sexta-feira, 30 de maio de 2025

Geografia da fome. Josué de Castro.

Creio que este livro - Geografia da fome -, de Josué de Castro, foi um dos livros que eu mais ouvia falar ao final dos anos 1960 e ao longo de toda a década de 1970. Era o tempo da minha conclusão da Faculdade de Filosofia em Viamão e o início de minha atividade profissional em Umuarama. Mas não o li na época. O adquiri num sebo, ao longo dos anos 2000, mas somente agora é que eu  fui lê-lo. Deveria tê-lo feito na época de sua escrita.

Geografia da fome. Josué de Castro. 1908 (Recife) 1973 (Paris).

Mas quando ele foi escrito? A sua primeira versão é do ano de 1946. No entanto, a versão hoje corrente e definitiva é o da 9ª edição, do ano de 1960. O próprio autor o conta no Prefácio desta edição. Vejamos a sua fala: "Este livro foi publicado pela primeira vez em 1946. Nele tentou o autor esboçar um retrato do Brasil de cerca de quinze anos atrás. Do Brasil que era então um país tipicamente subdesenvolvido, com sua característica economia de tipo colonial, na exclusiva dependência de uns poucos produtos primários de exportação, entre os quais se destacava o café. Ao retratarmos a fome no Brasil estávamos a evidenciar o seu subdesenvolvimento econômico, porque fome e subdesenvolvimento são uma mesma coisa. Foi esta conjuntura econômico-social com todas as suas trágicas consequências que inspirou este ensaio" (página 47). Anteriormente, mas no mesmo prefácio, ele falava de seus objetivos:

"Aparecendo na aurora dessa nova era social, onde a tenebrosa noite do fascismo ainda projeta as suas sombras, este livro pretende ser um documentário científico desta tragédia biológica, na qual inúmeros grupos humanos morreram e continuam morrendo de fome, ao finalizar-se esta escabrosa era do homem econômico.

Para se compreender bem e se possa perdoar o uso que faz o autor, em certas passagens do seu livro, de tintas um tanto negras (Opa! naquele tempo podia), é bom que o leitor se lembre de que esta obra, documentário de uma era de calamidade, foi pensada e escrita sob a influência psicológica da pesada atmosfera que o mundo vem respirando nos últimos vinte anos. Atmosfera abafada pela fumaceira das bombas e dos canhões, pela pressão das censuras políticas, pelos gritos de terror e de revolta dos povos oprimidos e pelos gemidos dos vencidos e aniquilados pela fome" (página 39).

O que mais me chamou a atenção, já logo no início da leitura foi o entrelaçamento da fome e das carências alimentares sobre a constituição fisiológica do ser humano. Os terríveis efeitos da subnutrição e as deformações fisiológicas. Aí fui ver que não era um sociólogo quem escrevia o livro. Era sim, um médico, com o seu olhar científico. O livro pode ser visto assim como um mapa, ou documentário dos alimentos existentes nas diferentes regiões brasileiras, bem como o seu oposto, o das carências. As principais doenças da fome/subnutrição são: - beribéri, pelagra, escorbuto, xeroftalmia,, raquitismo, osteomalácia, bócios endêmicos, anemias, entre outras. O livro contem muita pesquisa, pesquisa em tempos pioneiros, quando a bibliografia era praticamente inexistente. São os tempos da FAO, da qual ele integrou o Conselho Mundial, vindo a morar em Paris.

Mas vamos falar um pouco da estrutura do livro. Começo pelas dedicatórias: A Rachel de Queiroz e José Américo de Almeida, romancistas da fome no Brasil e - A memória de Euclides da Cunha e Rodolfo Teófilo, sociólogos da fome no Brasil. Aí seguem três prefácios, entre eles o do autor. Segue então o cerne do livro com sete capítulos e os apêndices e entre eles uma breve biografia e uma valiosa bibliografia. Vamos aos capítulos.

I. Introdução. Nela ele apresenta um panorama da fome pelo mundo, as vinculações entre a fome e a subnutrição e as cinco diferentes regiões, que se constituem  nos próximos capítulos.

II. Área amazônica. Os alimentos da mandioca (básica), da economia de coleta, a pimenta e a juta. Depois fala das contribuições indígenas para esta alimentação e a dos nordestinos, que para lá migraram no ciclo da borracha (1870-1910). A maior parte do capítulo é, no entanto, dedicada às deficiências alimentares e as suas consequências, analisando ainda as experiências norte-americanas, da Fordlândia e de Belterra.

