quinta-feira, 15 de maio de 2025

Bandeirantes e pioneiros. Paralelo entre duas culturas. Vianna Moog.

Começo esta resenha de - Bandeirantes e Pioneiros - paralelo entre duas culturas -, de Vianna Moog, contando a forma pela qual adquiri o livro, provavelmente em meados dos anos 1970. Após me formar em filosofia, na Faculdade de Filosofia Nossa Senhora da Imaculada Conceição, da cidade de Viamão, no ano de 1968 e, já no ano seguinte, eu me estabelecia na cidade de Umuarama (PR), como professor. Enquanto meus pais estavam vivos, uma ou até duas vezes por ano, eu ia visitá-los. E eu ia de ônibus, passando por Curitiba. Assim Curitiba - Porto Alegre, via serra, estava em meu roteiro.

Bandeirantes e pioneiros. Paralelo entre duas culturas. Vianna Moog. Civilização brasileira.

Bem, numa dessas viagens, havia uma parada para almoço, na cidade de Vacaria. No restaurante havia uma banca de jornais e revistas e também alguns livros. Entre os livros, estava o próprio: Bandeirantes e Pioneiros. O dinheiro era escasso, mas não tive dúvidas em adquiri-lo. Nunca fui pão-duro para a compra de livros. Coisas daquele tempo. Creio que nos dias de hoje não encontraria o livro tão à mão. O livro teve a sua primeira edição no ano de 1954 e, o exemplar que eu adquiri foi o da 9ª edição, do ano de 1969. Vianna Moog é gaúcho de São Leopoldo, nascido no ano de 1906. Veio a falecer em 1988, na cidade do Rio de Janeiro. Integrou a Academia Brasileira de Letras, ocupando a cadeira de número 4.

A grandeza do livro começa pelo seu título e sub-título. Nada mais claro e preciso. Creio que cabe perfeitamente no imaginário de qualquer pessoa a diferença entre um bandeirante e um pioneiro, a de um explorador, de um colonizador. Essa diferença chama o sub-título: paralelo entre duas culturas. As duas culturas são as de dois países: Brasil e Estados Unidos. O livro tem um curto prefácio do autor. Nele enuncia o tema ou a grande razão de ser do livro: Como pode haver tanta diferença entre dois países, sendo os Estados Unidos, a grande potência e o Brasil sendo o que é. Quais seriam as razões para toda essa diferença. A resposta, ou as respostas estão ao longo das 361 páginas do livro

Ele está estruturado em seis capítulos, prefácio, epílogo e bibliografia. Dou os títulos dos capítulos: 1.Raça e geografia; 2. Ética e economia; 3. Conquista e colonização; 4. Imagem e símbolo; 5. Fé e símbolo; 6. Sinais dos tempos. Mais uma vez, observamos que conquista e colonização. Estas palavras também nos remetem ao título. A conquista é obra do bandeirante, da exploração predatória e a colonização é fruto do trabalho, do árduo trabalho do pioneiro. Concepções de vida totalmente diferentes. Mas há também outros fatores, bem visíveis, nos outros capítulos. Ainda no prefácio, o autor nos adverte sobre as polêmicas que o tema provoca. Mas ele diz topar o mexer nos marimbondos.

Dou em pequenos tópicos, alguns itens básicos sobre cada capítulo. Assim, no primeiro, veremos o racismo, a escravidão e a miscigenação nos USA e no Brasil, a questão da disposição das cadeias montanhosas nesses países e, também da mesma forma, os rios. Teriam esses fatores facilitado ou dificultado a ocupação do continente? São analisadas algumas experiências. O segundo capítulo, provavelmente o que mais bibliografia e estudos acumula, mostra o Brasil como um país católico e os USA como um país protestante. Protestantes calvinistas. Isso importa, pois eles tem uma visão muito particular sobre o trabalho. Trabalhar é a melhor forma de orar e engrandecer a Deus. Também são mostradas as implicações da visão calvinista com a teoria agostiniana da predestinação e desta, com a prosperidade. Há muitas referências a Max Weber.  A ética protestante e o espírito do capitalismo. Outra parte do capítulo é destinada à análise das riquezas de solo e subsolo dos dois países e suas influências, ou não, no desenvolvimento econômico.

Em conquista e colonização, o tema do terceiro capítulo, a abordagem passa pela análise dessas palavras e suas implicações. As influências religiosas e suas concepções sobre o trabalho são vistas pelos olhos de pioneiros e de bandeirantes, além do espírito prático e inventivo do pioneiro, contra o espírito aventureiro e o desejo de enriquecimento fácil e rápido do bandeirante.  Os desdobramentos dos temas desses três primeiros capítulos são o material para os outros três. No quarto capítulo são mostrados os fatores que marcaram a passagem do pioneiro para o ianque e à Guerra da Secessão. É mostrada ainda a figura de Lincoln e a sua ação na pacificação e na manutenção da unidade do país. Já do Brasil, vamos ver as primeiras experiências de colonização pela imigração no sul do país.

No quinto capítulo é observada a não permanência dos princípios pioneiros e fundadores e o seu rompimento com o plasmar da grande nação, quando no Brasil só se vislumbra pessimismo em seu futuro. A miscigenação piora as raças misturadas.  Dois personagens fantásticos são apresentados nessa visão. Babbit, de H.S. Lewis e José Dias., o personagem de Dom Casmurro, do grande Machado de Assis. Babbit representa o comerciante ianque, que se torna grande, já despido das virtudes do pioneiro. Enquanto isso, persiste em José Dias o desejo do enriquecimento fácil e sem trabalho penoso.

Em Sinais dos tempos, no sexto capítulo, mais dois personagens nos são apresentados. Lincoln pelos Estados Unidos e o Aleijadinho pelo lado brasileiro. Um belíssimo capítulo. Figuras míticas, muito veneradas. Da orelha da capa e contracapa do livro tomo mais algumas referências:

"Bandeirantes e Pioneiros, de Vianna Moog, é uma primeira tentativa séria de interpretação comparativa.

O segundo capítulo, intitulado Ética e economia, é dos que mais estimulam o debate. Nele se coloca, paralelamente, o desenvolvimento de dois tipos de capitalismo: a progressão geométrica norte-americana, no quadro do protestantismo, a progressão aritmética brasileira, no quadro do catolicismo. Trabalho de erudição e pesquisa, equivale a um verdadeiro ensaio que, sozinho, justificaria prolongada e frutífera polêmica.

Polêmico, aliás, é o livro todo. Vianna Moog suscita o diálogo com a crítica, já que admite - em seu prefácio - ter abordado 'um tema essencialmente dinâmico, com um número quase ilimitado de incógnitas, todas a variarem umas em função das outras'. um tema, em suma, que 'não é propriamente dos que comportam pronunciamentos definitivos ou julgamentos isentos de erros de observação, de emoção e de interpretação'".

Um livro que, embora a sua data de publicação seja de 1954, continua sendo muito atual e que explica muito das diferenças entre os dois países. As grandes interpretações de Brasil são bem tardias e uma visão positiva de nosso país ocorre apenas a partir de Gilberto Freyre, com Casa-Grande & Senzala, publicado em 1933.

Deixo ainda duas resenhas de livros abordados nas análises. Babbitt, o comerciante ianque.

http://www.blogdopedroeloi.com.br/2025/05/babbitt-harry-sinclair-lewis-1922-nobel.html

E também o A ética protestante e o espírito do capitalismo, de Max Weber.

http://www.blogdopedroeloi.com.br/2025/01/a-etica-protestante-e-o-espirito-do.html


terça-feira, 13 de maio de 2025

ESCRAVIDÃO. Laurentino Gomes. Os três volumes. Mais - O abolicionismo e Ser escravo no Brasil.

A finalidade deste post é agrupar as três resenhas dos livros de Laurentino Gomes sobre a escravidão no Brasil. Os três livros, sem favor, se constituem na grande pesquisa brasileira sobre tema. Um esforço inaudito e sob um olhar perspicaz  e de um posicionamento de indignação diante dos horrores praticados. Os seus livros certamente se integram no esforço de, no dizer de Joaquim Nabuco, nos levar também, não apenas à abolição, mas também à sua obra. A obra da escravidão.

O livro indicado por Antônio Cândido, como o grande livro de referência. Ser escravo no Brasil.

Deixo também a resenha do livro que o grande Antônio Cândido indica como o grande livro de referência sobre o tema, o livro de Kátia de Queirós Mattoso, nascida na Grécia e professora da Universidade Federal da Bahia, Ser escravo no Brasil. 

Reúno estes posts na data de treze de maio - 2025, com a intenção de facilitar o acesso. Com certeza, a escravidão brasileira teve as suas peculiaridades, sem deixar de ter, por um único momento que seja, a sua grande característica de perversidade moral. Deixo ainda a obra de Joaquim Nabuco, um pensador monarquista e liberal, que no meu entender foi a voz mais lúcida e propositiva desta página de nossa história. A sua grande obra foi O abolicionismo.

Então vamos lá. Ao primeiro volume. Escravidão - Do primeiro leilão de cativos em Portugal até a morte de Zumbi dos Palmares. 

http://www.blogdopedroeloi.com.br/2020/03/escravidao-volume-1-laurentino-gomes.html

O segundo volume. Escravidão - Da corrida do ouro em Minas Gerais até a chegada da corte de dom João ao Brasil. 

http://www.blogdopedroeloi.com.br/2021/10/escravidao-volume-ii-laurentino-gomes.html

O terceiro volume. Escravidão. Da Independência do Brasil à Lei Áurea.

http://www.blogdopedroeloi.com.br/2022/09/escravidao-volume-iii-da-independencia.html

O livro Ser escravo no Brasil. Kátia de Queirós Mattoso.

http://www.blogdopedroeloi.com.br/2013/11/ser-escravo-no-brasil-katia-de-queiros.html

E Joaquim Nabuco com o seu O abolicionismo. O livro foi escrito no calor da campanha abolicionista.

http://www.blogdopedroeloi.com.br/2022/06/o-abolicionismo-1883-joaquim-nabuco_29.html

Que estes posts possam estimular novas leituras. É a minha intenção.

quinta-feira, 8 de maio de 2025

LEÃO XIV. Robert Prevost. O primeiro papa Estadunidense.

