terça-feira, 30 de junho de 2020

O som e a fúria. William Faulkner. Nobel de literatura - 1949.

Não sei exatamente como cheguei ao livro de William Faulkner, O som e a fúria. Creio ter sido por uma passagem de O homem medíocre, do ítalo argentino José Ingenieros. Numa rápida consulta, vi que Faulkner era Nobel de Literatura e que esta era a sua obra principal. O tema me interessou. Uma família decadente do sul dos Estados Unidos. Agora vem os complicadores. Não gostei da leitura e só não a interrompi por ser extremamente persistente, teimoso mesmo. Depois eu explico.
Edição da Companhia das Letras. 2019.

O livro tem a assinatura de sua escrita - como Nova York, outubro de 1928. Já o autor, nasceu em 1897 e morreu em 1962. O Nobel foi ganho no ano de 1949. O livro está dividido em quatro partes, anunciadas por diferentes datas: I. 7 de abril, 1928; II. 2 de junho, 1910; III. 6 de abril, 1928; IV. 8 de abril, 1928. A partir de 1946 ganhou um apêndice: Compson 1699-1945. Esse apêndice é bem esclarecedor e sugiro que seja lido antes do início da leitura do livro. Ali estão as vidas dos principais personagens envolvidos na narrativa. Da orelha da contracapa retiro dois parágrafos:

"Publicado em 1929, quando William Faulkner tinha apenas 32 anos, O som e a fúria é uma epopeia do Sul. Ao narrar as agruras dos Compson, uma família do Mississipi no auge de sua desagregação, Faulkner sintetiza a ruína de um mundo e de um grupo social. Mas não só. O passado aqui é o grande tema, que retorna sempre e, principalmente, não se ordena segundo a "afirmação redonda e idiota do relógio".

Inovador da forma, Faulkner estilhaça a perspectiva clássica do tempo, sobretudo na seção narrada pelo ponto de vista de Benjy, que "nasceu bobo" - personagem que representa a alusão ao título, extraída da passagem de Macbeth em que a vida é definida como 'uma história cheia de som e fúria, contada por um idiota e que não significa nada'. Com seus arroubos de ódio e crueldade, lampejos de esperança e a constante contaminação do real pelo delírio, O som e a fúria é uma obra-prima incontornável, que não perde sua atualidade e segue a ecoar, como o grito de Benjy no fim do romance, 'uma agonia sem olhos e sem língua; puro som".

Importantes esclarecimentos são trazidos pelo tradutor. Ao final do livro, Paulo Henriques Britto faz duas críticas ao livro a partir de Harold Bloom. Vejamos: "A primeira é que o impacto do Ulysses de Joyce sobre o romance de Faulkner é um tanto óbvio; em particular por conta da voz de Quentin, o protagonista da segunda parte, que 'é, de modo excessivamente nítido, a voz de Stephen Dedalus'. Poderíamos acrescentar que, além do fluxo de consciência, um outro importante recurso joyciano foi utilizado no livro: o leitor só recebe as informações necessárias para compreender boa parte do que lhe é apresentado bem depois das passagens que elas finalmente esclarecem, o que torna a releitura de toda a obra uma exigência fundamental. Em defesa de Faulkner, seria possível argumentar que, tendo O som e a fúria sido publicado apenas cinco anos depois do romance de Joyce, o próprio fato de ter o romancista norte-americano lido, assimilado e emulado com sucesso a obra do irlandês em tão pouco tempo indica o quanto ele estava atento para o que havia de mais avançado em matéria de ficção e preparado para enfrentar o desafio.

A segunda crítica é talvez a mais severa, e já ocorreu a outros leitores - Bloom cita Hugh Kenner, e eu próprio tive esta impressão a primeira vez que li o livro: há um certo descompasso entre a sofisticação técnica do stream of consciousness adotado por Faulkner e a substância francamente melodramática e folhetinesca do enredo. No contexto do Ulysses - uma narrativa em que muito pouco do 'romanesco' acontece - a ourivesaria estilística de Joyce parece perfeitamente adequada. Afinal, não há suspense, intrigas, revelações, conflitos que fervilham e por fim explodem, nada ou quase nada da maquinaria normal de uma narrativa ficcional extensa; é simplesmente a linguagem virtuosíssima de Joyce que sustenta o interesse do leitor. Mas numa história que contém uma castração, um suicídio, uma acusação de pedofilia, um caso de retardo mental grave, desfalques de um roubo, uma fuga no meio da noite, uma perseguição implacável, amores incestuosos e ódios tremendos no seio de uma família decadente, o leitor pode se perguntar com razão se as descontinuidades cronológicas, a opacidade dos monólogos interiores e as demais dificuldades criadas pelo autor - como, por exemplo, o fato de dois personagens de sexos diferentes terem o mesmo nome, ou de um mesmo personagem aparecer ora com um nome, ora com outro - não constituiriam excessos dispensáveis".

O tradutor faz uma outra interessante observação: "E, no entanto, feitas essas ressalvas, o fato é que O som e a fúria se tornou um clássico, um livro que resiste às críticas, sustenta releituras e apaixona sucessivas gerações de leitores". Concordo com a necessidade da releitura. Creio que agora eu estaria mais preparado para a sua leitura. Mas essa é uma tarefa que eu deixo para os especialistas. Li o Ulysses de Joyce. Mas foi em grupo, com a ajuda de um especialista.

quarta-feira, 24 de junho de 2020

Cyrano de Bergerac. Edmond de Rostand.