III. Área do Nordeste açucareiro. Quatro séculos de devastação da floresta tropical, transformada em campos abertos para o cultivo da cana-de-açúcar. Terras férteis (massapê) e de grande variedade de frutas. A desinteligência da monocultura e dos rápidos desgastes da terra. Os holandeses e a obrigatoriedade do plantio da mandioca. E como no capítulo anterior, aqui são apresentadas as contribuições dos indígenas e dos escravizados para a alimentação. E, também, mais uma vez, as principais carências alimentares e as suas consequências.

IV. Área do sertão do Nordeste. Este é o mais longo dos capítulos. Apresenta as suas terras como sendo agrofágicas, fala das misérias das epidemias da seca e do milho e a sua miséria alimentar. Divide a região em agreste, caatinga e o alto sertão, da pouca diversidade de plantas e o domínio das cactáceas. Descreve os períodos de seca e as migrações dos retirantes. Analisa as implicações entre o fanatismo religioso e o banditismo, dos jagunços e ao mesmo tempo seus traços de bom caráter. Grande ênfase é dada à pecuária, - bovinos, caprinos e muares. Carne e leite e a riqueza alimentar.

V. As áreas de subnutrição: Centro e Sul. O autor considera esta região com deficiências mais discretas, caso de subnutrição, mais do que fome. Da região centro-oeste fala da cultura do milho, da criação de porcos e alimentos típicos, especialmente os de Minas Gerais. Fala também dos efeitos de levar a capital do país para Brasília. Por sul, ele entende tudo o que está abaixo do Rio de Janeiro. Fala dos efeitos da imigração e, de maneira especial, dos japoneses e sua dedicação ao cultivo de hortaliças. Mas a região convive com subnutrição crônica. O espaço dedicado é bem menor do que ao das outras regiões.

VI. Estudo do conjunto brasileiro. É a parte mais política do livro. Começa pela análise do espírito bandeirante e o desejo do enriquecimento fácil, do imperativo do "fique rico depressa". Fala da drenagem dos recursos públicos para as regiões sul e sudeste. Fala do subdesenvolvimento e crítica as políticas liberais que desconsideram a necessidade e o valor do planejamento econômico. O Estado é visto como indutor do desenvolvimento. Critica a direção do pêndulo em favor da política industrial e a pouca atenção à questão agrária e defende a urgência da reforma agrária. Não seria possível atingir o desenvolvimento com a permanência de uma agricultura semifeudal.

VII. Glossário. Um pequeno dicionário de hábitos que criaram os principais pratos regionais. Maravilhoso. O livro é concluído com um apêndice à oitava edição, com dados biográficos do autor e uma bibliografia, que nos fornece um belo quadro da literatura existente na época sobre este tão importante tema.

Da biografia tomo os dados finais para este post. Josué de Castro nasceu no Recife no ano de 1908 e morreu em Paris, no ano de 1973. Por que em Paris? Lá ele cumpria a sua vida de exilado político, como um condenado pelo regime civil militar instaurado no ano de 1964. Combater a fome era considerado um crime, coisa dos perigosos comunistas. Explicava as causas da fome. Sobre a sua importância deixo a parte final da biografia, na qual é citada uma reportagem do Le Figaro: "Cheio de flama e de paixão pela grande causa a que ele servia, ajudando, por suas fórmulas marcantes, a tocar de perto as realidades do subdesenvolvimento, a tomar consciência do círculo vicioso no qual se encerrou o mundo, exerceu ele uma influência profunda e duradoura".

Das orelhas de capa e contracapa tomo dois depoimentos. Da capa:"(...) um dos estudiosos mais lúcidos dos problemas do Terceiro Mundo". Rádio do Vaticano. E da contracapa: "Se foi o caloroso advogado dos pobres, Castro jamais pleiteou a piedade ou o assistencialismo. Mas a justiça é uma outra ordem no mundo. Morreu poucos dias após os acontecimentos do Chile e, sem dúvida, mais consciente do que nunca de tudo que restava por fazer. Mas porque viveu entre nós, a ignorância já não é uma desculpa. Daqui para frente nós sabemos. Como um geógrafo implacável, Josué de Castro traçou, sob nossos olhos, o mapa da fome. E o mínimo que podemos dizer dessa geografia é que ela não nos honra nem um pouco". Rémy Montour, Panorame. Simplesmente - um livro necessário.

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