terça-feira, 29 de dezembro de 2015

Como conversar com um fascista. Márcia Tiburi.

Entre os mais importantes lançamentos editoriais de 2015 figura o livro Como conversar com um fascista - Reflexões sobre o cotidiano autoritário brasileiro, de Márcia Tiburi. O livro é editado pela Record. Márcia Tiburi é gaúcha de Vacaria e a sua formação acadêmica, graduação, mestrado e doutorado foi a Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Atualmente ela é professora na pós graduação da Universidade Mackenzie, da disciplina de Arte e história da cultura. É também colunista da revista Cult.
Como conversar com um fascista. O grande livro de 2015.

O livro tem uma primorosa apresentação de Rubens Casara, que explana sobre o fascismo, a sua origem simbólica e histórica e as principais características do fascista e as razões que recomendam o livro. Jean Wyllys é o responsável pelo prefácio. Ele foca na necessidade de uma educação emancipadora e a contrasta com a real. Apresenta o terrível dado de que hoje temos, na própria universidade, 38% de analfabetos funcionais. Sobre os ensaios da autora destaca a generosidade, afirmando que "este livro é para o que nasce". O corpo do livro é formado por 67 ensaios.

Os ensaios seguem uma ordem lógica perfeita. Os mais importantes são os primeiros e é sobre eles que se assenta o livro. Assim temos: 1. Questões preliminares: experiência política e experiência da linguagem ou o diálogo como desafio. 2. Como conversar com um fascista. A palavra chave para todo o desenvolvimento do fio lógico do livro é o "outro", mesmo que esta palavra não tenha aparecido nos dois primeiros títulos. Mas ela está subentendida, pois, o outro é necessário para o diálogo e fascista é quem não permite aberturas para o diálogo.

Eu trago comigo um livro que tem por título Filosofia para não filósofos. O livro é uma espécie de dicionário, com um verbete para cada uma das letras do alfabeto. Assim para a letra "A", a palavra escolhida é alteridade. Ali se lê a seguinte frase: "Eu sou as relações que vou tecendo com os outros". Esta frase serviria perfeitamente como uma síntese para o livro de Márcia Tiburi. Mas voltamos ao já enunciado, a experiência política como uma experiência de linguagem. Existem dois tipos de linguagem. O discurso e o diálogo. Se eu desconsidero o outro, ou - se com ele me relaciono qual um objeto, a minha relação com ele se dará pelo discurso. Se, ao contrário, eu o considero como um igual e, por ele tenho respeito, estabelecerei com ele a linguagem do diálogo. O diálogo é a linguagem da democracia e o discurso, a do autoritarismo.

O diálogo é sempre questionador e provocativo e se eu estiver disposto a ouvir, eu estarei disposto a aprender. Lembro de outro livro, desta vez de D. Hélder Câmara, O deserto é fértil. Nele se lê: "Se discordas de mim tu me enriqueces". De pensamentos contrários ou opostos surge o plural e o múltiplo. Se faço discursos, o máximo que poderá acontecer é ouvir o eco da minha própria voz. Creio que já dá para termos uma primeira definição de quem é o fascista. Fascista é quem usa unicamente o discurso como linguagem e se fecha completamente ao outro e ao diálogo com ele, para não ser perturbado em sua "verdade". Daí surgem os próximos ensaios. 3. Máquina de produzir fascistas - A origem e a transmissão do ódio. 4. Afeto contagioso... Assim os afetos são, na relação que estabelecemos com o outro, ou positivos ou negativos. Os positivos se manifestam pelo amor e os negativos pelo ódio e, são contagiantes. Formam os ambientes de amor e ódio.

A linguagem do autoritarismo é o discurso e a linguagem da democracia é a do diálogo. A violência do sistema capitalista é incompatível com a democracia e com o diálogo, por isso ele é inerentemente fascista. E assim vão sendo examinadas as principais relações que são travadas em nossa sociedade nos tempos atuais. Por estas categorias são examinados os principais temas que perpassam o espírito autoritário existente em nossa sociedade, como os meios de comunicação, a questão da mulher, do aborto, dos índios, entre outros.
Um livro sobre a perspectiva do outro. O outro como um objeto de conquista.


Entre os últimos capítulos está o de número 66, sob os seguinte título: "A violência hermenêutica e o problema filosófico do outro". Nele se examina o livro de Tzvetan Todorov. A Conquista da América: a questão do outro. Nele se lê algo profundamente ilustrativo com relação ao processo de colonização e também de toda a perspectiva do livro, ou seja, a perspectiva do outro. Assim, sobre a colonização temos "Não se trata para estes aproveitadores europeus, de buscar a verdade, mas de encontrar [...] confirmações para uma verdade conhecida de antemão. Tais homens viajando naquela época  iniciaram em nome de seu saber - um saber suposto por eles mesmos e sua cultura - um processo de 'colonização e destruição dos outros'. O saber era a desculpa para a violência que realizariam em nome da coroa de seu país, do deus de sua religião e, para resumir, da verdade de seu ponto de vista".

Mas como conversar com um fascista, num cotidiano tão autoritário como o brasileiro? Este é o desafio lançado pelo livro. Seria o de provocar pequenas fissuras no pensamento autoritário. Estas fissuras seriam como pequenas aberturas, para nelas lançar a contradição. Uma vez que a contradição encontre um espaço, por mínimo que seja, estará aberto o caminho para a superação. Tarefa difícil, pois uma das principais características do fascista é o seu fechamento hermético em torno de sua verdade. Por isso ele resiste ao pensamento crítico e se fixa em pensamentos prontos, constantemente repetidos, dos quais se forma o que se chama de senso comum. Este senso comum funciona como verdadeiros campos de concentração da mente.

Para ficar mais fiel ao livro deixo os dois primeiros parágrafos da orelha do livro, sob forma de apresentação. "Diante dos riscos do fascismo que vemos todos os dias, nosso desafio é confrontar o fascista com aquilo que para ele é insuportável: o outro. O instrumento? O diálogo, na melhor tradição filosófica atribuído a Sócrates. Metaforicamente, com Basaglia, isso significa vomitar a serpente capaz de conduzir nossas vidas ao fascismo e, o que é ainda mais difícil, ajudar o outro, aquele que identificamos como fascista, a destruir e vomitar a serpente. Talvez esse seja o objetivo do diálogo proposto pela filósofa Márcia Tiburi em suas reflexões sobre o cotidiano autoritário brasileiro.

Neste livro, a autora resgata a política como experiência de linguagem, sempre presente na vida em comum, e investe nessa operação, que exige o encontro entre o "eu" e o "tu', apresentada como fundamental à construção democrática". Um grande livro de filosofia, de política e, sobretudo de ética. Eu o elegi como o livro do ano deste 2015. Apesar do título, um tanto direto, é um belo livro para presentear alguém.

quarta-feira, 23 de dezembro de 2015

O Fascismo. Definição e características.

