domingo, 31 de julho de 2016

Viagem a Cuba. 3. Um dia em Habana Vieja.

Em minhas viagens adoro, logo de saída, fazer um city tour. O motivo é o de ter um conhecimento básico da cidade e depois voltar a visitar os lugares que mais impressionaram. Como o dia anterior fora marcado por intensas atividades, marcamos um dia inteiro para andar a esmo em Habana Vieja, o lugar onde Havana começou. Um mergulho na história mais antiga da cidade. As atrações são muitas.
Um mapa que mostra Habana Vieja e o seu esquema de proteção.


Cuba, como todos sabem, é uma ilha relativamente grande e a sua posição estratégica em termos de geopolítica é extraordinária. Ela é a porta de entrada de todo o Golfo do México. Cuba foi descoberta por Cristóvão Colombo em 1492 e tem uma história política complicada. Domínio espanhol e norte americano. A data de 1898 marca a sua independência da Espanha, mas aí começa a dependência dos Estados Unidos. Eles mesmos chamam este período de neocolonial. Assim a verdadeira data de independência do país é a de sua Revolução ocorrida no primeiro de janeiro de 1959. Isso me foi confirmado por várias pessoas.

A sua história política se divide entre Havana e Santiago de Cuba, que foi a primeira capital do país e sempre foi extremamente importante do ponto de vista político. Inclusive a Revolução foi uma grande marcha de Santiago de Cuba em direção a Havana. Sua população é de 11,3 milhões de habitantes e os seus indicadores sociais estão entre os mais elevados do mundo. Pudemos constatar que praticamente todos os problemas de educação, saúde e segurança pública estão superados. A sua medicina preventiva é famosa em todo o mundo. Ela se volta para a saúde e não para a doença. O país é marcado pela quase ausência de farmácias. Não existe o fenômeno da automedicação.
Uma marca da religiosidade dos tempos coloniais. Uma bela catedral dedicada a San Cristobal.


Mas voltando a Habana Vieja, ele é o grande bairro histórico de Havana e é nele que se concentra toda a história mais antiga da cidade. O bairro tem no turismo a sua grande vocação. O guia da Folha de S.Paulo lista as seguintes atrações: os museus de arte colonial, do rum e a casa natal de José Martí, o grande líder e mártir das guerras da independência; as construções históricas do seminário de San Carlos, da Bodeguita del Medio, do Castilho da Real Fuerza, do Templete, do Palácio de Los Capitanes Generales; das praças e de suas ruas históricas como a caje de oficios, a caje Obispo, a Casa de la Obra Pia, de África e as Plazas de San Francisco e a Vieja e ainda a bela catedral de San Cristobal. 
Eu e o meu amigo Valdemar tomando um mojito na Bodeguita del Medio. Observem o copo longo.


Três endereços ganharam fama pela constante presença de Ernest Hemingway na cidade. O hotel Ambos Mundos onde ele se hospedava, a Bodeguita del Medio, onde tomava os seus mojitos (hortelã, gotas de limão, água com gás, açúcar, rum e muito gelo - servido em copo longo) e a Floridita, um outro bar, situado na rua Obispo a mais ou menos um quilômetro de distância da Bodeguita del Medio, onde tomava o daikiri (açúcar, suco de limão, rum e gelo batido em liquidificador e servido em copo curto). fiquei imaginando o escritor fazendo a sua via, que não devia ser a crucis, pelas ruas do bairro. Os drinks são centenários e recebem variações. São drinks adaptados ao imenso calor que faz na cidade.
Endereço famoso em Habana Vieja. Aí se hospedava Hemingway.


As nossas visitas se concentraram na catedral, em vários museus, com destaque para o Palacio de Los Capitanes Generales, que era o grande centro administrativo da Cuba colonial e é hoje o Museu da cidade. Ali se vê a história de Havana em todo o seu fausto e esplendor. Visitamos ainda um CDR, um Centro de Defesa da Revolução, centrod que se multiplicam pelo país, prontos para rechaçar qualquer tentativa de invasão americana. Eles estão em cada cidade, em cada bairro e em cada aldeia. Uma invasão causaria milhares de mortes e a sua repercussão já se transformaria em instrumento de defesa.

Visitamos também lojas de artesanato. Este é formado por instrumentos musicais, especialmente de percussão, por pinturas dos casarões e carros antigos, pela presença de José Martí e dos líderes da Revolução, camisetas estampadas com o Chê e outras tantas quinquilharias. Como sou um homem extremamente fiel ao vinho e a cerveja, os drinks foram apreciados apenas matar a curiosidade e para a fotografia. Também visitamos lojas que vendem o rum e os charutos. Um rum de sete anos já é uma preciosidade. A marca mais conhecida é o Havana Club, seguida pela Santiago de Cuba. Quanto aos charutos apenas um rápido olhar curioso. Sou fumofóbico. Eles são incrivelmente caros. e é necessário muito cuidado na sua compra. Não caia na conversa de vendedores de ditas cooperativas, de vendedores que vendem cotas de participação e outros truques.
Rum Havana Club sete años e Santiago de Cuba Añejo, também sete anos.

Os preços do rum são absolutamente iguais, não importando o lugar onde são vendidos, desde os grandes hotéis internacionais ou em simples mercados. Uma garrafa de rum sete anos é invariavelmente encontrada a 16,90 CUC. A grande marca de charutos é a Cohiba, seguida pela Montecristo. Também existem muitas livrarias e quatro praças, que visitamos no dia do city tour, a praça da catedral, a praça de armas, a São Francisco e a Vieja. O Templete está em restauração.

Muitas casas estão para serem restauradas. As ruas são bastante estreitas. As casas não restauradas dão ao bairro um ar bem nostálgico e bucólico. Muitas destas casas já tem os quartos que abrigam os turistas. Se você gosta de agito, Habana Vieja é o lugar ideal para você se hospedar. De tudo o que eu li sobre a hospedagem, havia a recomendação para não se hospedar no bairro por causa do assédio aos turistas. Devo dizer que ele existe. Mas apenas quem não conhece Salvador pode dizer que este assédio incomoda. Ele não é nada grotesco, perfeitamente suportável.
Das fortalezas, uma vista de Habana Vieja.

Enfim, um dia maravilhoso e de muita história. E já com saudades deste belo e histórico lugar. Depois da Revolução a cidade foi migrando para Habana Centro e para o Vedado. Habana Vieja sempre foi a parte mais protegida da cidade nos tempos coloniais.


sexta-feira, 29 de julho de 2016

Manhã inesquecível. Com Pepe Mujica.