Cheguei a Cyrano de Bergerac, de Edmond Rostand, por várias citações encontradas no livro do ítalo argentino José Ingenieros, O homem medícre. Pelo mesmo livro também cheguei a Tartufo de Molière, que ainda não li. Cyrano de Bergerac é uma obra do romantismo francês, já em tempos de realismo, mas que trouxe grande consagração ao seu autor. Cyrano é um personagem real, retratado pelo olhar de Rostand. Vejamos então primeiramente quem foi o Cyrano.


Ele nasceu em 1619 e morreu em 1655. Foi escritor e soldado, constantemente envolvido em duelos, mais de mil, nos contam as más línguas. Por se envolver nesses duelos perdeu a mesada que lhe era dada pelo seu pai. Era contemporâneo de Molière (1622-1673). Cyrano se tornou famoso pelo seu nariz, que era enorme. Esse fato desarticulou a sua vida amorosa e é peça fundamental para a compreensão da obra de Rostand.

 Já o autor, Edmond Rostand nasceu em 1868 e morreu em 1918 e, como já vimos, pertenceu à escola do romantismo. A peça estreou em Paris, em dezembro de 1897, com enorme sucesso de público. Ela pode ser vista como uma comédia heroica, meio trágica. A peça se desenvolve em cinco atos. O seu sucesso no teatro também a levou ao cinema.

A síntese da peça está na contracapa do livro da edição da Martin Claret, que tem tradução de Regina Célia de Oliveira. Lemos o seguinte: "Cyrano de Bergerac, a imortal criação de Rostand, é a história do herói romântico, de nobres sentimentos, mas complexado por sua feia figura, que por isso renuncia ao amor da bela Roxane, e ajuda um amigo, Christian, a conquistá-la por meio das palavras, ensinando-lhe poesia, frases de espírito, e até falando por este, escondido na escuridão".

A peça se desenvolve em cinco atos: No primeiro temos a representação do Palácio de Bourgogne, no segundo, a rotisseria dos poetas (do cozinheiro e confeiteiro Ragueneau), no terceiro, o beijo de Roxane (conseguido ou arrancado através de doces palavras que Cyrano produziu para o seu amigo Christian), o quarto, os cadetes da Gasconha (Christian era um deles) e o quinto, A Gazeta de Cyrano, onde se desenha o final da peça, dando o destino aos diferentes personagens.

Do quinto ato selecionei três passagens, que nos dão uma bela ideia da peça. A primeira é um réplica de Cyrano, a Roxane quando ela se diz culpada pela sua infelicidade.

"Tu? ... não digas isso!
Eu desconhecia a doçura feminina. Minha mãe
Não me achou bonito. Irmã, não tive.
Mais tarde, o olhar de escárnio de uma amante temi.
Devo-te, no mínimo, por ter tido uma amiga.
Graças a ti, um vestido passou em minha vida (Página 262).

O escárnio de uma amante era em função da sua feiura, do tamanho do seu nariz. O segunda passagem está na página anterior quando Roxane já sabe que os versos e as cartas não eram de Christian mas de Cyrano e em que um outro personagem lhe diz que até Molière o havia plagiado. A estes elogios de brilhantismo ele reage:

"Sim, minha vida
Foi ser aquele que sopra - e que olvidam!
A Roxane:
Lembras da noite em que Christian te falava
Sob o balcão? Pois então, toda minha vida é aquilo:
Enquanto oculto pelo escuro eu permanecia,
o beijo da glória era o outro que colhia!
Justiça seja feita e, às portas de minha morte, reconheço:
Tem inteligência, Molière, e Christian era belo"! (Página 261).

A terceira passagem é o delírio final de Cyrano:

"Acho que ela repara...
Em meu nariz essa perversa ousa reparar!
Ele ergue a espada
O que dizes?... Que é inútil?... Sei disso!
Mas não se luta na esperança do êxito!
Não! não! quando é inútil é ainda mais belo!
- Quem são todos esses? São quase mil?
Ah! eu os reconheço, meus velhos inimigos!
A mentira,
Golpeia o ar com a espada
Que eu faça um pacto?
Jamais, jamais! - Ah! Ignorância, aí estás!
- Sei muito bem que no fim hão de vencer-me;
Pouco importa: lutarei! lutarei! lutarei!" (Página 265). 

Com certeza, um tributo à sensibilidade, ao poder da comunicação e da expressão dos sentimentos. Da vitória da sensibilidade sobre a beleza física. Faz jus à coleção "A obra prima de cada autor".






sexta-feira, 19 de junho de 2020

Guerra e Paz. Leon Tolstói. Volume I.

Tempos de quarentena. A perspectiva da necessidade de ficar em casa é muito pior do que o fato de efetivamente não sair. Parece que aí é que dá vontade mesmo. A minha melhor companhia nesses tempos de solidão são os livros. E como tem que ocupar o tempo mesmo, grandes projetos de leitura. O projeto da vez foi Guerra e Paz de Leon Tolstói, uma quase unanimidade universal, na consagração de sua obra como sendo uma das maiores da literatura universal. Terminei o primeiro volume, faltam mais três.
Guerra e Paz - uma das obras maiores da literatura universal.

