terça-feira, 21 de dezembro de 2021

Bagagem. Adélia Prado. Vestibular - 2022. UFRGS.

Mais uma vez, a indicação da leitura me vem pelos livros do vestibular de ingresso - 2022 - da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Trata-se de Bagagem, um livro coletânea, da poetisa e escritora mineira, Adélia Prado. O livro, publicado com o apoio de outro poeta mineiro, Carlos Drummond de Andrade, é uma soma de seus primeiros versos. A publicação data do ano de 1976. A autora nasceu na cidade de Divinópolis no ano de 1935. Estes versos foram, portanto, escritos antes de ela completar os seus quarenta anos de idade e já mãe de quatro filhos, como lemos na orelha do livro.

Bagagem. Adélia Prado. Record. 2019.

Em outro livro, também do vestibular da mesma universidade, Ponciá Vicêncio, de Conceição Evaristo, apresentamos uma contextualização brasileira da época de sua escrita, o ano de 1973. Situamos o livro no contexto da ditadura militar, pelo Golpe de Estado de 1964, agravado em 1968 pelo AI-5 e, também marcado pela Guerra Fria e pela Bipolaridade. Porém isso não tem nada a ver com os poemas de Adélia. O que tem a ver sim, é uma outra característica desse tempo, que é a extrema religiosidade do povo brasileiro, ainda completamente dominado pelo catolicismo conservador, especialmente no que diz respeito aos costumes e à moralidade.

Adélia Prado é uma brasileira dessa época. E como brasileira dessa época, a marca maior de sua poesia é a religiosidade. Arriscaria até a dizer, e certamente muitos o dirão, até meio piegas. Toda a sua poesia está impregnada de religiosidade. Até mesmo, nas raras vezes em que ela se defronta com questões existenciais, tão presentes nessa época, ela encontra na religiosidade a sua saída ou a sua fuga. Poderíamos certamente dizer que a sua poesia é uma oração ou um canto de louvor a Deus, o sublime Criador de tudo.

Sobre o livro temos outras indicações. Numa espécie de apresentação, na orelha do mesmo, lemos: "Lido e recebido com empolgação por Carlos Drummond de Andrade - que indicou a publicação do livro -, Bagagem foi escrito num entusiasmo de fundação e descoberta. Emoções que, para a autora, são inseparáveis da criação, ainda que nascidas, muitas vezes, do sofrimento. Os poemas também mostram sua profunda religiosidade, que pode nascer do impacto da leitura de um texto sagrado, de um olhar amoroso sobre um personagem ou da observação das coisas simples da natureza.

Sobre o processo de criação do livro, Adélia esclarece: 'Os poemas praticamente irromperam, apareceram cargas e sobrecargas de poemas. Eu escrevia muito nesse período, e quando vi que o volume tinha uma unidade, que ele não era apenas uma coleção de poemas, pois tinha uma fala peculiar, dele próprio, entre outros títulos que me ocorreram, Bagagem era o que resumia, para mim, aquilo que não posso deixar ou esquecer em casa. A própria poesia"'.

Além da marca profundamente religiosa de sua poesia, das cenas comuns de seu cotidiano, dos fatos do dia a dia, da descrição da natureza que a cercava, também a sua condição de mulher, ganha algum destaque. Vejamos já no primeiro verso apresentado: Com licença poética: "Quando nasci um anjo esbelto, - desses que tocam trombeta, anunciou: - vai carregar bandeira. - Cargo muito pesado para mulher, - esta espécie ainda envergonhada [...]. Mas o que sinto escrevo. Cumpro a sina. -  dor não é amargura. - Minha tristeza não tem pedigree, - já a minha vontade de alegria, sua raiz vai ao meu mil avô. - Vai ser coxo na vida é maldição pra homem. - Mulher é desdobrável. Eu sou".

Destaco ainda três poemas de sua obra primeira. O primeiro expressa a sua condição religiosa. Saudação: Ave Maria! - Ave, carne florescida em Jesus. - Ave, silêncio radioso, - urdidura de paciência - onde Deus fez seu amor inteligível".

