conjunturas sociais invocadas também foram extraídas da realidade e da experiência pessoal e geracional, embora seu tratamento tenha sido mediatizado pelos interesses ficcionais. Os personagens e suas histórias são inspirados em indivíduos reais, às vezes em somas de várias pessoas concretas, mas suas biografias são fictícias. Em contrapartida, os lugares pelos quais se move a trama - desde o bairro havanês de Fontanar até um haras nos arredores de Tacoma, no noroeste dos Estados Unidos - são locais com existência real, e transformei-os na medida do necessário para adequá-los aos fins dramáticos do relato. A obra da imaginação foi apenas convocar todos os elementos históricos, humanos e físicos de uma época e diversos espaços, para lhes dar forma de romance. Como escritor, eu me alimento da realidade, mas não sou responsável por ela para além de meus avatares individuais e de meu comportamento civil, como cidadão e como testemunha com voz, que pretende apenas deixar um testemunho pessoal de meu tempo humano".

O romance é longo. São 542 páginas que comportam dez capítulos. Neles, de uma maneira geral, os diferentes personagens do Clã são apresentados. Dou como exemplo, o capítulo sete. A mulher que amava os cavalos. Nele é retratada Elisa ou Loreta, a mãe de Adela. Ela é veterinária e uma personagem extremamente complexa e complicada. Está sempre em fuga. Mas, como já afirmei, o ponto alto do livro é a construção dos personagens. Vejamos Adela e Marcos, os personagens que abrem o livro. Adela é filha de Loreta Fitzberg, a veterinária cubana, o seu pai, ao menos no início do romance é um psicanalista argentino, judeu, exilado na qualidade de vítima da ditadura militar argentina. E Marcos é filho de Clara, possivelmente a mais generosa e aglutinadora dos personagens e de Dario, possivelmente o personagem da mais humilde origem e que, na qualidade de neurocirurgião, título que conseguiu revalidar em Barcelona, permaneceu nesta cidade, levando uma vida burguesa e, aparentemente, sem traumas de consciência com as suas origens.

Com Leonardo Padura. Capela Santa Maria. Curitiba. Agosto - 2019.

Outro ponto forte do livro é a abordagem que o Padura faz sobre o desenraizamento dos personagens. Sobre o que significa viver no exílio. Tem personagens que simplesmente não conseguem sair do país, ou que, em todos os momentos tem o seu sentimento voltado e comprometido com as suas raízes e com o recebido pelo regime originário da Revolução cubana. Eu tive a oportunidade de assistir uma palestra do escritor, na Capela Santa Maria, aqui de Curitiba. Dizia-se sitiado de água por todos os lados e que não conseguia escrever fora de sua amada ilha. Um sentimento de cubanidade, de pertencimento. E isso está fortemente traduzido no romance. Outra coisa. Um relato sincero sobre a situação dramática que Cuba viveu na última década do século XX e nas duas primeiras do século XXI. Há perdas e ganhos. Creio que este seja o mais "cubano" dos livros do escritor.

Deixo aqui a resenha dos livros anteriores de Padura, já lidos e resenhados, começando pelo O homem que amava os cachorros.  http://www.blogdopedroeloi.com.br/2014/05/o-homem-que-amava-os-cachorros-leonardo.html . Continuando com Hereges. 

http://www.blogdopedroeloi.com.br/2019/10/hereges-leonardo-padura.html. Com O romance da minha vida.

http://www.blogdopedroeloi.com.br/2021/11/o-romance-da-minha-vida-leonardo-padura.html. E Água por todos os lados.

http://www.blogdopedroeloi.com.br/2021/08/agua-por-todos-os-lados-leonardo-padura.html


sexta-feira, 8 de setembro de 2023

O MAL RONDA A TERRA. Um tratado sobre as insatisfações do presente. Tony Judt.

Ao ler Realismo capitalista - é mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo?, me lembrei de um outro livro, com o qual praticamente encerrei as minhas atividades docentes no ensino superior, no ano de 2012. Trata-se de O mal ronda a Terra - um tratado sobre as insatisfações do presente, de Tony Judt. O livro foi escrito em 2010, e já no ano seguinte, chegava ao Brasil. Antes de entrar em sua análise, deixo a resenha de Realismo capitalista. 