Li muito ao longo deste ano de 2015. Final de ano é tempo para balanços. Qual teria sido o livro mais impactante do ano? Não teria dúvidas em indicar o livro de Márcia Tiburi Como conversar com um fascista - Reflexões sobre o cotidiano autoritário brasileiro. São pequenos ensaios de filosofia, de política e, acima de tudo, de ética. Alteridade, diálogo, conhecimento e superação são as grandes palavras do livro. Vejo em Márcia Tiburi o brilho da nova geração do pensamento filosófico brasileiro. Ainda ouviremos falar muito dela.
Um livro de muita densidade filosófica, política e ética.

O livro tem uma primorosa apresentação de Rubens Casara, um juiz de direito. Sobre o livro falarei em outro post, para agora me ocupar apenas da apresentação e um pequeno toque para o prefácio, de autoria de Jean Wyllys. Sempre trago comigo a advertência de Adorno, contida em seu desassossegador texto Educação após Auschwitz, "A exigência que Auschwitz não se repita é a primeira de todas para a educação". O que constatamos é  que pouca gente se preocupa com a questão, nos turbulentos dias atuais, tão profundamente impregnados pelo ódio. A intenção do livro é dialogar, inclusive com os fascistas, para que  monstruosidades semelhantes a Auschwitz não se repitam.

Rubens Casara inicia sua apresentação contando uma fábula oriental. Um homem, enquanto dormia, teve a sua boca invadida por uma serpente, que se alojou em suas entranhas. Como consequência, perdeu sua autonomia, pois a serpente o dominava em todas as suas ações. Desta imagem ele passa para o filme O ovo da serpente, de Ingmar Bergman, dizendo que não mais precisamos nos preocupar com o ovo, onde através de fina membrana, a serpente já está perfeitamente delineada, uma vez que ela já está alojada no ventre das pessoas. Ou melhor, ela já está entranhada em nossa cultura e o seu veneno se manifesta por um peçonhento e profundo ódio. Um ódio ao outro, ao diferente.
Sem a aceitação do outro, qualquer projeto humano é possível. Amar as diferenças.

Segue uma explanação sobre a origem do fascismo, em sua terminologia e na história. A palavra vem do latim fascio, de fascis, o feixe de varas. Elas são o símbolo dos magistrados romanos, que usariam de varas para remover de seus caminhos, os obstáculos para os seus intentos, ou como diz Casara, textualmente: "exercício de poder, sobre o corpo do indivíduo que atrapalhava o caminho". É óbvio que os métodos se modernizaram. Soube depois, que as varas forenses derivam deste símbolo.

Historicamente o fascismo está ligado ao ocorrido na Itália, nos tempos de Mussolini. Mas ele não estava sozinho. "Diversos movimentos semelhantes surgiram no pós-guerra com a mesma receita que unia voluntarismo, pouca reflexão e violência contra seus inimigos", afirma Casara. Afirmação esta que já nos serve como uma primeira definição para o movimento. Mas o magistrado continua nesta definição: "Para os seus idealizadores e teóricos, o fascismo era uma ideia política com peso semelhante ao do socialismo ou do liberalismo. O discurso legitimador das práticas fascistas é de que a ideia que leva a essa prática (que em regra não se assume fascista) não teria surgido de abstrações teóricas, mas da necessidade de ação (da vontade de conquista)". O seu sonho é uma fantasia saudosista de retorno à uma pureza e ordem do passado.
Na soma das diferenças, a grande riqueza.

A apresentação segue com a indicação das principais características. Vamos a elas: Ele é uma ideologia fundada na negação. Nega-se, acima de tudo, o conhecimento e, em consequência o diálogo, o grande instrumento da superação da ausência de saber; não suporta a democracia, quando esta é entendida como o meio para a concretização dos direitos fundamentais de todos. A insuportabilidade desta democracia os leva a constantes práticas de violência; advogam um Estado total, ao qual se submetem, querendo também submeter aos outros. Negam a alteridade. O outro, o diferente é um inimigo.

Sempre se apresenta como um fenômeno natural, que lhe permite o recurso ao irracional e ao antirracional, como o emprego da violência para a submissão. Sempre desconfiam do conhecimento pois este pode abalar as suas crenças e os desestabilizar. Querem preservar a ignorância como algo imanente; junto com o ódio ao saber também vem o ódio à liberdade. Por dela abdicarem, também querem impor aos outros a sua abdicação.

A apresentação termina com a convocação para a superação do fascismo em curso na sociedade brasileira. As consequências do fascismo são bem conhecidas. O livro de Márcia Tiburi é um convite à superação, que pressupõe o uso do diálogo, inclusive com o próprio fascista, para que com ele, se  abra um espaço, nem que seja mínimo, para possibilitar a maravilha da contradição e o caminho para a superação. Termino com uma frase de D. Helder Câmara, de um livrinho que me acompanha há muito tempo, O deserto é fértil. "Se discordas de mim, tu me enriqueces".




domingo, 20 de dezembro de 2015

As Pupilas do Senhor Reitor. Júlio Dinis.

Em minhas análises sempre gosto de situar no tempo o que é examinado. No caso, o autor e a obra. Júlio Dinis é um homem da cidade do Porto. Teve vida curta. Cedo foi vitimado pela tuberculose, doença fortemente vinculada à sua família. Nasceu em 1839 e morreu em 1871, com a idade de trinta e um anos. Formou-se em medicina, mas a saúde precária, praticamente, o impediu de exercer a profissão. Lhe sobrou a de escritor, transitando entre o romantismo, o naturalismo e o realismo. As Pupilas do Senhor Reitor, apareceu como folhetim em 1866 e como livro em 1867.
As Pupilas do Senhor Reitor. Da coleção BIBLIOTECA FOLHA.

Júlio Dinis é o pseudônimo de Joaquim Guilherme Gomes Coelho. O seu romance é extremamente popular, sendo assim, de muito fácil leitura. É um romance ambientado em pequena cidade do interior português, na região do Porto. É um romance rural. Como eu também tenho a mesma origem, o ambiente rural, em muitos momentos me senti um próprio personagem. Predomina um forte sentimento moral e o senhor reitor tinha uma autoridade inconteste. Procurei diferenças entre reitor e pároco, ou ainda, vigário, mas não as encontrei. Reitor era para nós, no nosso tempo de seminário, o chefe deste seminário. No caso do romance ele era o pároco ou vigário.

Além do sentimento fortemente moralizador e da autoridade do senhor padre, outros elementos de um romance rural estão fortemente presentes, como a festa popular, como a folheada, ligada ao milho, na qual ocorriam muitos abraços e beijos em noites de luar, que deixavam os olhares do padre extremamente atentos. Ainda outro componente forte era a fofoca, sempre de mãos dadas com a inveja. João da Esquina, o tendeiro era o seu grande mestre.

As pupilas do senhor reitor eram duas meninas, Margarida e Clara. Eram meias-irmãs. Margarida era muito maltratada pela sua madrasta, merecendo toda a pena da irmã. Muito cedo viveram na orfandade, tendo a sua educação sido  entregue ao senhor reitor, na qualidade de tutor. As duas meias-irmãs dividem o protagonismo do romance com os dois filhos de José das Dornas, um abastado proprietário de terras. O nome dos filhos  de José era Pedro e Daniel.

