Na retomada das leituras sugeridas para vestibular chegou a vez de Água funda, da escritora paulista, a primeira mulher negra a ingressar na Academia Paulista de Letras, Ruth Guimarães. A sugestão partiu da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. O romance regional tem como cenário as fazendas do Vale do rio Paraíba, entre os estados de São Paulo e de Minas Gerais. O ano de publicação foi o de 1946, pela editora Globo, de Porto Alegre. A maior riqueza do livro é a sua linguagem, uma espécie de prosa poética, dando voz ao povo simples e humilde daquele tempo e daquela região. Isso ela conhecia muito bem.
Água funda. Ruth Guimarães. Editora 34. 2023.
Ruth Guimarães nasceu em Cachoeira Paulista, mas desde cedo andou por cidades da região do Vale do Paraíba, e também por cidades de Minas Gerais, situadas nas proximidades. Em São Paulo fez a maior parte de seus estudos, passando pela sua grande universidade. A fortuna não a acompanhou. Trabalhou para se sustentar, bem como a dois irmãozinhos menores. Numa entrevista contou que sua avó era contadora de histórias. Dela certamente herdou a arte. Se ela não teve fortuna, muito menos os seus personagens da Água funda. Eles tinham dificuldades de entender as amarguras que a vida lhes reservava. Tudo era culpa do destino. Não havia valentia que com ele pudesse.
A edição que tenho em mãos é da Editora 34. É caprichada. Tem prefácio de Antônio Cândido. Aliás, dois. O oficial data de 2003. Nele ele faz referência às notas que escrevera para a edição de 1946, que ele perdera. A editora as recupera e as põem ao final do livro. Uma preciosidade. Trata-se de Antônio Cândido, o de Os parceiros do Rio Bonito. Também tem outras críticas e trechos de entrevistas por ela concedidas. São de Brito Broca, Álvaro Lins e Nelson Vainer. De Antônio Cândido, de sua versão de 1946, tomo a apresentação do livro:
"A melhor qualidade do romance de estreia da sra. Ruth Guimarães, Água funda, é o tom pessoal. Num momento em que as nossas ficcionistas não resistem ao fascínio do livro de sucesso, à costumeira história neorrealista e sentimental, a jovem escritora ouviu apenas a sua vocação e, sem preocupar-se com moda ou tendências do público, escreveu uma obra que percebemos impulsionada por nítida exigência interior. Água funda, graças a esta impressão, refresca agradavelmente a nossa sensibilidade e revela uma escritora que poderá atingir um nível literário de primeira ordem. [...]
A sra. Ruth Guimarães conta duas histórias, saborosamente entremeadas de pequenos casos e embelezadas por um rico acervo de comparações sertanejas: a história dos fazendeiros primitivos dos Olhos D'Água e a história de Joca, caboclo que vive na mesma fazenda, meio século depois". Conta-nos a aventura amorosa de Dona Carolina com o moço de outra fazenda, posto para fora dela pelo proprietário, o seu pai. A história de Joca se complementa com a de Curiango. O destino lhes apronta das suas. Histórias de dor e de sofrimento.
A história da fazenda Água funda remonta aos tempos da escravidão. Ruim como só ela era a Dona Carolina. Mas a ruindade não acabara com a escravidão. Nem com a modernização e a mecanização. Até levavam gente para outras terras, sob um milhão de promessas, para voltarem sem absolutamente nada. Da vida tinham pouca compreensão. Crendices e superstições lhes davam direção. Por elas conseguem a sublimação. Das orelhas do livro, tomo ainda três parágrafos:
"Inspirado no pensamento caipira, cujo cerne é o medo, a autora formula não só o tema, mas o próprio estilo literário de Água funda. Há uma literatura residual, fragmentária e arcaica no misticismo popular e nos causos que o expressam. Mário de Andrade, amigo de Ruth, foi um dos garimpeiros dessas permanências inspiradoras do saber rústico.
Ela não se ateve aos arcaísmos da fala e do pensamento. Desvendou neles o mistério e as metamorfoses, a permanência do que se acaba, a poderosa Sinhá Carolina, enganada e desaparecida, retorna caduca e mendiga. A fazenda escravista se torna empresa em mãos alheias, transfigura todos que a tocam, é o instrumento da praga, da maldição que a todos suga para dentro do círculo dos andantes, os condenados a uma busca sem fim.
A peculiar ordenação do tempo do pensar e do narrar fazem desse livro de Ruth Guimarães, de 1946, uma obra tão original quanto Sagarana, de Guimarães Rosa, do mesmo ano. Além do que, Água funda é obra precursora e antecipadora do realismo fantástico latino-americano de autores como Manuel Scorza, Gabriel García Márquez, Juan Rulfo". Deixo ainda a parte final da obra:
"Pois essa praga caiu. Veja: o Bugre morreu de morte feia. Esse desconfio que não foi por causa de praga, pois não devia nada. Seu Pedro é que vive dizendo que aquela cobra foi mandada. 'Era um urutu preto, que nem um pecado. Pra mim foi mandada. Pois cobra mordeu o homem tanta vez e não aconteceu nada, como é que daquela ele foi'? O Santana morreu matado. O Antônio Olímpio matou a mulher e foi parar na cadeia. Aquele morre lá. O Pais encrencou com o patrão e foi embora com u'a mão adiante, outra atrás. Luís Rosa bebe de cair. Anda andando por essas estradas, com uns olhinhos de piaco-piaco. Com o Bebiano aconteceu o que aconteceu, no desastre da usina. Um dia está aqui, outro dia não se sabe dele. Aquele sossega só com a morte. Assim mesmo, não sei. Até em Curiango a praga acertou, de ricochete. Enquanto o pai foi vivo, foi um cabresto para ela, mas depois que morreu... Não pode contar com o marido e não é mulher pra ficar sozinha. É moça demais e é bonita demais. Tudo no diacho dessa mulher faz a gente lembrar de correnteza. Tem o andar bamboleado e macio de veio d'água. Tem uma risada de passarinho nascido perto de cachoeira. E o lustro daqueles olhos pretos é ver lustro de jabuticaba bem madura, molhada de chuva.
Agora que fechou a volta, a praga pode subir a serra, atrás de quem a rogou. A troco de que tudo isso aconteceu, não sei. E é um pecado. Curiango estar pagando o que não fez. Ê mundo errado!..
Bom. Não sei não. Não sei... Deus sabe o que faz, e a gente não sabe o que diz.
Cala-te, boca!
Se aconteceu, é porque era bom que acontecesse".
Ruth Guimarães nasceu no ano de 1920 e morreu em 2014, nascimento e morte na cidade de Cachoeira Paulista. Ingressou na Academia Paulista de Letras, em 2010. Que tempos!