Optei pela edição da L&PM, em quatro volumes, com apresentação de Ivan Pinheiro Machado e tradução de João Gaspar Simões. Para o início dessa resenha tomo os dois primeiros parágrafos da apresentação, que tem um belíssimo título: "O grande livro da paz". Veja dados biográficos de Tolstói. http://www.blogdopedroeloi.com.br/2014/01/tolstoi-biografia-rosamund-bartlett.html

"Guernica de Pablo Picasso está para o povo espanhol assim como Guerra e Paz de Leon Tolstói está para o povo russo. Ambos, na sua linguagem - pintura e literatura - atingiram um patamar de excelência artística alcançado apenas por um punhado entre milhões de postulantes. Picasso retratou em seu vasto painel a alma, o sacrifício e a grandeza do povo espanhol e, acima de tudo, produziu um símbolo da paz. Tolstói, em seu enorme e magnífico romance, retratou igualmente o sacrifício, o patriotismo e a grandeza do povo russo e, por sua vez, construiu também um monumento à paz.

Guerra e Paz está entre as grandes obras produzidas pelo ser humano, como "Guernica". "David" de Michelangelo, "A Flauta Mágica" de Mozart, "Monalisa" de Leonardo da Vinci. Copioso, às vezes irregular, no seu conjunto de mais de mil e quinhentas páginas ele possui, no entanto, luz própria como os grandes astros. Brilha como um livro maior entre milhões de livros, deslumbra como só uma verdadeira obra de arte é capaz de deslumbrar, e emociona como só as grandes histórias conseguem emocionar".

Depois desses parágrafos introdutórios, Ivan Pinheiro Machado traça um perfil do autor para depois voltar à obra. Vejamos: "Resultado de sua experiência de vida, tanto na corte do tsar como no exército russo, Guerra e Paz é a história das guerras napoleônicas na Rússia de 1805 - quando da vitória de Napoleão na batalha de Austerlitz, enfrentando os exércitos russos e austríacos -, até a retirada de Napoleão da Rússia e o incêndio de Moscou, em 1812.

Pode-se dizer que o projeto de Tolstói pode ter sido inspirado por Balzac. Assim como A comédia humana narrou a vida social e privada da França no primeiro quarto do século XIX, Leon Tolstói traçou com Guerra e Paz um grande e impressionante painel da vida e da resistência do povo russo à invasão do exército de Napoleão entre os anos de 1805 e 1812".

E uma pista sobre o roteiro: "Como fio condutor da história temos a saga de duas grandes famílias aristocráticas interagindo em um meio dominado pelo paradoxo da frivolidade e da iminência da guerra. São mais de quinhentos personagens que contracenam no terror das batalhas, na vida mundana da corte, com suas contradições, paixões avassaladoras, e tipos inesquecíveis. Tolstói descreve com precisão as dificuldades na vida cotidiana e as dramáticas privações durante a guerra que atingia a nobreza e o povo em geral. É admirável o intenso realismo com que o autor descreve o impressionante incêndio de Moscou e a retirada melancólica de Napoleão da Rússia, com seu exército em frangalhos, destruído pelo terrível inverno russo". E, ainda o último parágrafo da apresentação:

"Oficial do exército russo, veterano de várias batalhas, Tolstói conheceu os horrores e a irracionalidade da guerra. E todo o seu pacifismo e seu repúdio às guerras está registrado em Guerra e Paz. Tolstói é também meticuloso ao extremo no que diz respeito à verdade histórica; são absolutamente precisas as descrições das batalhas e as 'participações' de Napoleão, do tsar Alexandre I e do generalíssimo Kutuzov, comandante-geral das tropas russas. A trama ficcional se justapõe aos acontecimentos reais. A frivolidade de Ana Mikailovna, a bravura dos aristocratas André Bolkonski, Nicolau Rostov, a figura fascinante e controvertida do conde Pedro Bezukov, a apaixonante Natasha, a bela e pérfida Helena Bezukov, o ambiente de uma sociedade traumatizada pelo terror da guerra que a tudo destrói e separa os amantes - tudo está em Guerra e Paz, um livro que atravessa os séculos como um clássico humanista que, descrevendo a guerra de maneira magistral, faz a sua mais pungente e eterna condenação". O romance foi escrito entre os anos 1865 e 1869.

Ao final do primeiro volume, a batalha de Austerlitz, a dos três imperadores, já aconteceu. Russos e austríacos tinham certeza absoluta da vitória, mas Napoleão levou a melhor. Creio também que dois personagens irão ganhar força narrativa ao longo dos três volumes seguintes: são eles André Bolkonski e Nicolau Rostov. As maldades de Ana também já apareceram sobremaneira. O livro está dividido em três partes, divididas em pequenos capítulos e alternância entre as intrigas da corte e os horrores da guerra. Antes do início do livro, estão apontados os principais personagens e as famílias a que pertencem e mapas geográficos dos locais em que as tropas se movimentavam. A narrativa é atraente e viva. Que venham os próximos volumes.

quinta-feira, 11 de junho de 2020

Auschwitz vista pelo livro "A bibliotecária de Auschwitz" de Antonio Iturbe..