http://www.blogdopedroeloi.com.br/2023/09/realismo-capitalista-mark-fisher.html

Ao reler o livro, me deparei com os agradecimentos. Eles davam o indicativo de que o autor passava por sérias dificuldades em sua vida. Isso me levou a uma consulta ao Google e à própria leitura da orelha da contracapa do livro. Neles constatei que o ano de 2010 (6 de agosto) foi também o ano de sua morte. Ele nascera em 1948. O livro equivale, praticamente, a um testamento seu, a uma despedida. Ele tem um destinatário privilegiado: os jovens. São reflexões que, fundadas no passado, implicam no futuro da humanidade. Diria que o livro é uma forte defesa da Social Democracia, também conhecida como Estado Democrático de Direito, de Estado Previdenciário ou Estado de bem-estar social. Ele vigorou no pós Segunda Guerra, especialmente na Europa Ocidental, entre os anos 1945-1975.  Ao final dos anos 1970 e início dos anos 1980 ela foi demonizada pelo neoliberalismo, pela exaltação ao livre mercado, globalizado e absolutamente desregulamentado. Seria ele o causador de o mal que ronda a Terra?

O mal ronda a terra. Tony Judt. Objetiva. 2011.

Vou iniciar este post com a orelha da capa, que dá uma ideia curta, porém precisa do teor do livro. É um parágrafo retirado do próprio livro: "Há algo profundamente errado na maneira como vivemos hoje. Ao longo de trinta anos a busca por bens materiais visando o interesse pessoal foi considerado uma virtude [...] Sabemos o preço das coisas, mas não temos ideia de seu valor. Não mais fazemos perguntas sobre uma decisão judicial ou um ato legislativo: é bom? É adequado? É correto? Ajudará a melhorar o mundo ou a sociedade? Essas costumavam ser as questões políticas, mesmo que suas respostas não fossem fáceis. Devemos mais uma vez aprender a fazê-las".

O teor da contracapa vai, mais ou menos, na mesma direção: "Há algo de errado na maneira como vivemos e pensamos o presente. Tony Judt, um dos mais importantes historiadores e pensadores da atualidade, cristaliza com maestria nosso grande desconforto coletivo.

O mal ronda a Terra oferece a linguagem de que precisamos para lidar com as necessidades comuns, rejeitando o individualismo niilista da extrema direita e o socialismo deturpado do passado. O autor argumenta que devemos olhar para nosso passado recente e mais uma vez colocar o respeito à igualdade de direitos acima da mera eficiência.  Em vez de ter uma fé cega no mercado - como fizemos nos últimos trinta anos -, temos de confrontar os males sociais e assumir responsabilidades pelo mundo em que vivemos.

Arrebatador, sensato, lúcido, humano e perspicaz, O mal ronda a terra ocupará um lugar de destaque entre os grandes textos políticos de nossa ou de qualquer outra época".

O livro tem uma frase em epígrafe, especialmente apropriada: "O mal ronda a Terra, presa de desgraças crescentes. Onde a riqueza acumula e vivem homens decadentes". Me parece óbvio, que homens decadentes sentem e espalham ao seu redor um profundo mal estar. A frase é de Oliver Goldsmith, em Aldeia abandonada, do ano de 1770.

O livro de Judt, tem seis capítulos, além de introdução e conclusão. Tudo isso está condensado ao longo de 212 páginas. Eu dou os títulos. Introdução: um guia para os perplexos; capítulo um: o modo como vivemos hoje; capítulo dois: o mundo que perdemos; capítulo três: a insuportável leveza da política; capítulo quatro: adeus a tudo isso?; capítulo cinco: o que deve ser feito?; capítulo seis: a história do futuro; conclusão: o que vive e o que morreu na social democracia. 

Na introdução, a temática do livro é apresentada. O mal que ronda a Terra, a partir dos anos 1980. O que teria provocado esse mal, ou melhor, esse mal-estar? A resposta é simples. O final dos anos 1970 e início dos anos 1980 marca o abandono dos princípios da social democracia e o início dos tempos do neoliberalismo, com o endeusamento do livre mercado e a demonização de todas as políticas centradas no Estado. Tudo isso marcado pela ascensão dos indivíduos, a diminuição das esferas do coletivo e do público e da acumulação de riquezas e do crescimento das desigualdades. Keynes perdeu o jogo para Hayek e Friedman.

No primeiro capítulo ocorre a descrição desse mundo surgido a partir desses princípios. É o tempo de Thatcher, de Reagan e de Kohl. Logo a seguir de Toni Blair - Gordon Brown - Clinton. As esquerdas capitularam. As desigualdades corroeram as instituições. A desregulamentação mostrou-se amarga e a muitos excluiu dos benefícios do progresso e dos avanços da história. A pobreza foi estigmatizada como a marca de Caim. Uma marca moral que culpabiliza os excluídos. São os próprios culpados pelos seus infortúnios. E uma nostalgia. Houve tempos diferentes. Adam Smith também teve pruridos morais.