O segundo, creio que expressa uma visão sua mundo, do seu mundo. Uma parte do poema ganhou inclusive a contracapa do livro. O poema tem por título - Leitura. "Era um quintal ensombrado, murado alto de pedras. -  As macieiras tinham maçãs temporãs, a casca vermelha - de escuríssimo vinho, o gosto caprichado das coisas - fora do seu tempo desejadas. - Ao longo do muro eram talhas de barro. - Eu comia maçãs, bebia a melhor água, sabendo - que lá fora o mundo havia parado de calor. - Depois encontrei meu pai, que me fez festa - e não estava doente e nem tinha morrido, por isso ria, - os lábios de novo e a cara circulados de sangue, - caçava o que fazer pra gastar sua alegria: - onde está meu formão, minha vara de pescar, - cadê minha binga, meu vidro de café? - Eu sempre sonho que uma coisa gera, - nunca nada está morto. - O que não parece vivo, aduba. - O que parece estático, espera".

O terceiro, o considero bem autobiográfico. O título é.- Atávica. "Minha mãe me dava o peito e eu escutava, - o ouvido colado à fonte dos seus suspiros: -'O meu Deus, meu Jesus, misericórdia'. - Comia leite e culpa de estar alegre quando fico. - Se ficasse na roça ia ser carpideira, puxadeira de terço, - cantadeira, o que na vida é beleza sem esfuziamentos, - as tristezas maravilhosas. - Mas eu vim pra cidade fazer versos tão tristes - que dão gosto, meu Jesus misericórdia. - Por prazer da tristeza eu vivo alegre".

Ainda preciso dizer que não tenho grande familiaridade com a poesia. Devo dizer que tenho grande dificuldade em lê-la. Não aprendi a ler poesia. Tive até concursos de oratória em minha formação. Ela sempre foi mais voltada para a fé e para a racionalidade do que para a sensibilidade artística. Lacunas que não consegui suprir. Muitas coisas eu esqueci, outras nunca aprendi. Paciência.

sexta-feira, 17 de dezembro de 2021

As meninas. Lygia Fagundes Telles. Vestibular 2022. UFRGS.

Mais um dos livros que me chega por indicação de vestibular. Nesta série, já é o terceiro. Os anteriores foram Caderno de memórias coloniais, de Isabela Figueiredo e Ponciá Vicêncio, de Conceição Evaristo. Deixo a resenha ao final do parágrafo. Agora, o livro da vez foi As meninas, de Lygia Fagundes Telles. É o meu primeiro contato com a escritora. Lygia não é uma escritora fácil de se ler. Ah, a sua estrutura narrativa! As conversas das meninas! O real, o espontâneo, a ficção! Mas vamos aos links, antes de continuar.

http://www.blogdopedroeloi.com.br/2021/12/caderno-de-memorias-coloniais-isabela.html e

http://www.blogdopedroeloi.com.br/2021/12/poncia-vicencio-conceicao-evaristo.html

As meninas. Lygia Fagundes Telles. Companhia das Letras. 2020.

Para a compreensão do livro ele precisa necessariamente de uma contextualização. A sua primeira edição data de 1973 e Lygia confessa que levou mais de três anos para escrevê-lo. O livro nos dá algumas pistas de que as conversas entre as meninas ocorreram no ano de 1969 (o empréstimo do carro da mãe de Lorena, a referência a Argélia, onde se encontrava o namorado de Lia), ano do recrudescimento do regime militar e da forma de combatê-la pela Luta Armada. Mas... vamos devagar. Primeiro, o romance conta a história de três meninas, bem caracterizadas. Lorena Vaz Leme, Lia de Melo Schultz e Ana Clara Conceição. A conversa entre elas se dá, tudo indica, na cidade de São Paulo e o cenário político é o da ditadura militar, regime instaurado em 1964 e aprofundado por um golpe dentro do golpe e a edição do Ato Institucional número 5, que limitou ou extinguiu as liberdades individuais. O poder simplesmente podia tudo.

As três meninas são internas de um pensionato de freiras, com o sugestivo nome de Nossa Senhora de Fátima, a mais anticomunista das Nossas Senhoras (Tempos de bipolaridade - da Guerra Fria). Não obstante, as freiras, sob o comando da madre Alix, são compreensivas e progressistas. É o tempo de ventos de papas progressistas (João XXXIII e Paulo VI) e da Teologia da Libertação. Embora não tenhamos nenhuma referência no livro, creio que o fenômeno mundial do maio de 1968 também deve ser levado em conta, ao menos, sob o estado de ânimo das meninas. Paira sobre elas um enorme vazio existencial. Ah, Jean Paul Sartre! Parece óbvio que as meninas tenham perfis diferentes.

