sábado, 19 de dezembro de 2020

Pais e Filhos. Ivan Turguêniev.

Por algum problema na compra virtual de livros, recorri à minha estante para encontrar algum livro ainda não lido. A tarefa foi relativamente fácil. Encontrei-o na coleção "Os Imortais da Literatura Universal". Selecionei, de Iván Turguéniev, Pais e Filhos. É o fascínio pela literatura russa. Procurei saber pouco a respeito da obra para lê-la sem a influência dos comentadores. Mesmo assim me chamou atenção o fato de que o autor - em virtude desse livro, teve que abandonar o seu país. Por que será?

Pais e Filhos (1862). A obra prima de Turguêniev. Tradução de Ivan Emilianovitch.

Pelo título imaginei que o tema fosse o conflito de gerações, as famosas e sempre presentes desavenças entre os diferentes membros da família e o conflito de gerações. Nesse sentido, duas famílias ganham no livro, especial atenção. A família de Nicolau Pietróvitch Kirsánov, viúvo, pai de Arcádio e irmão do complicado Paviél e Vasyli e Arina Bazárov, pais de Eugênio Bazárov. Eugênio é um estudante de ciências da natureza, com propensões fortes para a medicina.

Arcádio e Eugênio são muito amigos e é a partir dessa amizade que o romance está constituído. Os dois visitam, primeiramente, os pais de Arcádio e depois os de Eugênio. Ambas as famílias são proprietárias rurais, ainda em tempos de servidão. O romance foi escrito em 1862. Confesso que senti profunda antipatia pelo personagem Eugênio pela sua arrogância, deboche e indiferença perante as pessoas. Creio que tive os mesmos sentimentos de Paviél, que, inclusive, o desafiou para um duelo. Ao longo de todo o livro Nicolau mostra uma grande preocupação com a educação dos mujiques, os servos atingidos pelas reformas agrícolas de 1861. (Os servos eram também chamados de almas - daí o título do livro de Gogol - Almas Mortas).  

A rica literatura russa desse período precisa necessariamente de contextualização. O país passava por grandes transformações. O país lutava para se manter um país rural, monarquista e escravista mas em contrapartida sopravam os ventos da modernização europeia dos ideais republicanos e libertários. No livro de biografias que acompanha a coleção, no livro sobre Turguêniev lemos o seguinte: "Os russos debatiam a situação de sua pátria, dividindo-se em eslavófilos e ocidentalistas. Esse clima atingiu o auge por volta de 1853 e esmoreceu no início do século XX. Ambas as correntes concordavam quanto à necessidade de o Estado ser soberano, mas divergiam no que respeitava ao tipo de governo, à estrutura social, aos valores religiosos e tradicionais". Quanto as divergências dos dois grupos, vejamos as posições:

"Os eslavófilos defendiam o regime monárquico, a servidão, as tradições seculares, o isolamento cultural. Sonhavam com a união perfeita de todos os povos eslavos sob a hegemonia da Rússia, nação rica de sentimentos, fé e arte. [...] Por seu turno, os ocidentalistas, cuja causa Turguêniev (1818-1883) abraçou desde os primeiros momentos, lutavam por um governo republicano, pela libertação dos servos e pela aproximação da Rússia ao Ocidente. O passado histórico constituía para eles um fardo incômodo, do qual era preciso livrar-se urgentemente, a fim de adotar as técnicas, invenções e ideias europeias. Não viam dificuldades em se transplantarem os valores culturais e as formas artísticas, e acreditavam que, com maior facilidade ainda, poderiam importar inventos, como as máquinas a vapor, ou instituições comerciais, como as sociedades por ações". No livro Bazárov é o mensageiro dessa modernidade. Já do outro lado se encontrava Dostoiévski (1821-1881) que "dedicou" a estes jovens modernos e modernizadores o seu implacável livro Os Demônios.