No segundo capítulo é mostrada a recuperação do mundo após as catástrofes das guerras e dos regimes totalitários dos períodos entre guerras. Recuperou-se a crença no Estado e nas instituições. Houve forte regulamentação da economia. Esta obedecia a determinações políticas. Criou-se o Fundo Monetário Internacional e o Banco Mundial. Houve até solidariedade na reconstrução do mundo. Nos países desenvolvidos os direitos fundamentais foram universalizados. No horizonte se mirava a prosperidade. Falava-se em planejamento e incentivos fiscais, indutores do desenvolvimento. Tempos de seguridade social. Foram os anos de ouro do bem-estar social. De repente, perdeu-se a fé no sistema. Seus custos eram muito elevados. A acumulação, objetivo maior do capitalismo, não se concretizava.

No terceiro capítulo, mostra-se, que com a relativa prosperidade, perdeu-se o gosto pela participação na política. Outros atores, os austríacos, pensam a política. As esquerdas sofrem os baques do socialismo real, já na década de 1950 (1956) e 1960 (1968). Cultua-se o mercado, as privatizações e a eficiência da racionalidade instrumental e concorrencial. Sacraliza-se a ideologia da meritocracia, culpabiliza-se a pobreza. Os vínculos sociais não cabem mais na economia. No mercado há ganhadores e perdedores. O mal ronda a Terra.

No quarto capítulo, a grande questão é apresentada: Dizemos adeus a tudo isso? Uma nova realidade político econômica é apresentada a partir dos fatos de 1989 e 1991, com a Queda do Muro de Berlim e da dissolução da URSS. Não há alternativas. A história chegou ao fim de seu percurso. Se não há alternativas, sobra apenas a rendição. Duas (agora já três) décadas já se passaram e os mesmos princípios continuam dominantes. Nem mesmo a crise de 2008 (o maior socorro público a bancos - grandes demais para quebrarem) estremeceu os princípios do livre e desregulamentado mercado. O "não há alternativas" comprometeu o imaginário das esquerdas. O imaginário sobreviverá? 

Se ao final do quarto capítulo já há indicativos para a necessidade de alternativas, estas passam a ser o cerne do quinto capítulo. Uma frase de Keynes abre a perspectiva de que o conformismo com a realidade tem um preço a pagar: "Em vez de usar seus recursos técnicos e materiais ampliados para erguer uma cidade admirável, os homens do século XIX construíram cortiços... que 'passaram' no teste do lucro da iniciativa privada, enquanto que uma cidade admirável seria, pensavam, um ato de delirante extravagância que acabaria por 'hipotecar nosso futuro', no imbecil jargão em voga... A mesma regra autodestrutiva de cálculo econômico governa todos os setores da vida. Destruímos a beleza do campo porque os esplendores da natureza não apropriados carecem de valor econômico. Seríamos capazes de apagar o sol e as estrelas, pois eles não pagam dividendos". Afinal, fazer o bem não foi sempre um desejo humano? É preciso imaginar alternativas.

O sexto capítulo nos mostra mais um pouco do real existente e a perspectiva diante do futuro. O que já temos? Terroristas, o medo de imigrantes em massa, o desemprego, a criminalidade. O que já paira no horizonte? Mudanças climáticas, generalização de guerras regionalizadas... No entanto, a fé nos mercados continua inabalável. "Com Clinton e Blair, o mundo atlântico estagnou de forma presunçosa".

E, o parágrafo final, já da conclusão: "Ao escrever este livro tentei oferecer alguma orientação aos que - especialmente jovens - buscam articular suas objeções a nosso modo de vida. Contudo, isso não é o bastante. Como cidadãos de uma sociedade livre, temos o dever de analisar criticamente nosso mundo. Mas, se acreditamos saber o que está errado, devemos agir a partir desse conhecimento. Os filósofos, como notoriamente já observado, até agora apenas interpretaram o mundo de várias maneiras; a questão é mudá-lo".

sábado, 2 de setembro de 2023

REALISMO CAPITALISTA. Mark Fisher. A eternização do presente e o tolher do imaginário.

Cheguei ao Realismo capitalista - é mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo?, do britânico Mark Fisher (1968 - 2017), por indicação de amigos. Confesso que, embora o ponto de interrogação contido no subtítulo, não fiquei tão entusiasmado com o livro. Achei o título um tanto imobilizante, mas se o é, é exatamente para sair do imobilismo. O livro é formado por uma série de textos, originariamente publicados no blog k-punk, que o autor mantinha. Assim os textos tem um formato, que não é o de um longo e tedioso ensaio. Uso o tedioso propositadamente. Ele é um dos elementos de análise contidos no livro.

