sábado, 8 de fevereiro de 2025

PROLETÁRIOS DE TODOS OS PAÍSES, UNI-VOS. As quatro Internacionais.

Ao reler Germinal, a fantástica obra de Emile Zola, de 1885, lembrei de meus posts sobre as quatro grandes tentativas da construção da prerrogativa de Marx, do final de Manifesto comunista, de 1848, da unificação da classe trabalhadora de todo o mundo. O Proletarier aller Lände, vereinigt euch. E como a Primeira Internacional (1864) está muito presente na obra de Zola, resolvi agrupar os quatro posts, numa página só, para anexar na resenha da obra. 

Uma recordação que recebi dos trabalhadores alemães da DGB (Deutscher Gewerkschaftsbund), a poderosa central sindical alemã, quando lá participei de seminários de formação sindical, em 1995. São cartões postais das festividades alusivas ao primeiro de maio, o dia do trabalhador, instituído pela Segunda Internacional.


A Primeira Internacional. 1864. http://www.blogdopedroeloi.com.br/2015/11/a-primeira-internacional-associacao.html

A Segunda Internacional. 1889. http://www.blogdopedroeloi.com.br/2015/11/a-segunda-internacional-associacao.html

A Terceira Internacional. 1919. http://www.blogdopedroeloi.com.br/2015/11/a-terceira-internacional-o-komintern.html

A Quarta Internacional. 1938. http://www.blogdopedroeloi.com.br/2015/11/a-quarta-internacional-trotski.html

E da Segunda Internacional deixo ainda um post sobre o hino da Internacional. É a chamada oração leiga dos trabalhadores. A tirei do livro A greve de 1917, de José Luiz Del Roio. http://www.blogdopedroeloi.com.br/2019/06/a-internacional-oracao-leiga-dos.html

E ainda, a resenha da greve brasileira de 1917, que poderia ser considerada a grande greve brasileira, comparável a da narração de Emile Zola. http://www.blogdopedroeloi.com.br/2019/06/a-greve-de-1917-os-trabalhadores-entram.html

Creio que presto um bom serviço para quem estiver a procura de fontes para pesquisar sobre este tão apaixonante, atual e necessário tema.

quarta-feira, 29 de janeiro de 2025

Em busca do tempo perdido. 1. No caminho de Swann. Marcel Proust.

Confesso inicialmente a enorme dificuldade que tive para escrever este post. Isso se deve a vários motivos. No caminho de Swann, de Marcel Proust é apenas o primeiro livro de uma série de sete. Os sete volumes tem um título geral: Em busca do tempo perdido. Destes, li, apena agora, o primeiro desses livros. É uma leitura difícil, lenta, com muito poucos acontecimentos que te prendam à leitura, muita erudição, o que pode provocar uma dificuldade de concentração e uma fuga de interesses. Confesso que demorei bastante na sua leitura. Não é daqueles livros que te prendem e te levam a uma leitura quase ininterrupta. Mas vamos a contextualizações do autor e da obra.

No caminho de Swann. Marcel Proust. Biblioteca Folha. 2003. Tradução: Fernando Py.

Marcel Proust nasceu em 1871 e morreu em 1922. A mãe é de influente família judaica (Weil) e o pai é católico e professor de medicina em Paris. A família é de muitas posses, fato que permitiu a Marcel nunca precisar de um trabalho, tipo emprego fixo, com horários delimitados. Nuca lhe faltou dinheiro para viajar. O ambiente de infância era o de uma intensa vida cultural, junto a seus familiares. A sua saúde sempre fora muito frágil, sofrendo de crises asmáticas.

Olhando para as datas que delimitam a sua vida (1971-1922), eu destacaria três importantes fatos históricos que muito o influenciaram: A Guerra franco prussiana (1870-1871) com humilhante derrota dos franceses para os alemães, a queda da monarquia e a instauração da Terceira República; a Comuna de Paris (18 de março a 28 de maio de 1871) e uma Paris extremamente conturbada e com inúmeras e graves consequências e a Primeira Guerra Mundial (1914-1918). Tempos de novo declínio da nobreza e ascensão burguesa. Tempos de muitas intrigas. Em busca do tempo perdido são essencialmente tempos de memória. Em rápidas buscas, os temas mais presentes são os temas humanos: amor, ciúmes (quase todo o longo capítulo 2, do primeiro volume - Um amor de Swann), da homossexualidade, (especialmente o volume 4 - Sodoma e Gomorra), os temas existenciais da vida.

Antes de entrar na resenha do primeiro livro, deixo ainda os títulos dos sete livros e os anos de sua publicação. Os livros de Em busca do tempo perdido receberam muitas publicações, de muitas diferentes editoras, com tradutores famosos. Por isso, pode haver pequenas diferenças nos títulos. Vejamos os apresentados pela Editora Relógio d'Água: 1. Do lado de Swann, 1913; 2. À sombra das raparigas em flor, 1919; 3. O caminho de Guermantes, dois volumes - 1920 e 1921; 4. Sodoma e Gomorra, dois volumes - 1921 e 1922; 5. A prisioneira, publicação póstuma de 1923; 6. A fugitiva - Albertine desaparecida, publicação póstuma de 1927; 7. O tempo reencontrado, publicação póstuma de 1927. O tempo em que os livros foram escritos foram os dos anos entre 1913 e 1922. Ao todo somaram mais de 3.500 páginas.