A eleição de um novo papa me afeta profundamente. Mexe muito com as minhas memórias e com a minha formação. O tema não me é novo. Já passei pelas escolhas de João XXIII (outubro de 1958), Paulo VI (1963), João Paulo I (1978), João Paulo II (1978), Bento XVI (2005), Francisco (2013) e agora, em 2025, Leão XIV. Creio que a indicação mais distante é a que me traz a mais viva de todas as memórias e, também a que, seguramente, mais profundamente marcou a minha formação.

Leão XIV. Foto divulgação CNBB - Sul.

Era outubro de 1958. Eu me encontrava no seminário São João Maria Vianney, na cidade gaúcha, mais alemã do que gaúcha, de Bom Princípio. Tinha 12 anos e cursava o meu primeiro ano do ginásio. Sem entender de muita coisa, recebíamos as informações através dos padres do seminário. Chorei e rezei com toda a devoção possível. Do mesmo ano, alguns meses antes, ouvi distantes informações sobre Pelé e sobre a primeira conquista brasileira no futebol mundial. Era na Suécia.

Reconstituindo um pouco a história, nomino os papas que antecederam a João XXIII, para logo a seguir entrar nos feitos de João XXIII e também entender um dos fatores, se não o mais importante, que levou o cardeal Robert Prevost, à escolha do nome de Leão XIV. Então vamos lá. Leão XIII teve um longo pontificado de 25 anos (1878-1903). Foi sucedido por Pio X (1903-1914), Bento XV (1914-1922), Pio XI (1922-1939) e Pio XII (1939-1958). Então o escolhido foi João XXIII. Os Pios, talvez não tão pios assim, ou talvez pios demais, centravam suas preocupações mais com os aspectos doutrinários da Igreja. Foram papas que viveram os tormentosos cinquenta primeiros anos do século XX. Duas Guerras mundiais, entremeadas por crises econômicas e políticas, como a ascensão dos regimes autoritários do fascismo e do nazismo e do comunismo na União Soviética.

Leão XIII foi marcado pela publicação da Encíclica Rerum Novarum, a primeira manifestação da Igreja católica sobre os problemas surgidos com o mundo moderno, especialmente pelo surgimento da industrialização e os conflitos decorrentes no mundo do trabalho. Luta ou conciliação de classes. De que lado se posicionar. Me lembro bem, - foi uma das disciplinas que estudei, - agora já no seminário São José de Gravataí, onde terminei os meus anos de ginásio e onde fiz também o meu ensino médio. A disciplina - Doutrina Social Cristã, retornou depois no curso de filosofia, feito na Faculdade de Filosofia N.S. da Imaculada Conceição, em Viamão. 

Depois, já no exercício de professor, em Umuarama, retomei o tema em algumas aulas do ensino médio, numa disciplina chamada - estudos sociais. Guardo comigo, até hoje um livro, um livro monumental, que tomei como referências. - Cristianismo, sociedade e revolução, do padre Paul-Eugène Charbonneau. O livro é da Editora Herder. Charbonneau já examinava mais de perto as encíclicas posteriores como a Gaudium et Spes e a Populorum Progressio, ambas de Paulo VI, sem deixar de focar nos documentos originários.

Voltando às memórias. João XXIII foi Revolução Pura. Aggiornamento era a palavra de ordem. Atualizar a Igreja aos novos tempos, às grandes transformações do mundo moderno. Para não assumir sozinho tão grande responsabilidade, convocou os bispos e os reuniu em concílio, em assembleia, para deliberar, para modernizar, para aggiornar. Coisas simples, - uso de língua vernácula, missa de frente para os fieis, abertura para leigos, ecumenismo. As aberturas não pararam mais. Novas inovações foram feitas e continuarão a ser feitas. Visões abertas para a pluralidade do mundo e seus anseios.

Pelo Concílio Vaticano II o olhar também se voltou mais para a América Latina e para as suas peculiaridades, para os seus problemas. Em Puebla os bispos definiram sua opção preferencial pelos pobres, na França surgiram os padres operários. Também na América Latina surge e se afirma a Teologia da Libertação. Tudo isso me marcou profundamente em meus anos de formação inicial.

Uma palavra sobre Francisco. Apenas uma. Um atributo que lhe foi dado por Umberto Eco. "Francisco é um jesuíta paraguaio". O que isso quer dizer? Que o papa Francisco é um papa missioneiro. Quem conhece a fantástica experiência das Missões sabe da força dessa atribuição. Um papa missioneiro.

Vendo o cerimonial magnífico desses dias entre a morte de Francisco e a eleição de Leão XIV, me lembro de um dos últimos fatos de minha vida no seminário. Isso já ao fim da filosofia, em Viamão. Nos dizia o padre reitor, posteriormente também bispo e cardeal. -"Vocês pertencem a maior instituição do mundo e é ela que pensa por vocês". Tudo dentro da perfeita lógica da hierarquia, da hieros - archei. Da ordem ou do governo sagrado. Me familiarizei com uma linguagem mais leiga. Mas aos padres devo a minha formação. Luto pela preservação do humano. Só trago comigo agradecimentos.

Quanto a Leão XIV, assim como Francisco, o simples nome já é um indicativo de caminhos. Meu filho me apontou para um postagem de direita, referente ao tema, nas redes sociais. Ela dizia. "Duas coisas me preocupam. A TL e a proximidade com Francisco". Já para mim - afirmo bem alto. - É o que me anima, é a utopia que me faz andar, e andar em transcendência - de trans - scandere, de travessia em escalada. Em ascensão. Da leveza. Na preservação do humano e da humanidade, ao lado de Francisco, dos dois Franciscos, de Leão, dos dois Leões - dos abridores de caminhos.

E, uma pequena lembrança de sua primeira mensagem; "Permitam-me dar sequência àquela mesma bênção (De Francisco): Deus nos quer bem, Deus nos ama a todos. O mal não prevalecerá. Estamos todos nas mãos de Deus. Portanto, sem medo, unidos, mão na mão com Deus e entre nós, sigamos adiante. Somos discípulos de Cristo. Cristo nos precede"... "SEM Medo". "A todos".

terça-feira, 6 de maio de 2025

BABBITT. Harry Sinclair Lewis. 1922. Nobel de Literatura - 1930.

 A cultura dos Estados Unidos no divã. Isso é Babbitt, o romance de Harry Sinclair Lewis, datado do ano de 1922. Babbitt é o sobrenome do comerciante George Babbitt, da fictícia cidade de Zenith. Ele é do ramo imobiliário. H.S. Lewis foi o primeiro Nobel de Literatura das Américas, laureado no ano de 1930. É ele e a sua família que estão no divã da psicanálise. Hipocrisia, falsidade, mentiras e camuflagens, humor ácido e ironia são os seus grandes ingredientes. Creio que o primeiro dado importante a observar é o ano de sua publicação, o ano de 1922. Depois da Primeira Guerra Mundial, serão os Estados Unidos que estarão no rumo da construção da maior potência mundial, ao mesmo tempo em que se prenunciam graves crises.

Babbitt. Sinclair Lewis. Abril Cultural. 1972. Tradução: Leonel Vallandro.

Observemos também os principais personagens. Em primeiro lugar os de sua família: Myra, ou a senhora Babbitt e os filhos Verona, Ted e Tinka.  Seguem-se os amigos, especialmente os do tempo de escola, com grande destaque para Paul Riesling e a esposa Zilla, os vizinhos e as instituições. Ah! As instituições! As instituições e os seus valores. O conservadorismo. O Partido Republicano e a Igreja Presbiteriana. Para além dos diversos clubes, que tem nos "cidadãos de bem" os seus sócios.

O tema é fascinante. Sempre me aguçou muita curiosidade. Dou os livros de maior destaque: O de um dos meus primeiros contatos com o tema -  Bandeirantes e Pioneiros - Paralelo entre duas culturas, de Vianna Moog, o clássico Da democracia na América, de Alexis de Tocqueville, o extraordinário Antiintelectualismo nos Estados Unidos, de Richard Hofstadter, o necessário A ética protestante e o espírito do capitalismo, de Max Weber e, já que entramos no campo religioso, os muitos livros que analisam a cultura americana e a sua visão de celebração de uma Nova Aliança e suas implicações, que resultaram nas tais - teologias da prosperidade. Não poderia deixar de citar aqui a fantástica e incomparável obra de Philip Roth.

Mas, a obra em análise é Babbitt, de H. S. Lewis (1885-1951). Após as primeiras manifestações vamos a estrutura da obra. O livro que eu li é a da coleção Os Imortais da Literatura Universal. A obra tem 441 páginas, divididas entre 34 capítulos, todos eles divididos em pequenos tópicos, sem títulos. Já vimos que o tempo do livro é dos antecedentes da década de 1920 e o cenário é o da cidade de Zenith, uma fictícia cidade média dos Estados Unidos, com uma população média em torno de 350.000 habitantes, rumo a um progresso sem par, aspirando a figurar entre as maiores cidades do país. Babbitt é um comerciante do ramo imobiliário, lidando com seguros, aluguéis e compra e venda. Ele vive confortavelmente, com um padrão de vida de classe média alta. A sua rotina é atordoante e agradar a pessoas intoleráveis é o seu ofício. Já que nada produz, ele praticamente vive de relações públicas das quais busca tirar proveito. Isso o obriga a transgressões alheias à sua vontade. E, lembrando, é tempo de Lei Seca. Bebidas obrigam a mais e novas transgressões. 

Babbitt é absolutamente conservador e fervoroso combatente do comunismo. Pertence ao casmurro Partido Republicano e à puritana igreja presbiteriana. Este conservadorismo emoldura sua vida, seus hábitos e práticas diárias. Enquanto frequenta regularmente as instituições e pratica a ética prescrita pelas mesmas, ele obtém clientes preferenciais e avança em seus negócios. O seu combate ao comunismo, por óbvio, o opõe, a todas as lutas dos trabalhadores pelos direitos mais fundamentais. Por óbvio, também prega a conciliação de classes.