Pedro era forte e permaneceu na roça. Daniel era mais franzino e, por isso, o pai o encaminhou para os estudos, com grandes escrúpulos, ao fazer esta diferenciação. Seguir carreira eclesiástica foi o primeiro intento do pai e que provocou entusiasmo no senhor reitor, que, inclusive, se prontificou para iniciá-lo nos estudos de latim. O menino se atrasava constantemente, até que foi flagrado em namoricos com uma menina, a quem prometeu casamento. Para padre é que não tinha vocação. Em confabulação entre o pai e o padre lhe destinam o curso de medicina.
Júlio Dinis. Uma curta vida e, em consequência, uma curta vida literária.

O tempo se passa na pacata vila, em que todos vão crescendo sem grandes novidades. Pedro se enamora de Clara, com inteira aprovação do pai e do reitor, que já combinavam o casamento. Enquanto isso, na cidade do Porto, Daniel se formava e voltava para a sua vila para concorrer com o médico local, o octogenário Dr. João Semana. Aí começa a confusão e as fofocas. A primeira cliente do Dr. Daniel foi curada com versos apaixonados para a menina trigueira. Quase o obrigaram a casamento. A menina trigueira era Francisca, filha de João da esquina, que como já sabemos, comandava as fofocas.

Para abreviar a história ouçamos José das Dornas falando do Dr. Daniel: "Tem diabo o rapaz! Já vejo que é impossível deixá-lo ficar na terra. Lá me custa que sempre é filho, mas não há outro remédio. Que vá para o Brasil". O que aprontara dessa vez o jovem médico. Não é que inventou namoricos com Clara, a noiva de Pedro, quase provocando uma noite de assassinato e de suicídio. Depois de muita renúncia, sofrimento e tentativa de suicídio, as duas pupilas do senhor foram bem encaminhadas, para bons casamentos. Clara casou com Pedro e Margarida, meio a gosto e a contragosto, casou com Daniel. Lembrando que a menininha que tirara Daniel do caminho do seminário, fora Margarida. 

O romance agradou ao público em cheio. É bom dizer que é um típico romance de ficção, pois pouca coisa tem de real. Os fatos são impossíveis de terem acontecido e quanto a análise psicológica dos personagens, não tem muito rigor e os fatos também aconteceram antes da invenção da psicanálise. Volto a repetir, As Pupilas do Senhor Reitor, é um típico romance de ficção, mas muito gostoso e agradável de se ler.

sexta-feira, 18 de dezembro de 2015

O analfabeto político. Versão de Brecht e a versão atual.


O clima de ódio que estamos atualmente vivendo no cotidiano autoritário brasileiro, junto com a tentativa de desmerecer a política como uma atividade séria, nos faz remeter ao famoso poema de Brecht sobre o analfabeto político. Embora ele seja amplamente conhecido, nunca será demais repeti-lo. Ainda vou pesquisar mais sobre o contexto específico em que ele foi dito. Obviamente ele envolveu o nazismo alemão. Vai aí então o poema:

O analfabeto político é sempre identificado com o burro.

O analfabeto político.

O pior analfabeto
é o analfabeto político.
Ele não ouve, não fala,
nem participa dos acontecimentos políticos.
Ele não sabe que o custo de vida,
o preço do feijão, do peixe, da farinha,
do aluguel, do sapato e do remédio
dependem de decisões políticas.
O analfabeto político
é tão burro que se orgulha
e estufa o peito dizendo
que odeia a política.
Não sabe o imbecil que,
da sua ignorância política
nasce a prostituta, o menor abandonado,
e o pior de todos os bandidos,
que é o político vigarista,
pilantra, corrupto e lacaio
das empresas nacionais e multinacionais.

"A exigência que Auschwitz não se repita é a primeira de todas para a educação". Assim começa o famoso texto de Adorno "Educação após Auschwitz", contido no livro Educação e Emancipação.  Poucos parecem estar lembrados, hoje, de que Auschwitz efetivamente existiu e aconteceu, pois, senão o nosso cotidiano não estaria entranhado de tanto ódio e de tanto autoritarismo. O poema de Brecht, assim, já mereceu algumas atualizações ou, usando o termo italiano, alguns agiornamentos.

O analfabeto político diz odiar a política.


Estou impressionadíssimo com o livro Como conversar com um fascista - Reflexões sobre o cotidiano autoritário brasileiro. O livro é algo raro, uma verdadeira preciosidade. Ele tem uma apresentação de um juiz de direito, Rubens Casara, que fala sobre o fascismo com uma propriedade raras vezes vista. Ainda farei no blog um post especial sobre esta apresentação. Mas, este texto tem sua motivação no prefácio, escrito por Jean Wyllys, em que o deputado faz a atualização do poema de Brecht.


Wyllys parte do princípio de que o analfabeto político atual até participa da política e que "é tão burro que se orgulha e estufa o peito dizendo que odeia a política", mas dela participa por um processo, digamos, de copiar e colar. Antes de entrar propriamente nas afirmações do deputado, creio ser interessante lembrar o que disse Umberto Ecco a respeito da comunicação no tempo das novas tecnologias. Elas deram voz aos ignorantes. Do prefácio transcrevo três parágrafos. O primeiro é da própria autora;

Informação/conhecimento/diálogo. Os ingredientes de superação.


"O que leva um indivíduo a reunir-se em um coletivo (segundo Adorno, no texto mencionado, a principal característica do fascismo) sem pensar com cuidado crítico nas causas e consequências dos seus atos configura aquilo que chamamos de analfabetismo político. Mas, no caso dos personagens jovens que surgem atualmente, líderes do fascistoide Movimento Brasil Livre, está em jogo a forma mais perversa de analfabetismo político. Aquele de quem foi manipulado desde cedo e não teve chance de pensar de modo autocrítico porque sua formação foi, no sentido político 'de-formação', a interrupção da capacidade de pensar, de refletir e de discernir", argumenta.

"Mas, sem discordar  de Tiburi e apenas dando minha modesta contribuição para a sua excelente e necessária reflexão, digo que, por causa das transformações sociais, culturais e tecnológica que experimentamos, o 'analfabeto político' dos dias atuais é bem diferente daquele dos tempos de Brecht. O analfabeto político da atualidade fala e participa dos acontecimentos políticos mesmo renunciando à tarefa de se informar melhor sobre eles ou partindo de preconceitos, boatos, ou mentiras descaradas sobre tais acontecimentos".