Agora podemos ir ao primeiro volume - No caminho de Swann, título da Ediouro, com tradução de Fernando Py. O livro que eu li foi o da coleção Biblioteca Folha, livro número 25, uma publicação do ano de 2003. São as memórias mais remotas do escritor, as de sua infância, vivida junto aos pais, os avós, as tias, seus vizinhos, Swann em particular, e Gilberte, a filha desse vizinho Swann. Ela, se observarem, será o tema do livro de número seis. O livro é dividido em três partes, as duas primeiras bem longas e a terceira bem curta. Os títulos das partes são: Parte um - Combray, cidadezinha que divide com Paris, as memórias de sua infância; Parte dois - Um amor de Swann. Charles Swann é o personagem título do livro, o vizinho da família do escritor, com o qual eles tem restrições por causa de seu perdido amor pela bela cortesã, Odette de Crécy. Swann é um homem culto, rico e refinado. A descrição de seus ciúmes são memoráveis; Parte três: Nomes de lugares: o nome. O grande destaque vai para Albertine, a filha de Swann, coleguinha do escritor e um primeiro arrastar de asas.

Na contracapa da edição da Folha de S.Paulo, Jorge Coli, assim apresenta o livro: 'Há o fascínio pelo mundo, pelas mulheres e homens, pelas artes. Há o gosto pelas conversas inesperadas e vivas, com duelos emocionais que os personagens travam. Há um desejo constante de compreender e analisar todos os sinais do mundo, animados ou inanimados, inteligentes ou obtusos, indiferentes ou apaixonados. Há uma intuição, assustadora e silenciosa, da maneira oculta como esses sinais se cruzam, determinando com isto, de modo imprevisto, o destino de tudo. Há a experiência do cotidiano, garantias muito frágeis, mas únicas, daquilo que cada um é, ou antes, vai sendo. Há também muita ironia e muito humor em Proust, que sabe criar passagens hilariantes. Há muito sexo também, que pode atingir extremos de perversão.

No caminho de Swann é o primeiro de sete outros livros. Eles formam a saga denominada Em busca do tempo perdido. Proust fixou o tempo, que escapa, nessa obra que é ela mesma movente e fugidia. Teceu uma rede que nos apanha: corresponde aos limites da 'humana condição'. Mas Proust também descerra nossos olhos, fazendo-nos compreender, não sem angústia, os alcances e as fronteiras da consciência a partir das sensações, do vivido e da experiência.

Existem os grandes autores, existem os autores que amamos. São raros, porém, aqueles de fato capazes de transformar o leitor. Não se sai incólume da leitura de Proust".

Já na orelha da capa os editores assim apresentam o livro: "'Cessara de me sentir medíocre, contingente, mortal. De onde me teria vindo aquela poderosa alegria?' Com estas duas frases, o narrador de Em busca do tempo perdido registra o momento de epifania que o fará reconstruir toda sua vida, desde a remota infância até a maturidade. A cena é aquela em que a personagem mergulha um pedaço de bolo - a famosa madaleine - numa xícara de chá e, a partir daí, se deixa transportar pela memória. Está no começo de No caminho de Swann, volume inicial do mais importante ciclo romanesco do século XX.

Lançado por Marcel Proust em 1913, depois de ter sido recusado pelas principais editoras francesas, este livro se concentra no período de formação do protagonista: o amor intenso pela mãe e a pouca simpatia pelo pai; o ambiente familiar dominado por mulheres; os sentimentos precoces de ódio e de culpa; as temporadas na provinciana Combray, com suas histórias locais; os primeiros contatos com pessoas que iriam viver, envelhecer e desaparecer sob os olhos do narrador.

Entre as muitas figuras que povoam o mundo de Proust, neste volume se destacam o rico sr. Charles Swann e a jovem e sedutora Odette de Crécy (casal interpretado no cinema por Jeremy Irons e Ornella Muti, numa adaptação do diretor alemão Volker Schlöndorff). O capítulo 'Um amor de Swann' é quase um romance à parte: um magistral estudo sobre o ciúme, talvez o melhor que a literatura já produziu".