A convivência e os dramas vividos pelo seu amigo Paul afetam profundamente a sua vida. O casal vive uma grave crise conjugal, que termina em tiros e prisão. E Babbitt passa a viver também ele a sua crise, a crise da monotonia do casamente monogâmico. Começa a duvidar de seus valores e relaxa na sua prática. A economia passa a preceder a ética. Frequenta a casa de uma amiga, Tanis e frequenta um novo clube, denominado de A Turma. Ali se sente bem, ao contrário do que ocorria em casa e no escritório. Até "teve horror à obrigação de lhe mostrar afeto", referindo-se à sua esposa, a senhora Babbitt. A presença dos rigores da ética ou da moral em que fora educado o levam a arrependimentos e promessas, sempre descumpridas quinze minutos depois de feitas. A sua vida passa a ser observada e a sua presença ou companhia, evitada. Até os negócios que exigiam influência de indicações começaram a minguar.

A vida, ou os negócios da vida passaram pela exigência de uma volta e de reconciliações. Volta a sua antiga vida de conformidades.  Após um internamento e cirurgia da esposa, o antigo George estará de volta à cena da vida de Zenith. Passa a frequentar a Liga dos Bons Cidadãos, uma liga daquilo que hoje conhecemos sob o nome de "Cidadãos de Bem", ao menos assim autodenominados. Volta a ser um ardoroso combatente do comunismo. Volta a sua vida de hipocrisia plena. Vejamos o parágrafo final em que o vemos num diálogo com Ted, o filho:

"Bem... - Babbitt atravessou a sala devagar, pesadamente, com o caminhar um tanto envelhecido. - Sempre quis ver-te formado. - Tornou a cruzar a peça meditativamente. - Mas eu nunca... Pelo amor de Deus, não vás repetir isto à tua mãe., porque é capaz de me arrancar o pouco de cabelo que ainda me resta, mas o fato é que em toda a minha vida nunca fiz nada do que desejava fazer! Fui simplesmente vivendo como me permitiam. Calculo que, de cem quilômetros que podia ter andado, não avancei mais que meio centímetro. Bem, talvez tu vás mais longe.  Não sei. Mas sinto uma espécie de satisfação furtiva por ver que tu sabias o que querias, e o fizeste. Essa gente vai procurar intimidar-te. Manda-os para o inferno! Eu te apoiarei. Aceita o emprego na fábrica, se quiseres. Não tenhas medo da família. Não, nem de toda Zenith. Nem de ti mesmo, como eu tive. Avante meu filho! O mundo é teu!

Os dois Babbitt, pai e filho, entraram abraçados na sala e fizeram frente à família ameaçadora". Uma confissão da prisão em que vivera, prisão das inúmeras convenções às quais sempre se submetera. Um grito em busca de um pouco de autonomia.

Mas vamos a outras considerações. Tomo como guia o livro de notas biográficas que acompanha a coleção. Vejamos a referência a Babbitt: "Utilizando-se de uma cidadezinha, Lewis denuncia o modo de vida de um lugarejo de classe média da América provinciana. A sátira presente no romance rompe com a ficção americana anterior, que sempre procurou descrever a vida de uma pequena cidade como boa e inocente, se comparada às grande metrópoles, além de supervalorizar o papel da classe média.

Lewis costumava citar o ensaísta Thoreau (1817-1862) como influência permanente em toda a sua obra. [...] Assim ele fez para escrever seu próximo romance. Viveu algum tempo em Cincinnati, Ohio, onde pode observar o comportamento dos habitantes, suas expressões mais comuns e sua gíria. Todo esse trabalho de 'laboratório' resultou em Babbitt, cuja ação se passa na cidade fictícia de Zenith. Em Babbitt, exceto os primeiros sete capítulos, onde ele descreve vinte e quatro horas - 'de toque de despertador a toque de despertador' - da vida de sua personagem, todos os outros restantes constituem uma sociologia da classe média americana. Cada um desses capítulos trata de um assunto específico, como política, prazeres, vida em clubes, a barbearia, o botequim. (Também uma greve).

Babbitt retrata o mundo do pequeno homem de negócios. Sendo comerciante, ele não é um produtor; portanto, seu sucesso financeiro depende de um bom trabalho de relações públicas. O livro é uma sátira ao grupo dos mesquinhos e ridículos pequenos comerciantes. O protagonista não consegue romper o círculo que o envolve, porque não consegue imaginar uma vida diferente do seu mundo corrupto e competitivo. Quando Babbitt denuncia contradições ou divergências do grupo, faz isso apenas para continuar nele. Na verdade, ele age em função das relações públicas, e não das relações humanas.

Publicado em 1922, Babbitt despertou uma onda de polêmicas que o escritor não poderia ter imaginado. Em algumas regiões, Lewis era visto como um 'deformador da vida americana'. Todos os jornais reservavam espaço para comentar o livro. O New York Times aprovava Babbitt, ao mesmo tempo que tentava confortar os habitantes do meio-oeste, dizendo que os Babbitts poderiam ser encontrados em qualquer lugar, e que o escritor apenas se teria inspirado no meio-oeste porque essa região lhe eram bem mais familiar.

As críticas variavam muito e iam de extremo a extemo. Afinal, por suas origens, Lewis era também um Babbitt. E, assim, o sucesso do romance poderia ser atribuído ao fato de que grande parte do público via no escritor um aliado e não um inimigo. Inclusive, muitos dos ótimos comentários que a obra recebeu partiram de jornais de pequenas cidades - semelhantes a Zenith do romance - que se sentiam orgulhosas de terem servido de modelo a um livro.

Lewis divertia-se com todas as controvérsias. As suas mãos chegavam cartas de conteúdos diversos. Numa delas, o escritor Somerset Maugham (1874-1965) dizia: 'Nunca um certo tipo ou uma certa classe tinham sido delineados com tanto êxito; a objetividade tão fria e impiedosa com a qual você escreveu causa uma sensação muito estranha; a não ser que as pessoas não se reconheçam nele, devo dizer que você será um dos homens mais desamados da América. Li Babbitt com as mãos tensas, com o pensamento de que eu me sentiria muito intimidado se as encontrasse na vida real.

No entanto, a maioria dos europeus passou a julgar a nação americana composta somente por Babbitts. Revoltados, os americanos diziam que o escritor não apresentava um panorama mas uma caricatura da América. Além do mais, ele não era um sociólogo, e sim um jornalista malicioso.

Mas nada adiantava agora: Babbitt havia-se transformado num arquétipo, tal como acontecera com Dom Quixote, Hamlet ou Fausto, e iria permanecer como o tipo representativo não só de uma classe, mas também de uma nação e de uma época". Vejam toda a importância deste livro.

E ainda, uma observação perspicaz. Estou a reler Bandeirantes e pioneiros, de Viana Moog. Quando ele fala dos Estados Unidos, dos Estados Unidos após a Primeira Guerra Mundial, ele fala das mudanças ocorridas no país: "A América de Wilson cede lugar à América de Coolidge, Calvin Coolidge. Agora a América não está particularmente interessada nos que pensam construir melhores mundos, mas nos que anunciam a possibilidade de dois carros na garagem e outros confortos consideráveis que suas linhas de montagem vieram possibilitar. O símbolo da América já não é o Tio Sam. O símbolo da América é Babbitt, um novo tipo engendrado pelo ianque para substituir o símbolo do pioneiro". Página 224.


segunda-feira, 28 de abril de 2025

A conquista da felicidade. Bertrand Russel. Nobel de literatura - 1950.

Confesso que não sou muito fã de leituras que envolvam este complicado tema da felicidade. Eu explico o porquê. É que este tema quase sempre é abordado por moralistas ou religiosos. E sobre isso eu tenho uma frase lapidar. É do Eça de Queirós, em O crime do padre Amaro. Nele, o padre Amaro reage ao cônego Dias, que o chamara de traste: "Traste por quê? Diga-me lá! Traste por quê. Temos ambos culpa no cartório, eis aí está. E olhe que eu não fui perguntar, nem peitar a Totó... Foi muito naturalmente ao entrar em casa. E se me vem agora com coisas de moral, isso faz-me rir. A moral é para a escola e para o sermão. Cá na vida eu faço isto, o senhor faz aquilo, os outros fazem o que podem. O padre-mestre que já tem idade agarra-se à velha, eu que sou jovem arranjo-me com a pequena. É triste mas que fazer? É a natureza que manda. Somos homens. E como sacerdotes, para honra da classe, o que temos é que fazer costas!". Está aí. Moralistas e religiosos.

Mas o livro que eu tomei em mãos não é o de um moralista, nem o de um religioso. É de um senhor escritor e de um senhor filósofo: Bertrand Russel. Tenho por ele o maior respeito, respeito que lhe devoto desde a leitura de Por que não sou cristão. O livro em questão é - A conquista da felicidade. A sua primeira publicação data de 1930. Em 1950 o autor foi laureado com o Prêmio Nobel de Literatura. Bertrand Russel (1872-1970) teve uma longa vida. Certamente que uma vida feliz o ajudou a ter toda essa longevidade.

A conquista da felicidade. Bertrand Russel. Ediouro. Tradução: Luiz Guerra. 