A bibliotecária de Auschwitz, de Antonio G. Iturbe, apesar do tema trágico, é um livro maravilhoso. Em nenhum momento, por um minuto sequer, os personagens envolvidos perdem a esperança e, a ela, somam a força de vontade e a determinação. Dessa forma, sobraram alguns raros sobreviventes para contar essa história de horrores. Na leitura do livro não tem como não se apaixonar pela menina Dita, a zelosa bibliotecária, encarregada de cuidar dos apenas oito livros que a compunham. Havia ainda uma meia dúzia de livros vivos. Ela era prisioneira do bloco 31, o bloco das crianças de Auschwitz-Birkenau, o bloco familiar. Dou o link da resenha do livro. Deixo a resenha do livro.
http://www.blogdopedroeloi.com.br/2020/06/a-bibliotecaria-de-auschwitz-antonio-g.html
A bibliotecária de Auschwitz. Uma rara história de humanidade, de amor e zelo pela leitura e pelos livros.

Trago comigo, também, desde que o li em 2008, o livro de Primo Levi, Os afogados e os sobreviventes.  Um livro profundamente introspectivo, de reflexões profundas. Nesse post quero apenas  mostrar que os alemães nem sequer  se preocupavam com a questão de que os fatos ocorridos no campo viessem a público. Para isso tinham um dupla convicção: primeiro porque ninguém sobreviveria e, segundo - se contassem, ninguém acreditaria. Vejamos o relato, já no prefácio do livro: "Seja qual for o fim desta guerra, a guerra contra vocês nós já ganhamos; ninguém restará para dar testemunho, mas, mesmo que alguém escape, o mundo não lhe dará crédito. Talvez haja suspeitas, discussões, investigações de historiadores, mas não haverá certezas, porque destruiremos as provas junto com vocês. E ainda que fiquem algumas provas e sobreviva alguém, as pessoas dirão que os fatos narrados são tão monstruosos que não merecem confiança: dirão que são exageros da propaganda aliada e acreditarão em nós, que negaremos tudo, e não em vocês. Nós é que ditaremos a história dos Lager". 

As "concessões" ocorridas no Bloco 31, o das crianças, de Auschwitz-Birkenau, o bloco familiar, foram devidas ao temor de uma fiscalização por parte da Cruz Vermelha e a divulgação de seu relatório junto ao mundo ocidental. O mundo passou a conhecer Auschwitz em função dos relatos de fugitivos e de alguns raros sobreviventes. Muitos ali se "afogaram". Numa rápida consulta, creio que o número mais confiável é o de que ali morreram entre 1,3 e 1,5 milhão de pessoas, entre execuções, fome, exaustão por trabalho e doenças. O objetivo desse post não é o de dar um relato amplo sobre o campo, mas vê-lo a partir do livro de Iturbe. O faço a partir  de dois apêndices: Etapa final e que fim levaram. Eis o relato:

"Auschwitz I tem um estacionamento para ônibus interurbanos e uma entrada como a de um museu. Fora um antigo quartel do exército polonês, e suas agradáveis construções retangulares de ladrilho, separadas por amplas avenidas pavimentadas em que os passarinhos ciscam, não mostram à primeira vista os sinais do horror. Há, porém, vários pavilhões em que se pode entrar. Um deles foi preparado como se fosse um aquário: atravessa-se um corredor escuro e de um lado e de outro há imensos aquários iluminados. Lá dentro há sapatos gastos, montões, milhares deles. Duas toneladas de cabelo humano que formam um mar tenebroso. Milhares de óculos quebrados, quase todos redondos, como os do professor Morgenstern.

Em Auschwitz II-Birkenau, a três quilômetros de distância, ficava o campo familiar BIIb. Hoje em dia, resta a fantasmagórica torre de vigilância da entrada do Lager, com um túnel na base, para que, a partir de 1944, a ferrovia fosse até lá. Os barracões originais foram queimados depois da guerra. Há alguns barracões reconstruídos em que se pode entrar. São estábulos de cavalos que até limpos e ventilados se mostram sombrios. Depois dessa primeira linha de barracões no que seria o campo de quarentena, abre-se um imenso descampado que era ocupado pelo resto dos campos. Para ver o lugar ocupado na época pelo BIIb, é preciso deixar a rota das visitas guiadas, que não passa das réplicas dos barracões da primeira fileira, e margear todo o perímetro. É preciso ficar sozinho. Caminhar sozinho por Auschwitz-Birkenau significa suportar um vento muito frio que traz os ecos das vozes dos que ficaram ali para sempre e fazem parte do barro que pisamos. Do BIIb, resta apenas a porta metálica de acesso ao campo e uma imensa solidão onde mal cresce o mato. Restam apenas cascalhos, vento e silêncio. Um lugar agradável ou espectral, dependendo dos olhos que o veem". Vale lembrar que no Bloco 31 ficavam as crianças, filhos dos judeus de Praga. Os pais ocupavam outros blocos, separados em masculinos e femininos. Encontros eram permitidos. Antes de virem para Auscwitz-Birkenau, já haviam sido confinados no gueto de Terezín, para onde foram levados, depois de serem expulsos de Praga. É sobre eles que versa o livro.