A manhã do dia 27 de julho de 2016 foi simplesmente inesquecível. O Laboratório de Cultura Digital do setor de educação da Universidade Federal do Paraná foi a grande responsável pelo evento - um encontro com o ex presidente e atual Senador do Uruguai, José Pepe Mujica, que já foi considerado o presidente mais pobre do mundo. Uma questão de coerência com os seus princípios de vida. Mujica esteve acompanhado por sua esposa.
Momentos que antecederam a fala do ex presidente uruguaio. O coral latino da Unespar.

Como estive fora, em memorável viagem a Cuba, não fiquei sabendo do evento em tempo hábil para fazer a tão concorrida inscrição. Mas a minha experiência me dizia que a participação seria possível se tivesse a paciência necessária da espera. Foi o que de fato ocorreu. O evento foi precedido por uma apresentação do coral da UNESPAR, que apresentou músicas latinas e por muitos oradores, todos ligados aos promotores do evento. Então Pepe Mujica falou apenas as 11h30, em evento iniciado duas horas antes.

Vou procurar falar livremente do que eu ouvi, mesmo sabendo que não vou traduzir com toda a fidelidade a sua fala, mas prometo ser fiel à essência de seu pensamento. Não consegui captar a integralidade das frases por duas razões principais: por problemas de tradução de uma fala pronunciada com extrema emoção e por problemas de som, de um ambiente de quadra de esportes do Círculo Militar, local em que o evento ocorreu.
Vista parcial dos participantes que foram ouvir a fala de Mujica.

A visão de futuro marcou o início da fala, com a preocupação de que as futuras gerações tenham dificuldades em interpretar a realidade para que possam transformá-la. Compreender a realidade de um determinado tempo é uma grave responsabilidade e previu que as lutas sociais deste tempo futuro serão muito duras.

O foco principal da fala foi a contraposição entre uma vida marcada pela visão humanista com aquela marcada pelos valores do mercado e do consumismo. A visão humanista é marcada pela necessidade de estabelecermos relações com os outros, da insuportabilidade da solidão e da necessidade que temos da compreensão de um projeto de vida. Para dar um destino para a vida é necessário ter a compreensão da natureza da própria vida. Esta é marcada pela acumulação, não de riquezas, mas de experiências enriquecedoras, adquiridas na convivência com as diferenças. Esta visão também é marcada pela solidariedade entre as gerações. Para assim entendermos a vida existe a necessidade de cambiar a cultura dominante.
Nesta foto eu cheguei bem perto deste grande ser humano.

Na visão consumista e de mercado os valores são outros. Estamos voltados para o consumo de mercadorias e fazemos de nossa própria vida uma dessas mercadorias. A visão de mercado nos coloca no isolamento do mundo, numa visão meramente egoísta. Mas os verdadeiros valores humanos não são encontrados no mercado. Não podemos comprar, por exemplo, mais cinco anos de vida.

Também falou sobre a questão do tempo. Este não pode estar totalmente voltado para o trabalho, para prover o atendimento de necessidades básicas. Devemos também ter o tempo para os filhos e para os amigos e ter tempo para viver. Também falou da dimensão das atividades ligadas ao crescimento econômico, de sua necessidade de ter uma dimensão do humano e não dentro de espírito escravocrata que a muitos domina.

Também destacou a necessidade de conviver com as diferenças. Assim o ser único que somos, com todas as especificidades de sua singularidade, que se complementa com as diferenças enriquecedoras proporcionadas pela alteridade. Reside nisso a nossa contribuição para melhorar a humanidade. Também ganhou força a ideia de sempre recomeçar quando percebemos que estamos caminhando em direção errada.
Mujica ovacionado pelo público.

Outro foco foi a questão da desigualdade, que hoje é tamanha que está gerando o descontrole total da vida em sociedade. Também deve ser evitado o pensamento de que a miséria é um fenômeno natural e que a política nada tem a ver com isso. É possível eliminar a miséria no mundo. Existem todas as possibilidades para isso. É uma questão de vontade política. A política não pode fazer a apologia da pobreza. Por isso a democracia não pode estar voltada para atender aos interesses do mercado, mas sim, os interesses da igualdade pela inclusão social.

Também falou das religiões. Elas também deveriam ajudar na formação de uma consciência e não serem apenas instrumentos de consolo para suportar as dores da humanidade.
Pepe Mujica recebendo cumprimentos do público.

As suas mensagens finais estavam voltadas para a necessidade da construção de uma cultura centrada no humano, da felicidade e não para o consumo de coisas. Também esteve presente a sua frase que eu já conhecia, a da de ter coragem para mudar quando você estiver trilhando por caminhos errados. Não mudamos nada se continuamos sempre fazendo a mesma coisa. É a ideia do recomeço. Não se chega à terra prometida seguindo por caminhos errados, que não estejam marcados pela busca da felicidade.

Foi o que eu consegui captar da sua fala. Pode conter imprecisões pelos motivos que já expliquei. Mas o dia foi para mim um dia de grandeza ímpar. Pude realimentar convicções alicerçadas em ideias e confirmadas pela sua longa vida de coerência com os seus princípios. Coerência a toda prova. Estou extremamente feliz.


Viagem a Cuba. 2. Um tour por Havana.

O nosso primeiro dia completo em Havana começou por uma ida ao Hotel Meliã Cohiba. O primeiro passo foi fazer o câmbio na codeca do hotel. Conforme orientações tínhamos levado euros em vez de dólares. É vantajoso. Depois fomos à agência de turismo do governo dentro do hotel e fizemos a compra de ingressos para o show do Buena Vista Social Club, uma ida para Santa Clara, Cienfuegos e Trinidad e um city tour por Havana. Trinta Cuc (equivalente a trinta euros) pelo show, 18 pelo tour e centro e trinta pela ida ao interior, com pouso de uma noite e a inclusão das refeições.
Com Valdemar e Marco Aurélio na Praça da Revolução.

A saída para o tour foi imediata, a partir do próprio hotel, que se situa no bairro do Vedado. Iniciamos o tour pelo próprio Vedado com uma visita à Praça da Revolução, o local das grandes manifestações políticas. Ali está o memorial a José Martí, o idealizador da independência (1898) e os enormes rostos de Chê e de Camilo Cienfuegos em prédios da administração pública. Ali também se situa o Teatro Nacional e a Biblioteca Nacional José Martí. 