Se não aprecio tanto a abordagem do tema, também não nego a sua fundamental importância. Afinal de contas, a busca da felicidade é o objetivo último da vida. Assim, sem sombra de dúvida, ele vale muito de nossa atenção. Reflexões sobre o tema também propiciam ajudas no seu alcance.  O livro tem um belíssimo prefácio, no qual o autor apresenta as razões do livro. Transcrevo-o:

"Este livro não é endereçado aos eruditos nem àqueles que julgam que um problema prático não passa de um tema de conversa. O leitor não encontrará nestas páginas nem filosofias e nem erudição profundas. Pensei em reunir alguns comentários inspirados, segundo acredito, pelo senso comum. O que apenas posso dizer em favor dos conselhos que ofereço ao leitor é que se acham confirmados, por minha própria experiência e observação, e que fizeram aumentar minha felicidade sempre que me conduzi de acordo com eles. Sendo assim, ouso esperar que, entre a multidão de homens e mulheres que sofrem, alguns encontrem aqui o diagnóstico de sua própria situação e sugestões eficientes para resolverem tais questões. Ao escrever este livro, parto da convicção de que muitas pessoas infelizes podem chegar a conquistar a felicidade, se fizerem um esforço bem orientado". Na sequência cita um poema:

"Creio que poderia transformar-me e viver com os animais. Eles são tão calmos e donos de si. // Detenho-me para contemplá-los sem parar. // Não se atarantam nem se queixam da própria sorte, // Não passam a noite em claro, remoendo suas culpas, // Nem me aborrecem falando de suas obrigações para com Deus. // Nenhum deles se mostra insatisfeito, nenhum deles se acha dominado pela mania de possuir coisas. // Nenhum deles fica de joelhos diante de outro, nem diante da recordação de outros da mesma espécie que viveram há milhares de anos. // Nenhum deles é respeitável ou desgraçado em todo o amplo mundo". O poema é de Walt Whitman. Seria este poema uma alegoria ou fonte da qual emanam as causas da infelicidade?

Vamos sublinhar - nem erudição, nem filosofias. Mas vivência. Conselhos confirmados por minha experiência e observação. Ofereço aquilo que deu certo para mim, além de dois princípios fundamentais: esforço e boa orientação. Bem, vamos agora a estruturação básica do livro. Ele está dividido em duas partes: A primeira aponta para as causas da infelicidade e a segunda, o seu oposto, ou seja, as causas que conduzem à felicidade. Um estruturação bem simples.

A primeira parte, qual seja, as causas da infelicidade, tem nove capítulos. É o que devemos evitar. Vou nominá-los: 1. O que torna as pessoas infelizes; 2. Infelicidade byroniana; 3. Competição; 4. Tédio e excitação; 5. Fadiga; 6. Inveja; 7. Sentimento de pecado (remorso, culpa); 8. Mania de perseguição; 9 Medo da opinião pública. Esses sentimentos ou situações estão muito presentes, ou profundamente impregnados na cultura, na civilização ocidental, praticamente como valores dominantes. São, portanto, os fundamentos de uma cultura que contém em si, as causas da infelicidade. O avesso das virtudes. Simples assim. Quanta literatura não existe sobre o tema!...

A segunda parte, qual seja, as causas da felicidade, tem oito capítulos. É o que devemos buscar. Eis a relação: 10. A felicidade é ainda possível?; 11. Entusiasmo; 12. Afeição; 13. Família; 14. Trabalho; 15. Interesses impessoais; 16. Esforço e resignação; 17. O homem feliz. Recomendações daquilo que deve ser buscado. O livro não é longo. São 210 páginas.

Do capítulo final tomo algumas reflexões; Nele, Russel afirma que, para o alcance da felicidade, devemos estar atentos aos fatores externos e internos a nós. Os externos são os da cultura dominante, à qual devemos nos inserir (ou adaptar?) e os internos são as nossas atitudes frente a essa situação. Tomar consciência desses fatores é de fundamental importância. Do capítulo fiz uma anotação especial: 

"Quando as circunstâncias externas não são francamente adversas, a felicidade deveria estar ao alcance de qualquer um, sempre que suas paixões e seus interesses se dirijam para o exterior e não para seu interior. Assim, deveríamos nos propor, tanto na educação quanto em nossa intenção de nos adaptarmos ao mundo, evitar paixões egoístas e adquirir afetos e interesses que impeçam que nossos pensamentos girem perpetuamente em torno de nós próprios. A rigor, ninguém pode ser feliz atrás das grades, e as paixões que nos encerram dentro de nós mesmos constituem um dos piores tipos de cárcere. As mais comuns entre essas paixões são o medo, a inveja, o sentimento de culpa, a auto-compaixão e a auto-admiração. Em todas elas, nossos desejos se encontram em nós mesmos: não existe um interesse genuíno pelo mundo exterior, só a preocupação de que possa nos causar mal ou deixar de alimentar nosso ego. É em virtude do medo que a pessoa resiste a admitir os fatos e se predispõe a encapsular-se num protetor abrigo de mitos. Mas os incidentes desagradáveis penetram no abrigo e aqueles que estavam habituados a ficar protegidos sofrem mais do que os que se temperaram, enfrentando as agruras da vida. Além disso, os que se iludem costumam saber que, no fundo, estão errados, e vivem em um estado de apreensão, temendo que algum acontecimento funesto os obrigue a aceitar realidades desagradáveis" (Página 206).

Enfim, viver é algo muito complexo. A cultura dominante ajuda a torná-los ainda mais complexos e opostos ao que chamamos de princípios humanos, de uma vida em convívios harmoniosos com a natureza e com a sociedade. O comum e a sua prevalência sobre o individual... Valores de solidariedade e sua prevalência sobre a competição... Creio que o tema nos remete a outra questão fundamental que é a questão da alteridade. Sobre ela deixo uma bela reflexão:

 http://www.blogdopedroeloi.com.br/2016/01/alteridade-albert-jacquard.html

Junto com a indicação da leitura, deixo a recomendação contida na contracapa: "Muito antes de ser laureado com o Prêmio Nobel de Literatura em 1950, o filósofo e matemático Bertrand Russel já dava mostras de seu talento e sensibilidade nas letras. A conquista da felicidade, escrito em 1930, aborda um tema comum aos homens de todas as épocas e classes sociais. Que o leitor não espere, como o autor adverte, nem filosofia nem erudição profundas. O que move Russel nesta obra é a convicção de que, com um pouco de esforço bem-orientado, é possível chegar à felicidade".

quarta-feira, 16 de abril de 2025

O Apanhador no campo de centeio. J.D. Salinger. 1951.

Não se trata de um livro tão simples e de leitura fácil e fluente. Não é tão simples aguentar o mau humor do jovem Holden Caulfield, de dezessete anos, ao longo de vinte e seis capítulos que ocupam 206 páginas. Estou falando de um livro famoso, de um dos maiores best-sellers, de muitas polêmicas e proibições, O apanhador no campo de centeio, de J. D. Salinger. A primeira publicação data do ano de 1951. O cenário é a cidade de Nova York. Anos posteriores à Segunda Guerra Mundial. O livro é escrito em primeira pessoa. Portanto, Holden narra a sua própria história.


O apanhador no campo de centeio. J.D. Salinger. Tradução: Álvaro Alencar, Antônio Rocha e Jório Dauster. Editora do autor. 13ª edição.

Quem está em busca de um final da história, já a encontrará no primeiro parágrafo do primeiro capítulo: "Só vou contar esse negócio de doido que me aconteceu no último Natal, pouco antes de sofrer um esgotamento e de me mandarem para aqui, onde estou me recuperando". E diz mais, que talvez no mês seguinte, o seu irmão o levará à casa dos pais num jaguar de cerca de quatro mil dólares. Diz que ele está podre de rico, se "prostituindo" em Hollywood, isto é, no cinema. Percebem a crítica, uma das principais características do livro.

Daí começa a contar efetivamente a sua história. O acontecimento do Natal fora mais uma expulsão sua de colégio, agora, do famoso Internato Pensey, na Pennsylvania. Ele reprovara em quatro matérias, de cinco. Neste colégio professores e alunos viviam em mundos diferentes, a começar pela grande diferença de idade e as consequências daí decorrentes. O seu gosto pela leitura o salvara apenas na disciplina de inglês. Em grande parte dos primeiros capítulos Holden descreve o cotidiano do internato: seus colegas, os hábitos, as chatices, as intrigas, os esportes e as dificuldades nos relacionamentos. 

Depois começa a narrativa de sua saída. Isso ocorre num final de semana. Como as férias de Natal começariam apenas na quarta feira, ele não quer chegar em casa, antes desse dia. Assim fica vagando por Nova York. Gasta o tempo no hotel, com telefonemas, em boates e em bebedeiras, mesmo não tendo idade para beber. Mas tendo dinheiro... E por falar em dinheiro, gasta tudo o que lhe sobrara. O tempo do - nada a fazer - é o grande causador de suas angústias e tormentos. Inventa maneiras para fazê-lo passar. É o grande momento do livro. É o tempo das reflexões suas ou com colegas seus, ou com quem encontrasse e lhe desse atenção, sobre os mais diversos temas, entre eles, obviamente, a questão sexual.

No capítulo 16, ele fala de um disco -, Litle Shirley Beans. Sai em sua procura, pois quer dá-lo de presente para a sua irmãzinha, Phoebe, com a idade de dez anos. Holden a adora. Encontra o disco e o compra. Mas, lá pelas tantas, ele cai e quebra em pedaços. Ponho esse fato na resenha em função do significado de Phoebe em sua vida. Ela é praticamente a única pessoa que lhe faz bem. Voltaremos a falar dela. No mesmo capítulo também aparece o título do livro. Holden vê uma família andando pela rua. Um menino cantarolava, junto aos pais, que não lhe davam muita atenção. Ele cantarolava: "Se alguém agarra alguém atravessando o campo de centeio".

Essa música volta no capítulo 22. Nela encontraremos Holden e Phoebe, na casa dos pais, mas estes estavam ausentes, tinham saído. Conversam por um bom tempo. Vejamos uma parte desse diálogo: " - Você sabe o que eu quero ser? - perguntei a ela. - Sabe o que eu queria ser? Se pudesse fazer a merda da escolha? 

- O que? para de dizer nome feio.

- Você conhece aquela cantiga: 'Se alguém agarra alguém atravessando o campo de centeio'? Eu queria..

- A cantiga é 'Se alguém encontra alguém atravessando o campo de centeio'! - ela disse. É dum poema do Robert Burns.

- Eu sei que é dum poema do Robert Burns.

Mas ela tinha razão. É mesmo 'Se alguém encontra alguém atravessando o campo de centeio'. Mas eu não sabia direito.

