quarta-feira, 31 de julho de 2013

A Relíquia. Eça de Queirós.

Livros sempre são ótimos companheiros de viagem. Desta vez, em meu giro ibérico, a minha escolha recaiu sobre Eça de Queirós. O livro escolhido foi A Relíquia. Além da fama, especialmente por Os Maias, pouco conhecia deste autor. A maior parte da história se ambienta em Lisboa, em seus bairros, o que me motivou mais ainda a sua leitura.

A história narrada em A Relíquia é simples. A ironia e a sátira são os componentes fundamentais. Teodorico Raposo, na qualidade de sobrinho, é o único herdeiro de D. Patrocínio das Neves, a Titi, uma das fortunas de Portugal. A Titi é uma das mais fervorosas beatas de Lisboa, vivendo rodeada de padres e frequentando as mais diversas capelas de inúmeras igrejas.
Biografia e obras de Eça de Queirós
Eça de Queirós (1845-1900), autor de A Relíquia, escrito em 1887. Um de seus livros mais ácidos em suas críticas.
 
Teodorico vive uma vida sem apertos. A Titi tudo lhe providencia, exigindo em troca apenas o seu fervor religioso. Nada de diversões. A vida exige compartilhamento de sofrimentos, como os de Cristo na cruz. Enquanto a Titi não tivesse notícias de que Teodorico estivesse envolvido com saias, o dinheiro fluía fácil. Os muitos "sim" dados a Titi o fizeram bacharel em Direito, por Coimbra. Além dos "sim", dados a Titi, Teodorico levava também a sua vida de diversões, distante dos olhos atentos de D. Patrocínio das Neves. Ele simulava bem e era especialmente fiel no cumprimento dos horários, fórmula usada pela Titi, para mantê-lo sempre próximo, sob vigilância.

O comportamento austero de Teodorico em meio a tanta riqueza se justificava pela enorme fortuna a ser herdada. Na qualidade de herdeiro único, o sobrinho tinha um fortíssimo competidor. Jesus Cristo. Um "não" para a Titi significava ser deserdado, com a toda a certeza do mundo. Deixaria toda a sua fortuna ser consumida com a reza de missas. O sobrinho, acima de tudo confiava numa morte próxima de D. Patrocínio.

Melhor simulação significava menos vigilância e mais liberdade. O sobrinho não tinha muito do que se queixar. Um amigo lhe conta as aventuras de Paris. Se divertira até com primas do papa. Pede a Titi para visitar Paris. Só a menção a esta cidade, identificada com o pecado, embora também com suas inúmeras e belas igrejas, foi como que uma ação fatal. Cristo quase lhe tomou a posição de herdeiro. Em compensação, uma proposta de uma visita a Jerusalém, à Terra Santa.
Uma das edições de A Relíquia, de Eça de Queirós.

Visitar a Terra Santa era o máximo que se podia fazer em termos de religiosidade. Quem o fizesse receberia por parte do povo a consideração de um santo. Teodorico não se furta desta missão, que considera como decisiva para o alcance de seu grande objetivo, a fortuna da Titi. A sua grande preocupação passa a ser a de encontrar uma relíquia à altura da devoção e da santidade da Titi. Encontra uma coroa de espinhos, que de acordo com o seu amigo, o cientista Topsius, especialista em Herodes, é a original, a que provocara tantos e tão horríveis sofrimentos a Jesus Cristo. A relíquia passa a merecer todos os cuidados, cuidados até em excesso.

O livro envereda por uma longa descrição da reconstituição dos momentos da paixão e após esta reconstituição, finalmente a volta para casa. Teodorico alimenta, inclusive, uma grande preocupação, a de que a relíquia seja realmente milagrosa e que aumente o tempo de vida da Titi. Em meio a religiosidade e as farras algo não desejado acontece. Um erro que será fatal. Também os padres, amigos da Titi, todos eles serão agraciados com escolhidas relíquias, especialmente garrafas de água do rio Jordão, águas milagrosas, obviamente.

Na volta, a expectativa em torno da abertura dos pacotes das relíquias é muito grande. Uma solenidade para tal fim é preparada. Primeiro as relíquias menores e depois a da Titi. Agora é que o inesperado acontece e o não desejado se revela. O sobrinho também tivera o cuidado com uma outra relíquia, as roupinhas íntimas de uma menina com quem farreara e das quais devidamente se desfizera. Mas na hora da abertura, em vez da cora de espinhos, são elas que aparecem e toda uma vida estoica e sacrificada se esvaiu. Jesus Cristo passa a ser o herdeiro único.

Para Teodorico sobram algumas relíquias para serem vendidas e com as quais ganha o sustento, que ele agora tem que prover. Como astuto bacharel, percebe que ninguém confere a autenticidade das relíquias e passa a se dedicar ao ramo. As águas do rio Tejo quase são insuficientes, transformadas em águas milagrosas do rio Jordão. O negócio é promissor.

Finalmente chega a notícia da morte da Titi e a curiosidade em torno do seu testamento. Tudo foi dividido entre os padres representantes de Jesus Cristo. Para o sobrinho, nada. Nada, não. Para ele foram confiados os velhos óculos da Titi, certamente para melhor enxergar toda a sua vida de hipocrisia.

O livro foi escrito em 1887 e causou grande escândalo junto aos meios católicos em Portugal. Quem não quiser ler todo o livro, sugiro a leitura da parte final, a quinta parte, em que Teodorico assume a sua vida real, já não mais aspirando a fortuna da tia. Acabara-se a farsa de sua hipocrisia. Um belo retrato de uma época. O livro foi lido em pequenos intervalos nos hotéis e nas intermináveis horas de voo.