O tour continuou pela Habana Centro, passando pelo Museu da Revolução, pelo Capitólio e pelo teatro Alícia Alonso, seguindo para Habana Vieja, onde fizemos uma parada para visitar as quatro praças do bairro antigo, por onde a cidade começou. Ali se localizam as grandes atrações históricas da cidade e as que fazem parte de seu folclore, como a Bodeguita del Medio e o bar Floridita, que se tornaram famosos pela constante presença neles do grande escritor Ernest Hemingway. Também foi o nosso primeiro contato com os produtos tipicamente cubanos como o rum e os famosos charutos, que são incrivelmente caros.
Em Habana Vieja a histórica catedral de San Cristobal.

Depois fomos para fora da cidade para conhecer as fortalezas do Castilho del Morro e de San Carlos de La Cabaña fundamentais na proteção da cidade. Na fortaleza de San Carlos ocorre o famoso canhonaço todos os dias as 21 horas, junto com um cerimonial militar. As vistas da cidade são muito bonitas e permitem uma bela visão panorâmica da cidade, especialmente o bairro primeiro da Habana Vieja.
Na famosa Bodeguita del Medio, tomando um Mojito junto com o Valdemar. O mojito era uma das bebidas preferidas de Hemingway.

O tour foi encerrado com um almoço num local muito bonito. Muito verde e decoração com os motivos da revolução cubana. Fotos históricas de Chê, Fidel e Camilo Cienfuegos. Ouvimos de um dos funcionários do restaurante a misteriosa história de Cienfuegos, do misterioso desaparecimento de seu corpo após um acidente aéreo, logo após a revolução. Camilo junto com Chê foram os comandantes das duas colunas responsáveis pela vitória da revolução de 1959. O seu carisma e popularidade eram enormes. Vou pesquisar sobre ele. As suspeitas sobre a sua morte nunca atingem Fidel, um homem inabalável em seu prestígio e lealdade a causa da revolução. Fidel não foi o primeiro chefe do governo revolucionário e sim, Manuel Urrutia, um político sem partido (3 de janeiro a 18 de julho de 1959).
Um dos endereços preferidos de Hemingway em Havana, junto com o outro bar A Floridita.

Aliás, me permitam um parêntesis. Escrevo este post no dia 26 de julho, possivelmente a mais significativa data da história da Cuba revolucionária. A data remete ao ano de 1956, à tentativa da tomada do Quartel de Moncada, que marcou o início do movimento revolucionário que seria vitorioso em 1959. Fidel foi preso e fez a sua famosa defesa num documento muito conhecido A História me absolverá. Da prisão foge para o México, onde organiza a volta ao país no barco Granma. Voltarei ao tema.

O almoço servido foi de muito boa qualidade, de temperos com muito sabor, uma característica comum da cozinha cubana. O tour se encerrou, deixando os seus participantes em seus devidos hotéis. Assim pudemos conhecer muitos deles. Fim de tarde, já em casa, banho tomado e preparadíssimos para aquilo que seria inesquecível. Assistir o show do Buena Vista Social Clube.
Decoração do restaurante onde almoçamos. Os herois da revolução estão onipresentes.

Lembrei muito de casa, das inúmeras vezes que assisti o filme documentário produzido pelo Wim Wenders e das muitas vezes em que presenteei amigos com este filme. Fico com a frase inscrita no DVD para sintetizar o show: "Toda a sensualidade e o calor do ritmo mais envolvente do planeta". Foi uma noite memorável que voltarei a comentar. O show é apresentado num restaurante famoso de Habana Vieja, chamado  Legendários del Guajirito). O show tem apresentação diária às 21h30 e tem duração de duas horas.
Já no táxi para ir ao show do Buena Vista Social Club. Um charme só.


Creio que todos conseguem imaginar a noite de sono tranquilo sob o embalo deste maravilhoso show. Depois, em visita ao cemitério de Colón, reverenciei a memória de Ibrahim Ferrer Planas (1927 - 2005), que tem túmulo bem destacado. Pelo dia passado, Havana nos prometia muitas emoções mais. O dia seguinte seria dedicado integralmente ao bairro Habana Vieja.






Projeto Memória. Crônicas da Resistência.



Cleusa Slaviero foi minha aluna no curso de jornalismo na Universidade Positivo. Foi uma das alunas que mais foi tocada pela formação de uma consciência crítica da realidade, percebendo as suas contradições. Neste processo formou uma visão humanitária de mundo e se apegou aos valores de uma democracia fortemente participativa, apegada a políticas públicas de promoção da igualdade pela inclusão social.

Neste momento conturbado da democracia brasileira Cleusa idealizou e concretizou um sonho. Reuniu em livro mais de 80 pessoas, convidando-as para escreverem Crônicas da Resistência 2016 - Narrativas de uma democracia ameaçada. O livro é uma construção coletiva, desde a indicação de autores até o financiamento de sua produção. Mas o grande mérito do livro, marco de resistência democrática, é da Cleusa que figura na capa como a organizadora do livro.
Cleusa nas vésperas do lançamento do livro. Um momento de descontração num bar, com o boné revolucionário do Chê.


O livro tem importantes adesões. O prefácio é uma contribuição de Adolfo Pérez Esquivel, o Nobel da Paz do ano de 1980 e de Leonardo Boff, o notável teólogo da teologia da libertação e escritor mais do que reconhecido. Os cronistas são professores, sindicalistas, jornalistas e militantes dos movimentos sociais, todos marcados pelas convicções democráticas e a democracia vista como a forma pública de efetivar políticas afirmativas de inclusão social. Como consta na capa do livro, este se constitui de "reflexões e vivências de autores que fazem parte de um grupo de resistentes".

Cleusa me honrou com o convite para dele participar e aproveito o momento para fazer o meu agradecimento. Publico hoje um primeiro texto, escrito dentro das primeiras exigências, entre elas a de não ultrapassar dois mil caracteres. Depois escrevi outro texto, escrito na segunda feira pela manhã e cheio de indignação pelo trágico da votação ocorrida no domingo e que resultou no impedimento da presidente Dilma. Deixo com vocês o primeiro texto, especialmente escrito para este livro. 
Capa do livro Crônicas da Resistência 2016.


Projeto Memória.

Um olhar retrospectivo sobre nossa história nos mostra que a elite brasileira tem uma enorme vocação golpista.

De 1930 a 1985 houve duas longas ditaduras e uma tentativa de golpe a cada três anos.

Com a Constituição de 1988 vivemos a mais longa experiência democrática. Vivemos uma jovem democracia. Velhos pedófilos, estupradores e anões morais atentam contra ela.

O combate à corrupção sempre foi o pretexto. O mar de lama, o perigo comunista e a Lava-jato.