Da parte "que fim levaram", vou dar apenas os nomes dos personagens nazistas. Ou eram chefes ou personagens do romance/ficção: Elisabeth Volkenrath: Foi da SS. Ela trabalhou em Auschwitz e depois exerceu cargos de chefia em Bergen-Belsen. Rudol Höss: Foi o comandante do campo. Os poloneses o enforcaram em Auschwitz I, onde o patíbulo de seu enforcamento pode ser visitado. Adolf Eichman: Foi um dos ideólogos da chamada "Solução Final", a da execução dos judeus. Sua história é conhecida pelo livro de Hannah Arendt, Eichmann em Jerusalém. Hans Schwarzhuber: Foi o comandante do bloco masculino de Auschwitz-Birkenau. Depois de julgado, morreu enforcado. Joseph Mengele: O famoso doutor morte, cuja história também é mais conhecida. O livro também dá o destino dos sobreviventes do Bloco familiar de Auschwitz-Birkenau.

Os rápidos olhares sobre Auschwitz também falam de Auschwitz III.  Todo o complexo de Auschwitz, seguramente é um dos lugares mais sombrios do mundo, símbolo maior da barbárie, da imbecilidade e insensatez humana. Se localiza ao sul da Polônia, em Oswiecim, nas proximidades de Cracóvia.



terça-feira, 9 de junho de 2020

A bibliotecária de Auschwitz. Antonio G. Iturbe.

Um dia, ao postar no Facebook, uma chamada para a resenha no blog do notável livro de Éric Vuillard, A ordem do dia, sobre a adesão dos grandes líderes da indústria alemã ao nazismo, recebi, nos comentários, a indicação para esse livro sob a forma de pergunta: Você conhece A bibliotecária de Auschwitz? A pergunta/comentário tinha a autoria de Marina Machado, ex aluna do curso de Direito e amiga no face. Como sempre considero muito as indicações de leitura e como não conhecia o livro, fui à compra e à leitura.
Deixo a resenha do livro de Vuillard: http://www.blogdopedroeloi.com.br/2020/05/a-ordem-do-dia-eric-vuillard.html
A bibliotecária de Auschwitz é uma dádiva para a humanidade.

Uma surpresa e uma estranheza. Como eu não conhecia este livro! Tenho algumas hipóteses. Fiquei também surpreso ao não encontrar nenhuma referência para ver se o livro foi, ou não, levado ao cinema. Ao que tudo indica, não.  O livro é magnífico, apesar de toda a tragédia do tema. E, ainda, para ficar no campo das surpresas, a narrativa do livro não termina em Auschwitz, mas em Bergen-Belsen. Eu conheci esse campo de concentração em 1995. Essa visita me perturbou muito. Foram várias noites sem dormir direito. Em 2019 eu conheci Dachau em visita guiada. O guia teve que chamar a atenção dos turistas, em algazarra, sobre o significado dessa visita.
1995. Em frente a Bergen-Belsen. Carl, um funcionário aposentado da VW, nos proporcionou essa visita. Nesse campo morreram as irmãs Anne e Margot Frank.

Sobre Auschwitz, li dois dos livros de Primo Levi. É isto um homem e Os afogados e os sobreviventes. Duríssimas reflexões sobre o maior e mais trágico dos campos - com a característica, para além do campo de concentração, ser também um campo de extermínio, para a execução da "solução final", adotada na Conferência de Wansee. Também uso à exaustão o texto de Adorno, contido no livro Educação e emancipação, "Educação após Auschwitz". É intrigante a questão que Adorno levanta, já na primeira frase do texto: "A exigência que Auschwitz não se repita é a primeira de todas para a educação". E lamenta que tão poucos se preocupem com o tema.

Bem, vamos ao livro A bibliotecária de Auschwitz - um romance baseado numa história real, do jornalista cultural espanhol, Antonio G. Iturbe. A primeira edição data de 2012. A edição que eu li é da Harper Collins, de 2020. A tradução é de Dênia Sad e tem publicação, como lemos na orelha do livro, em onze países.

Começo a resenha pela frase de abertura do livro: "Enquanto durou, o bloco 31 (no campo de extermínio de Auschwitz) abrigou quinhentas crianças  e vários prisioneiros conhecidos como "conselheiros", e, apesar da estrita vigilância a que estava submetido, contou, contrariando todos os prognósticos, com uma biblioteca infantil clandestina. Era minúscula: consistia em oito livros, entre eles Uma breve história do mundo, de H. G. Wells, um livro didático russo e outro de geometria analítica [...]. Ao final de cada dia, os livros, com outros tesouros, tais como remédios e alguns alimentos, eram confiados a uma das meninas mais velhas, cuja tarefa era escondê-los toda noite num lugar diferente". Alberto Manguel, A biblioteca à noite. Essa frase do livro de Manguel foi o mote para o livro. A partir daí, Antonio Iturbe começa o seu trabalho de pesquisa, que mistura à ficção e nos dá esse maravilhoso presente que, apesar dos horrores da narrativa, é uma grande história de amor, uma história de amor aos livros e à leitura. É também uma história de profunda solidariedade humana.