"O analfabeto político da contemporaneidade - ao contrário daquele dos tempos de Brecht   - participa dos acontecimentos políticos 'opinando' sobre eles nas redes sociais digitais sem qualquer cuidado crítico.  Eu poderia recorrer a muitos exemplos do atual comportamento do 'analfabeto político'[...] vou me restringir a uma das muitas estupidezes escritas em minha página no facebook por ocasião da aprovação do Marco Civil da Internet: 'O marco servil (sic) vai acaba (sic) com o facebook e traze (sic) o comunismo vai manda (sic) mata (sic) todo mundo começando por você seu viado filhodaputa (sic)'. Este comentário é um exemplo do analfabetismo político contemporâneo, mas é também o sintoma de uma ameaça à democracia e à vida com pensamento: a maioria dos 'analfabetos políticos' que vociferam nas redes sociais digitais, principalmente a maioria daqueles que fazem menção ao 'comunismo' ou 'socialismo', deixaram claro que as fontes de suas afirmações acerca do acontecimento em questão: os colunistas da revista marrom semanal; o senil reacionário que se diz 'filósofo'; e a família do parlamentar (deputado federal, estadual e vereador) que parasita o poder público para difamar adversários e estimular o fascismo"...

Creio que já está bem definido quem seria o analfabeto político atual. Com respeito a este deputado, gostaria apenas de lembrar o apavoramento de Luís Fernando Veríssimo, em uma de suas crônicas, quando constata que este tipo de gente começa a se apresentar para a sociedade brasileira como uma opção eleitoralmente viável. Ó tempos, ó costumes! In qua urbe habitamus!

Quero ainda deixar um dado alarmante que o deputado nos traz. Ele é fornecido pelo MEC, quando este divulga o resultado de uma pesquisa para a construção do Plano Nacional de Leitura. Em 2012, acusou a pesquisa, "38% dos estudantes universitários brasileiros foram avaliados apenas como alfabetizados funcionais". Tristeza profunda.








quarta-feira, 16 de dezembro de 2015

Chatô - O Rei do Brasil.

Depois de 20 anos, está em cartaz o filme dirigido por Guilherme Fontes, Chatô - O Rei do Brasil. Seguramente um dos filmes mais polêmicos da história do cinema brasileiro. O filme data de 1995 e somente agora foi liberado para exibição. Questões de financiamento e de censura foram os problemas que geraram a demora. As maiores tentativas que retardaram o seu lançamento foram feitas por parte da família.

Cartaz promocional de Chatô - o Rei do Brasil. 

Fui assistir o filme com uma enorme expectativa, motivado pelo livro de Fernando Morais, que serviu de base para o roteiro. Saí do cinema com um forte gosto de querer mais. O filme apresenta, como poderíamos dizer, fragmentos tirados da biografia, não obedecendo a nenhuma linearidade. Muitos apontam isso como sendo a grande virtude do filme. Vi depois, numa entrevista de Guilherme Fontes, que a equipe de Francis Ford Coppola foi contratada para auxiliar no roteiro do filme.

Ainda no cinema, eu pensava comigo, que quem não leu o livro de Fernando Morais, ou quem não conheceu nada de sua biografia, não teve condições de ter tido uma visão de quem foi efetivamente este personagem ímpar da mídia brasileira. Repeti esta minha visão, recomendando à mãe de um aluno brilhante, para que ele o assistisse. Leveza e humor são duas qualidades muito presentes.

A equipe de atores tem bom trabalho. Se tivesse que dar um prêmio para a melhor interpretação, não teria dúvidas em indicar Andrea Beltrão, como Vivi Sampaio, a eterna paixão do jornalista. Este também tem uma grande interpretação por parte de Marco Ricca. Como Getúlio é o personagem político da época, ele também é um dos principais personagens, com uma interpretação digna de Paulo Betti. Leandra leal e Letícia Sabatella são as esposas do nosso Cidadão Kane brasileiro.

A forma de narração, não linear como já observamos, toma como ponto de partida um programa de televisão, O Julgamento do Século, em que Chatô é julgado. É uma inteligente forma para se fazer uma retrospectiva de importantes passagens da vida do polêmico jornalista e, até quase ao final de sua vida, o maior empresário do setor. Chatô era o dono das Emissoras e Diários Associados, um complexo de emissoras de televisão, de rádio, de jornais e revistas. Viveu a vida de um magnata e sempre esteve próximo do poder, quer seja para influenciá-lo, ou então, chantageá-lo. Passou os seus 10 últimos anos paralisado em seu leito, sem abdicar de escrever e de namorar, ou então, a fazer sacanagens.

Procurando elucidar as polêmicas em torno do filme encontrei no Adoro Cinema, entre os comentários relativos ao filme, um de longo teor, assinado por Philippe Barrozo Bandeira de Mello, neto do jornalista. É muito explicativo. Ele faz um arrazoado com nove tópicos sobre o teor do filme, procurando desqualificá-lo, com a verdadeira paixão de um neto pelo seu avô. As principais críticas são no sentido de que o filme não é uma cinebiografia, mas uma obra de ficção, que ele é calunioso e difamatório, que tenta reescrever a história do Brasil, insinuando que Getúlio morreu assassinado e, ainda, que o filme deturpa toda a história de seu avô.

Também sobram críticas para Fernando Morais, o autor de Chatô - O Rei do Brasil - A vida de Assis Chateaubriand um dos brasileiros mais poderosos do século XX. Vê no escritor a fonte primária das deturpações da história de seu avô. Diz que a cada edição se renovam as acusações contra ele. Cita ainda, que existem 13 biografias absolutamente insuspeitas, que resgatam a verdadeira história do jornalista. No entanto, a que ficou realmente famosa, a que é lida nos cursos de jornalismo é a de Fernando Morais.
A magnífica biografia escrita por Fernando Morais. 614 páginas de informações.


Por falar em Fernando Morais, essa é uma biografia que eu recomendo. Foi escrita nos anos 1990 e se transformou num best seller. No final da apresentação do livro, em sua contracapa se lê o seguinte: "É obra de grande esforço jornalístico para retratar, com equilíbrio e rigor, um personagem tão complexo quanto fascinante". É bom também ter em vista, toda a recente polêmica em torno das biografias.




quinta-feira, 10 de dezembro de 2015

A experiência anarquista da Colônia Cecília. 1890-1894.



Em meados do século XIX começaram a se estruturar as doutrinas contrárias ao sistema capitalista. Em 1864 se reúne, em Londres, o Primeiro Congresso da Associação Internacional dos Trabalhadores (AIT) e as disputas ideológicas se davam entre os anarquistas e os seguidores das doutrinas de Marx. Já em 1889, quando se dá o Segundo Congresso, os anarquistas já haviam sido excluídos da AIT, mas as suas lutas não pararam.

Na Itália, Giovanni Rossi promovia várias experiências de auto-organização de camponeses, e no horizonte figurava o sonho de uma colônia anarquista em terras da América do Sul. Em 1890 sai do porto de Gênova, no Cittá di Roma, o primeiro grupo com a intenção de realizar tal sonho. Depois da chegada ao Rio de Janeiro, embarcam com direção ao sul e, em vez de irem até o Rio Grande do Sul, desembarcam em Paranaguá, para se estabelecerem no estado do Paraná. Sob a influência de um médico italiano, Franco Grillo, estabelecido em Palmeira, rumam para esta cidade.
Giovanni Rossi, o idealizador da colônia anarquista, localizada na cidade de Palmeira. PR.