A corrupção oculta o verdadeiro problema brasileiro: a escandalosa concentração de renda. 1% tem tanto, quanto os outros 99%. Mas isso não pode ser visto pelo povo. Os privilégios são mostrados como direitos e frutos da meritocracia. Se pratica um esforço de intelectualização do senso comum.

Vivemos doze anos de distribuição de renda, via políticas públicas, valorização do salário mínimo, políticas afirmativas e de complementação de renda.

Veio a crise. As crises são invenções do capital para promover a sua acumulação. Direitos são suprimidos para que o livre mercado e seus valores competitivos possam ser afirmados.

Destroi-se o Estado/Nação, a Pátria, o pai comum de muitos filhos. A solidariedade desaparece do horizonte. E este passa a ser nebuloso.

O Príncipe, o Estado Leviatã e os fascis, - os feixes de varas – são usados para desobstruir os caminhos do livre mercado global, da competição, da desumanização, do ódio e das humilhações. 

A cada dia que passa, entendo melhor Adorno. Ele nos descrevia a personalidade autoritária em potencial, contida na cultura ocidental, capitalista e cristã, em suas versões fundamentalistas.

E com Adorno também reafirmo que “a exigência que Auschwitz não se repita é a primeira de todas para a educação”, e de toda a ação política. 

Esta é minha percepção deste nebuloso momento.

Pedro Eloi Rech – Professor - Curitiba – Paraná.

quinta-feira, 28 de julho de 2016

Viagem a Cuba. 1. Preparação e primeiras impressões.

A nossa viagem para Cuba foi decidida enquanto estivemos visitando a região das missões jesuíticas no Paraguai, na Argentina e no Rio Grande do Sul, em fevereiro de 2016. Valdemar Reinert e o seu cunhado Adilson, foram os companheiros nesta maravilhosa viagem. Muitas leituras complementaram esta viagem. Mas no primeiro momento tudo ficou por isso.
O passaporte e a tarjeta são necessários e um bom guia ajuda muito.

A viagem ganhou forma, quando no começo do mês de abril, participamos, Valdemar e eu, do 3º Congresso Anarquista, na Colônia Cecília em Palmeira. Ali, naquela ocasião se somou ao grupo o companheiro Marco Aurélio Gaspar, professor em São João do Triunfo. Posteriormente, a viagem ganhou as suas datas, numa promoção da Copa Airlines, uma companhia aérea panamenha. Algo um pouco superior a quinhentos dólares, mais taxas e emissões, em dez prestações. O grupo ficou definido em quatro pessoas. Regina e Valdemar Reinert, Marco Aurélio Gaspar e eu. A data ficou marcada para o dia 11 de julho a ida e a volta para o dia 23.

O número de quatro pessoas nos ajudou a baratear muito a viagem. Pagamos por quarto 35 CUC, equivalente a 35 euros. Mas a grande vantagem de estarmos em quatro foi a divisão de táxis, a forma mais eficiente de conhecer a cidade. Os táxis fazem as despesas crescerem significativamente, ainda mais quando você quer poses fotográficas nos carros clássicos, os rabos de peixe da década de 1950, ou então um Ford 1928, com o qual fomos a um concerto no Teatro Nacional de Havana. É bem melhor levar euros em vez de dólares. Estes recebem uma sobretaxa na hora de efetuar o câmbio. Uma pequena hostilidade para com o bloqueio imposto pelos americanos.
A nossa primeira hospedagem em Cuba. O bairro Vedado é cheio de palacetes. Este é um dos mais simples.


Optamos por nos hospedar em casas de família, em vez da rede hoteleira. Esta forma de hospedagem foi uma grande saída encontrada pelo governo cubano para melhorar a renda de muitas famílias com o aluguel de um, dois ou até três quartos de suas próprias casas. Conheci algo semelhante em Fernando de Noronha, com o projeto das pousadas domiciliares. Por contatos mantidos em Cuba acertamos o aluguel de dois quartos e a contratação de um táxi que nos esperaria no aeroporto internacional José Martí, um tanto distante dos três bairros que formam a cidade de Havana, A Habana Vieja, o Centro Habana e Prado e o Vedado e Plaza.
Nossa primeira cerveja em Havana. E Marco Aurélio Gaspar só na água. Este quarteto valeu!

O desembaraço burocrático no aeroporto foi muito tranquilo e rápido. Largos sorrisos se abriram pelo fato de sermos brasileiros. Os documentos exigidos para a entrada são o passaporte, obviamente, e uma tarjeta de visto, que nos foi vendida junto com o check in na Copa Airlines, em São Paulo, por R$ 70,00. Esta tarjeta é recolhida na volta. Um seguro saúde e de viagem também é exigido mas não houve verificação. Em Havana o táxi estava efetivamente à nossa espera. Um Lada muito velho. Ficamos dois dias na primeira casa. Optamos por outra logo a seguir, em busca de maior privacidade. Ficamos no Vedado, muito próximos do hotel Meliã Cohiba. Foi muito bom ter o hotel nas proximidades, por causa de câmbio, internet e venda de shows e pacotes turísticos. Também ficamos muito próximos do Malecon, a grande avenida beira mar da cidade.

Uma primeira pequena incursão pela cidade, a pé.  A primeira cerveja foi a nossa grande preferida, a Bucanero. A comida cubana é uma delícia de tempero, com muitos frutos do mar, frango e carne de porco. O atendimento sempre é maravilhoso, com muita presteza em dar bom atendimento. Sempre muito dispostos a dar explicações.
Uma vista de carros antigos utilizados como táxis em Havana.

As primeiras impressões: Onipresença dos carros velhos. Isto não é nenhum sinal de pobreza, muito pelo contrário. São um charme à parte. Coisa de cinema. Casarões enormes, alguns em ótimo estado, com restauração em andamento e outros ainda não restaurados, praticamente em abandono. É um mundo de riqueza a ser explorado. Não é possível a acumulação de imóveis. As curiosidades sobre a economia e a estrutura da sociedade cubana ficam para os próximos posts. A presença da revolução também está anunciada por toda a parte.

Com o cansaço do dia, tivemos pouca vontade para fazer mais coisas. Uma janta, umas bucaneros bem frias (geladas) banho e preparo para o primeiro dia completo em Cuba, que prometia muito. Um city tour e uma noite de sonhos. Só adianto que fomos assistir o show que eu jamais acreditei que um dia se tornasse realidade. Um show com o Buena Vista Social Clube. Mais para frente eu conto tudo. Estou com doze posts listados com temas a serem desenvolvidos. Prometo até contar uma brevíssima história da República de Cuba.






sábado, 9 de julho de 2016

Pelados X Peludos. O Massacre dos Xucros. Renato Mocellin.