- Pensei que era 'Se alguém agarra alguém' - falei. - Seja lá como for, fico imaginando uma porção de garotinhos brincando de alguma coisa num baita campo de centeio e tudo. Milhares de garotinhos e ninguém por perto - quer dizer, ninguém grande - a não ser eu. E eu fico na beirada de um precipício maluco. Sabe o quê que eu tenho de fazer? Tenho que agarrar todo mundo que vai cair no abismo. Quer dizer, se um deles começar a correr sem olhar onde está indo, eu tenho que aparecer de algum canto e agarrar o garoto. Só isso que eu ia fazer o dia todo. Ia ser só o apanhador no campo de centeio e tudo. Sei que é maluquice, mas é a única coisa que eu queria fazer. Sei que é maluquice". Página 168. É o livro!

Holden está decidido a ir para o oeste. Não quer um reencontro com os pais. Mas quer se despedir de Phoebe e lhe devolver os poucos dólares que ela lhe emprestara. Ela empaca e quer ir junto. É o momento em que também Holden decide ficar. Agora... é retomar o começo do post.

Mensagem..., fama do livro... Interrogações! O encanto e a doçura de Phoebe. E, por falar em canção, numa rápida procura no Google sobre o livro, encontro - sob o título inglês do livro - The Catcher in the Rye, ser ele também uma canção. Do Guns N'Roses. E segue a seguinte explicação: "A referência ao The Catcher in the Rye, um clássico da literatura americana, é central para entender a mensagem da canção.  Este livro é frequentemente associado à alienação e à luta contra a falsidade percebida na sociedade. A letra expressa um sentimento de descontentamento e confusão em relação ao mundo". Um mundo que, observem a data da publicação do livro, 1951. O mundo acabara de sair de uma Segunda... De uma Segunda Guerra Mundial...

E uma reflexão em que Holden entra na subjetividade de seu irmão, aquele de Hollywood. É sobre a guerra e sobre o exército: "Meu irmão D.B. ficou no exército quatro anos. Esteve na guerra mesmo - participou do desembarque do dia D e tudo - mas acho que ele detestava mais o exército do que a própria guerra" (Página 137). 







quarta-feira, 9 de abril de 2025

"A PRAGA DO PARÁ". Origens e crescimento do pentecostalismo assembleiano - 1911-1931. Rafael da Gama.

Numa de nossas habituais conversas no restaurante São Francisco, o mais antigo de Curitiba (1955), meu amigo Valdemar falava do livro Seja feita a Vossa Vontade - Nelson Rockfeller e o evangelismo na idade do petróleo, de Gerard Colby e Charlotte Dennet (Record, 1998 - 1060 páginas). O livro está disponível na Amazon, a um custo de R$ 1.000,00. Na sua apresentação se lê que Rockefeller juntou-se a Cameron Townsend, um líder evangélico, para, além das finalidades econômicas, combaterem o comunismo e evangelizarem os indígenas da amazônia. A apresentação termina assim. O empreendimento "resultou num dos episódios mais escandalosos da política imperialista americana com ataques à natureza, patrocínio de ditaduras, genocídios, exploração predatória de riquezas naturais e espionagem". 

Por óbvio, o livro me interessou. Mas, como estamos num período em que o governador do Paraná (Rato Júnior), usa as reposições salariais do funcionalismo público como poupança para investimentos..., fazendo despencar os nossos salários, acrescido ao elevado preço do livro, nem me passou pela cabeça a ideia de sua compra. Mas as buscas do livro nas pesquisas da Internet, me sugeriram outros títulos. Entre eles: "A praga do Pará" - origens e crescimento do pentecostalismo assembleiano (1911-1931), de autoria de Rafael da Gama, uma edição da Pluralidades, 2ª edição, 2024. Este eu comprei.

"A praga do Pará". Rafael da Gama. Pluralidades. 2024. 132 páginas.

A primeira coisa que eu tenho a dizer, é que Rafael Gama é historiador. E, na orelha da capa, ele se apresenta como "sempre, e principalmente, servo e amigo de Cristo". O livro historia fatos, historia as polêmicas geradas pelos fatos. O seu livro tem origem acadêmica e obedece aos ditames da metodologia científica. Um livro com toda a seriedade de um pesquisador. Notem que o título "A praga do Pará", está entre aspas. Ele está explicitado no capítulo quatro: "A heresia pentecostal": diálogos e tensões entre pentecostais e protestantes. É uma referência ao tratamento dado aos pentecostais pelos próprios protestantes em seus órgãos de imprensa. Vejamos um trecho da página 76: "São constantes as difamações em relação ao pentecostalismo, ao mesmo tempo que notamos a sua crescente expansão. Logo alguns anos após o início do movimento pentecostal na cidade, já percebemos periódicos batistas e presbiterianos opinando sobre "A heresia pentecostal" (1923), com nominações jocosas como "espírito de fogo" (1916), "A praga que veio do Pará" (1916), entre outras nomenclaturas que eram comuns nesses jornais".

Explicitado isso, vamos a algumas considerações sobre o livro. Com ele, você fica sabendo muito mais do que apenas a questão específica da chegada dos pentecostais à Belém, mas também sobre a religiosidade tradicional na cidade, de sua economia, estrutura social e econômica, crises de saúde e sanitárias, entre outros tantos temas. Observem a delimitação das datas - 1911-1931. Já somos um país republicano. Já instituímos a liberdade religiosa e separamos a Igreja e o Estado. Já estamos no final do ciclo da borracha, do final do século XIX e da primeira década do XX, que provocou, na região, a chamada Belle Époque. O pentecostalismo chega a Belém, portanto, numa época de profundas crises. 

Outro ponto notável do livro é a sua busca por fundamentos históricos, como o surgimento do protestantismo, sua expansão e as formas como ele se estabeleceu nos diferentes países, especialmente nos Estados Unidos. Este país divergiu do anglicanismo inglês e fez surgir novas denominações, entre as quais o autor destaca os metodistas, batistas e presbiterianos, denominações já presentes em Belém, quando da chegada dos adeptos do pentecostalismo. Outro ponto forte do livro é a forma como os Estados Unidos conceberam ou imaginaram a sua religiosidade, como povo eleito, ou como nação eleita e o espírito evangelizador e missionário decorrente. É um protestantismo fundamentalmente calvinista, ligado à prosperidade. Tem muito de Max Weber nas análises do autor. Sim, também tem toda a história da festa de Nossa Senhora de Nazaré.

O livro é estruturado em prefácio, introdução e seis capítulos, assim titulados: 1. Belém do Pará: catolicismo e hegemonia social; 2. "A verdadeira fé": o protestantismo no Pará; 3. De Los Angeles a Belém do Pará: o surgimento do movimento pentecostal; 4. "A heresia pentecostal": diálogos e tensões entre pentecostais e protestantes; 5."A cura para os leigos": diálogos entre o pentecostalismo e a cidade; 6. "Da violência simbólica à física: diálogos e conflitos entre católicos e pentecostais; Considerações finais e uma rica indicação de referências bibliográficas.

O prefácio, assinado por Gedeão Alencar, destaca a Primeira Missa do 21 de abril de 1500 para oficializar o descobrimento e a oração pentecostal, de 24 de outubro de 2018, após o TSE proclamar o resultado das eleições presidenciais, anunciando Jair Bolsonaro como presidente. Observação bem de acordo com o tema do livro. Momentos históricos diferentes. Disputas do imaginário religioso.

Na Introdução são apresentadas as razões do livro e a sua estruturação básica. Ele é uma decorrência de suas pesquisas de doutorado na PUC/SP. Chama a atenção dos fatos históricos mais importantes do período e o vertiginoso crescimento do pentecostalismo, sendo a Assembleia de Deus, a denominação de maior número de adeptos no Brasil de hoje, num total de mais de 12 milhões de seguidores. "Assembleia de Deus", foi a denominação da primeira igreja fundada pelos pentecostais em Belém.

No primeiro capítulo o autor explicita princípios da doutrina católica, a origem histórica de Santa Maria de Belém do Grão Pará, o sincretismo das religiões dos povos que ali se encontraram, índios, negros e colonizadores brancos, a centralização da fé em Nossa Senhora de Nazaré e a sua história e a economia gomífera (ascensão e declínio). O catolicismo como religião hegemônica sob o comando dos padres barnabitas, ordem religiosa que fora banida na França. Seus órgãos de imprensa e o combate ao protestantismo.

No segundo capítulo são apresentados os protestantes e seus fundamentos religiosos que os diferenciaram do catolicismo, com destaque de uma ligação direta com Deus, sem as mediações típicas e próprias do catolicismo. Se dedicam ao expansionismo, e dividem a América, com a ocupação de sua área norte. A sua consideração como "povo eleito", a "nova Israel". A fé que se impregna num modelo econômico e social. Se elegem como uma "nação modelo", uma referência à prosperidade. De acordo com a finalidade do livro, destaca a presença de missionários suecos nos Estados Unidos. Serão esses suecos que chegarão mais tarde a Belém. o destaque vai para as denominações dos metodistas, batistas e presbiterianos.

O terceiro capítulo é um dos centrais do livro. Ele retrata a origem do pentecostalismo nos Estados Unidos, na cidade de Los Angeles. Dá até o endereço da rua Azusa. Apresenta o "batismo com o Espírito Santo", êxtases, falar línguas, visões e avivamentos, como suas grandes inovações. Vejam uma descrição do "Los Angeles Daily Times", que mostra, tanto as inovações trazidas, quanto a sua recepção nada favorável: "Respirando palavras de estranhos e pronunciando um credo que parece que nenhum mortal poderia entender, a mais nova seita religiosa começou em Los Angeles [...] a estranha doutrina pratica os ritos mais fanáticos [...] Pessoas de cor e uns poucos brancos compõem a congregação, e a noite se torna horrível na vizinhança pelos uivos adoradores, que passam horas se balançando para frente e para trás em uma atitude de oração e súplicas enervantes. Eles alegam ter 'o dom de línguas' e serem capazes de compreender a babel [...] Então é que o pandemônio se solta [...] em uma exaltação de zelo religioso". Nada lisonjeiro. A referência às pessoas de cor se deve a um filho de ex-escravizados, Willian Seymour, entre os fundadores. Entre os seus primeiros adeptos também figuravam os suecos Daniel Berg e Gunnar Vingren. Estes trouxeram a doutrina a Belém (página 63-64).