Turguêniev (1818-1883) era rico herdeiro de Varvara, sua mãe, proprietária de mais de cinco mil servos. Nunca se entendeu com ela. Passava muito tempo no exterior, admirando Hegel, recebendo influências de Rousseuau e sempre em meio a influentes companhias, como Bakúnin, Heine e Flaubert. Turguêniev, pela literatura, procurou construir o seu herói e porta-voz. Ao que tudo indica não foi muito bem sucedido. O seu herói era fraco diante das urgências da Rússia. Assim foi Rúdin, protagonista e título do romance com o tema, como também Bazárov, o seu mensageiro, em Pais e Filhos. É o que lemos na biografia que acompanha a coleção.

Quanto a Pais e Filhos lemos o seguinte: "Pais e Filhos  representava a última tentativa de Turguêniev para criar o herói russo: Bazárov. Intelectual materialista, nega o amor e a arte, recusa a religião, combate as tradições, tudo submete à experiência científica e acredita nos benefícios de uma revolução total. É um 'niilista', segundo o termo cunhado por Turguêniev especialmente para ele. Um rebelde que 'não se inclina a nenhuma autoridade nem aceita nenhum princípio sem exame'. O amor, no entanto o desarma e o conduz à morte". Ainda sobre o romance, a respeito de sua recepção junto ao público lemos: 

"Os jovens desaprovaram o desenlace do romance, a seu ver prova de uma tomada de posição do autor contra Bazárov e, por extensão, contra todos os 'filhos'. Por sua vez os 'velhos' sentiram-se ridicularizados na obra e consideraram Bazárov um modelo apontado à juventude como um ideal. Em suma, ambas as gerações objetaram ao romance e encetaram uma polêmica que durou anos. Na verdade, além da criação do herói russo, Turguêniev pretendia descrever o conflito entre pais e filhos, mostrando os defeitos e as qualidades de uns e outros. A grandeza do romance, a pintura dos ambientes e da paisagem rural, a precisão estilística, a soberba criação das personagens, sobretudo Bazárov - qualidades que fazem de Pais e Filhos sua obra-prima -, passaram despercebidas ao público e aos críticos da época". Sobraram muitas amarguras, especialmente com a situação social dos servos, agora emancipados, mas vivendo na miséria.

Ah! a abolição. Lembrando Joaquim Nabuco: A escravidão foi abolida - mas não a sua obra. Toda leitura é um enorme aprendizado.




domingo, 13 de dezembro de 2020

Os Noivos. Alessandro Manzoni.

Lendo a bela biografia do memorável papa João XXIII, deparei com o fato de sua grande afeição a um romance, que, inclusive, o teria influenciado no seu breve mas profícuo pontificado (1958-1963). Trata-se de Os Noivos, do escritor e ativista político italiano Alessandro Manzoni. A personagem pela qual o santo papa (este sim - um santo) mostrou maior admiração era Inês, em função das soluções que sempre encontrava diante das dificuldades, mesmo que impossíveis. Inês era a mãe de Lúcia Mondella, que junto com Renzo Tramaglino, formam o par romântico da obra.

 Os Noivos. Alessandro Manzoni. Abril Cultural. 1971. Tradução Marina Guaspari.

Outro fato que muito me chamou a atenção netsa biografia foi a sua admiração por São Carlos Borromeu, um antigo cardeal da cidade de Milão. Lhe admirava a sua profunda generosidade e vida dedicada aos pobres da cidade. Esses dados me levaram à busca do livro. O encontrei na coleção "Os imortais da literatura universal", uma edição da Abril Cultural, publicada em 1971. Em 2012, numa viagem ao norte da Itália eu visitava a cidade de Stressa, junto ao Lago Maggiore, no qual visitamos as Ilhas Borromeu e o famoso palácio que leva o nome da família. O guia muito nos falou do poder dessa família, mas não fez essa menção à sua generosidade. Falava do poder da família que se estende até os dias de hoje. Em Milão, lembro também de um monumento em homenagem a Alessandro Manzoni, por sua dedicação à causa da unificação italiana. Tudo isso me levou à leitura imediata do livro.