Neste ano de 2016 transcorre o centenário do final das lutas nas terras contestadas entre os estados do Paraná e de Santa Catarina, conhecida como Guerra do Contestado. As terras contestadas, na verdade, esconderam causas muito maiores de sua ocorrência, entre os anos 1912 e 1916, do que uma disputa entre estados. Praticamente se repetiu no sul do Brasil o fenômeno ocorrido na Bahia, na Guerra de Canudos, alguns anos antes, (1896-1897). As causas foram muito semelhantes.
O maravilhoso livro do professor Renato Mocellin. Pelados X Peludos.

Num reencontro com o amigo e professor Renato Mocellin, recebi dele, com um belo autógrafo, o seu livro Pelados X Peludos - O massacre dos Xucros, em que, em quinze capítulos, narra a infelicidade destas pobres gentes, diante da insensibilidade e desfaçatez de suas elites. O massacre foi completo e com requintes de muita crueldade.

Os quinze capítulos tem os seguintes títulos: I. José Maria Redivivo. Nele nos é apresentado o monge, os estados e as pessoas envolvidas e o começo do conflito em Irani (SC). II. Santos do povo. Nele nos é mostrada a religiosidade popular e a presença da figura carismática dos monges e o ambiente propício às insurreições populares, devido às extremas condições de miséria. Já é citada a construção da estrada de ferro que ligaria São Paulo ao Rio Grande do Sul.

III. A República dos Peludos. Nele é apresentado o espírito republicano instaurado no Brasil através de um golpe e com o espírito do positivismo. Bela república! A exclusão social era uma de suas marcas. Examina ainda a Lei de Terras de 1850 e os problemas gerados pela autonomia dos estados na concessão das terras. IV. Uma sociedade em crise. É mostrado o caráter conservador da modernização econômica, a atuação da Lumber e a desconstrução de uma sociedade de estruturas simples. Passa também pelo exame das populações nativas. V. O Trem de ferro. É mostrada a atuação da empresa americana Percival Farquhar, da Brasil Raylway Company, da Lumber (Três Barras - SC), suas serrarias e o desmatamento de pinheiros e imbuias, além do conflito de terras.

VI. "Tudo é para a gente da Oropa".Tudo para a Lumber. Os Camargo no Paraná e os Ramos em Santa Catarina desenraízam os nativos em favor dos interesses estrangeiros. Um horror contra as nossas gentes é mostrado neste capítulo. VII. A Guerra de São Sebastião. É mostrada a organização dos sertanejos, as adesões recebidas, bem como os cenários da guerra: Taquaruçu, Caraguatá... Ainda é mostrada a questão do significado de serem monarquistas. VIII. A ofensiva sertaneja. Metade da área contestada fica em poder dos sertanejos. Seus principais redutos eram: Canoinhas, Curitibanos, Itaiópolis, Caçador, Calmon. O controvertido comandante Adeodato também nos é apresentado.

Um mapa da área conflitada. Terras em disputa.


IX. O "socialismo caboclo". Neste capítulo é mostrado que a organização do movimento se inspirou no cristianismo primitivo, em seus valores de solidariedade. O movimento chegou a ter sob seu poder 28.000 Km² e mais de vinte mil pessoas envolvidas. Houve também a incorporação de experiências revolucionárias anteriores. X. A grande ofensiva dos peludos. Setembrino de Carvalho vem com um exército de sete mil homens, equivalente a um terço das forças do exército brasileiro. A ele somavam-se as forças das polícias dos estados de Santa Catarina e do Paraná e mais os jagunços profissionais. Todos unidos contra os pelados. XI. O cerco final. Os grandes redutos caem em série, como Canoinhas, Papanduvas, Santa Maria, Caçador... O exército encerra as operações, confiando-as às polícias estaduais.

XII. A Derrota dos pelados. Um novo núcleo se forma em São Miguel. Problemas internos, esgotamento de crenças e fome minam a resistência. Adeodato impõe uma ditadura. Depois da derrota de Pedra Branca, em fins de 2015, o comandante libera seus fiéis que quisessem fugir. Houve  forte repressão e muitas execuções contra os derrotados. XIII. A guerra historiográfica. Um capítulo maravilhoso de contestação à neutralidade e um posicionamento claro em favor dos pelados de ontem e de hoje. XIV. Um balanço da guerra insana. O balanço mostra o número de perdas, o destino dos políticos e dos sertanejos e a saída da Lumber do Brasil, após a devastação de nossos pinheiros e imbuias. Em troca recebemos o deserto verde de pinus dos dias atuais. (Não posso deixar de registrar os desejos de entreguismo de nossas elites onipresentes em nossas história. vejam José Serra e a entrega do Pré Sal). XV. Vozes dos protagonistas. É uma coletânea de depoimentos.

O livro tem ainda um belo álbum de fotografias, uma rica indicação de bibliografia e a indicação de 5 filmes que envolvem o tema. O livro é editado pela SITE e está disponível nas principais livrarias. A pesquisa e a escrita do livro, como fica muito claro no capítulo sobre a historiografia, foi temperada com muita paixão. O seu ardor em favor dos pelados também está evidente na dedicatória que eu recebi: "Ao amigo Pedro Eloi defensor dos "pelados" de ontem e de hoje. Com um forte abraço".

quinta-feira, 7 de julho de 2016

Sapato 36. Raul Seixas. Quem seria o pai?

No dia 2 de julho, na cidade de Londrina, tivemos um belo seminário de formação, promovido pelo grupo APP- Independente. Na abertura dos trabalhos foi lembrada a música Sapato 36, do grande Raul Seixas. Ela foi deixada para a livre interpretação de cada um dos participantes.

Hoje pretendo dar um passo inicial para esta interpretação, destacando duas ideias. A primeira sobre o incômodo do aperto do sapato, que creio que todo mundo, alguma vez, já sentiu e a segunda é sobre o ir embora. Faço a abordagem através de duas perguntas. Quem nos causa o incômodo e a dor e qual é o destino buscado ao anunciar o ir embora?
Neste DVD homenagem, Tico Santa Cruz interpreta Sapato 36.


A letra da música remete aos anos da ditadura militar, que certamente deu ao povo brasileiro um sapato, se é que deu, com um número ainda bem menor que o 36, tais os incômodos que ela causou. E o ir embora, remeteria a uma ida aos Estados Unidos, a chamada terra das liberdades e das oportunidades. Acho que é muito pouco. Na cabeça do Raulzito, muitas outras coisas deviam estar fervilhando.