Para destacar e demonstrar  a beleza poética e a erudição do texto eu selecionei uma passagem, um diálogo humano, não entre humanos, mas entre instrumentos musicais: "Que belo diálogo Swann ouviu entre o piano e o violino no princípio do último trecho! A supressão das palavras humanas, longe de deixar reinar ali a fantasia, como se poderia crer, eliminara-a; nunca a linguagem falada foi tão inflexivelmente fatal, não conheceu a esse ponto a pertinência das perguntas, a evidência das respostas. Primeiro o piano solitário se queixava, como um pássaro abandonado pela companheira; o violino o ouviu, respondeu-lhe como de uma árvore vizinha. Era como no começo do mundo, como se só existissem eles dois sobre a terra, ou melhor, naquele mundo fechado a tudo o mais, construído pela lógica de um criador, e onde só os dois existiriam para todo o sempre: aquela sonata. Era um pássaro, era a alma incompleta ainda da pequena frase, era uma fada aquele ser invisível e lastimoso cuja queixa o piano a seguir repetia com ternura? Seus gemidos eram tão repentinos que o violinista deveria se precipitar sobre seu arco para recolhê-los. Maravilhoso pássaro! O violinista parecia querer encantá-lo, aprisioná-lo, captá-lo. Já havia passado para sua alma, já a pequena frase evocada agitava, como a de um médium, o corpo verdadeiramente possuído do violinista. ...". Página 341.

segunda-feira, 20 de janeiro de 2025

A ÉTICA PROTESTANTE e o ESPÍRITO DO CAPITALISMO. Max Weber.

Uma releitura mais do que necessária. Estou falando de A ética protestante e o espírito do capitalismo, de Max Weber. Acima de tudo a sua releitura é uma questão de tempo, de amadurecimento de compreensão. A releitura sempre será uma leitura com maior atenção, de maior acumulação de conhecimento histórico, de fatores que ampliam a capacidade de entendimento de fenômenos, especialmente de fenômenos tão complexos, como o são as da compreensão do desenvolvimento histórico. 

A ética protestante e o espírito do capitalismo. Max Weber. Bibl. Pioneira de Ciências Sociais. 1992.

O livro é um ensaio do entrelaçamento, como diz o título, da formação do espírito capitalista com as teorias religiosas, profundamente repensadas a partir da reforma protestante, da ruptura da visão única ou uniforme de cristianismo, até este momento da história. Já o espírito capitalista, a grosso modo representa uma ruptura com o mundo da autossuficiência e limites da economia feudal, num mundo em grande expansão, fenômeno dos séculos XV e XVI. Já as implicações das relações são típicas dos séculos XVII ao XIX.  Para a melhor compreensão das análises desse ensaio ´são necessários os respectivos conhecimentos históricos que produziram o que chamamos de mundo moderno. E também o mundo medieval, mundo do qual a modernidade buscava o afastamento.

Antes de entrar na análise dos fatos, algo sobre o autor, sobre Max Weber. Ele nasceu em Erfurt (1864) e morreu em Munique (1920). Direito, religião e economia foram seus temas de predileção. Foi um dos fundadores e consolidadores da sociologia como ciência. Qual teria sido o principal fato ocorrido na Alemanha em seus anos de vida? Creio que a resposta necessariamente nos leva à unificação alemã (1871) e a consolidação dessa unificação com a formação do Império alemão, na sua estruturação burocrática. Um período de intensa industrialização e competição, fatos que implicaram na Primeira Guerra Mundial. Formou-se pelas universidades de Heidelberg e Berlim e foi professor em Freiburg, Heidelberg, Viena e Munique. Os temas por ele vividos e observados são os temas de suas principais obras, sendo A ética protestante e o espírito do capitalismo, a mais importante.

Ela é dividida em duas partes: I. O problema e II. A ética vocacional do protestantismo ascético. A primeira parte está dividida em três capítulos, a saber: 1. Filiação religiosa e estratificação social. 2. O "espírito" do capitalismo. 3. A concepção de vocação de Lutero, tarefa da investigação. Já a segunda parte tem dois capítulos: 4. Fundamentos religiosos do ascetismo laico: A. O calvinismo; B. O pietismo; C. O metodismo; D. As seitas batistas. 5. A ascese e o espírito do capitalismo.

Max Weber também foi professor de metodologia. Digo isso por causa da evidência do método em seu trabalho. O seu ensaio é um verdadeiro exercício de dedução. Vejamos: a. Os fundamentos éticos do protestantismo são os ideais ascéticos. b. o espírito do capitalismo está impregnado de princípios ascéticos. c. Os valores ascéticos de ambos se encontraram e se encaixaram na formação do capitalismo moderno. Daí decorre a explanação dessas constatações.

Da primeira parte o destaque vai para os capítulos 2 e 3. Neles são expostos a visão do "espírito" capitalista, retirado essencialmente da autobiografia de Benjamin Franklin, sendo que o conceito de vocação é retirado das obras de Lutero. No primeiro capítulo são mostradas as nações que aderiram ao protestantismo e as que permaneceram no catolicismo e os motivos para tal.

Benjamin Franklin foi filho de pai calvinista. Fez fortuna na Nova Inglaterra. Suas máximas eram as da laboriosidade e da frugalidade e o não desperdício de tempo e de dinheiro. Agora, ganhar dinheiro, longe de uma satanização, se transforma numa virtude, sob as bênçãos divinas. Tudo obedece a uma racionalização da vida. Vejamos uma breve descrição: "A situação idílica anterior desmorona sob a pressão de uma luta amarga competitiva, fortunas respeitáveis são feitas e não emprestadas a juros, mas sempre reinvestidas no negócio. A velha atitude de lazer e conforto para com a vida deu lugar à rija frugalidade que alguns acompanharam e com isso subiram, porque não desejavam consumir mas ganhar, enquanto outros, que conservavam o antigo modo de vida, viram-se forçados a reduzir o seu consumo". Ascese, poupança, sacrifícios são condições para a acumulação/ investimento. Uma vida de contenção.