O quarto capítulo é dedicado às primeiras atividades dos dois missionários, a sua acolhida pelos batistas e metodistas e as desavenças. Foram expulsos de um local onde faziam as suas celebrações e, já em um novo local, os dois e mais dezessete seguidores, lançaram a sua nova denominação, primeiramente como Missão de fé apostólica e depois lhe deram a designação pela qual ficaram denominados no Brasil: Assembleia de Deus. (página 72). No capítulo ainda é mostrada a sua rápida expansão e as causas para esta expansão. Uma religião que prima pelo testemunho e não pela razão.

Aí já entramos no quinto capítulo, uma análise da recepção dessa nova denominação. Ela se assenta em uma sociedade em profunda crise, crise econômica e social e crise de epidemias como a malária, a lepra, a febre amarela, a cólera e a tuberculose. Testemunhos de cura, caem bem em meio a esta realidade. Glossolalia, curas e ampla participação popular impulsionaram a expansão.

O sexto capítulo versa sobre a relação com os católicos. É fácil de entender. O catolicismo era a religião hegemônica e que tudo fez para não perdê-la. Era a religião do poder e este foi usado a seu serviço. Da violência simbólica partiu-se para a violência física da atuação policial. São retratadas cenas dessas violências, especialmente as da cidade de Bragança. 

Das considerações finais tomo o último parágrafo: "Essa reação violenta do catolicismo diante do pentecostalismo mostra mais um estranhamento em relação à ameaça de perda de sua hegemonia. Mostra um processo que se desenrola até os dias de hoje, com um pentecostalismo diverso e pulverizado, atuando fortemente nas periferias do país, em ascensão desde a sua chegada no Brasil através da região amazônica. Estudar o pentecostalismo em sua origem, expansão e consolidação nas primeiras décadas de sua formação no Norte do país, nos faz entender melhor a religiosidade brasileira não apenas no Pará, mas em todo o território nacional no período republicano, trazendo também reflexões sobre o crescimento do pentecostalismo que seguem até os dias atuais. Entender o movimento pentecostal é, assim, procurar entender toda a complexidade do cenário religioso brasileiro, em suas diferentes nuances e manifestações".

Estão abertos os debates.

Deixo ainda dois livros, um deles muito presente nas análises do autor. A ética protestante e o espírito do capitalismo, de Max Weber. http://www.blogdopedroeloi.com.br/2025/01/a-etica-protestante-e-o-espirito-do.html e outro, numa visão bem crítica, Os demônios descem do norte, de Délcio Monteiro de Lima. http://www.blogdopedroeloi.com.br/2016/12/os-demonios-descem-do-norte-delcio.html

quinta-feira, 3 de abril de 2025

A RELIGIÃO NO ELDORADO OU NA TERRA SEM MALES. A partir de Cândido - Voltaire.

Voltaire é extraordinário. Termino de ler dois de seus assim chamados - contos filosóficos. A sua forma de conhecer a realidade do mundo é bem inventiva ou criativa. Em Cândido, os personagens viajam pelo mundo, entrando assim em contato com diferentes realidades. Já em O Ingênuo será um índio da América do Norte que exporá a realidade de seu mundo, ao chegar na França e entrar em choque com a civilização do ocidente cristão. Uma forma bem original para expor as suas concepções de mundo e de as confrontar com os seus adversários.

Contos. Voltaire. Cândido ou o otimismo. Abril. 1972. Páginas 149-238. Tradução: Mário Quintana.

Voltaire é um crítico mordaz da cultura ocidental, especialmente no que se refere a sua parte religiosa, qual seja o cristianismo e o comportamento dos mandatários de suas estruturas. Uma dissonância e um distanciamento enorme entre a teoria e a prática. (Ao escrever este post, estou vestindo uma camiseta, com uma estampa de Paulo Freire e um dito seu: "É fundamental diminuir a distância entre o que se diz e o que se faz, de forma que, num dado momento, a tua fala seja a tua prática"). Uma questão de coerência.

Neste post eu quero destacar um diálogo que Cândido teve quando ele, após ter passado por Buenos Aires, onde forçosamente tem que se separar de sua Amada Cunegundes e de passar pelas missões jesuíticas do Paraguai, ele chega ao Eldorado, onde o seu hospedeiro o coloca em contato com o homem mais sábio do reino. Eles versam sobre muitos temas, mas o mais impressionante é a sua exposição sobre a religião que era praticada no antigo império inca. Vejamos o relato do encontro:

"A conversação foi longa; versou sobre a forma de governo, os costumes, as mulheres, os espetáculos públicos, as artes. Afinal Cândido, que sempre tivera gosto pela metafísica, indagou, por intermédio de Cacambo, se no país não havia uma religião.

O velho enrubesceu um pouco.

Como pode o senhor duvidar de tal coisa? - perguntou ele. - Será que nos toma por ingratos?

Cacambo perguntou humildemente qual era a religião de Eldorado.

O velho corou de novo.

- Acaso pode haver duas religiões? disse ele. - Temos, creio eu, a religião de todo mundo: adoramos a Deus dia e noite.

- Não adoram senão a um único Deus? - interrogou Cacambo, sempre servindo de intérprete às dúvidas de Cândido.

- Quer-me parecer - tornou o velho, formalizado - que não há nem dois, nem três, nem quatro deuses. Francamente, fazem cada pergunta!

Cândido não se cansava de interrogar o bom velho; quis saber como rezavam a Deus em Eldorado.

- Não lhe rezamos - disse o bom e respeitável sábio. - Nada temos que lhe pedir; ele nos deu tudo o que precisamos; nós lhe agradecemos sem cessar.

Cândido teve curiosidade de ver os sacerdotes; e perguntou onde estavam.

O bom velho sorriu.

- Meus amigos - disse ele -, nós todos somos sacerdotes; cada manhã, o rei e todos os chefes de família entoam, solenemente, cânticos de  ações de graça; e cinco ou seis mil músicos os acompanham.

- Como, os senhores não tem padres que ensinam, que disputam, que governam, que cabalam, e que mandam queimar as pessoas que não são de sua opinião?

- Só se fôssemos loucos - disse o velho. - Aqui somos todos da mesma opinião, e não entendemos o que quer o senhor dizer com os seus padres.

Cândido, a cada uma dessas palavras, caía em êxtase e dizia consigo: 'Como tudo isto é diferente da Vestfália e do castelo do senhor barão! Se o nosso amigo Pangloss visse Eldorado, não diria mais que o Castelo de Thunder-ten-tronckh era o que havia de melhor sobre a face da terra; não há dúvida de que é preciso viajar'". Páginas 194-195.

Por aí dá para ver que não era por nada que Voltaire era tão radicalmente anticlerical. Deixo a resenha de Cândido, ou o otimismo. http://www.blogdopedroeloi.com.br/2025/03/candido-ou-o-otimismo-voltaire-1759.html   e também O Ingênuo.  http://www.blogdopedroeloi.com.br/2025/03/o-ingenuo-voltaire-1767.html

Mas - permitam-me falar um pouco de Voltaire. Da parte final de sua vida. Se antes ele não levava uma vida exemplar, ao menos cristãmente falando, o final dela foi coroado de virtudes incontestáveis. Vejamos o livro de dados biográficos que acompanha a coleção da Abril. Esta parte final o tornou famoso como o filósofo pregador da tolerância. Vejamos:

"E teria continuado nessas atividades (distribuição de justiça, irrigação de áreas rurais, lutas contra epidemias de gado, abertura de uma fábrica de relógios e de escolas) se não tivesse recebido, num dia incerto de 1761, a visita de uma família aterrorizada, contando uma fúnebre estória de perseguição. Um jovem suicidara-se em Toulouse. Existia, contudo, uma lei pela qual o corpo dos suicidas devia ser arrastado pelas ruas e, depois, enforcado em público. O pai do rapaz, Jean Calas, arranjara tudo para que o suicídio parecesse morte natural e o corpo do filho fosse respeitado. Mas Calas era protestante, e acabou sendo acusado de ter assassinado o filho para que não se convertesse ao catolicismo. Foi preso, torturado e condenado à morte.

Enquanto Voltaire defendia a família e a memória de Jean Calas, o corpo de Elisabeth Sirven foi encontrado num poço. A família também era protestante e o juiz acusou os pais de terem matado a jovem. Voltaire, indignado, lançou uma campanha, contratou advogados, redigiu defesas e enviou-as para os tribunais. Concomitantemente escreveu seu famoso Tratado sobre a tolerância.

Esses casos ainda estavam na ordem do dia quando, em 1767, o jovem La Barre, de família protestante, foi acusado de mutilar crucifixos. Ao ser preso, encontraram em seu poder um exemplar do Dicionário filosófico, escrito com a intenção explícita de ridicularizar o fanatismo católico.

O livro obtivera um êxito fantástico. 'Punham-no debaixo das portas, penduravam-no nos cordões das campainhas, os bancos dos passeios públicos andavam repletos dele. Nos lugares de ensino religioso substituía, como por encanto, os catecismos'. [...] Do caso La Barre em diante, a atividade de Voltaire assemelha-se à erupção de um vulcão. O escritor torna-se sério. 'Durante todo esse tempo', diria depois, 'não me escapou um sorriso que não me parecesse um crime'.

[...] Voltaire inundou o país de panfletos, livros, ironias, apelos. Todas as suas cartas terminavam com um veemente apelo: Écrassez l'infâme - Esmagai o infame. No início, seus inimigos tentaram barrar essa avalancha. Os livros eram queimados em praça pública. Inútil. Cidadãos desconhecidos, admiradores do autor, faziam reimpressões clandestinas, algumas das quais atingiram 300.000 exemplares. Madame Pompadour lembrou-se de que ele era sensível a títulos e dinheiro, e ofereceu-lhe o cargo de cardeal e a reconciliação com a corte. Voltaire nem sequer respondeu".

[...] "Em Paris recusaram-lhe sepultura cristã. Os amigos colocaram o corpo numa carruagem, fazendo-o passar por vivo, e levaram-no até Salier, onde foi enterrado. Doze anos depois, a Assembleia Nacional da Revolução obrigou Luís XVI a transladar o corpo para o Panteão de Paris. Setenta mil pessoas seguiram o cortejo.