Então vamos expandir. A ideia do pai opressor é uma imagem recorrente e onipresente na cultura ocidental. Com culpa ou sem culpa, o autoritarismo se estende de geração a geração através da figura do Pai. E o ponto culminante desta herança está na imagem de um Deus Pai. Um Pai sempre severo, com o qual as imposições morais que limitam os desejos humanos ganharam formas bem delineadas. Questão de mandamentos, sempre vindos do alto. Também o pai autoritário em nossas famílias se contrapõe à imagem generosa da mãe.

As diferentes concepções religiosas em muito contribuíram com a divisão social do trabalho, separando os seres humanos que pensam, daqueles que meramente executam. Os que pensam ditam as regras e os destinos. São eles que distribuem os sapatos 36 sem levar em conta que os nossos pés ou as nossas mentes já cresceram. E quanto mais crescemos, mais a dor da contenção e dos limites nos fazem sofrer, desde os tempos da saída da caverna para o confronto com a luz.  Pensar que não incomoda não é pensar, já nos alertava Saramago.

A dor é um sintoma. Sintomas são avisos para remover as causas da dor. Para eu descobrir que o sapato 36 não mais me serve e brigar por um 37 hoje, um 38 amanhã  e um 39 depois de amanhã... Livrar-se da dor pode ser ir para os Estados Unidos, a ilusória pátria das liberdades e das oportunidades. Livrar-se da dor é algo muito maior. Implica em visão telúrica, em utopias e em transcender. Partir, dificilmente se dá sem brigas, uma vez que a dor e o sofrimento está estruturalmente impregnada em nossa cultura. A briga contra as dores do mundo exige uma longa e permanente aprendizagem. Deixo a letra.


Eu calço é 37
Meu pai me dá 36
Dói, mas no dia seguinte
Aperto meu pé outra vez
Eu aperto meu pé outra vez

Pai eu já tô crescidinho
Pague prá ver, que eu aposto
Vou escolher meu sapato
E andar do jeito que eu gosto
E andar do jeito que eu gosto

Por que cargas d'águas
Você acha que tem o direito
De afogar tudo aquilo que eu
Sinto em meu peito
Você só vai ter o respeito que quer
Na realidade
No dia em que você souber respeitar
A minha vontade
Meu pai
Meu pai

Pai já tô indo-me embora
Quero partir sem brigar
Pois eu já escolhi meu sapato
Que não vai mais me apertar
Que não vai mais me apertar
Que não vai mais me apertar

Por que cargas d'águas
Você acha que tem o direito
De afogar tudo aquilo que eu
Sinto em meu peito
Você só vai ter o respeito que quer
Na realidade
No dia em que você souber respeitar
A minha vontade
Meu pai
Meu pai

Pai já tô indo-me embora
Eu quero partir sem brigar
Já escolhi meu sapato
Que não vai mais me apertar (Êêêê)
Que não vai mais me apertar (Aaaa)
Que não vai mais me apertar (Êêêê)



Como tenho os anarquistas em grande apreço, vai aqui ainda um pensamento do geógrafo anarquista francês Élisée Reclus, para nos acompanhar neste libertário ato de ir embora, com o sapato adequado para suportar a caminhada: "Não admitimos que a ciência seja um privilégio, e que homens empoleirados sobre uma montanha como Moisés, sobre um trono como Marco Aurélio, sobre um Olimpo ou um Parnaso de cartão, ou simplesmente sobre uma poltrona acadêmica, ditem-nos leis vangloriando-se de um conhecimento superior às leis eternas".

terça-feira, 5 de julho de 2016

Os sindicatos e o ato de ler.

No dia 2 de julho o grupo APP independente e democrática promoveu, na cidade de Londrina, a segunda etapa de seu curso de formação. Na primeira etapa houve falas sobre a identidade e a necessidade de formação do professor e a distribuição de leituras entre os professores dos núcleos participantes. Neste primeiro momento o grande objetivo era o estudo da realidade brasileira. O mote era: Como transformar a realidade se eu não a conheço.

14 livros foram trabalhados. Alguns deles são indicações de Antônio Cândido, outros são biografias e romances e ainda, alguns livros mais recentes de interpretação de nossa realidade. Para quem interessar possa, deixo a relação, por ordem de apresentação: O abolicionismo de Joaquim Nabuco; Ser escravo no Brasil de Kátia de Queirós Mattoso; Tenda dos milagres de Jorge Amado; A América latina - males de origem, de Manoel Bonfim; Índios no Brasil de Manuela Carneiro da Cunha; as biografias de Getúlio (Lira Neto), de JK (Cláudio Bojunga) e Jango (Jorge Ferreira); Ditadura e democracia no Brasil de Daniel Aarão dos Reis; A doutrina do choque de Naomi Klein; O ódio à democracia de Jacques Rancière; Como conversar com um fascista de Márcia Tiburi e A Tolice da inteligência brasileira de Jessé Souza. Na véspera houve uma fala do professor Renato Mocellin sobre a cidadania no Brasil, seus avanços e retrocessos.
Um livro bem provocador. Filosofia para não filósofos.

Mas o que eu quero chamar a atenção com este texto é sobre a importância e a necessidade da leitura. A primeira referência que eu faço é a Monteiro Lobato. Apenas isto: "Somos o que lemos". A segunda referência remete a Albert Jacquard, ao seu livro Filosofia para não filósofos. Nele ele fala sobre a alteridade e, ao falar dela, fala da solidão e ao falar da solidão fala da companhia dos livros. "Eu tive a sorte de povoar esta solidão com todos os autores encontrados nas prateleiras das bibliotecas e que foram bastante amáveis comigo; nunca zombaram de mim, levaram-me a desejar contato com seres de carne e osso, que são mais inquietantes, embora muito mais atraentes do que aqueles de quem só restam palavras".

Mas quem eu quero mostrar mesmo é Roberto Saviano, o escritor italiano, confinado pela proteção do Estado, que investigou a máfia e que fala dos resultados da leitura de seus livros e do respeito que ele nutre pelo seu leitor. O livro em questão é ZeroZeroZero. Começo com uma citação sua, retirada do Apocalipse: "Tomei o livrinho da mão do Anjo e o devorei - na boca era doce como mel; quando o engoli, porém meu estômago se tornou amargo".
Roberto Saviano. A máfia e a globalização.


