quinta-feira, 26 de novembro de 2020

Cândido ou o Otimismo. Voltaire.

Pangloss dizia vez por outra a Cândido: "Todos os acontecimentos estão encadeados no melhor dos mundos possíveis, pois, afinal, se não tivesse sido expulso de um lindo castelo com uma saraivada de pontapés no traseiro por amor da senhorita Cunegundes, se não tivesse sido perseguido pela Inquisição, se não tivesse percorrido a América a pé, se não tivesse aplicado um belo golpe de espada no barão, se não tivesse perdido todos os carneiros do bom país de Eldorado, não estaria aqui comendo doces de cidra cristalizada e pistaches". - "Concordo plenamente", disse Cândido, "mas devemos cultivar  nosso terreno". (Páginas 94-5).

Cândido ou o Otimismo. Voltaire. Editora Escala. Tradução de Antonio Geraldo da Silva.

Assim termina um dos mais famosos contos de toda a história da literatura. Trata-se de Cândido ou o Otimismo, de Voltaire. Depois de todas as desventuras relatadas no conto, Cândido, Pangloss, Cunegundes, uma velha - filha de papa, Cacambo e Martim, somados a Paquette e o frade Giroflée, vão consultar um dervixe, que foi interrogado por Pangloss, o grande mestre da filosofia: "Mestre, vimos implorar que nos diga por que foi formado um animal tão estranho como o homem". A partir daí se estabelece o seguinte diálogo:

"Com que estás te metendo", disse o dervixe. "Será que é de tua conta"?

"Mas, meu reverendo pai", disse Cândido, "Há tanto mal na terra".

"O que importa", disse o dervixe, "se há mal ou bem? Quando Sua Alteza manda um navio ao Egito, será que importa se os ratos a bordo estão à vontade ou não"?

"O que se deve fazer então"? Perguntou Pangloss.

"Ficar calado", respondeu o dervixe.

"Desejava realmente", disse Pangloss, "vir aqui discorrer um pouco com o senhor sobre os efeitos e as causas, o melhor dos mundos possíveis, as origens do mal, a natureza da alma e a harmonia preestabelecida".

Ao ouvir essas palavras, o dervixe bateu-lhes a porta na cara. (Página 93). 

Depois de todas as desventuras e sem rumo, o Dr. Pangloss, sempre o grande mestre, depois de definir que  o otimismo "é a mania de sustentar que tudo está bem quando tudo está mal" (Página 56) e de, quando perguntado por Cândido, se mesmo "quando foi enforcado, dissecado, espancado, e obrigado a remar nas galeras, continuou pensando que tudo neste mundo ia o melhor possível"?, ele responde: "Mantenho minha opinião de sempre, pois, afinal sou filósofo. Não convém desdizer-me, uma vez que Leibniz não pode estar errado e uma vez que a harmonia preestabelecida é, por outro lado, a coisa mais bela do mundo, assim como o são a totalidade e a matéria sutil" (Página 89-90).

A solução contra o otimismo ou a ingenuidade parece vir num dos diálogos finais, quando toda a turma já está em Constantinopla, num diálogo com um agricultor. Cândido lhe dirige a palavra. "O senhor deve ter uma vasta e magnífica propriedade".

"Só tenho uns três alqueires", respondeu o turco. Cultivo-os com meus filhos. O trabalho afasta de nós três grandes males: o tédio, o vício e a necessidade". Cândido assim reflete sobre estas palavras, com Pangloss e Martim: "Esse bom velho parece-me ter conseguido para ele um destino em muito preferível ao daqueles seis reis com quem tivemos a honra de jantar" [...] "Também sei", disse Cândido "que temos que cultivar nossa terra". "Tem razão" disse Pangloss, "pois, quando o homem foi colocado no jardim do Eden, foi colocado ut operaretur eum, para que o trabalhasse, o que prova que o homem não nasceu para o descanso". "Trabalharemos sem filosofar", disse Martim. "É o único meio de tornar a vida suportável" (Página 94).

Esse é o conto que começa na Vestfália e termina em Constantinopla, relatando as misérias e os sofrimentos humanos, através do grupo de pessoas com quem tem relações ao longo da viagem, que ocupa trinta pequenos capítulos da mais fina ironia. A longa viagem mostra que em todos os lugares, com exceção do Peru, o país do Eldorado, predomina a mesquinharia e a falsidade moral. Ao final todos eles convivem exercitando seus talentos.

Na contracapa do livros lemos o seguinte comentário de apresentação: "Cândido é um conto. Escrito contra seus opositores, Voltaire, com fina ironia, sem deixar de lado o sarcasmo e, com frequência, extremamente mordaz, responde com este conto em que contrapõe ingenuidade e esperteza, desapego e ganância, delicadeza e violência, amor e ódio, simpatia e crueldade e outros paradoxos da existência humana. Inserções de cunho filosófico levam os personagens a buscar causas e efeitos de qualquer coisa, a razão suficiente do que se pensa e se faz, a ética ou a moral do que é feito. O conto em si pode ser visto como um espelho do irreal e, na verdade, reflete a irrealidade ou a farsa de realidade que o mundo da época de Voltaire vivia". Lembrando que Voltaire nasceu em 1694 e morreu em 1778. O conto teve a sua primeira publicação no ano de 1759. Os seus alvos preferenciais são os padres, os jesuítas em especial, os judeus, que lhe tomaram a fortuna, a política e a religião. A Inquisição, as missões jesuíticas e o terremoto de Lisboa (1755) também aparecem no conto.

Adendo - 02.12.2020. Voltaire, apesar de ter sido demonizado pelos apologistas católicos, era um pensador moderado, um polemista divertido e sagaz, uma alma religiosa, embora idiossincrática, que se confessou a um padre em seu leito de morte e se permitiu receber a extrema-unção. Mas ele percebeu, com muita clareza, que as funções do estado tinham de ser desvencilhadas das funções da religião. Abominou, com razão, o fanatismo e obscurantismo do clero, quer católico, quer luterano, reformado ou anglicano, e achava repelentes as práticas "cristãs" comuns da tortura, enforcamento, decapitação e incineração contra aqueles acusados de impiedade. De modo radical, ele e os companheiros filósofos  de seu círculo acreditavam que todos os homens eram iguais perante Deus e deveriam ser iguais perante a lei. Para Voltaire, essa não era, em si, uma proposta antimonarquista; não tinha nenhum motivo de queixa contra a realeza como tal. Porém foi logo seguido por homens (e mulheres) menos moderados que impeliram suas especulações entusiasmadas - e best sellings - a conclusões mais revolucionárias.

Isso não quer dizer que somente Voltaire e seus amigos defendessem a bandeira da inteligência e justiça, enquanto todo o sistema político-religioso da Europa enfileirava-se contra eles. As ideias dos filósofos logo afetaram o ar que todos respiravam". Era a força do Iluminismo ou do Esclarecimento. CAHIL, Thomas. Papa João XXIII. Rio de Janeiro. Objetiva 2002. Páginas 80-81.



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