Lorena é rica e culta. É a mais estabilizada entre elas. É herdeira de família rica e tradicional. Ela meio que namora um homem casado, um tal de M. N., Marcus Nimesius. Lia, a Lião, estuda ciências sociais e está envolvida na guerrilha contra a ditadura. Ela é baiana, filha de um alemão (Schultz) ex-nazista. Ana Clara (ou turva) é a mais perdida entre as meninas. É linda, namoradeira, consumidora de drogas e que, loucamente, busca a ascensão social.

Estes são os componentes do romance. A pauta dos costumes! Lorena preserva a sua virgindade, um valor da tradicional família católica brasileira. Eram tempos de desquite e não de divórcio. Tempos também de liberação sexual, com a qual Ana Clara conviveu sem dificuldades. Lia queria as transformações sociais, num mundo contraditório, em que o Leste Europeu dava sinais do esvaziamento do socialismo real (Primavera de Praga). O vazio existencial transpira em todos os fluxos do real e do imaginário. Marx, Lacan, Sartre, Simone de Beauvoir, são constantes nesses fluxos.

O livro, apesar de marcar um tempo curto da ocorrência dos fatos é relativamente longo. São 370 páginas, divididas em doze capítulos, mais posfácio, escrito por Cristóvão Tezza e outras pequenas referências ao livro, retiradas de edições anteriores. Recomendo muito o posfácio do professor Tezza. Nele, ele nos deixa uma indicação final muito interessante: "Naturalmente, esse é um olhar distanciado de hoje, três décadas depois (hoje já seriam cinco), mas o fato de o romance recriar os mecanismos éticos de sua tensão original em outro tempo é prova de sua permanência e vitalidade". Lygia é paulista, nascida em 1923. Escreveu este romance entre os seus 37 a 40 anos, na condição de atenta observadora de um mundo em profundas transformações.

Deixo ainda o primeiro parágrafo da orelha do livro da primeira edição (1973), escrito por Paulo Emílio Sales Gomes: "O que reúne As meninas - denominação dada por Lygia  Fagundes Telles a três moças de mentalidade definida e arrojada - é um daqueles antigos pensionatos religiosos, destinados a protegê-las contra os riscos da cidade. Contudo, as personagens que fazem parte do círculo de Lorena, Ana Clara e de Lia são tão frágeis e vulneráveis quanto elas próprias. porque o tal pensionato não é mais um casulo intocável - exposto como se encontra, como toda a sociedade do nosso tempo, às diferentes formas da fraternidade ou do medo: política, sexo, drogas. Porque o que une essas três jovens brasileiras não é apenas a amizade mas a circunstância de serem filhas do mesmo lugar e do mesmo tempo. A romancista as segue por fora e por dentro no relacionamento com os companheiros, com as freiras e com a família. Através do fato, da memória e da imaginação".

Este livro é mais uma bela indicação da notável universidade gaúcha. Esses temas devem fazer parte do mundo cultural de um jovem que queira ingressar na universidade de nossos tempos e também se engajar nas lutas, como a escritora se envolveu em seu tempo, em favor da democracia e contra todas as formas de regimes autoritários e de seus instrumentos de cerceamentos em todos os campos do viver. Afinal, o viver pulsa por mais viver. E a liberdade é a condição fundamental para tal. Ah, como eu vivi esses tempos! Me  formei em filosofia no ano de 1968, em Viamão, no Rio Grande do Sul e em 1969, iniciava a minha vida profissional em Umuarama, no Paraná. Eu vivia muito mais os valores do passado, pela forte influência católica em minha formação.

sexta-feira, 10 de dezembro de 2021

Ponciá Vicêncio. Conceição Evaristo. Vestibular 2022. UFRGS.

Continuando com as minhas leituras dos livros indicados para o vestibular de ingresso na Universidade Federal do Rio Grande Sul, me deparei com Conceição Evaristo e o seu livro Ponciá Vicêncio. Com certeza, mais uma bela escolha da Universidade Federal gaúcha. Isso, em função da escritora em si, por sua forma peculiar de escrita, mas principalmente pelos temas abordados, como a herança da escravidão, a sua permanência ao longo do tempo, tanto no campo quanto na cidade, o êxodo rural, as questões raciais, as injustiças sociais e, ainda, as relações familiares.

Ponciá Vicêncio. Conceição Evaristo. Pallas. 2017.