Já o conceito de vocação está ligada à ocupação. Ocupação em um mundo em transformação. A industrialização trará a divisão do trabalho. O trabalho será secular e profissional, sob os desígnios da Providência e da obediência a Deus. Calvino e o puritanismo e, como se verá mais adiante, seus seguidores falarão mais dessa secularização da profissão e do espírito de dedicação total no trabalho, na profissão. Tudo deverá ser feito para a maior glorificação de Deus.

O primeiro capítulo da segunda parte é de fundamental importância. Ajuda mais na compreensão das diferenças entre as designações religiosas derivadas do calvinismo e as implicações práticas que elas tiveram. Assim são expostos os fundamentos ascéticos do calvinismo, (predestinação - tudo é vontade divina e tudo deve ser direcionado para a glória de Deus - não existe mediação de sacramentos ou pessoas na busca da salvação - vida virtuosa e autoconfiança de estar entre os eleitos), do qual os presbiterianos são os maiores seguidores, do pietismo, do metodismo e das seitas batistas. Como chegar à salvação e racionalização e a emotividade são as maiores diferenças.

O último capítulo é o das correlações, o modo como esses dois fatores históricos se encontraram, se relacionaram e se influenciaram reciprocamente e se metabolizaram na formação do chamado capitalismo moderno, ao menos até os tempos em que o autor pode observar sua constituição, contradições e o despregar-se das influências religiosas, para simplesmente se transformar no sistema capitalista. Um livro valioso e necessário.

Vejamos um dos parágrafos finais desse capítulo: "Desde que o ascetismo começou a remodelar o mundo e a nele se desenvolver, os bens materiais foram assumindo uma crescente, e, finalmente, uma inexorável força sobre os homens, como nunca antes na História. Hoje em dia - ou definitivamente, quem sabe - seu espírito religioso safou-se da prisão. O capitalismo vencedor, apoiado numa base mecânica, não carece mais de seu abrigo. Também o róseo caráter de sua risonha sucessora; a Aufklärung parece estar desvanecendo irremediavelmente, enquanto a crença religiosa no 'dever vocacional', como um fantasma, ronda em torno de nossas vidas. Onde a 'plenitude vocacional' não pode ser relacionada diretamente aos mais elevados valores culturais - ou onde, ao contrário, ela também deve ser sentida como uma pressão econômica - o indivíduo renuncia a toda tentativa de justificá-la. No setor de seu mais alto desenvolvimento, nos Estados Unidos, a procura da riqueza, despida de sua roupagem ético-religiosa mundanas, que frequentemente lhe dão o caráter de esporte".

E uma observação final. O que dizer da teologia da prosperidade? Sobrou alguma coisa da ética protestante ou sobrou apenas o espírito capitalista? E a mediação da salvação pelo dinheiro? Sobrou ainda alguma coisa de espiritualidade?

Ainda, relativo ao tema, a resenha do instigante livro - Os demônios descem do norte.

http://www.blogdopedroeloi.com.br/2016/12/os-demonios-descem-do-norte-delcio.html

  

sexta-feira, 10 de janeiro de 2025

LARANJA MECÂNICA. Anthony Burgess. 1962.

Antes do término de 2024, mais uma releitura. Nem me lembrava de sua leitura. Isso tem uma explicação: a força das imagens do filme de Stanley Kubrick, de 1972. Elas se sobrepuseram às imagens do livro, que teve a sua primeira publicação no ano de 1962. Estou falando de Laranja mecânica, de Anthony Burgess. Adquiri o livro em 2007 e chamo atenção para uma parte que eu sublinhei. Ela está na terceira parte do livro, em seu capítulo 4, quando alguém acode Alex, o jovem submetido às experiências de regeneração:

Laranja mecânica. Anthony Burgess. Aleph - editora. 2006.

"Eles transformaram você em alguma coisa que não um ser humano. Você não tem mais o poder de decisão. Você está comprometido com atos socialmente aceitáveis, uma maquininha capaz de fazer somente o bem. E vejo isso claramente: essa questão sobre os condicionamentos de marginais. Música e o ato sexual, literatura e arte, tudo agora deve ser uma fonte não de prazer, mas de dor". E, Alex, o narrador, continua: "Eles sempre vão longe demais - ele disse, secando um prato meio distraído. - Mas a intenção essencial é o verdadeiro pecado. Um homem que não pode escolher deixa de ser um homem". (Página 158). É o livro.

Anthony Burgess, o autor, fora sentenciado à morte pelos médicos. Teria ainda, no máximo, um ano de vida. Aí desembestou a escrever. A sentença não se cumpriu e ele pode retomar, com todo o cuidado, a escrita de Laranja mecânica. O livro é narrado por Alex, um jovem londrino envolvido na violência urbana da cidade, no início da década de 1960. Ele é o chefe de uma quadrilha muito violenta. A polícia reage com ainda maior violência e busca, por meio de experiências da ciência, soluções para o problema. É o Método Ludovico, que consta do uso de drogas e condicionamentos pavlovianos para a recuperação dos jovens das gangues. Eles sentiriam repugnância diante de atos violentos. E assim estariam curados, podendo retornar à sociedade.