O Brasil de então vivia tempos conturbados. A escravidão fora abolida, assim como também, o regime monárquico. A República ensaiava seus primeiros passos e lutava para se afirmar. Para substituir a mão de obra escrava, uma política de favorecimento à imigração estava em curso. Assim, a passagem destes italianos foi paga pelo governo brasileiro, que também lhe destinou as terras e lhes deu a primeira oportunidade de trabalho, na abertura de estradas na região em que se estabeleceram. A escolha da cidade de Palmeira também se deu pelo fato de ser a cidade um importante ponto de passagem dos tropeiros, que faziam a mediação entre os campos do sul e o mercado paulista.

A Colônia Cecília se localizava a 18 quilômetros da cidade de Palmeira, em direção a Curitiba, sendo vizinha a uma pequena colonização de franceses e outra de poloneses, esta um pouco maior, a vila de Santa Bárbara. Mandaçaia e a estrada da Serrinha também eram nomes familiares no entorno da colônia. A Colônia Kitti, em Porto Amazonas, também entra em cena frequentemente. Os sobrenomes mais comuns, de alguma forma ligados a Cecília, são Agottani, Artusi, Mezzadri, Colli, Torti, Carzino, Parodi, Códega, Riva, Faccini, Cini, Del Frate ou Dalfrate, Boni, Fecci, Dusi, Capraro, Capelaro e o do idealizador da colônia, Giovanni Rossi. O nome Cecília é uma homenagem a um personagem feminino do romance de Rossi, Un Comune Socialista.
Tarefas do anarquista. Liquidar com a ordem e os seus agentes.


A colônia se manteve por pouco tempo, entre março de 1890 e abril de 1894. Entre as razões de seu não êxito estão os próprios princípios do anarquismo, as dificuldades próprias ao seu tempo histórico, os desentendimentos internos e externos e, por fim, o envolvimento com a Revolução Federalista quando foram trucidados pelas tropas leais ao marechal Floriano Peixoto.

As primeiras famílias mal haviam se estabelecido, quando Rossi volta à Itália para arregimentar mais colonos. Quando estes chegam começam os problemas com os pioneiros. A liberdade individual e a ausência de leis determinantes da organização começam a gerar conflitos e alguns abandonam o empreendimento, se julgando no direito de levarem alguns instrumentos agrícolas. Alguns simplesmente não se submeteram ao trabalho. Embora pregassem o amor livre, uma menina, entre eles, fazia a festa de solteiros e casados. O amor livre nunca se efetivou entre os colonos. O governo também nem sempre contribuiu com a sua parte de efetuar o pagamento do valor dos dias trabalhados na abertura das estradas. Eles teriam o direito de receber um terço em espécie. O restante serviria para amortizar o valor das terras.
O volumoso livro de Arnoldo M. Bach. 1.057 paginas de história e ricos depoimentos.

A propriedade era formada por 200 hectares de terras e, no seu auge, chegou a ter 300 moradores. O perfil dos colonos era o mais diverso possível. Tinham em seu meio, desde analfabetos absolutos, até pessoas com formação universitária, como era o caso do idealizador, Giovanni Rossi, formado em agronomia. Economicamente recorreram aos produtos de subsistência, com especial predileção pelo cultivo do milho, para a produção da polenta diária e principal componente de sua alimentação. Além de pequenos animais também cultivaram frutas, entre elas a uva, para não deixar faltar o vinho, tão próprio aos italianos. Comercialmente também aderiram ao cultivo da erva mate, que formava o ciclo econômico do período.

Entre os problemas externos, devem ser considerados os problemas do isolamento, as condições de infraestrutura, e as desavenças com os vizinhos. Em geral eles procuravam manter excelentes relações com os vizinhos, mas a sua doutrina os isolava. Estes eram dominantemente poloneses, com a marca registrada de seu catolicismo. Os padres envenenavam a relação e os qualificavam como ateus e comunistas e, como tal, gente de extrema periculosidade. Chegaram ao absurdo de lhes negar o cemitério para os seus mortos. Em compensação, o Pimpão, um anarquista bem arretado, lhes meteu um salão de baile em frente a sua igreja.

A destruição da colônia ocorreu com a revolução Federalista, quando alguns colonos foram envolvidos com amigos maragatos de Curitiba. Isso bastou para que a República oligárquica e positivista do marechal Floriano desse um fim para a colônia. Isso ocorreu em abril de 1894. Apenas uma família, a família Artusi ficou morando no local. Numa república que pregava a Ordem e o Progresso não poderia haver espaço para a anarquia. Mas o pensamento anarquista se disseminou na região. Entre os descendentes houve sérios problemas com a ditadura militar em 1964 e muitos deles, depois - abraçaram as campanhas do PT, como herança de seus ancestrais que tinham plantado, possivelmente, a única experiência anarquista do mundo.

Os dados deste post, foram coletados a partir do livro Colônia Cecília, de autoria de Arnoldo Monteiro Bach, que reconstitui bem o pensamento de Giovanni Rossi, narra esta epopeia histórica e dá voz aos descendentes. Ele é proprietário do espaço cultural Sítio Minguinho, que deve ser na região onde era a sede da colônia. O meu próximo empreendimento será uma visita à esta região. Tenho um bom guia para isso, o meu amigo Marco, que é hoje o presidente do núcleo de Irati, da APP-Sindicato.


quarta-feira, 9 de dezembro de 2015

A Colônia Cecília. Giovanni Rossi - O seu idealizador.




Sempre fui movido por muita curiosidade em torno da Colônia Cecília, um experimento anarquista do final do século XIX, na região de Palmeira, mas nunca me detive mais seriamente em estudá-la. Uma primeira incursão mais séria se deu com a leitura de Italianos no Brasil. “Andiamo in ‘Merica”, de Franco Cenni, que dedica as páginas 355 a 358 ao fato. Foi também, quando entrei em contato com Giovanni Rossi, o idealizador da colônia.

Conversando com o meu amigo Marco, morador em São João do Trinfo e, simpático das causas anarquistas, percebi que ele tinha bom conhecimento sobre o tema. Agora o reencontrei e, voltamos ao assunto, e por um trabalho junto ao Núcleo Sindical da APP de Irati, ganhei de presente o livro Colônia Cecília, de autoria de Arnoldo Monteiro Bach. O livro contém mais de 1050 páginas. O livro tem o seu maior mérito nas transcrições de textos em que Giovanni Rossi relata a concepção dos princípios anarquistas, a idealização do projeto e, ainda, avaliações do mesmo, Outra riqueza do livro é a coleta de depoimentos dos descendentes das famílias dos pioneiros.Estes depoimentos são verdadeiros tesouros de preservação de memória. São depoimentos de pessoas que em breve não estarão mais presentes.
O livro de Arnoldo M. Bach. A narrativa da epopeia anarquista.