Da orelha, tomo o indicativo da narrativa, sem contudo entregá-la: "Hirsch e Dita são personagens reais em meio a um relato digno de filmes de terror. São pessoas que não permitiram que o medo e a incerteza tirassem das crianças o direito  de aprender que 'abrir um livro é como abrir uma janela à liberdade'". É evidente que Dita e Hirsch são os personagens do romance, escrito entre a realidade e a ficção. Na contracapa lemos um pouco mais: "Uma garota de 14 anos. Um professor. Oito livros. Esperança. Em plena Segunda Guerra Mundial, no maior e mais cruel campo de concentração do nazismo, cerca de quinhentas crianças convivem todos os dias com a morte e com o sofrimento. No pavilhão 31, de vez em quando uma janela é aberta para férias. Obra de Fred Hirsch, o professor que consegue convencer os alemães a deixá-lo entreter as crianças. Desta forma, garante ele aos nazistas, seus pais - judeus - trabalhariam bem melhor. Os alemães concordam, mas com uma condição: seria terminantemente proibido o ensino de qualquer conteúdo escolar no local. Mal sabiam eles o que a jovem Dita guardava na barra da saia: livros. Baseado na história real de Dita Dorachova, A bibliotecária de Auscwitz é o registro de uma época triste da história, mas também o relato de pessoas corajosas que não se renderam ao terror e se mantiveram firmes na luta por uma vida melhor, munindo-se de livros".

A narrativa transforma a menina Dita num amor de criança, com sua dedicação à causa, raramente encontrada em pessoas adultas. Ela está no Bloco 31 de Auschwitz-Bierkenau, ou Auschwitz II. O 31 é o bloco das crianças, dentro do campo familiar. Ele existiu como fator de propaganda ou de contrapropaganda, caso os nazistas fossem obrigados a receber os observadores da Cruz Vermelha. O mundo desconhecia o que se passava nesse campo de morte. Muitas fugas eram empreendidas para que os fatos fossem dados ao conhecimento do mundo. Dita procurava fugir dos olhos, sempre atentos, do doutor Mengele, que vivia a observar as crianças, selecionando algumas, que considerava  mais interessantes para os seus "experimentos científicos". Ela descuidava dessa vigilância quando se tratava de zelar pela guarda dos livros a ela confiados. Dita estava presa junto com o pai e a mãe. Embora separados, havia a possibilidade dos encontros. Dita somava a esperança com a sua força de vontade e determinação. E uma constatação: a esperança faz parte do ser humano, integra a sua natureza. Quando se vislumbrava, nem que fosse apenas um minuto de futuro pela frente, o ser humano coabitava com a esperança. Que força extraordinária e deslumbrante, que nem a escuridão conseguia apagar.

Dita e Hirsch eram jovens de famílias judias checas. Moravam em Praga. De Praga foram levados ao gueto de Terezín e, depois, para o campo de extermínio. Ali eram submetidos constantemente aos registros e ao controle para ver - se iam para a fila dos que ainda tinham forças para o trabalho - ou, já sem essa força, para então serem encaminhados para as filas da morte. O livro está estruturado em 32 capítulos, que ocupam 366 páginas. Além dos capítulos tem um epílogo, dois adendos, sob os títulos "etapa final" e "que fim levaram". O "etapa final" é profundamente revelador.

Acabo de ver um comentário de um livro sob o título A cultura inculta, na tradução brasileira e "o fechamento da mente americana", no inglês original, de Allan Bloom. O comentário atribui muito das tragédias atuais à ausência de leituras significativas, de livros seminais. A bibliotecária de Auschwitz, com certeza, é um livro que preserva o humano em nós.

Eu volto com outro post para apresentar Auschwitz, a partir do livro. Não havia apenas um campo em Auschwitz. As empresas alemãs auferiram enormes lucros nesses campos, como pode ser visto no livro de Vuillard. O livro fala de Auschwitz I e de Auschwitz-Birkenau ou Auschwitz II. O livro também tem muitas reminiscências, tempos de lembranças, de tempos felizes. E como se trata de um livro de amor à leitura e aos livros, retiro dele uma frase, selecionada com pinça de ouro. Dita lembra da leitura de A montanha mágica. Lá, Hans Castorp se encanta com uma jovem russa, Madame Chauchat. Aproveita o carnaval para vencer sua timidez e conversar com ela. Dela recebe uma resposta fulminante que talvez ajude a explicar algo da "essência" alemã: "Vocês, alemães, amam mais a ordem do que a liberdade. A Europa inteira sabe disso". (página 144).

quarta-feira, 3 de junho de 2020

A fábula do sapo e do pirilampo.

Ao ler o belo livro O homem medíocre, do ítalo argentino José Ingenieros, deparei com essa fábula do sapo e do pirilampo. Não vou entrar aqui no mérito do livro. Já fiz isso em outro post. Ele aponta as características daquilo que ele considera como sendo os defeitos morais constituintes da mediocridade. A fábula se encontra no V capítulo do livro, que tem por tema a inveja. Com a fábula o autor encerra um subtítulo sobre a paixão dos medíocres. O livro de Ingeniores data do ano de 1913. Dou o link da resenha.
http://www.blogdopedroeloi.com.br/2020/06/o-homem-mediocre-jose-ingenieros.html
O homem medíocre,da Editora do Chaim. A fábula se encontra na página 141.

Eis a narrativa da fábula: "Toda a psicologia da inveja está sintetizada numa fábula, digna de ser incluída nos livros de literatura infantil. Um sapo pançudo coaxava em seu pântano quando viu um pirilampo resplandecer no alto de uma pedra. Pensou que nenhum ser tinha o direito de exibir qualidades que ele próprio não possuiria jamais. Mortificado pela sua própria impotência, pulou sobre ele e cobriu-o com seu ventre gelado. O inocente pirilampo atreveu-se a perguntar: Por que me cobres? E o sapo, congestionado pela inveja, só conseguiu interrogar por sua vez: Por que brilhas?"