Sobre seu túmulo Voltaire pedira que escrevessem apenas uma frase: 'ELE DEFENDEU CALAS'.


segunda-feira, 31 de março de 2025

A DITADURA DE 1964. OS CINCO VOLUMES DO ELIO GASPARI.

Como estamos nos avizinhando de mais um fatídico primeiro de abril e - para dizer em alto e bom som - que "AINDA ESTAMOS AQUI", quero deixar, num único post, a resenha de cada um dos cinco volumes sobre este triste período de nossa história, o da ditadura civil militar instaurada em 1964. Eles são fruto de muito trabalho de pesquisa e, com toda a certeza, se constituem numa das maiores fontes para conhecer este período de nossa história. Os cinco volumes tem os seguintes títulos: 1. A ditadura envergonhada: as ilusões armadas. 2. A ditadura escancarada: as ilusões armadas. 3. A ditadura derrotada. o sacerdote e o feiticeiro. (Geisel - o sacerdote - Golbery - o feiticeiro. 4. A ditadura encurralada: o sacerdote e o feiticeiro. 5. A ditadura acabada.

Esta ditadura durou longos e infinitos 21 anos (1964-1985) e, como terminou mal, com uma anistia que perdoou crimes cometidos pelo Estado, fato que provocou repiques ditatoriais, com elogio a torturadores e tentativas de golpe, como vimos ao longo de todo o governo Bolsonaro, é que quero deixar esta pequena contribuição no sentido de que mais gente, especialmente os da geração que não viveu o período, tomem o devido conhecimento dele, para que ele não se repita, nem como tragédia, nem como farsa.  SEM ANISTIA PARA OS GOLPISTAS.

O post também tem a finalidade de remeter para a leitura da obra do Elio Gaspari, numa espécie de provocação, no bom sentido do termo - pro-vocare, do chamar para... As ditaduras torturam e matam - em nome da manutenção do estado das coisas - manutenção de privilégios e exclusão social. Boa leitura e saudações democráticas e civilizatórias. 

Volume 1.

A ditadura envergonhada. Elio Gaspari.


Volume 2. 

A ditadura escancarada. Elio Gaspari.


Volume 3. 

A ditadura derrotada. Elio Gaspari.





A ditadura encurralada. Elio Gaspari.


Volume 5. 


A ditadura acabada. Elio Gaspari.





sexta-feira, 28 de março de 2025

O Ingênuo. Voltaire. 1767.

Depois de Cândido, mais Voltaire. Outro de seus contos filosóficos. O Ingênuo - História verdadeira, tirada dos manuscritos do padre Quesnel. Como Voltaire gostava de ocultar a sua autoria! O conto tem certas semelhanças com Cândido. O tema é uma análise do mundo e de todos os males que ele contém. Agora a interlocução não será com Pangloss (Leibniz) mas com o Ingênuo, ou com Hércules Ingênuo, depois de seu batizado. Ingênuo é um nativo americano, um índio hurão. Um ser muito próximo de um ser natural, não corrompido e estranho aos costumes da civilizada França. Percebem a presença de Rousseau.

Contos. Voltaire. 1972. Páginas 297 -359. Tradução: Mário Quintana.

Diferente do ocorrido em Cândido, quando os principais personagens conhecem o mundo através de viagens, pelas quais entram em contato com diferentes realidades, em O Ingênuo, será este "selvagem" que entrará em contato com a "civilização" e mostrar todo o seu inconformismo com os hábitos, costumes e instituições, que são para ele, estranhas e absurdas. Percebeu grandes diferenças entre os ingleses e os franceses. Ele se familiarizara mais com a Inglaterra (Voltaire era grande admirador da Inglaterra). Mas, como era ingênuo, os franceses facilmente o convenceram a combater ao lado dos franceses contra os ingleses.

O Ingênuo chega às costas da França, no Priorado da Montanha, priorado fundado por Irlandeses. Outros irlandeses tinham vindo para a América do Norte. Já nas primeiras conversas, por um talismã que Ingênuo trazia, se descobrem parentes. Estes parentes lhe dão boa acolhida e Ingênuo logo se encanta pela bela jovem, St. Yves. Imediatamente quer com ela se casar, mas os costumes eram bem outros. St. Yves também tinha outros pretendentes. Seus parentes o fazem aceitar os costumes da terra e o primeiro passo para isso foi o seu batizado. Daí por diante será Hércules Ingênuo. Falaram-lhe dos feitos de Hércules, ocultando porém, que o herói transformara, numa única noite, cinquenta donzelas em mulheres. O fazem ler a Bíblia.

Como se destacara na guerra contra os ingleses, lhe recomendam apresentar-se ao rei. A caminho janta com os huguenotes, inimigos do rei e do papa. O rei e a sua corte são informados desse fato. Ingênuo já granjeara inimigos, especialmente por parte do bailio (uma espécie de xerife) que pretendia casar o seu filho com a bela St. Yves. Isso era motivo suficiente para delatar o pobre do Ingênuo. Ser huguenote equivalia a ser inimigo declarado do rei. Chegando à corte de Versalhes, imediatamente será trancafiado na Bastilha, condenado ao abandono perpétuo. Lá terá um encontro com Gordon, um sábio, condenado por ser jansenista. Ele tinha também alguns livros. Ele sofre grande transformação, que ele próprio constata: "Sinto-me tentado, a crer nas metamorfoses, pois fui transformado de bruto em homem".

Se ele estava completamente esquecido pelas autoridades, o mesmo não acontecia com a bela St. Yves. Ela, ao ver-se diante de um casamento forçado como o filho do bailio, e sabendo da prisão, vai a Paris. Mas lá os padres e as demais autoridades estão muito entretidos com diversões e ela não consegue audiências. Por fim é recebida por um padre jesuíta, que procura interceder por ela. Ela então é posta em contato com o poderoso sr. Pouange, que movido pela beleza da jovem, procura usar de seu poder em favor da jovem desde que, devidamente recompensado. Um padre a convence que deve ceder. Se o ato é vil, a finalidade é, no entanto, nobre e, assim a convence a ceder. Toda a argumentação estava bem fundamentada em Santo Agostinho.

Pouange não falha e Ingênuo e Gordon são libertados. Mas as dores do remorso e da culpa fazem com que St. Yves adoeça e tudo termine em tragédia. Pouange, que não era ruim de todo, pois não nascera mau, procura reparar o mal feito, concedendo benefícios aos dois, agora inseparáveis amigos. Sob o dístico de que o tempo tudo abranda, Ingênuo tornou-se bom guerreiro e intrépido filósofo. É... O tal do processo civilizatório.

O livro de contos da coleção dos Imortais da Literatura Universal tem notas introdutórias de Sérgio Milliet. Nas que antecedem ao O Ingênuo, lemos a seguinte nota: "O interesse deste romance, em que Voltaire volta, após o sarcasmo de Cândido, à fantasia menos cruel de seus primeiros contos, está em consistir ele numa exposição crítica da tese de J. J. Rousseau sobre o homem natural. O princípio é bem característico da filosofia do genebriano: o Ingênuo é honesto, franco, espanta-se com nossas ridículas convenções, mas a conclusão se revela contrária à ideia da volta à natureza".

O conto é relativamente curto. Umas sessenta páginas e vinte capítulos. O uso de personagens indígenas estava muito em voga entre os romancistas europeus da época. Deixo também a resenha de Cândido. http://www.blogdopedroeloi.com.br/2025/03/candido-ou-o-otimismo-voltaire-1759.html

segunda-feira, 24 de março de 2025

CÂNDIDO OU O OTIMISMO. Voltaire. 1759.

Impressionante! Grande Voltaire! Retomando os livros da coleção Os Imortais da Literatura Universal, tomei em mãos o livro de número 40 - Contos, de Voltaire. O livro tem em seu total 672 páginas e contém seus principais contos. Voltaire usou os chamados contos filosóficos para debater e expor os seus posicionamentos e contestar os seus adversários. A ironia será sempre a sua principal arma. E que ironia! Comecei a minha leitura pelo seu conto mais famoso: Cândido ou o otimismo - Traduzido do alemão do senhor doutor Ralph. Com os aditamentos encontrados no bolso do doutor, por ocasião da sua morte em Minden, no ano da graça de 1759. Eis o título completo do conto.

Contos. Voltaire. 1972. Tradução: Mário Quintana. Páginas: 149-238.

Vamos a algumas contextualizações. Creio, que, antes de ler Voltaire, necessariamente precisamos conhecer alguns dados biográficos seus e ver com quem ele estabelecia os diálogos e quais eram as suas concepções de mundo. Para o caso específico de Cândido, é fundamental saber sobre o panorama da filosofia na Europa, neste período da segunda metade do século XVIII. Os filósofos em evidência são os alemães Leibniz (1646-1716) e Wolff (1679-1754). Eles professavam que vivemos no melhor possível dos mundos. Não precisamos entrar em detalhes, uma vez que no conto tudo isso estará bem explicitado.

O primeiro fato que é necessário ter em conta para interpretar Cândido é o de que Pangloss, um dos personagens fundamentais, é Leibniz. Será ele o preceptor de Cândido. Será ele que infundirá no seu jovem discípulo um otimismo insofismável. O conto começa na Alemanha, na Vestfália, onde encontraremos os primeiros personagens: Pangloss, Cândido, Cunegundes e o barão, seu pai. As desventuras que ali ocorrem, os levam a percorrer o mundo. Assim o conhecerão, não por imaginação ou descrição, mas por experiência. Lembrando ainda, que Cândido alimenta uma paixão doentia pela bela jovem Cunegundes. Casar com ela e ser feliz é o grande sonho de sua vida. Será a felicidade no melhor dos mundos.

O conto é cheio de viagens, de conflitos e de guerras, de mortes e ressurreições, de fugas e de encontros com sábios e com o povo. Esses contatos os põem em contato com a realidade do mundo. Conhecem a Europa e conhecem a América. Os personagens principais se desencontram e outros entram em cena. Experiências fantásticas são vividas e a questão que os acompanha está onipresente: Que mundo é este? Assim como também a visão de felicidade de Cândido, em ver o seu amor por Cunegundes ser correspondido, embora todas as suas submissões que afetaram a sua dignidade.