É o meu primeiro contato com a escritora. A conhecia apenas por entrevistas e sabia que era escritora, negra e engajada em causas populares. A sua história é uma bela história de superação. Nasceu em Belo Horizonte no ano de 1946, de família pobre e numerosa, moradora em favela. Após concluir estudos em Escola Normal, ela parte para Niterói, onde exercerá a função de professora e... não para mais de estudar. O seu campo sempre foi o da literatura, campo em que foi da licenciatura ao doutorado. Sua vida foi dividida entre a escrita e as aulas, estas dadas em várias universidades.

Na apresentação de Ponciá Vicêncio, ela conta um pouco de sua trajetória de escritora , de seu primeiro livro. Ponciá ganhou a sua primeira edição em 2003, com financiamento da própria autora. Em 2006 veio uma segunda edição, já com financiamento dividido com a editora. Depois veio uma edição de bolso, para atender demandas de vestibulares, fato que continua acontecendo, como é caso agora do vestibular da UFRGS. E, toda orgulhosa, ela nos conta: "E assim vai Ponciá. A moça que saiu de trem de uma cidadezinha qualquer, segue atravessando montanhas e mares. Hoje a história dela pode ser lida em língua inglesa [...], em francês [...] e em espanhol". Ponciá ganhou o mundo.

A estrutura do romance não é tão simples. Ela tem uma certa linearidade, da menina que sai do campo e se aventura pela cidade grande, mas em que o passado está sempre presente em suas memórias, lembranças, dores, afetos e desejos. Seriam fluxos de consciência? O desejo maior era o de reconstituir o que sobrara de sua família, ou seja: Maria Vicêncio, a mãe de Ponciá, a própria Ponciá e o irmão Luandi José Vicêncio. O avô Vicêncio também está onipresente. Ponciá é uma espécie de reencarnação sua. Merecem ainda algum destaque Nêngua Kainda, uma espécie de vidente, o bom soldado negro Nestor e a mulher-dama Biliza, a Biliza-estrela.

Vô Vicêncio é remanescente dos tempos da escravidão. Terras de brancos e o sufoco do trabalho foram vividos pelo pai de Ponciá e de seu irmão, mesmo ainda sendo criança. Ponciá e a mãe modelavam a argila. Eram verdadeiras artistas. A vida de emigrantes para a cidade grande lhes reservava serviços subalternos, como o de soldado e de empregada doméstica, ou ainda o da construção civil, trabalho do homem de Ponciá. Eram os herdeiros de um sistema que continuava, sob disfarces, escravocrata. O vazio da existência, aliada ao desespero e à desesperança levaram Ponciá praticamente à loucura.

Na apresentação do livro, a autora estabelece uma relação entre Ponciá e ela. Essa passagem aparece também na orelha do livro. Vejamos: "Às vezes, não poucas, o choro da personagem se confundia com o meu, no ato da escrita. Por isso, quando uma leitora ou um leitor vem me dizer do engasgo que sente, ao ler determinadas passagens do livro, apenas respondo que o engasgo é nosso. A nossa afinidade (Ponciá e eu) é tão grande, que, apesar de nossas histórias diferenciadas, muitas vezes meu nome é trocado pelo dela. Recebo o nome da personagem, de bom grado. Na con(fusão) já me pediram autógrafo, me abordando carinhosamente por Ponciá Evaristo e distraída quase assinei, como se fosse a moça, ou como se a moça fosse eu". Creio que muitas das pessoas da geração da escritora, como a da minha, viveram, de uma forma ou de outra, o fenômeno do êxodo rural, um fenômeno brasileiro dos anos 1960 - 1970, para a instituição de novos latifúndios para viabilizar o agronegócio.

O livro tem um posfácio assinado por Maria José S. Barbosa, da Universidade de Iowa. Dele destaco duas passagens. A primeira, para mostrar a obra e a sua complexidade. "O romance explora a fundo as sucessivas perdas de Ponciá (a morte do avô, do pai, dos sete filhos, a separação da mãe e do irmão), penetrando no 'apartar-se de si mesma'. Analisa tal fato como uma consequência de grandes abalos emocionais, de profundas ausências e vazios, mas também como o resultado de fatores sociais (extrema pobreza, desamparo e injustiças sociais) que levam a situações extremamente estressantes. A história se desenvolve com complexidade, mas sem atropelos. As imagens e as emoções são dados na dosagem certa, sem exageros e sem mutilações narrativas". A segunda  passagem, a destaco para marcar a natureza dos personagens:

"A ternura é a forma de redenção de quase todos os personagens. Conceição enfatiza os profundos laços de família a unir mãe e filhos, os gestos ternos e os abraços comovidos, e mostra como, neste romance, a solidariedade se estende muito além das relações familiares. É a pedra de toque da amizade do Soldado Nestor e de Luandi (o irmão de Ponciá) e se manifesta no carinho deste último pela prostituta Bilisa. A voz narrativa leva o leitor a compartilhar a profunda ternura que se estabelece entre o marido (também cansado, acabrunhado e sofrido) e Ponciá, quando esta se queda em si mesma".