O livro tem uma particularidade. Ele usa a linguagem Nadsat, a linguagem das gangues londrinas. Ao final do livro, tem até um pequeno dicionário, apresentando o significado das palavras empregadas. Para apresentar a essência do livro, recorro primeiramente à orelha da capa do livro, para depois apresentar a sua estrutura: "Alex é o líder de uma gangue futurista. Junto com os amigos adolescentes Georgie, Pete e Tosko, pratica assaltos, espancamentos e estupros livremente pelas ruas de uma Londres decadente, cujos habitantes têm medo de sair à noite e preferem se distrair com programas de televisão.

Um dia Alex vai longe demais e, involuntariamente, comete um assassinato. Preso, sua única chance de sair da reclusão é participar como cobaia de uma experiência de engenharia social desenvolvida para eliminar tendências criminosas. Uma experiência extremamente dolorosa e tão desumana quanto a ultraviolência que o próprio Alex costumava praticar.

Narrada pelo personagem principal, esta brilhante e perturbadora história cria uma sociedade futurista em que a violência atinge proporções gigantescas e provoca uma resposta igualmente agressiva de um governo capitalista, porém totalitário. O clássico de Anthony Burgess frequentemente nos choca ao explorar o verdadeiro significado da liberdade e o conflito entre o bem e o mal. A estranha linguagem utilizada por Alex - soberbamente engendrada pelo autor - empresta uma dimensão quase lírica ao texto e é, talvez, seu maior atrativo.

Ao lado de 1984, de George Orwell, e Adorável mundo novo, de Aldous Huxley, Laranja mecânica é um dos ícones literários da alienação pós-industrial que caracterizou o século XX. Adaptado com maestria ao cinema em 1972 por Stanley Kubrick, é uma obra marcante: depois de sua leitura, você jamais será o mesmo".

O livro é dividido em três partes. Cada uma tem sete capítulos. Isso tem uma razão. Vejamos Fábio Fernandes no prefácio: "Burgess construiu cuidadosamente essa estrutura de 21 capítulos porque, na cultura anglo-americana, a idade adulta só é plenamente atingida aos 21 anos, e Laranja mecânica, antes de tudo, é o que os alemães chamam de bildungsroman: um romance de formação. A trajetória de Alex da adolescência nada inocente até a maturidade e o início de uma possível compreensão das responsabilidades adultas só se completa efetivamente no vigésimo primeiro capítulo. A divisão de cada parte em sete capítulos é baseada no monólogo clássico de Shakespeare sobre as sete idades do homem na peça As You Like It". As sete idades são as seguintes: idade infante, escolar, amante, soldado, juiz, pantalão e a velhice.

Confesso que o último capítulo me deixou um tanto confuso: Como é possível que uma distopia termine em regeneração. Nele, Alex se encontra com Pete, um dos companheiros de quadrilha da adolescência, casado e com filhos. Passara dos 21 anos. Seria isso uma regeneração natural alcançada pela idade?

Mas vamos às três partes: Na primeira são narrados os atos violentos da gangue, assaltos e estupros, até o ato extremo de uma morte, que leva Alex ao sistema prisional. A segunda parte é dedicada à descrição dos métodos de cura, os condicionamentos psíquicos de horror à violência. E na parte final, Alex, devidamente condicionado é devolvido à sociedade, perfeitamente adaptado à ela. Todos procuram tirar proveito da situação, exaltando as virtudes do método ou fazendo a sua crítica. Devo dizer que, no mínimo, o livro é extremamente instigante. Um libelo contra o autoritarismo e contra o  behaviorismo e uma afirmação pela autoafirmação e autodeterminação do ser humano. A liberdade. Marcou época.

segunda-feira, 6 de janeiro de 2025

O ideal grego da educação individualista. Na ILÍADA de Homero.

Em meus já longos anos de estudos sempre busquei os fundamentos. Os fundamentos dominantes em nossa cultura. Nela estão assentados os princípios que norteiam a vida e afirmam os valores que dão sentido e significado à existência. São eles que nos conduzem a uma harmonização de vidas ou então o seu contrário. São eles que fundamentam o comportamento humano, contidos nos princípios morais e éticos da convivência humana. Para encontrá-los, nada melhor do que ler e estudar os clássicos.

Iliada. Homero.

Nesse sentido, estou numa releitura de clássicos: Ilíada, Odisseia e Eneida. Uma observação de Marcos Reis Pinheiro, contida no prefácio da Odisseia, da Editora Nova Fronteira, me chamou particular atenção. Ela diz assim: "Homero criou a Grécia histórica, tendo sido então de influência tão profunda e duradoura como a Bíblia, Dante e Shakespeare em fases subsequentes da cultura ocidental. O verso 208 do Canto VI da Ilíada, na fala de Glauco, resume o ideal grego da educação individualista, do agon, na luta, em que o preceptor desperta no aluno o espírito de competição levada ao extremo, educando-o.

para ser sempre o primeiro e de todos os mais distinguir-me". 