O livro é muito simples. Uma grande história de amor. Mas o que faz o escritor com esta história de amor? Insere nela a história da cidade de Milão. Antes de falar da concepção do livro vamos a dois dados da contextualização, tanto do livro, quanto do escritor. Alessandro Manzoni nasceu em Milão em 1785 e morreu na mesma cidade em 1873. O livro foi escrito, numa primeira versão entre os anos de 1821-1823 e reescrito entre 1825-1827, em três volumes. Chegou a ver, portanto, a sua tão sonhada unificação italiana (concluída em 1871). O livro faz uma retrospectiva de aproximadamente duzentos anos, para escrever a história de sua cidade, nas décadas de 1620 e início da de 1630. Nesse intento pesquisou a obra de Giuseppe Ripamonti, História de Milão. Na época a cidade estava sob domínio espanhol. Os personagens, no entanto, são seus. Entre eles estão os mais famosos - O Inominado, a monja de Monza e o Cardeal Frederico Borromeu.

No livro de biografias que acompanha a coleção encontramos o seguinte sobre a concepção da obra: "Manzoni simula basear-se num manuscrito do século XVII, por ele remanejado, segundo informa o subtítulo: História milanesa do século XVII descoberta e refeita por Alessandro Manzoni". Quanto a trama, lemos o que segue:

"A trama da obra gira em torno do amor de Renzo e Lúcia - os noivos - que, para poderem casar-se, tem de vencer os obstáculos colocados pelo vil Dom Rodrigo, poderoso senhor espanhol. Frei Cristóvão é uma das pessoas que se compadecem dos apaixonados; tenta ajudá-los, mas não logra vencer as artimanhas do tirano. A monja de Monza, princesa confinada ao convento, toma Lúcia sob sua proteção. Entretanto, não consegue impedir que a moça seja raptada pelos capangas do Inominado, misterioso cúmplice de Dom Rodrigo. Pouco tempo mais tarde, tocado pela graça divina, o Inominado se arrepende de seu crime e decide ajudar Renzo e Lúcia na concretização de seus sonhos.

Os protagonistas de Os Noivos são invenção do autor; contudo, o cenário histórico e social em que se movem é real, e a ele a crítica moderna se volta com renovado interesse. O público da época, empolgado com as aventuras dos noivos, não percebera a profundidade da visão humana e social de Manzoni. Um dos pontos altos do romance é justamente a descrição da peste de Milão, subsequente a um devastador ataque de lanceiros alemães. O medo da morte leva os cidadãos a lutarem entre si; qualquer 'untador', ou seja, suspeito de transmitir a peste, era sumariamente executado pela turba, com a conivência das autoridades".

Quanto a peste, ela merece um destaque todo especial. A riqueza de sua descrição. Isso ganha particular interesse em virtude de vivermos em tempos de pandemia. Quantas semelhanças. Quanta ignorância! Tem até um personagem, Dom Ferrante, tido como um homem culto, que morre com a peste, por descuidos em se prevenir, por simplesmente negar a doença e a sua contaminação. Vários dos capítulos, já ao final da obra, são dedicados à peste. Atende a uma série de curiosidades, a comparações de época.

Entre os personagens do bem, ganham grande destaque os convertidos, como o Inominado e o próprio Frei Cristóvão. É impossível não se apaixonar por esse frei. Também a generosidade do cardeal Frederico Borromeu ganha destaque, junto com o tratamento severo que ele dá a Dom Abbondio, um padre pusilânime, que se nega a casar os noivos em virtude dos interesses de Dom Rodrigo pela jovem Lúcia.

O livro termina com as razões que o autor encontrou para escrever o romance. Depois das considerações de Renzo o noivo, chega a vez de Lúcia falar: "E eu? Que quer você que eu tenha aprendido? Não fui buscar os contratempos; foram eles que me procuraram. A não ser - acrescentou, sorrindo - que o meu disparate seja querer-lhe bem e ser sua mulher.

A princípio, Renzo ficou entalado; depois de um longo debate, convieram os dois em que os dissabores não raro nos vêm da irreflexão, mas que o procedimento mais inocente e cauteloso não basta para conjurá-los; e, quando nos afligem, por falta nossa ou alheia, a confiança em Deus os atenua e torna proveitosos, para uma vida melhor.