A passagem pela América merece um destaque maior. Depois de passarem por Buenos Aires, onde Cunegundes permanecerá presa, e pelo império dos jesuítas no Paraguai, Cândido e o seu amigo Cacambo chegam ao Eldorado. Este sim, é o reino onde, sob a concordância de todos, não há males. Apenas Cândido permanecerá infeliz por causa da ausência de sua grande paixão. Dois destaques nesta visita ao Eldorado: as grandes riquezas e a discussão com um sábio sobre a religião. A Deus nada pedimos. Apenas agradecemos, lhes confidencia o sábio. São agraciados com presentes que tornam sua riqueza inesgotável. Outra passagem notável ocorre no Surinam, onde Cândido encontra o sábio Martinho  e a visão que tem da escravidão na lavoura canavieira. "É o preço do açúcar na Europa". Um encontro direto com o Mal. Pangross, não está presente nessa discussão. Ele fora vítima da inquisição.

Cândido fica sabendo que Cunegundes está em Veneza e ele então empreende todos os esforços para ir à cidade. Acompanhado de Martinho, contratam viagem. São logrados por todos, mas como vimos, agora são portadores de fortuna que não acaba. Passam pela França, pela Inglaterra e chegam a Veneza, onde tem uma passagem fantástica, a visita que fazem ao Sr. Pococurante. Cunegundes ainda não chegara. Nos países visitados só horrores e males e a conclusão de que a única terra sem males é mesmo  Eldorado.

Em Veneza sabem que Cunegundes está em Constantinopla, trabalhando como escrava, velha e feia. Será para lá que se dirigirão. E, já na parte final do conto, os personagens se reencontram. Cândido perde o seu encanto por Cunegundes, mas diante do não consentimento do barão, o pai da noiva, no casamento, ele desafia a ordem.  Pangloss dá seu consentimento, Martinho quer lançar o barão ao mar e Cacambo quer fazer voltá-lo às galés. 

O trigésimo e último capítulo do conto é dedicado a conclusões. Vejamos os diálogos finais: "Também sei - disse Cândido - que é preciso cultivar nosso jardim (antes um sábio turco lhe falara sobre o trabalho que evita os males do tédio, do vício e da necessidade).

- Tens razão - disse Pangloss -, pois, quando o homem foi posto no jardim do Éden, ali foi posto ut operaretur eum, para que trabalhasse; o que prova que o homem não nasceu para o repouso.

- Trabalhemos sem filosofar - disse Martinho; - é a única maneira de tornar a vida suportável.

Todo o grupo se compenetrou desse louvável desígnio. A pequena propriedade rendeu bastante. Cunegundes estava, na verdade, muito feia, mas tornou-se uma excelente doceira. Paquette bordava. A velha costurava. Nem mesmo o irmão Giroflée se furtou ao trabalho; revelou-se um bom marceneiro; e até se tornou honesto (o happy end de Pangloss).

- Todos os acontecimentos - dizia às vezes Pangloss a Cândido - estão devidamente encadeados no melhor dos mundos possíveis; pois, afinal, se não tivesse sido expulso de um lindo castelo, a pontapés no traseiro, por amor da Srta. Cunegundes, se a Inquisição não te houvesse apanhado, se não tivesses percorrido a América a pé, se não tivesses mergulhado a espada no barão, se não tivesses perdido todos os teus carneiros da boa terra de Eldorado, não estarias aqui agora comendo doce de cidra e pistache.

- Tudo isso está muito bem - respondeu Cândido - mas devemos cultivar nosso jardim".

Mas antes, diante de suas próprias desgraças, Panglos já havia afirmado para Cândido: " - Mantenho a minha primitiva opinião - respondeu Pangloss -, pois, afinal, sou filósofo; não me convém desdizer-me, visto que Leibniz não pode incorrer em erro, e a harmonia preestabelecida é a mais bela coisa do mundo, bem como o todo e a matéria sutil". Questões de filosofia.

 

domingo, 23 de março de 2025

A ROMANA. Alberto Moravia. 1947.

A minha última leitura foi A pele, de Curzio Malaparte. Um instigante livro sobre Nápoles, sobre a Itália e a Europa do pós Segunda Guerra Mundial. Por óbvio, Malaparte traçou um panorama profundamente depressivo e desolador. O que ler depois? Resolvi continuar na Itália, com o mesmo tema e a mesma época. E, um livro da mesma coleção - Os Imortais da Literatura Universal. A Itália do pós guerra. O livro da vez então foi A Romana, de Alberto Moravia. Adriana, a romana do título, é a personagem principal, que junto a todos os outros personagens, tem um encontro com as suas vidas, vidas absolutamente desencontradas. Enfrentam ambientes psicológicos destituídos de perspectivas. Deixo o link da resenha de A pele. http://www.blogdopedroeloi.com.br/2025/03/a-pele-curzio-malaparte-1949.html

A romana. Alberto Moravia. Abril. 1972. Tradução: Marina Colasanti.

O livro é do ano de 1947. Tempo de reconstrução. Reconstrução de sonhos? Quais as razões para tantas angústias diante do destino? Vejamos primeiramente algo sobre o autor. Moravia nasce no ano de 1907. O sonho familiar era destiná-lo para a diplomacia. Uma doença, no entanto, impede a realização desse sonho. Era portador de uma tuberculose óssea (infecção grave que afeta ossos e articulações, me diz uma rápida consulta ao Google), que o obrigou a uma vida reclusa. Segundo ele próprio, este foi um dos fatores determinantes em sua vida. Outro seria a ascensão do regime fascista, iniciado em 1922, sob o comando de Mussolini. Um encontro permanente com o autoritarismo e a censura. 

O seu primeiro romance - Gli Indifferenti - lhe marca as características que o acompanhariam ao longo de sua vida de escritor. As ácidas críticas à decadente burguesia de Roma e às instituições a ela vinculadas, como o tradicionalismo, o casamento, a falsidade moral e o apego à propriedade. O sucesso despertou a censura e o livro foi proibido a partir de sua quinta edição. O livro de biografias que acompanha a coleção, lhe aponta uma segunda característica, de fundamental importância: "Outro traço do romance de estreia de Moravia é o perfil das personagens, cujos sentimentos básicos (tédio, indiferença, desatenção, náusea) permeiam toda a obra. Por isso, mais tarde, Gli Indifferenti seria considerado o primeiro romance existencialista europeu, escrito dez anos antes que Sartre e Camus, filosoficamente mais conscientes do que Moravia, dessem corpo ao existencialismo como corrente literária". Precursor do existencialismo.

A romana, livro de 1947, repetiria o êxito popular de seu romance de estreia. Ao livro incorpora novos personagens que conhecera ao longo de uma fuga e refúgio no norte da Itália, já sob a dominação nazista, pouco antes do final da Segunda Guerra: "O refúgio do estábulo dera-lhe a ideia de outro tipo de personagem, mais simples, preocupado basicamente em ganhar a vida", como lemos no livro de biografias. A romana começa a ser escrito no ano de 1945.  Adriana será a protagonista. E uma característica toda especial do livro. Será ela a narradora de sua vida, tudo em primeira pessoa. Me lembrei muito de Madame Bovary, quando Gustave Flaubert afirma ser ele a dita madame.

A respeito dessa sua tática de escritor, ele mesmo comenta: "... Essa técnica, essencialmente fotográfica, tem a vantagem de levar o leitor a uma intimidade maior com as situações do romance: 'Adriana, a romana, falando na primeira pessoa, poderia referir-se com mais liberdade, a qualquer coisa de Roma do que eu próprio, também romano, poderia fazê-lo'. Entretanto, a técnica trazia também problemas, colocados pela linguagem necessariamente restrita da personagem, cujo perfil simples e popular limita o vocabulário, obriga ao uso do dialeto romano e não pode ultrapassar, com suas explicações, o limitado universo cultural de que faz parte". Eu, da minha parte, devo dizer que esta estratégia tornou a sua leitura extremamente agradável.

E o romance? Adriana é uma menina de muitos sonhos, os dela e os de sua mãe. Sua beleza seria o meio para a realização desses sonhos, sempre instigada pela mãe. Torna-se modelo para pintores. Posa nua. Se envolve em relacionamentos, todos muito complicados. Chamaria atenção para quatro deles: Gino, um motorista casado, Mino, um estudante e militante político, Astarita, um policial do sistema fascista e Sonzogno, um criminoso. O seu envolvimento com esses personagens faz o romance ter uma fluência maravilhosa e a leitura ser agradável. A ingenuidade de Adriana, bem como a de sua mãe, a torna uma personagem que gera certa empatia, uma torcida para que tudo dê certo em sua vida. Mas isso seria o oposto do romance. O romance também mereceu o furor dos católicos, que o colocaram no INDEX, o índice de livros proibidos.

O livro é dividido em duas partes, as duas fases da vida de Adriana. A primeira consta de nove capítulos e a segunda de onze. Ao todo, soma 415 páginas. "... A ideia de outro tipo de personagem, mais simples, preocupado basicamente em ganhar a vida". É Adriana. e... Adeus aos sonhos românticos. Vejamos o parágrafo final da obra:

"Sozinha, senti minha dor quase aliviada pelo que tinha dito aos dois (ex companheiros de Mino). Pensei em Mino e depois pensei no meu filho. pensei que nasceria de um assassino e de uma prostituta; mas todo homem pode matar um dia e toda mulher pode entregar-se por dinheiro. O que mais importava era que nascesse bem e crescesse forte e sadio. E decidi que, se fosse homem, chamar-se-ia Giácomo (Mino), em lembrança de Mino. Mas, se fosse mulher, Letícia,, pois queria que, ao contrário do que se dera comigo, tivesse uma vida alegre e feliz, e tinha certeza de que, com a ajuda da família de Mino, assim haveria de ser". Olha a réstea de esperança... A caixa de Pandora.