Maria José termina o seu posfácio com uma saudação à força da palavra. "Ave palavra"! Isso me fez lembrar o prefácio, do professor Ernani Maria Fiori, ao maior livro da educação brasileira e um dos maiores da educação mundial, Pedagogia do oprimido, de Paulo Freire. Esse prefácio tem por título "Aprender a dizer a palavra". Em seu último parágrafo lemos: "Em regime de dominação de consciências, em que os que mais trabalham menos podem dizer a sua palavra e em que multidões imensas nem sequer podem dizer a sua palavra e em que multidões imensas nem sequer têm condições para trabalhar, os dominadores mantêm o monopólio da palavra, com que mistificam, massificam e
dominam. Nessa situação, os dominados, para dizerem a sua palavra, tem que lutar para tomá-la. Aprender a tomá-la dos que a detêm e a recusam aos demais, é um difícil, mas imprescindível aprendizado - é a 'Pedagogia do oprimido'".

O romance é uma narrativa de pessoas oprimidas, que encontram eco nas palavras de Conceição Evaristo para a libertação de seus múltiplos sufocos. Ave, palavra! Aliás, a alfabetização também está fortemente presente no livro. Um desejo incontido. O analfabetismo da época era uma das grandes chagas da nação brasileira, que continua sob a capa do analfabetismo funcional de ilustres letrados. Muitos deles, nossos governantes.


segunda-feira, 6 de dezembro de 2021

Caderno de memórias coloniais. Isabela Figueiredo. Vestibular 2022. UFRGS.

Uma das fontes para as minhas leituras. Procuro sempre ver o que está sendo solicitado nos vestibulares pelo Brasil afora. Creio que esta seja uma bela forma de me manter relativamente bem atualizado. Foi dessa maneira que entrei em contato com essa pequena maravilha - Caderno de memórias coloniais, de Isabela Figueiredo. Isabela nasceu em Lourenço Marques (Maputo), Moçambique, em 1963 e veio para Portugal em 1975, o ano da independência daquele país. Ela sentiu em seu corpo, em seu corpo, repito, as memórias coloniais.

Caderno de memórias coloniais. Isabela Figueiredo. Todavia. 2018.

Seu pai saíra de Portugal na década de 1950, quando o país estava sob o domínio da ditadura salazarista. Poucas oportunidades havia na metrópole. Uma fuga para as colônias poderia representar uma solução para a vida. Foi o que fez o pai de Isabela. Ele era eletricista. Sob pesado jugo sobre os negros construiu uma vida, que do ponto de vista econômico, diríamos próspera. A situação se altera com as mudanças trazidas pelo 25 de abril de 1974. A Revolução dos Cravos em Portugal. Isso significaria uma mudança com relação às suas colônias na África. Moçambique proclama a sua independência em 25 de julho de 1975. Ela foi precedida de muitas lutas, que começaram, já nos idos de 1964.

A exemplo do ocorrido em Angola, também em Moçambique, após a independência se instaurou o clima da Guerra Fria. O bloco de países socialistas apoiava as forças da Frente de Libertação de Moçambique (FRELIMO), comandadas por Samora Machel, enquanto os países capitalistas, capitaneados pela Rodésia e pela África do Sul, apoiavam a RENAMO (Resistência Nacional de Moçambique). A paz veio somente em 1992, depois de 17 anos de Guerra Civil. Esses são alguns dados de contextualização histórica para a melhor compreensão deste livro, que, como lemos na contracapa "é um grito".

O teor da obra, é então, fácil de imaginar, a realidade vivida em Moçambique antes e depois do domínio colonial português. A ênfase maior está no período colonial. Colonialismo, racismo e patriarcalismo são assim, os grandes temas do livro, descritos por quem os viveu e nunca se conformou com tal situação. Em meio a todo esse contexto político Isabela também crescia. Passou da infância para a adolescência, num mundo cheio de proibições. O livro consta as memórias vividas e, acima de tudo, sofridas por Isabela. A relação com o pai personifica o que foi a dureza do colonialismo português na África. Ao mesmo tempo, mantinha com o pai, uma bela relação de afetos e sentimentos e de autoridade patriarcal.