Giovanni Rossi é de Pisa, onde nasceu em 1856. Formou-se em agronomia e veterinária e trabalhou em organizações agrícolas cooperativas, visando amenizar os sofrimentos dos campesinos pobres da Itália. Era uma época de muitas dificuldades, de guerras em torno da unificação italiana. O contato com a miséria do povo o fez entrar em contato com as ideias socialistas que estavam se delineando. Na década de 1870 entra na Associação Internacional dos Trabalhadores (AIT). Pertencia a vertente anarquista, que em breve seria expulsa da Internacional. Além da especificidade profissional, gostava dos temas da filosofia, da sociologia e da política.

Desde cedo também escrevia. De sua escrita faziam parte artigos de propaganda anarquista e um livro com suas ideias e projetos. Este se chamava Une Comune Socialista, de 1878. Neste livro Cárdias é o narrador que junto com Cecília, a sua companheira, denunciam as injustiças da época. O nome da colônia Cecília é uma homenagem a esta personagem de seu livro, nada tendo a ver, como vi em alguns escritos, com a santa Cecília, a padroeira dos músicos. Basta lembrar que eram anarquistas, para não fazer tal confusão.
Contra a ordem estabelecida, acabar com os homens da ordem.

“Anarquia nas relações sociais; amor e mais que amor na família; propriedade coletiva dos capitais; distribuição gratuita dos produtos do ajuste econômico; negação de deus nas religiões”, pregava o personagem Cárdias. Cárdias imaginava uma terra longínqua, Poggio al Mare, onde pudesse, junto com Cecília, por seus ideais em prática. “Nós nos amávamos e o nosso afeto não diminuía, mas agigantava-se com o amor pela humanidade. Falar de socialismo, para nós, era falar de amor”.

Em de 1890, um grupo de jovens deixa o porto de Gênova, no Cittá di Roma, trazendo no seu destino incerto, pouca coisa além da esperança quase infinita. Iriam formar uma colônia anarquista em terras da América do Sul. As passagens eram pagas pelo governo brasileiro, em programas de incentivo à imigração. Observem que neste período a nossa história política também estava conturbada. Tínhamos acabado de abolir a escravidão e trocado a monarquia pela república. O navio chega ao Rio de Janeiro, de onde, após alguns dias, os imigrantes partem para o sul, com destino a Porto Alegre, mas resolvem ficar em Paranaguá. Lá chegaram em 28 de março e de trem sobem até Curitiba. Para se estabelecerem em Palmeira foi fundamental a influência de um médico italiano que já morava em Palmeira, o Dr. Franco Grillo, também simpático às ideias socialistas.
Giovanni Rossi, o idealizador da epopeia anarquista de Palmeira.

Depois dos embaraços burocráticos, estes pioneiros ocuparão uma área de 200 hectares de terras que lhes foram destinadas pelo serviço de imigração. “Eram os primeiros dias de abril de 1890... Nestas terras, perto de alguns pés de laranja, na frente de quatro altas paineiras, tivemos a sorte de encontrar uma casinha de madeira abandonada que, de imediato, ocupamos”, nos conta o Giovanni Rossi. São as primeiras palavras sobre a colônia. Para situá-la, vamos a Palmeira. O lugar está distante a 18 quilômetros da sede do município, vindo em direção a Curitiba. Próximo a eles havia uma colônia de franceses e outra de poloneses, a colônia Santa Bárbara,. Era uma região por onde passavam os tropeiros. Na época também havia a colônia Kitti em Porto Amazonas, uma colonização inglesa.

As primeiras atividades estavam ligadas a construção dos ranchos, ao cultivo de hortaliças e de milho. No início também ajudavam na construção de estradas, recebendo pelo trabalho, um terço em dinheiro e o restante como amortização pela terra. Depois se dedicaram ao cultivo da erva mate, da plantação de parreiras, pois para um italiano não poderia faltar um bom vinho caseiro. A alimentação básica era a polenta. Logo após a chegada, Rossi volta para a Itália para arregimentar mais colonos. Em seu apogeu a colônia chegou a ter 300 moradores. Em outro post irei relatar os problemas e o fim das atividades na colônia.

Giovanni Rossi após o fim da Colônia, em abril de 1894, irá trabalhar na  Escola Superior de Agricultura em Taquari, RS., onde lecionará nos anos de 1894 a 1896. Depois foi ser professor em Rio dos Cedros, SC, e Florianópolis. Em 1907 voltou para a Itália, onde permaneceu até o fim de sua vida, morrendo em Pisa em 1943, aos 87 anos. Na Itália exerceu fortes atividades intelectuais e teve contato constante com o seu biógrafo, Alfred Sanftleden, que usava o pseudônimo de Slovak. Ele também foi o responsável pela tradução e divulgação de seus artigos para a imprensa mundial, inclusive interessantes artigos de avaliação da Colônia Cecília, a única experiência anarquista do mundo.

terça-feira, 8 de dezembro de 2015

Amor de Perdição. Camilo Castelo Branco.

Estou numa fase de autores autobiográficos. Depois de ler várias obras de Lima Barreto, estou agora fazendo uma releitura de Amor de Perdição, de Camilo Castelo Branco. Para não perder o costume vamos situar o autor e a obra. O escritor nasceu em 1825 e se suicidou em 1890. O livro foi escrito em 1861. A morte por suicídio é apenas um sintoma da vida atribulada que ele levou. O exemplar que eu li é da Biblioteca FOLHA, que tem um belo estudo introdutório, escrito por Antônio Houaiss. Ele mais comenta o autor do que a obra, que se confundem. Vejamos duas passagens em que ele fala diretamente do autor.
Da Biblioteca Folha. Amor de Perdição.

 Vejamos a primeira:  “...É que dificilmente se encontra uma biografia mais desgraçada e mais comprazida na própria desgraça que a de Camilo – no sentido de que parece que nenhum escritor se debruçou tanto sobre o cotidiano de suas próprias desgraças vividas para delas derivar, quase experimentalmente, sua própria obra, quanto Camilo”. E a outra:  “...Disparou contra si mesmo o tiro de revólver com que cortou uma das mais atribuladas vidas que se possa imaginar. Atribulado e, em função dessas tribulações, das mais fecundas, literalmente, de que se tem notícia em língua portuguesa”. Logo depois explica essas tribulações.

“Vida que, por tão atribulada, foi certo a fonte, a matéria prima, o exemplário de quase todas as situações – frequentíssimas, aliás – de sofrimento, angústia, desespero, miséria, malogro, queda, dor, pranto, perda, mágoa, ressentimento, impecúnia, indigência que perpassam por suas novelas, prevalecendo, quantitativa e qualitativamente, a todos as polares. Raros – e quando raros, fugazes, rápidos, como que apenas referidos – os momentos de alegria, de felicidade, de placidez, de repouso físico ou espiritual, de grata resignação, momentos esses, assim mesmo, apenas trânsito para os outros, os carregados pelos diversos matizes do sofrimento”. Como vemos, todos belos componentes para uma obra romântica.