Moral da história! Ah, não precisa! Está mais do que evidente. A fábula está muito bem colocada num capítulo que trata sobre a inveja.  Mas eu queria saber mais. Queria saber o autor e,.... No Google encontrei mais e fiquei satisfeito. No aprendendocriando.blogspot.com encontrei a fábula em forma de verso, e o pirilampo virou vaga-lume. Está assim:

"Entre o gramado do campo
Modesto, em paz, se escondia
Pequeno pirilampo
Que sem o saber, luzia.

Feio sapo, repelente
Sai do córrego lodoso,
Cospe e baba, de repente
Sobre o inseto luminoso.

Pergunta-lhe o vaga-lume:
- "Por que vens me maltratar?"
E o sapo com azedume
- "Por que estás sempre a brilhar?"

O blogspot tem a assinatura de Amara Pedrosa, que é bióloga, e como tal apela para o politicamente correto: "Como assim, feio sapo, repelente". Com toda a razão. Mas Amara nos dá uma outra informação importante: a fonte. A fábula está contida no livro de João Ribeiro, com o seguinte título: Grande fabulário do Brasil. João Ribeiro tem uma conhecida História do Brasil. Em tempos de tanta inveja, julguei oportuno publicar. Em outra versão o sapo virou uma serpente, mas a moral da história é a mesma.


segunda-feira, 1 de junho de 2020

O homem medíocre. José Ingenieros.

Sou facilmente induzido a leituras, dependendo das pessoas que me indicam livros. Devo também dizer, que o contrário também se dá. Se admiro uma pessoa e esta me indica leituras, compro e leio os livros recomendados; se não as admiro, simplesmente esqueço a sugestão recebida. Devo confessar também, que esse meu método pode induzir a erros. Foi o que aconteceu com o livro O homem medíocre, do ítalo-argentino José Ingenieros.
A edição de O homem medíocre. Editora do Chaim.

O título do livro também contribuiu para essa espécie de aversão inicial ao livro. O homem medíocre me induziu a uma ideia de sermão, de lições de moral, de pregação ou de catecismo a ser seguido. No meu imaginário vi desfilarem as virtudes a serem seguidas, exemplos a serem imitados e vícios a serem evitados. Nada mais falso. O livro, acima de tudo, é um convite à formação, à formação permanente, uma busca incessante pelo mais, pela transposição de obstáculos. É a inquietação do gênio.

Na última vez em que o professor João Wanderley Geraldi esteve em Curitiba, para participar de trabalhos de formação, ele me deixou o texto de sua participação no Congresso Internacional - 50 anos depois da Pedagogia do oprimido, promovido pelo Instituto Paulo Freire de Portugal, na Universidade do Porto. O texto tem por título: Sala de aula: espaço de "inéditos viáveis". O texto tem duas frases em epígrafe. Uma, de José Ingenieros e outra, por óbvio, de Paulo Freire. Apresento as duas.

"Seria possível a continuidade social, sem essa compacta massa de homens puramente imitativos, capazes de conservar os hábitos rotineiros que a sociedade lhes infunde, mediante a educação?" (José Ingenieros. O homem medíocre.  Vamos a segunda:

"Talvez se pense que, ao fazermos a defesa deste encontro dos homens no mundo para transformá-lo, que é o diálogo, estejamos caindo numa ingênua atitude, num idealismo subjetivista. Não há nada, contudo, de mais concreto e real do que os homens no mundo e com o mundo. Os homens com os homens, enquanto classes que oprimem e classes oprimidas. O que pretende a revolução autêntica é transformar a realidade que propicia este estado de coisas, desumanizante dos homens". Paulo Freire. Pedagogia do oprimido.

Busquei esse texto para dizer que a citação de Ingenieros que o professor Wanderley fez, me motivou definitivamente para ler o livro. Indicações do professor Wanderley estão sempre, para mim, no primeiro caso, no caso dos livros a serem lidos. Também quero dizer que a frase em epígrafe não é uma crítica ao escritor ítalo-argentino, mas uma contestação que o mesmo faz aos sistemas educacionais. Aliás, possivelmente, no livro de Ingenieros, a maior crítica ou definição do que seja um medíocre, seja esta de "homens imitativos". São eles a essência da mediocridade.

Mas, já que temos as duas citações, devo dizer que ao longo da leitura de O homem medíocre, por várias vezes me lembrei de Paulo Freire, especialmente, no que se refere ao "ser mais" como o objetivo essencial da educação e da própria vida dos seres humanos. Bem, acho que já entramos no terreno das sempre necessárias contextualizações. José Ingenieros é bem anterior a Paulo Freire. Ele nasceu em Palermo, na Sicília em 1887 e faleceu em Buenos Aires em 1925, com apenas 48 anos de idade. O livro foi escrito em 1913. Em sua biografia lemos que se tornou farmacêutico e médico e que na medicina se destacou como neurologista e psiquiatra. Tornou-se professor nessas áreas, que foram também o seu campo de estudos e de trabalho: a neurologia, o comportamento de alienados, a psiquiatria e a criminologia. A partir de 1920 deixou a docência e se dedicou à política, combatendo o imperialismo, militando no socialismo, se decepcionando com o "socialismo de Estado", abraçando então o anarquismo.