Embora resulte dum raciocínio de criaturas humildes, esta conclusão parece-nos tão justa e acertada, que aqui transcrevemos, como suma de toda a nossa narrativa".

O autor - Manzoni, é importante dizer, que depois de muitas peregrinações ao longo de uma "boa vida", também é um convertido ao catolicismo. E, para terminar, o meu agradecimento ao querido papa João XXIII por essa dica de leitura.

A bela biografia do papa João XXIII.

E a resenha da biografia: http://www.blogdopedroeloi.com.br/2020/12/papa-joao-xxiii-thomas-cahill.html




sábado, 5 de dezembro de 2020

PAPA JOÃO XXIII. Thomas Cahil.

Seguramente um livro cuja leitura faz muito bem. O li pela primeira vez em janeiro de 2010. O retomei agora, lendo-o bem mais atentamente, com muito mais cuidado. Nunca me canso em afirmar que o papa João XXIII foi a maior das influências que eu recebi em minha vida, especialmente em meus anos de formação nos seminários de Bom Princípio (1957-1958), Gravataí (1959-1964) e Viamão (1965-1968). O pontificado de João XXIII foi exercido durante os anos de 1958 a 1963, e a sua vida entre os anos de 1881 a 1963. Guardo ligeiramente na memória, o evento da morte e a troca dos papas.

Papa João XXIII. Thomas Cahill. Objetiva 2002. Tradução de Ana Luiza Dantas Borges.

Mas o objetivo deste post é o livro de Thomas Cahill, Papa João XXIII, da editora Objetiva. A publicação é do ano de 2002. Cahil é ex-diretor de publicações religiosas da Doubleday e leva a sua vida entre  as cidades de Nova York e de Roma. Na biografia ele mostra uma profunda admiração e carinho pelo papa que, segundo ele, dirigiu suas palavras ao mundo, e não apenas aos cristãos católicos, como os papas costumavam fazer. Cahill também é homem de profunda erudição, mostrando um domínio quase absoluto do complexo tema da história dos papados. Humanidade e sensibilidade perpassam a biografia. Também é verdade que a vida do biografado em tudo contribuiu para isso.

Na orelha de capa encontramos dois parágrafos que pretendem sintetizar o livro. O primeiro versa sobre o pontificado, buscando também uma retrospectiva histórica dos papados e o segundo versa sobre o ser humano extraordinário que o papa João XXIII foi. Vejamos: "Papa João XXIII começa com a história concisa, mas de alcance geral, da Igreja Católica e do papado, culminando no breve, mas inesquecível, reinado de Angelo Giuseppe Roncalli como Papa João XXIII, em meados do século XX. Aos 76 anos ele não era uma figura pública muito conhecida, nem um teólogo altamente treinado; assim, de início, acreditou-se que seria apenas um papa de transição. Durante seu reinado, entretanto, ele instituiu mudanças produtivas e sem precedentes, que refletiram sua preocupação com as aflições da humanidade.

Em uma prosa agradável e apaixonada, Cahill acompanha a vida do Pontífice de suas raízes camponesas ao marcante Segundo Concílio do Vaticano, com sua ênfase na justiça social para todos, assinalando o começo de uma verdadeira mudança na Igreja Católica e em sua relação com o mundo moderno. Nesta biografia que cativará igualmente católicos e não católicos. Cahill combina, com sua rara habilidade, imaginação, discernimento interpretativo e erudição, conseguindo, assim, refletir a intuição, espontaneidade e visão imparcial do próprio Papa João XXIII".

O livro, de 295 páginas, está dividido em quatro capítulos, uma pequena introdução, epílogo, notas e fontes e agradecimentos. Dou o título e subtítulo dos capítulos: I. Antes de João: Da congregação à Igreja e ao Padrão da Ortodoxia. A Igreja Imperial. Os Romanos e os Bárbaros. As duas espadas. A necessidade da Reforma e somente o papa. Muita história e erudição, uma história da constituição do papado, passando por crises e afirmações. Um belo capítulo.