Amor de Perdição é meio um romance trágico, do tipo Romeu e Julieta, só que com mais ingredientes. Não termina em suicídio, pois, os personagens, Simão Botelho e Teresa de Albuquerque, tem um domínio sobre a morte, escolhendo o momento propício para ela, simultaneamente. Escolhem o momento da fuga da alma do corpo, quando este não mais suporta o dilaceramento provocado pelo sofrimento. Ocorre ainda uma terceira morte, esta sim por suicídio. O de Mariana, a jovem filha do ferrador, que não mais queria ver o sofrimento do jovem casal. Mariana nutria por Simão um amor platônico, no sentido popular deste termo.

O final da história já vem contado na introdução, na primeira página do livro. Ali se lê: Folheando os livros de antigos assentamentos, no cartório das cadeias da Relação do Porto, li, na entrada dos presos desde 1803 a 1805, a folhas 232, o seguinte: Simão Antônio Botelho, que assim disse chamar-se, ser solteiro, e estudante na Universidade de Coimbra, natural da cidade de Lisboa, e assistente na ocasião de sua prisão na cidade de Viseu, idade de dezoito anos, filho de Domingos José Correia Botelho e de D. Rita Preciosa Caldeirão Castelo Branco: estatura ordinária, cara redonda, olhos castanhos, cabelos e barba preta, vestido com jaqueta de baetão azul, colete de fustão pintado e calça de pano pedrês. E fiz este assento, que assinei – Filipe Moreira Dias. A margem esquerda deste assento está escrito: Foi para a Índia em 17 de março de 1807.  

Vamos a alguns detalhes. O romance se passa na primeira década do século XIX, quando chegam a Portugal ventos da Revolução Francesa e das guerras napoleônicas. Também os tempos eram de atribulações. Simão é um menino de apenas dezoito anos e que recebeu uma condenação de degredo na Índia. Os pais têm vários sobrenomes que demonstram a origem nobre da família. Eram pessoas poderosas.

O motivo da condenação foi “amou, perdeu-se, e morreu amando”. Isso também pode ser lido, ainda na primeira página. O grande amor pelo qual o jovem se perdeu foi o da vizinha Tereza de Albuquerque, outra família da nobreza portuguesa. As famílias, tal qual, como na história de Shakespeare, não se toleravam. Preferiam ver os filhos mortos, que misturarem o sangue das famílias. Eram também bem jovenzinhos. Teresa estava prometida em casamento, pelo pai, para um primo seu, de nome Baltazar Coutinho.

Já sabemos que Simão era estudante em Coimbra. Lá teve alguns problemas, mas se emendou completamente depois de enamorar-se com Teresa. O namoro era por correspondência. Os pais dos jovens disputavam quem era o mais arrogante e intolerante. Mas a menina sempre pagava o pato. Foi levada ao convento. Um dos pontos altos da descrição do romance. Quando ia ser transferida para um convento, ainda mais rigoroso, no Porto, ocorre o entrevero entre os dois pretendentes e o crime aludido no início do romance acontece. Simão mata Baltazar Coutinho e nem sequer reage à prisão.

Antes ainda, o ferrador João da Cruz entra na história. Este devia favores ao pai de Simão e passa a ser o seu protetor. Num entrevero anterior, matara dois capangas de Baltazar e leva Simão para a sua casa, pois fora ferido no entrevero. Aí é que Mariana entra na história, se afeiçoando a Simão. Renuncia a sua própria vida para cuidar da de Simão e ser o mediador entre ele e Teresa.

Primeiramente Simão fora condenado à morte por enforcamento. É o único momento em que o pai intercede pela vida do filho, de maneira forçada e, consegue da justiça a comutação da pena de morte por dez anos de degredo na Índia. Quando o navio com os degredados parte da cidade do Porto é que ocorrem os trágicos incidentes das mortes já referidas, mas não sem antes ocorrerem cenas de profunda emoção e comoção.


Camilo Castelo Branco é um mestre na escrita. Seguramente figura em qualquer lista que se faça dos grandes escritores portugueses. Além disso nos dá uma bela descrição de época, de como viviam as pessoas da fidalguia, que, em síntese poderíamos afirmar que viviam na direção oposta do entendimento, do respeito e da busca de destinos mais felizes.

segunda-feira, 7 de dezembro de 2015

O Outro. Inferno ou Paraíso.

 “Eu sou os vínculos que vou tecendo com os outros”. Esta frase me acompanha há muito e é retirada do livro Filosofia para não filósofos, de Albert Jacquard. Qual é o significado desta frase? É pelo outro que eu construo a minha individualidade. Apenas isso, ou melhor, tudo isso. Eu só tenho a percepção do meu eu, graças ao tu, que a mim se  contrapõe. É o outro, o tu, que constitui a percepção do meu eu, da minha individualidade. E é do encontro dos “eus” e dos “tus”, em relação, que se forma a sociedade. Vejamos Jacquard ilustrando esta situação.

“É justamente porque não é idêntico a mim que o outro participa da minha existência. Uma carga elétrica só é definível em presença de outra carga. É essa coexistência que é fonte de tensão; ela inicia uma dinâmica, a da comunicação. Comunicar é colocar em comum; e colocar em comum é o ato que nos constitui. Se alguém considera esse ato impossível, recusa qualquer projeto humano”.
Filosofia para não filósofos. Uma espécie de dicionário com um texto para cada letra do alfabeto. De A - Alteridade.

Gostaria de avocar um segundo pensamento, que me acompanha há mais tempo ainda, e que ilustra e complementa o significado do outro em minha existência. É de D. Hélder Câmara, retirado de um livrinho com o nome, O Deserto é Fértil. Neste livrinho encontramos um título, sob as palavras Partir... Caminhar... É a ideia do devir, do tornar-se, ou ainda, do construir-se. Aí se soma o movimento com o futuro, da transcendência, dimensões profundas do humano. Vejamos D. Hélder:

“Abrir-se as ideias, inclusive contrárias às próprias, demonstra fôlego de bom caminheiro. Feliz de quem entende e vive este pensamento: ‘Se discordas de mim, tu me enriqueces’”. E, complementa: “Ter ao próprio lado quem só sabe dizer amém, quem concorda sempre, de antemão e incondicionalmente, não é ter um companheiro mas, sim, a sombra de si mesmo. Desde que a discordância não seja sistemática e proposital, que seja fruto de visão diferente, a partir de ângulos novos, importa de fato em enriquecimento”. D. Hélder ainda dá um complemento importante: “Companheiro é, etimologicamente, quem come o mesmo pão”.
                                    
De ideias contrárias e opostas nasce o plural e o múltiplo.

Na mesma direção e sentido, outra frase também me acompanha. É de um rei inglês, que assim se dirigia a um súdito seu: “De vez em quando discorda de mim, para eu sentir que somos dois”.

Mas, voltamos à comunicação, ao colocar em comum, às relações. Qual deverá ser a sua marca? A da verticalidade ou a da horizontalidade? Se a sociedade tiver a marca da verticalidade, na verdade, não haverá comunicação, haverá comunicados. Comunicados que se revestem de hierarquia (ordem sagrada) sob a forma de dominar a relação. Por essa relação vertical e hierárquica eu vou querer ter o domínio sobre o outro e submetê-lo, impedindo assim, a sua individuação, desfigurando-o ou configurando-o a mim. Politicamente, estas são as chamadas sociedades autoritárias, em que o máximo atingível será a tolerância, palavra que não vai além do suportar. A linguagem entre estes seres será a do discurso, da prédica, da catequese. Tudo sob a certeza da verdade.