Isso transparece fortemente em sua obra, especialmente no último capítulo de O homem medíocre,  em que fala do clima da genialidade e de sua admiração pelo presidente argentino Sarmiento. Mas o grande tema do livro é um tratado sobre a mediocridade. Ele o escreve com o chicote na mão, fustigando os homens medíocres, o comum da humanidade. No prólogo do livro, da editora do Chaim, lemos sobre a origem do livro. São as suas lições (aulas) sobre psicologia do caráter, ministradas na Faculdade de Filosofia da Universidade de Buenos Aires, ao longo do ano de 1910, ganhando depois forma de livro. Tomo ainda um parágrafo desse prólogo:

"O autor deste livro pretende tratar sobre os defeitos morais que se chamam rotina, hipocrisia e servilismo, denunciando-os com a intenção de ser útil aos jovens que estão na idade de evitá-los, para que possam formar ideais e enobrecer sua vida. O autor já possui suficientes provas de que o seu esforço não foi estéril, porém, mais, mais do que na eficiência da palavra, acreditou no seu exemplo: desde que ministrou na Faculdade essas lições, terminando sua "carreira" exterior - a uma idade em que todos se preparam para iniciá-la -, viveu de acordo com seus princípios, renunciando aos benefícios de privilégios e costumes que considera nocivos. Dizem, com rigorosa verdade, que indivíduos mais desprezíveis são os predicadores de moral que não ajustam sua conduta a suas palavras. O autor sabe que só poucos moralistas poderiam escrever  o mesmo livro sem que tremessem as mãos".

Antes de mostrar a estrutura do livro queria expressar ainda algumas vivências que eu tive ao longo da leitura. Em primeiro lugar eu senti a presença de Nietzsche. Aquele "torna-te quem tu és", é realmente o extremo oposto para a vida medíocre. Não tenha mestres, não copie ninguém, forjar o ser que se pode ser. Teria também restrições a fazer, como o capítulo sobre a velhice niveladora. Também o seu conceito de igualdade. Sei que é um tema de difícil abordagem. Igualdade jamais poderá ser sinônimo de uniformidade. Sei também o quanto é difícil conciliar o termo singularidade com o da igualdade. Para mim Marx foi preciso quando falou: para cada um, de acordo com as suas necessidades e de cada um de acordo com as suas possibilidades. Entre essas diferenças, creio ser possível construir a igualdade. Para mim também o livro foi um grande manual de leituras. Quanta erudição: Anotei, no mínimo, uma meia dúzia de livros para posterior leitura. Mas não se trata apenas de um guia de leitura, o livro pode ser positivamente visto como um guia para a própria vida, sem cair nos nivelamentos, tão combatidos.

O livro tem uma pequena apresentação, afirmando o valor atemporal e universal das lições, um pequeno prólogo, que contextualiza o livro. e uma introdução maravilhosa. Segue o corpo da obra, com oito capítulos. Cada capítulo tem o seu título, subtítulos e um quadro ilustrativo de cada tema. Essas ilustrações tem a sua representação junto ao capítulo e, ao final do livro, a indicação de sua fonte. Eis a introdução: - A moral dos idealistas. Seis tópicos são abordados: 1. A emoção do ideal; 2. o idealismo baseado na experiência; 3. O caráter idealista; 4. O idealismo romântico; 5. O idealismo estoico; 6. Símbolo. Seguem os capítulos.

Capítulo I. O homem medíocre: 1. "Aurea mediocritas"; 2. Homens sem personalidade; 3. O homem medíocre; 4. Conceito social de mediocridade; 5 O espírito conservador; 6. Perigos sociais da mediocridade; 7. A vulgaridade. Capítulo II. A mediocridade intelectual. 1. O homem rotineiro; 2. Os estigmas da mediocridade intelectual; 3. A maledicência: uma alegoria de Boticelli; 4. O caminho da glória. Capítulo III. Os valores morais. 1. A moral de Tartufo; 2. O homem honesto. 3. Os desertores da honestidade. 4. A função social da virtude. 5. A pequena virtude e o talento moral; 6. O gênio moral: a santidade. Capítulo IV. O caráter medíocre. 1. Homens e sombras; 2. A domesticação dos medíocres; 3. A vaidade; 4. A dignidade.

Capítulo V. A inveja. 1. A paixão dos medíocres; 2. A psicologia dos invejosos; 3 Os roedores da glória; 4. Uma cena dantesca; seu castigo. Capítulo VI. A velhice niveladora: 1. Os cabelos brancos; 2. As etapas da decadência; 3. O fracasso dos gênios; 4. A psicologia da velhice. 5. A virtude da impotência. Capítulo VII. A mediocracia. 1. O clima da mediocridade; 2. A pátria; 3. A política dos corruptos; 4. Os arquétipos da mediocracia; 5. a aristocracia do mérito. Capítulo VIII. Os forjadores de ideais. 1. O clima da genialidade; 2. Sarmiento; 3. Ameghino; 4. A moral do gênio.

Lembrando, o livro tem a sua construção entre 1910 e 1913. O clima mundial, após as euforias da virada do século, com a relativa distância das guerras, da crença na diplomacia e no progresso, mergulha em profunda depressão com o vislumbrar da proximidade das guerras, causadas pelo imperialismo. No meu imaginário também consegui ver José Ingeniores preparando as suas lições para os jovens de 2020, em meio a um clima de niilismo, de hedonismo individualista sem precedentes e os valores morais afirmados em cima do ter. O que ele não teria a dizer? O imaginário é o grande antídoto à mediocridade.