A partir desta citação Saviano nos dá um conselho: "Creio que os leitores deviam fazer isso com as palavras. Metê-las na boca, mastigá-las, triturá-las e por fim engoli-las, para que a química da qual são compostas faça efeito dentro de nós e ilumine as turbulências insuportáveis da noite, traçando a linha que distingue a felicidade da dor". Localizei o versículo. É João 10:10 e se quiser contextualizar é João 10: 1 a 11. O apreço ao leitor rapidamente se transforma em admiração por aquele que "subtrai um tempo importante de sua vida para construir nova vida". E continua:

"Nada é mais poderoso do que a leitura, ninguém é mais mentiroso do que quem afirma que ler um livro é um gesto passivo. Ler, escutar, estudar, compreender é o único modo de construir vida além da vida, vida ao lado da vida. Ler é um ato perigoso porque dá forma e dimensão às palavras, encarna-as e as espalha em todas as direções". Um pouco mais adiante continua, agora já falando da importância de conhecer o mundo do tráfico internacional da droga. "Conhecer é começar a mudar. Para quem não joga fora estas histórias, não as ignora, sente-as como próprias, para essas pessoas vai o meu respeito". E ainda  no mesmo tom, continua:
"Quem se sente arcar com as palavras, quem as grava sobre a própria pele, quem constroi para si um novo vocabulário está mudando o curso do mundo porque compreendeu como se situar nele. É como romper grilhões. As palavras são ações, são tecido conectivo. Somente quem conhece estas histórias pode se defender destas histórias. Somente quem as conta ao filho, ao amigo, ao marido, somente quem as leva aos lugares públicos, aos salões, às salas de aula, está articulando uma possibilidade de resistência. Para quem está sozinho sobre o abismo, é como estar numa jaula, mas se forem muitos a decidir enfrentar o abismo, então as grades daquela cela se dissolvem. E uma cela sem grades já não é uma cela".

E junto com a proposta aos sindicatos de se preocuparem com a formação de seus sindicalizados para que possam lutar melhor, a minha última referência, que remete a Ray Bradbury, ao Fahrenheit 451, ao personagem Beatty, o bombeiro refuncionalizado, transformado em incendiário de livros, já que materiais impermeáveis ao fogo o levam a procurar uma nova função, a de incendiar livros e, possível e preferencialmente, também os seus autores: "Um livro é uma arma carregada na casa da vizinha". E voltando a Monteiro Lobato: Também somos o que não lemos.

segunda-feira, 4 de julho de 2016

Mayombe. Pepetela. Vestibular da USP.

Chego ao livro Mayombe, de Pepetela através da indicação de livros incluídos na relação do vestibular da FUVEST. Pepetela é o nome literário de Artur Carlos Maurício dos Santos, um escritor angolano, nascido em 1941. É literatura africana de língua portuguesa em nossos vestibulares. E Angola é o grande tema deste seu livro.
O belo livro de Pepetela. No vestibular para a USP.

Mayombe é uma região montanhosa coberta de densa floresta, na qual os guerrilheiros do MPLA estabeleceram as suas bases no processo de luta pela independência do país. Um pouco de história ajuda na melhor compreensão do livro. A independência de Angola se deu em 1975, após a Revolução dos Cravos, que restabeleceu a democracia em Portugal, no famoso 25 de abril de 1974. Três movimentos guerrilheiros foram responsáveis pelo heroico feito de ruptura da dependência portuguesa. O MPLA, a UNITA e a FNLA. Isso só poderia dar em uma longa guerra civil, após a realização da independência. O MPLA teve  papel preponderante no processo. 

O livro é datado de 1980 mas no registro de memórias existem fatos ocorridos em 1961, ano de fundação do MPLA. O livro tem a seguinte dedicatória: "Aos guerrilheiros do Mayombe, que ousaram desafiar os deuses abrindo um caminho na floresta obscura, Vou contar a história de Ogun, o Prometeu africano". O livro é dividido em cinco capítulos, a saber: I. A Missão; II. A Base; III. Ondina; IV. A Surucucu e V. A Amoreira.

Em A Missão, a necessária guerra contra o colonialismo é o tema e a guerrilha é o meio. Vejamos um escrito de Sem Medo, o comandante e o personagem principal do Livro: "Sacanas colonialistas, vão à merda, vão para a vossa terra. Enquanto estão aqui, na terra dos outros, o patrão está a comer a vossa mulher ou irmã, cá nas berças"! No capítulo sobre a Base está descrita a organização guerrilheira e os seus problemas. Possivelmente a parte fundamental do livro. Veremos depois, a questão tribal.

No capítulo sobre Ondina continuam os problemas da guerrilha. Ondina chama para as questões da sexualidade e da afetividade em meio a guerrilha. Mas afloram também as questões de disciplina, da individualidade e do coletivo e as próprias dúvidas com relação aos objetivos do movimento. A Sururucu do quarto capítulo é relativa a um alarme falso que provocou uma operação da guerrilha. O capítulo sobre a Amoreira é um dos mais bonitos, já no encaminhamento do livro para a sua parte final. Transcrevo um trecho sobre o envolvimento da amoreira com a floresta, que deixo para a interpretação do leitor. É uma metáfora. São reflexões do Comissário junto ao corpo de Sem Medo, o Comandante:

"A amoreira gigante à sua frente. O tronco destaca-se do sincretismo da mata, mas se eu percorrer com os olhos o tronco  para cima, a folhagem dele mistura-se à folhagem geral e é de novo o sincretismo. Só o tronco se destaca, se individualiza. Tal é o Mayombe, os gigantes só o são em parte, ao nível do tronco, o resto confunde-se na massa. Tal é o homem. As impressões visuais são menos nítidas e a mancha verde predominante faz esbater progressivamente a claridade do tronco da amoreira gigante. As manchas verdes são cada vez mais  sobrepostas, mas, num sobressalto, o tronco da amoreira ainda se afirma, debatendo-se. Tal é a vida".

Já na última página encontramos, na voz do Chefe das Operações uma bela frase conciliatória mas que não deixa de refletir os problemas: "Lutamos, que era cabinda, morreu para salvar um kimbundo. Sem Medo, que era kikongo, morreu para salvar um kimbundo. É uma grande lição para nós, camaradas". É a grave questão tribal que levou o país para uma longa guerra civil, amplamente fomentada pela divisão da bipolaridade dos tempos da guerra fria.

Por ocasião da independência, Pepetela, que era guerrilheiro do MPLA, ocupou o segundo cargo no Ministério da Educação do país. Foi professor universitário e hoje se dedica integralmente à literatura. Ganhou o Prêmio Nacional de Literatura de Angola, com Mayombe e o Prêmio Camões, o maior prêmio da literatura portuguesa.