Já a definição de Agon, segundo a Wikipédia nos diz que era "era um daemon (espírito orientador) que personificava os concursos, desafios e disputas solenes nos jogos olímpicos, nas peças teatrais e também nos debates e discussões filosóficas". Quem teve a felicidade de conhecer a cidade de Olímpia teve a oportunidade de conhecer esse espírito. Lutar ao lado de vencedores, muitas vezes elevados à condição de semideuses. Portanto, um direcionamento do imaginário, tão presente nos cursos motivacionais de nossos tempos. Seja sempre o primeiro e nada te impede que você o seja!. O problema, na modernidade, são as tais das condições materiais.

A minha grande referência para os estudos da educação grega sempre foi o livro Paideia, a formação do homem grego, do alemão Werner Jaeger. Já no primeiro capítulo, lugar dos gregos na história da educação, depois de falar desses fundamentos da civilização grega, ele faz a sua aplicação aos princípios educacionais. Vejamos uma parte dessa apresentação: "Colocar esses conhecimentos como força formativa a serviço da educação e formar por meio deles verdadeiros homens, como o oleiro modela a sua argila e o escultor as suas pedras, é uma ideia ousada e criadora que só podia amadurecer no espírito daquele povo de artista e pensador. A mais alta obra de arte que seu anelo se propôs foi a criação do Homem vivo. Os gregos viram pela primeira vez que a educação tem de ser também um processo de construção consciente. 'Construído de modo correto e sem falha, nas mãos, nos pés e no espírito', tais são as palavras pelas quais um poeta grego dos tempos de Maratona e Salamina descreve a essência da virtude humana mais difícil de adquirir. Só a este tipo de educação se pode aplicar a palavra formação, tal como a usou Platão pela primeira vez em sentido metafórico, aplicando-a à ação educadora".(Página 13). O alemão chama a isso de Bildung e a diferencia de Erziehung, a educação escolar formal.

Jaeger, já antes, fala da inspiração grega na formação do mundo moderno e lhe aponta estas características de formação individual: "O mundo grego não é só o espelho onde se reflete o mundo moderno na sua dimensão cultural e histórica ou um símbolo da sua autoconsciência racional. O mistério e deslumbramento originário cerca a primeira criação de seduções e estímulos em eterna renovação". Um pouco mais adiante ele reafirma e reforça esse princípio: "Dissemos que a importância universal dos gregos como educadores deriva da sua nova concepção do lugar do indivíduo na sociedade. E, com efeito, se contemplamos o povo grego sobre o fundo histórico do antigo Oriente, a diferença é tão profunda que os Gregos parecem fundir-se numa unidade com o mundo europeu dos tempos modernos. E isto chega ao ponto de podermos sem dificuldade interpretá-los na linha da liberdade do individualismo moderno" (Página 9).

Paideia. A formação do homem grego. Werner Jaeger. Martins Fontes.

A educação está umbilicalmente ligada à palavra caminho, meios, processos. Isto é, a promoção da inserção do indivíduo na sociedade. Inserção do indivíduo na sociedade. Ela é dinâmica e está em constante processo de transformação. O mesmo ocorre com as estruturas da sociedade. E é esta a razão de sua complexidade e de suas polêmicas. Outras palavras entram na análise. O coletivo, o comum, o conviver, modelos de sociedade. Hoje ela é um renhido campo de disputas. Isso a leva a controles, que chegam ao grau de insensatez. Seus objetivos muitas vezes são reduzidos a treinamentos utilitários, as avaliações são massivamente padronizadas e a atuação docente é limitada ao uso de plataformas, eliminando a práxis do trabalho docente. E onde fica a formação do indivíduo?

Tenho recomendações a fazer, de dois grandes educadores brasileiros. De Dermeval Saviani Escola e democracia e de Paulo Freire, Educação como Prática da Liberdade, Pedagogia do Oprimido e Pedagogia da autonomia - saberes necessário à prática pedagógica. Entre esses dois autores, compreendo as diferenças, mas neles vejo mais aproximações do que distanciamentos. Uma educação voltada para a formação da consciência, consciência de classe. 

Também tenho comigo um texto do memorável Milton Santos. Um texto do qual eu não desgrudo. Os deficientes cívicos, publicado na Folha de S.Paulo de 19 de janeiro de 1999. Eu o considero como um testamento seu, que ele nos legou. Ele nos fala da redução da educação nos tempos da globalização, termo pelo qual, na época, era denominado o neoliberalismo. Ele afirma e reafirma que a educação, entendida como formação, como Bildung, nunca pode dissociar-se da formação filosófica e da formação profissional. Nunca o pêndulo pode pender mais fortemente, apenas para um dos lados sob a pena de formar deficientes cívicos. A sua tese principal é a de formar indivíduos fortes e cidadãos íntegros. 