Realismo capitalista. Mark Fisher. Autonomia literária. 2023. Primeira edição - 2009.

Os textos são uma reflexão sobre as novas formas adquiridas pelo capitalismo, na sua passagem do fordismo para o pós-fordismo, ou das mudanças de ordem política, com a ascensão da doutrina neoliberal e o rechaçar das doutrinas da social democracia ou do estado de bem-estar. Fisher aponta para a greve dos mineradores da Inglaterra, nos anos de 1984 e 1985 como o grande marco simbólico da afirmação do conceito de "realismo capitalista", além dos fatos históricos como a queda do Muro de Berlim (9 para 10 de novembro de 1989) e da dissolução da URSS (dezembro de 1991), e ainda o surgimento do artigo de Francis Fukuyama O fim da história e o último homem (1989).

Dois conceitos de Thatcher são fundamentais para se cravar o termo "realismo capitalista". O primeiro é o de que não há alternativas (TINA) ao sistema capitalista e o segundo, uma frase que transcrevo literalmente: "Eles estão endereçando seus problemas à sociedade. E, você sabe, essa coisa de sociedade não existe. O que existe são homens e mulheres individuais, e famílias. E nenhum governo pode fazer nada, exceto através das pessoas, e as pessoas devem cuidar primeiro de si mesmas". Está aí o conceito da responsabilização individual para o sucesso ou para o fracasso. É uma escolha sua.

Ele usa um referencial teórico daqueles que estudaram os fenômenos correlatos, como a mudança sofrida do mundo das relações do trabalho, do fordismo para o pós-fordismo, marcada pelo fim das estabilidades, substituídas pela flexibilização, terceirização e precarização. É a pós-modernidade. As análises acontecem a partir de Frederic Jameson (Pós-modernismo - a lógica cultural do capitalismo tardio - 1999) e de Deleuze e Guattari, e seus estudos sobre capitalismo e esquizofrenia. Também Richard Sennett (A corrosão do caráter - consequências pessoais do trabalho no novo capitalismo - 1999) tem forte presença. Ah, a saúde! A saúde mental. A depressão é o problema mais tratado pelos sistemas de saúde. Uma consequência do "viver sempre na corda bamba". O sistema passa por uma postergação indefinida, por uma ansiedade perpétua, por uma culpa que sempre paira no ar, uma auto depreciação e um autoflagelo sem fim. A burocratização kafkiana da vida. As metas fixadas pela burocracia!

Fisher foi professor universitário. Isso lhe proporcionou muitas reflexões sobre a educação. Entre elas, a burocratização pelas plataformas. Um caminho seguro para a redução do imaginário. Elas prescindem da voz e da escrita. Eu sublinhei uma frase a esse respeito: "A escrita nunca foi o forte do capitalismo. O capitalismo é profundamente iletrado", afirmaram Deleuze e Guattari no Anti-Édipo. "A linguagem eletrônica não passa pela voz ou pela escrita: o processamento de dados se dá perfeitamente sem ambas". Pelo uso massivo das plataformas, os professores passam por um difícil processo de equilibrar-se ao lidarem com alunos e a sua subjetividade numa sociedade do pós letramento.

A edição brasileira do livro de Mark Fisher é de 2020. Ela mantém o conteúdo original do livro, que é de 2009. Além disso ele contém vários apêndices, com textos posteriores e um ilustrativo posfácio, de autoria de Victor Marques e Rodrigo Gonsalves, que traçam a trajetória intelectual de Fisher. Como os capítulos são posts de seu blog, são curtos e por isso vários. Passo a dar os títulos e quando eles não são auto explicativos eu faço uma breve ilustração: Vejamos:

1. É mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo. Aqui é apresentado o conceito de realismo capitalista e os fatos históricos que marcaram o seu surgimento. Ele se confunde com o pós-fordismo, com o pós-moderno e com o neoliberalismo. Ele é uma construção ideológica.

2. E se você convocasse um protesto e todo mundo comparecesse. O título contém ironia. É sobre os protestos contra o capitalismo - mas que o procuram legitimar. O capitalismo é um tipo de pai avarento, hiper abstrato, que se mantém, apesar de protestos e de ações protelatórias de filantropia.

3. O capitalismo e o real. Depois de duras críticas, ele apresenta três aporias do sistema. A questão ecológica, a saúde mental como epidemia e a burocratização kafkiana da vida. E a educação é apresentada como o seu grande laboratório.