Se, ao contrário, houver a reciprocidade, isto é, a verdadeira comunicação, as relações serão as de horizontalidade, entre iguais, e a grande marca será, agora, a do respeito, o respeito gerado pela condição da igualdade. Esta será uma sociedade democrática. E a linguagem entre estes seres será a do diálogo, que se aprofunda, na exata medida do conhecimento, da troca, da incorporação do diverso, do múltiplo e do plural, aprofundado com a presença da busca, da pergunta, da interrogação.

Em nossa sociedade, ao menos aparentemente, a democracia parece ser um valor de reconhecimento universal. Quero trazer para a análise mais dois livros. Um chama-se O ódio à democracia, de Jacques Rancière. O outro é - Como conversar com um fascista – reflexões sobre o cotidiano autoritário brasileiro, de Márcia Tiburi. Do primeiro vou ficar com a orelha do livro, escrita pelo filósofo Renato Janine Ribeiro e do segundo, com o prefácio de autoria do juiz de direito, Rubens Casara. Os dois enfocam o violento ódio que está hoje presente na sociedade brasileira.

Janine Ribeiro, depois de constatar que recentemente houve no Brasil programas de inclusão social que mudaram a sua fisionomia, afirma: “Entretanto, um número expressivo de membros da classe média os desqualifica, alegando diversos pretextos. Para eles o Brasil era bom quando pertencia a poucos. Assim, quando os polloi – a multidão – ocupam os espaços antes reservados às pessoas de “boa aparência”, uma gritaria se alastra em sinal de protesto”. E continua:

“O que é isso, senão o enorme mal-estar dos privilegiados quando se expande a democracia? Democracia é hoje um significante poderoso, palavra bem-vista e que agrega um número crescente de possibilidades, indo da eleição pelo povo até a igualdade entre os parceiros no amor. Mas a expansão da democracia incomoda”. Já no corpo do livro, encontramos uma definição de democracia como sendo “o reino dos desejos ilimitados dos indivíduos da sociedade de massa moderna”. Por isso a democracia precisa ser contida. Busco mais algumas afirmações sobre a raiz do ódio à democracia:
O ódio é à democracia que movimenta as classes sociais, que as faz transitar.,

“É do povo e de seus costumes que eles se queixam, não das instituições de seu poder. Para eles, a democracia não é uma forma de governo corrompido, mas uma crise da civilização que afeta o Estado através dela”, para esclarecer, logo em seguida: “O governo democrático, diz, é mau quando se deixa corromper pela sociedade democrática que quer que todos sejam iguais e que todas as diferenças sejam respeitadas”. Ou ainda, “Só existe uma democracia boa, a que reprime a catástrofe da civilização democrática”. Por isso o ódio à democracia, que transforma aeroporto em rodoviária e avião em lotação.

No livro de Márcia Tiburi, o juiz Rubens Casara inicia o seu prefácio com uma fábula oriental. Um homem teve a sua boca invadida por uma serpente, enquanto ele dormia, e ela passou a dominá-lo. Narra essa fábula para aludir ao ódio tão vivamente presente em nossa sociedade. A evocação a esta fábula também é uma alusão ao filme O ovo da serpente de Ingmar Bergman. Hoje não precisamos tomar cuidado com o ovo da serpente, pois, ela, a serpente, já está alojada nas entranhas da sociedade.  Afirma, ainda, que em nossa sociedade existe uma cultura autoritária, transformada numa espécie de segunda natureza, para depois se perguntar pelas razões desta constatação. E busca explicações.

O fascismo, de origem italiana, é uma força que disputa com o liberalismo e o socialismo a doutrina hegemônica na condução da sociedade. Deriva de fascio - fascis, feixe de varas, símbolo dos magistrados romanos, que as usavam “com o objetivo de abrir espaços para que passassem (exercício de poder sobre o corpo do indivíduo que atrapalhava o caminho)". Eram símbolos do poder do Estado.
Márcia Tiburi lança o desafio do diálogo com o fascista.

O esforço legitimador desta teoria, desprovida de racionalização, decorre da necessidade de ação imediata, de uma vontade de conquista, para impor a sua visão de mundo sobre a dos outros, estabelecendo uma relação, que Paulo Freire, define como uma relação de contatos, de um sujeito sobre um objeto. Querem impor a sua visão, mesmo sem a definição clara de um projeto alternativo. Casara elenca, ainda, algumas características desta ideologia fascista.

Ela é portadora de negação, da negação do conhecimento e do diálogo, o instrumento da superação da ausência do saber. Por isso ela é cinza e monótona. Ela não suporta o colorido do plural, expresso na democracia, aquela democracia que é dinâmica, participativa e que torna concretos os direitos fundamentais de todos. Pela negação do conhecimento e do diálogo estão sempre próximos dos fundamentalismos e predispostos ao uso da força e da violência.

Buscam a edificação de um Estado Total, de um Estado hobbesiano, que se sobreponha aos indivíduos, anulando-os. A intolerância é constante. A pluralidade e as diferenças são sempre reprimidas. O outro, o alter, é um inimigo. O fascismo sempre se apresenta como um fenômeno natural, da naturalização da dominação de uns sobre os outros. São também portadores de desconfiança, Acima de tudo desconfiam do conhecimento, o único meio capaz de abalar as suas crenças, que recusam ver abaladas. O conhecimento faz ver as contradições da realidade e é por isso que incomoda. Esta desconfiança, em consequência, também se estende aos seus portadores. Suas convicções não se fundamentam na racionalidade e buscam amparo no irracional e no antinatural.

Ao ódio se soma o medo da liberdade. Por não saberem exercê-la, negam-na ao outro. Se fundem a uma idealizada força, a que se submetem, julgando assim resolver os seus graves problemas. Tem compulsão à submissão. Por fim, Casara pergunta sobre o objetivo do livro de Márcia Tiburi. E ele responde:

“O desafio é confrontar o fascista com aquilo que para ele é insuportável: o outro. O instrumento? O diálogo, na melhor tradição filosófica atribuída a Sócrates”. Hoje sabemos que Sócrates, ao propor o diálogo, não se deu bem. O mesmo risco correm todos os seus adeptos, também nos dias de hoje. Enfim, Casara nos diz que a proposta do livro de Márcia Tiburi é a de vomitar a serpente entranhada no ventre das pessoas pela cultura reinante na sociedade.


 O instrumento? Agora a conclusão é nossa. O instrumento é o diálogo formalizado pelo encontro do “eu” com o “tu”, no respeito à alteridade, pois, “eu sou os vínculos que vou tecendo com os outros”. E que o resultado deste tecer, seja o de uma obra de arte. E que esta obra de arte seja, como recomendava a paideia grega, “ constituído de modo correto e sem falha, nas mãos, nos pés e no espírito”.