Este texto é um texto para blog, chamativo para o debate. Isso implica em limites de todos os tamanhos. Mas com certeza, serve para a reflexão e o debate, com algumas linhas necessariamente presentes, sempre quando se debate a educação. Pena que hoje se debata tão pouco e se imponha tanto. Tempo de governos neoliberais. Tempos em que o neoliberalismo deixou de ser mera doutrina econômica para ser uma visão de mundo, que enxerga tudo sob uma ótica de unidimensionalidade. A ótica da mercadoria, do lucro e da acumulação. O ser humano é plural e complexo, fruto da relacionalidade e da riqueza da pluralidade, das trocas. Jamais um pensamento uniforme, padronizado e imposto.

Que a educação tenha sempre a perspectiva da expansão e não da contenção. Termino com uma frase em que é definida a criança, no seu sentido mais pleno. Ela se encontra no livro A resistência, de Ernesto Sábato. Diz assim: "Toda a criança é um artista que canta, dança, pinta, conta histórias e constrói castelos". É tarefa da educação ajudar a expandir este artista e, pela Bildung, formar um ser humano "construído de modo correto e sem falha nas mãos, nos pés (mundo trabalho) e no espírito (o mundo da filosofia, da política, da cidadania). Ajudar a criança na inserção no mundo e não na adaptação ao mundo. Hoje, creio também, que em função do hiperindividualismo, a palavra emulação é melhor do que a palavra competição.

Deixo o texto do Milton Santos. http://www.blogdopedroeloi.com.br/2015/03/os-deficientes-civicos-milton-santos.html e também um texto sobre a fundação do pensamento humanista, contido na Ilíada.

http://www.blogdopedroeloi.com.br/2025/01/iliada-homero-uma-definicao-do-humano.html


quinta-feira, 2 de janeiro de 2025

ILÍADA. Homero. Uma definição do humano.

Ilíada é uma obra que retrata a cultura grega, atribuída a Homero e que, junto com a Teogonia (Hesíodo) e a Odisseia (também de Homero), é peça fundante da literatura e da cultura universal. Ela é uma compilação da tradição oral, datada do século IX ou VIII a. C.. Ela retrata o último ano da Guerra de Troia, ocorrida no século XII a. C.. Alguns até lhe fixam os dez anos de duração com os anos de 1194 a 1184 a. C.. Homens valorosos, super-homens e deuses se envolveram nessa guerra, motivada por elementos profundamente humanos. Ela envolveu as cidade gregas contra a poderosa Troia, situada na Ásia Menor. Ambas as cidades tiveram os seus heróis. Os heróis troianos foram exaltados mil anos após, por Virgílio em Eneida, dedicada a Eneias. Uma exaltação ao fundador de Roma e do Império Romano.

Ilíada. Homero. Nova Fronteira.

Bem, a finalidade deste post é mostrar a presença do humano, os valores que o constituem e exaltados por Homero, especialmente, ao final da obra. Vamos, por isso retomar esta parte da obra, para nos fixarmos no canto XXIV, o canto final. Ele trata do resgate do cadáver de Heitor, para lhe oferecer as devidas honras fúnebres. Na Eneida encontramos uma descrição precisa sobre a importância do funeral nessas culturas fundantes. Sibila, a guia de Eneias no mundo das sombras, assim fala ao herói troiano: "Toda essa multidão aqui é constituída de pobres que ficaram sem sepultura. Não lhes será permitido atravessar o rio antes que seus restos repousem nas tumbas ou seus corpos sejam cremados nas piras. Se tal não acontecer, aqui ficarão vagando cem anos e até duas vezes cem anos, antes que deles se condoa o triste Caronte".

Afirmada esta importância, voltamos à Ilíada. O troiano Heitor é morto por Aquiles, que assim vinga a morte de seu grande amigo Pátroclo, morto por Heitor. Aquiles, tomado de ódio, não se satisfaz apenas com a morte de seu inimigo. Também lhe profana o corpo, mantendo-o insepulto. Príamo, o rei de Troia e pai de Heitor, procura meios, grandes e simbólicas riquezas, para resgatar o filho junto a Aquiles, e lhe prestar as honras funerais. É nesse momento que os ódios que envolvem os personagens são superados pelos valores. Cenas comovedoras são apresentadas. Demos atenção a elas: Príamo fala a Aquiles:

"Sem pelos outros ser visto, entra o grande monarca, e de Aquiles // aproximando-se, abraça-lhe os joelhos e beija as terríveis // mãos homicidas, que muitos dos filhos lhe haviam matado.

Como se dá quando algum criminoso exilado da pátria // busca, vencido da angústia, refúgio em mansão opulenta // de potentado estrangeiro, deixando os presentes atônitos: // do mesmo modo o terrível Pélida se assombra ao ver Príamo. 

Todos os mais se entreolharam, tomados de pasmo como ele. // Súplice, Príamo, então, começou de falar, e lhe disse: // "lembra-te, Aquiles, igual a um dos deuses, teu pai venerável é // da mesma idade que a minha e, portanto, como eu, assim velho. //É bem possível que esteja cercado por fortes vizinhos, // cheio de angústia, sem ter quem lhes sirva  de amparo e defesa; // mas, só de ouvir que estás vivo, alegria indizível lhe invade // o coração, dia a dia esperando poder ante os olhos ter a figura do filho glorioso, de volta de Troia.