II. Angelo, o homem: De camponês a padre. De secretário a historiador. De servente a arcebispo. De diplomata a patriarca. Um capítulo muito rico. Apresenta a sua trajetória de vida pessoal, de sua infância e juventude para penetrar na história italiana e mundial desse período. Sofia, Constantinopla e Paris entram em cena na vida de Angelo.

III. Roncalli, o pastor; João, o Papa. Veneza. O Vaticano: O patriarca de Veneza ganha projeção e é alçado à condição de Papa, escolhido em seu 11º escrutínio. Rompe a tradição dos conservadores Papas Pio, retoma Leão XIII, convoca o Concílio Vaticano II e escreve as progressistas encíclicas Mater et Magistra e Pacem in Terris. Sublinhei, em especial, uma frase: "Não foi o Evangelho que mudou; nós é que começamos a compreendê-lo melhor" e anotei duas observações: Pasolini produz e dirige o filme O Evangelho segundo São Mateus em sua homenagem e Os Noivos, de Alessandro Manzoni era um de seus livros de cabeceira. Já o separei para a leitura.

IV. Depois de João: Paulo VI. João Paulo II. Apresenta Paulo VI como seu continuador, na conclusão do Concílio e com a bela encíclica Populorum Progressio. Depois se acomoda sob a influência dos Conservadores. Já João Paulo II representa uma volta a Pio XII e se apresenta ao mundo não mais como um Papa universal mas como um policial universal, muito mais preocupado em punir do que em perdoar. Retrocessos de um papado interminável, de um Papa que "viajou o mundo, sem se dirigir ao mundo" mas apenas aos cristãos católicos do mundo.

Volto à minha formação. Tenho muito orgulho dela. Também saí da roça - de agricultura primitiva para o seminário. Ainda em Bom Princípio, recebemos a notícia da morte de Pio XII e de sua sucessão por João XXIII. Em Gravataí acompanhamos o Concílio Vaticano II e a Doutrina Social Católica por suas encíclicas e em Viamão acompanhamos um pouco do pontificado de Paulo VI. Nos chegavam as primeiras influências de uma visão progressista, humana e fraterna de mundo. Tenho muito orgulho dessa minha formação. O livro/biografia é também um belo exercício da compreensão e do significado vivenciado da riqueza da palavra "alteridade".

terça-feira, 1 de dezembro de 2020

O Ingênuo. Voltaire.

Voltaire tem uma forma muito peculiar de dizer as suas "verdades". Para isso ele usa do conto e um conto que tem muita ironia, sátira e linguagem figurativa e invertida. Nem tão pouco - falta a mordacidade e o sarcasmo. É o que encontramos em O Ingênuo, o seu conto datado do ano de 1767. Já anteriormente publicara Cândido ou o Otimismo, (1759), com a mesma tonalidade. Voltaire viveu entre os anos de 1694 e 1778. Segue o Link de Cândido ou Otimismo. http://www.blogdopedroeloi.com.br/2020/11/candido-ou-o-otimismo-voltaire.html

O Ingênuo. Editora Escala. Tradução de Antonio Geraldo da Silva.

O Ingênuo é um huron, um povo indígena da América do Norte. Ele é encontrado pela família Kerkabon, que tem em seu meio um padre, que é o prior de Nossa Senhora da Montanha. Parte da família havia migrado anteriormente para o Canadá. O huron é portador de dois pequenos retratos, nos quais são reconhecidos os parentes migrantes. O huron recebera os retratos de seu irmão, que combatera os franceses no Canadá. No huron eles observam traços de barba, um indicador de que não é um índio puro. Ele tem mestiçagem. Observando melhor os retratos, reconhecem os traços familiares e descobrem na figura do índio, um sobrinho.

Assim começam as aventuras do huron, de nome Ingênuo, no continente europeu. Admirados de ele não ser católico, o preparam para o batismo, ensinando-lhe a bíblia. No batizado recebe o sugestivo nome de Hércules, em alusão a um cidadão que transformou, numa única noite, cinquenta meninas em mulheres. A senhorita de Saint Yves, que pertence a família, se apaixona por ele e é plenamente correspondida. Ela é de beleza ímpar, o que lhe faz ter pretendentes bem influentes. É aí que começam as desgraças dos dois.