4. Impotência reflexiva, imobilização e comunismo liberal. É uma referência à impotência reflexiva, à redução do imaginário e ao empobrecimento da linguagem. Já os comunistas liberais seriam os capitalistas filantropos como Bill Gates e George Soros. Isso cria o conformismo que permite o realismo capitalista por falta de alternativas. Ah, as esquerdas!

5. 6 de outubro de 1979. Não se apegue a nada. Essa data marcaria o passagem do fordismo para o pós-fordismo. Da passagem da vida tediosa da mesmice para o da desproteção, da instabilidade e da insegurança que acompanha as terceirizações. Os tratamentos de saúde mental inerentes engordam os lucros da indústria farmacêutica.

6. Tudo que é sólido se desmancha em relações públicas: stalinismo de mercado e antiprodução burocrática. Nesse capítulo Kafka é apresentado como o profeta da burocracia, que no "realismo capitalista", já atingiu a sua fase de metástase (os professores que o digam). A burocracia stalinista foi copiada pelo "realismo capitalista".

7. "Se pudéssemos observar a sobreposição de realidades distintas": o realismo capitalista como trabalho onírico e distúrbio de memória. Aqui é apresentada a corrupção das subjetividades. As pessoas se dão à adaptabilidade. Flutuam de acordo com os interesses e não de acordo com princípios. Passam por flexibilizações. O capítulo é dedicado a Tony Blair e Gordon Brown, os reformadores do trabalhismo inglês ao neoliberalismo e, dessa forma, ao "realismo capitalista". Muito triste.

8. "Não há operadora central". Não há mais o Estado a socorrer ninguém. Tudo deve ser buscado no mercado. Todas as responsabilidades são atribuídas ao indivíduo, não à sociedade. O Estado se resumiria a militares e a policiais.

9. Supernanny marxista. A compensação da ausência dos pais pela permissão total aos filhos. Um paternalismo sem os pais. Também há aqui, a apresentação de saídas, para a superação do realismo capitalista.

Os apêndices, em número de quatro, tem os seguintes títulos; Não prestar para nada; como matar um zumbi: elaborando estratégias para o fim do neoliberalismo; Não falhar melhor: lutar para ganhar e ninguém está entediado, tudo é entediante. Chamo o atenção para o primeiro desses posts. É uma autobiografia do autor, de uma vida inteira de luta contra a depressão. Em meu caderno de notas eu escrevi: A depressão como um projeto de classe. Você é capaz de tudo, basta querer. No entanto, na vida, só tropeços e fracassos. A morte de Mark Fisher foi por uma escolha sua. 

O posfácio é simplesmente imperdível. Apresenta as quatro fases de sua vida, os conceitos fundamentais que desenvolveu e os autores que mais o influenciaram. Também apresentam as suas angústias permanentes para que o futuro não fosse abolido. Para que nossos sonhos continuassem grandiosos e para que vislumbrássemos alternativas, frutos de uma construção humana coletiva. O grande antídoto para o realismo capitalista, a sempre - consciência de classe.

Deixo os dois últimos parágrafos do posfácio: "Essa não é uma tarefa para um indivíduo (a superação do realismo capitalista): 'nenhum indivíduo pode mudar nada, nem mesmo a si mesmo'. A ideologia individualista da autoajuda é puro 'voluntarismo mágico', invocado para nublar as causas estruturais da miséria real. O desejo pelo futuro, que poderia exercer mais atração libidinal do que a 'revolta na ordem' niiliberal', precisa ainda se encarnar em um 'novo tipo de agente coletivo'. Fisher, fiel que era de um 'destino secular', via sinais de que essa recomposição já estaria em curso; uma onda ascendente de política experimental, com as pessoas comuns redescobrindo a consciência de grupo e a potência do coletivo.

De todo modo, gostemos ou não, a política está de volta. A história começou a se mover novamente. A desintegração é uma abertura perigosa, e nada está garantido - mas, como diz Fisher, 'a vitória da direita só é inevitável se nós pensarmos que é".

E, para terminar. Seria essa uma definição de realismo capitalista?: "...para mostrá-lo como realmente ele é' (o realismo capitalista): uma guerra hobbesiana de todos contra todos, um sistema de perpétua exploração e de criminalidade generalizada. No hip-hop, Reynolds escreve, 'cair na real' é confrontar o estado de natureza, onde cão come cão, onde você é vencedor ou perdedor, e onde a maioria vai perder". Página 21. Um livro imperdível.