O livro é um belo mergulho na subjetividade das pessoas. Seus ideais, seus sonhos, suas utopias.  E o choque dos sonhos coletivos com a afirmação e os desejos do individual. Um belo confronto entre os valores burgueses arraigados e os valores do chamado homem novo, uma tentativa de realização dos regimes socialistas.  É bom lembrar que estes sonhos socialistas já não tinham a mesma força de antes, ao final da segunda guerra mundial. O 1956  e o XXº Congresso do PCUS já tinha acontecido.




sexta-feira, 1 de julho de 2016

Os Sete Pecados Capitais. Plenos Pecados.

A coleção Plenos Pecados foi uma idealização da editora Objetiva. Deve ter sido concebida em meados dos anos 1990. Deduzo isso pelo livro de Zuenir Ventura, o primeiro a ser lançado, no ano de 1998. Como ele demorou bastante para escrever, no mínimo uns dois anos, concluo que o projeto tenha sido concebido lá pelos anos 1995-96.

Quando eu ainda estava em sala de aula sempre brincava com os meus alunos, perguntando se eles conheciam os sete pecados capitais e quando eles respondiam que não eu emendava uma outra pergunta. Então como é que vocês se divertem?  Agora, após a leitura sobre todos eles percebi que nem todos se constituem numa diversão. O livro de Zuenir Ventura, inclusive tem o título de Mal Secreto. É sobre a inveja. Este pecado é inconfessável e certamente não dá nenhum prazer.

O projeto da editora foi um projeto maravilhoso. Se eu brincava com os meus alunos a respeito de suas diversões, o tema, no entanto, é absolutamente sério. Ele remete ao que é profundamente humano. Eles estão presentes ao lado de toda a construção histórica e cultural da humanidade. Sem grandes esforços de memória vejamos alguma coisa da cultura judaico cristã como a desobediência de Adão e Eva (porque desobedeceram?), o primeiro assassinato cometido na história bíblica - o crime de Caim contra o seu irmão Abel, e as cenas de bebida e Luxúria cometidas por Noé e, até o pecado cometido por Deus, na expulsão de Adão e Eva do paraíso, o pecado da ira.

E se fôssemos fazer estas incursões pela mitologia e pela literatura? Ou então os estudos que envolvem as patologias humanas?  Zuenir Ventura buscou informações sobre o pecado da inveja, junto a religiosos judaico-cristãos e africanos, além de psiquiatras e psicanalistas. Repressão e excessos estão sempre na ordem do dia. Mas como o tema é longo e quero apenas apresentar os livros da coleção, vamos lá. Eles são os seguintes. Vou enumerá-los e apresentá-los de acordo com o que consta nos próprios livros.
Uma amostra. A coleção tem uma edição padronizada.

SOBERBA - O voo da rainha - Tomás Eloy Martinez. A soberba é o mais prolífico dos vícios capitais. O autor constroi uma narrativa apaixonante, ao mergulhar no universo da arrogância masculina - 280 páginas.

LUXÚRIA - A casa dos Budas Ditosos. João Ubaldo Ribeiro. O relato de uma senhora de 68 que viveu plenamente a luxúria. João Ubaldo conta as peripécias sexuais e aventurosas dessa mulher que provocou a libido de homens e mulheres. 164 páginas.

GULA - O clube dos anjos. Luis Fernando Veríssimo. Uma insólita e bem humorada celebração da gula. Veríssimo conta a história de dez homens que se entregaram a essa afinidade animal, a fome em bando, sem temer a morte. 140 páginas.

IRA - Xadrez, truco e outras guerras. José Roberto Torero. O escritor e roteirista se inspira na Guerra do Paraguai para construir um romance em que ironia e sarcasmo revelam o lado pouco heroico de muitas guerras. 184 páginas.

INVEJA - Mal secreto. Zuenir Ventura. O livro mistura aventura e revelações, como um jogo tecido pela própria inveja, onde o mais importante não é o que se ganha, mas o que o outro perde. 268 páginas.

PREGUIÇA - Canoas e marolas. João Gilberto Noll. No seu texto de incomparável poesia, Noll apresenta uma nova visão da preguiça, mostrando o mais indolente dos pecados capitais. 108 páginas.

AVAREZA - Terapia. Ariel Dorfman. O autor nos leva a uma viagem tempestuosa e divertida pelos desejos de um empresário que aceita um tratamento nada ortodoxo, que o faz adaptar-se com seu lado mais obscuro. 171 páginas.

No livro de Tomás  Eloy Martinez, um dos mais bonitos por sinal, tem até uma pequena história destes pecados. Como não é tão longa, a transcrevo: "No século IV depois de Cristo, propagou-se nos mosteiros orientais certo temor dos vícios que podiam perturbar a aspiração dos monges a uma vida perfeita. O primeiro a estabelecer uma lista de vícios foi o anacoreta egípcio Evagrius Ponticus (346-399). Determinou que os essenciais eram oito e que deles derivavam todos os demais.

Mais tarde, outro eremita, o romeno Johannes Cassian (360-435), impôs a proibição absoluta dos oito vícios, convertendo-a em regra de ferro da vida monástica. O papa Gregório Magno estendeu essa proibição a toda a cristandade, ainda falando em oito pecados viciosos: inveja, ira, gula, luxúria, avareza, preguiça, soberba e vanglória. Foi Tomás de Aquino, por volta de 1250, quem fundiu os dois últimos em um só. Ao simplificar a soberba, tornou-a menos temível e involuntariamente a fomentou".

Uma curiosidade interessante é que Dante Alighieri, que fundamenta os seus círculos do Inferno nos pecados capitais, não considerou a inveja um pecado tão grave. Foi condescendente com os invejosos que o precederam e os colocou apenas no Purgatório.
A atualização dos pecados feita por Herkenhoff.


Também achei um belo livrinho em que os pecados capitais foram atualizados e as suas dimensões foram atualizadas. É um livrinho muito sério e profundamente humano. Estou falando de Os Novos Pecados Capitais, de João Baptista Herkenhoff. Nele os pecados ganharam as seguintes atualizações: A soberba se transformou em pretensão imperialista, ira em guerra, a inveja em complexo de inferioridade, a avareza em materialismo, a preguiça em individualismo, a gula em fome de lucro e a luxúria em consumismo.

Quem quiser se por no espelho e se conhecer um pouco melhor encontra nestes livros uma boa oportunidade. Também são extraordinários para presentear os amigos. Pena que muitos estejam com a edição esgotada.