Muito mais triste é o meu fado, que, após tantos filhos ter tido, // de comprovado valor, nem um só na velhice me resta. // Vivos, cinquenta floriam no tempo em que os Dânaos chegaram; // da mesma mãe, dezenove guerreiros me foram brindados; // os outros todos diversas mulheres nos paços tiveram. // De muitos dele as forças dos joelhos tirou Ares forte; // e o único herói que restava, dos muros amparo e de todos, // a combater pela pátria, não há muito tempo mataste, // o meu Heitor, cujo corpo aqui venho insistente pedir-te, // às naus aquivas trazendo resgate de preço infinito.

Sê reverente aos eternos, Aquiles; de mim tem piedade; // pensa em teu pai, também velho, bem mais infeliz sou do que ele, // pois chego agora a fazer o que nunca mortal fez na terra: // beijo-te as mãos, estas mãos que a meus filhos a Morte levaram".

Grande saudade do pai no Pelida o discurso desperta; // toma das mãos do monarca, afastando-o de si com brandura. //Ambos choravam; o velho, lembrando de Heitor valoroso, // num soluçar convulsivo, de Aquiles aos pés enrolado, // que, ora o pai velho chorava, ora a perda do amigo dileto, // Pátroclo; o choro dos dois pela tenda bem-feita ressoava.

Logo que Aquiles divino saciado ficou de gemidos // e os membros todos e o peito sentiu libertados da angústia, //do belo trono se ergueu, pela mão toma o velho monarca, // de branca barba condoído, condoído da nívea cabeça, // e, começando a falar, lhe dirige as palavras aladas:

"Quanta amargura, infeliz, não suportas ao peito sofrido! // Como pudeste vir só aos navios dos fortes Aquivos // e apresentar-te entre os olhos de quem foi a causa da perda // de tantos filhos valentes? Tens férreas entranhas, decerto. // Vamos, assenta-te agora no trono; apesar de angustiados, // é conveniente deixar as tristezas no peito se aplaquem.

Nada o homem lucra em deixar-se invadir pelo gélido pranto. // Sempre viver em tristeza, eis a sorte que os deuses eternos // de descuidada existência aos mortais infelizes dotaram. // Sobre os umbrais do palácio de Zeus dois tonéis se acham postos, // de suas dádivas; um só de males; de bens outro cheio. // Se, misturando-as, Zeus grande, senhor dos trovões, as derrama, // quem as recebe ora goza, ora males por sorte lhe tocam; // mas o que dele recolhe somente infortúnios, escárnio // vivo se torna; em extrema miséria, na terra divina, // é condenado a vagar, desprezado por homens e deuses. //

Ao nascimento, também, de Peleu os eternos lhe deram // dons inefáveis; riquezas sem conta, dos homens a estima, // e o incontestado governo dos fortes guerreiros Mirmídones. // Mais: apesar de mortal, como esposa uma deusa lhe cedem. // Grande infortúnio, porém, concederam-lhe os deuses, negando-lhe // filhos que o mando pudessem herdar-lhe no belo palácio; // a mim somente gerou, destinado a morrer muito cedo. // Longe a pátria, não posso cercar de cuidados o velho, // pois me acho em Troia, causando-te, e aos filhos, desditas sem conta.

Tu, também, velho, já foste feliz, pelo que me contaram. // Quantos guerreiro existem de Lesbo, na sede de Mácar, // té para o norte da Frígia, nos lindes do vasto Helesponto, // já dominaste, abençoado com filhos e bens infindáveis. // Mas, desde o instante em que os deuses celestes tal praga te enviaram, // guerra, somente, e homicídios em torno dos muros te soam.

Vamos, suporta! Não deves à dor excruciante entregar-te. // Nada consegues chorando teu filho com tantos encômios; // não ressuscita, e, além disso, outro mal poderias causar-te" (Versos 476-549).

Vamos retomar a fala de Aquiles, quando fala dos dois tonéis. O que não está dito?  Vamos dar voz a Carlos Alberto Nunes, responsável pela introdução, apresentada à editora Nova Fronteira. A mesma também pode ser encontrada na edição da Melhoramentos: 

"Na resposta de Aquiles é que vamos encontrar a muito famosa e para sempre célebre imagem dos dois tonéis do limiar no Olimpo, de males e de bens, as dádivas de Zeus. Se, ao nascimento, alguém recebe uma mistura desses dons, atravessa, de acordo, a existência: ora a sofrer, ora com fases de relativa felicidade. Mas, se recebe apenas males, torna-se desprezado por todos e ludíbrio permanente dos homens e dos deuses. É de notar que Aquiles não menciona a terceira possibilidade: de receber algum mortal, ao nascimento, apenas dádivas do tonel de bens, pois a condição humana é incompatível com essa disposição".

Eis revelada a condição humana. Os dois reis, valorosos guerreiros, viveram momentos profundamente humanos, valores humanos, que se impuseram ao desumano das guerras. Literatura e cultura fundante.