O huron se vê envolvido num combate com os ingleses e se mostra valente combatente e é enviado para a corte de Luís XIV, para receber honrarias. Na verdade lhe prepararam uma cilada, para afastá-lo da senhorita Saint Yves. É preso junto com um jansenista de nome Gordon, com quem troca confidências, passando por um enorme e rápido aprendizado. Gordon era um sábio. Voltaire apresenta as razões para o rápido aprendizado do Ingênuo:

"Esse rápido desenvolvimento de seu espírito era devido à sua educação selvagem, bem como a têmpera de sua alma, pois, nada tendo aprendido na infância, não havia aprendido preconceitos. Seu entendimento, não tendo sido curvado pelo erro, permanecera em sua retidão. Via as coisas como são, ao passo que as ideias que nos inculcam na infância fazem com que as vejamos, durante toda a vida, como não são". Que frase fantástica. O Ingênuo não fora contaminado pela escola.

O pequeno conto, de apenas vinte pequenos capítulos, também pode ser lido como uma tragédia, especialmente, a partir do momento em que entram em cena os padres jesuítas e, de modo todo particular, aqueles que são confessores do rei e dos ministros. O rei é nada mais - nada menos - do que  o poderoso Luís LIV. Por isso mesmo, vários capítulos se desenvolvem, ora em Paris, ora em Versalhes. Um dos padres mais influentes, o padre Saint Pouange cobra alto preço para a libertação do amado da senhorita Saint Yves, o que a torna extremamente infeliz e a leva até a morte. "Ela sucumbe por virtude", nos conta Voltaire.

O conto/tragédia termina com o adoecimento da bela jovem, cujo corpo foi consumido pela sua grande alma. O Ingênuo se transformou num bom oficial, mas o tempo que tudo apaga, não foi capaz de apagar as dores do pobre e infeliz Ingênuo. Até o influente padre Saint Pouange se arrependeu de suas patifarias. Vejamos ainda, a referência relativa ao conto na contracapa do livro:

"O Ingênuo segue, aproximadamente, a mesma linha de pensamento (de Cândido), embora se calque na onda do indianismo que se propagou na França do século XVIII. Voltaire ressalta a pureza de princípios dos índios americanos, contrapondo-os às ridículas e desgastadas convenções sociais e políticas da Europa da época". Assim, o Ingênuo huron, corresponderia ao "bom selvagem" de Rousseau. Efetivamente, um enorme choque cultural.

Adendo - 02.12.2020. Voltaire, apesar de ter sido demonizado pelos apologistas católicos, era um pensador moderado, um polemista divertido e sagaz, uma alma religiosa, embora idiossincrática, que se confessou a um padre em seu leito de morte e se permitiu receber a extrema-unção. Mas ele percebeu, com muita clareza, que as funções do Estado tinham de ser desvencilhadas das funções da religião. Abominou, com razão, o fanatismo e obscurantismo do clero, quer católico, quer luterano, reformado ou anglicano, e achava repelentes as práticas "cristãs" comuns da tortura, enforcamento, decapitação e incineração contra aqueles acusados de impiedade. De modo radical, ele e os companheiros filósofos  de seu círculo acreditavam que todos os homens eram iguais perante Deus e deveriam ser iguais perante a lei. Para Voltaire, essa não era, em si, uma proposta antimonarquista; não tinha nenhum motivo de queixa contra a realeza como tal. Porém foi logo seguido por homens (e mulheres) menos moderados que impeliram suas especulações entusiasmadas - e best sellings - a conclusões mais revolucionárias..

Isso não quer dizer que somente Voltaire e seus amigos defendessem a bandeira da inteligência e justiça, enquanto todo o sistema político-religioso da Europa enfileirava-se contra eles. As ideias dos filósofos logo afetaram o ar que todos respiravam". Era a força do Iluminismo ou do Esclarecimento. CAHIL, Thomas. Papa João XXIII. Rio de Janeiro. Objetiva 2002. Páginas 80-81.