O livro também representa uma desmistificação do que fora o colonialismo português, dito como um colonialismo brando, perto do que havia sido o colonialismo praticado na África do Sul, com o seu mundialmente conhecido apartheid, ou com os horrores praticados pelos belgas, no Congo. Era mais ou menos uma versão como a de Gilberto Freyre, comparando a escravidão no Brasil com a dos Estados Unidos. Também a vida dos retornados é focada. É o caso dos colonizadores que voltam para a metrópole, após as condições de vida se tornarem impossíveis na ex-colônia. A condição de retornada de Isabel, foi ainda mais complicada. Ela, sozinha, irá conhecer a miséria junto a sua avó paterna em Lisboa. O analfabetismo absoluto grassava na família de seu tio.

O livro tem três apresentações: A primeira é uma introdução ao Caderno, escrita pela própria autora. A segunda, é de autoria de Paulina Chiziane, também moçambicana e escritora (autora de Niketche - uma história de poligamia). A sua apresentação é fantástica e aponta o colonialismo, o catolicismo e patriarcado como a razão para os grandes sofrimentos vividos pelos povos que foram vítimas do colonialismo português (Senti uma grande vontade de copiar toda a sua apresentação nesta resenha). A terceira é de José Gil, que apresenta o livro como o melhor de todos sobre o colonialismo português em Moçambique. Aí segue o livro, que consta de 51 pequenos capítulos e uma espécie de posfácio, "o meu corpo e o dele", da própria autora. Páginas memoráveis, 180 ao todo. Nelas lemos:

"Não me façam perguntas. Leiam-me apenas. Do que saiu recende um retrato brutal sobre o colonialismo. Era o que estava à minha volta. Eu não conseguiria narrar a minha infância sem a encaixar nesse décor que tudo dominava. O colonialismo respirava-se com a poeira do dia que o meu pai trazia na roupa, quando chegava em casa, ao final da tarde. Não era apenas o poder, mas o que dele transborda: subserviência e medo. Nasci e vivi nesse mundo convulso de racismo e discriminação de toda sorte. 'Grande novidade!', dirão. 'Bem-vinda ao mundo real" (Página 177). O livro termina com uma reflexão sobre a sua estada em Portugal, na casa da avó, sozinha e em condições absolutamente precárias, de retornada:

Isabela Figueiredo. A filha do colonizador a denunciar os horrores do colonialismo português.

"E arranjei-me. Os animais trazem instinto de sobrevivência. Amei o corpo de carne repetida  do meu pai, que confundo com o da terra. Abraço o meu corpo quando não a encontro, nem a ele nela. Eu e este livro estamos cheios de corpo e terra. Mas se os corpos se confundem, o que amei, afinal? Amei o colonialismo? Então é isso? Afinal, o que abracei eu, enquanto me abraçava chorando, no Maputo? De novo, a perturbação. Reflito e respondo-me honestamente, socorrendo-me da lucidez que nunca me abandonou: a construção ideológica e discursiva do meu pai sobre a necessidade de civilizar os negros esteve sempre errada aos olhos da criança que fui. Sempre foi evidente que o tratamento que ele designa como civilizador era castigador e paternalista. As crianças intuem a verdade sem precisar de palavras. A justiça e a matemática também coincidem nos resultados e, nesse caso, a equação colonial não tinha solução, apenas extinção. A idade adulta confirmou a intuição de criança: meu anti colonialismo não se alterou nem um milímetro. Esse foi, apesar de todos os dissabores, o curso certo da história. Não amei o colonialismo, mas não posso evitar ter conhecido a sua mancha.

Este livro é parte do meu corpo. E minha história, que não pode ser modificada em retrospecto, ficará para sempre ligada a ele" (Páginas 179-180).

Ainda, para dar uma melhor contextualização do livro, deixo o contido em suas orelhas: "Caderno de memórias coloniais foi publicado em 2009 em Portugal. Sucesso de público, foi imediatamente saudado como uma obra-prima. Houve quem dissesse que o livro de Isabela Figueiredo provocava um terremoto na vida literária lusitana. E com razão. Desfazendo o mito, frequentemente edulcorado, de que a experiência cultural portuguesa na África fora algo benéfico para as populações nativas (mascarando toda a carga de violência social, racial e até mesmo sexual), o texto expõe, com enorme força e vitalidade, uma outra história da colonização. Uma narrativa que poucos faziam questão de relembrar.

Mas não Isabela. Nascida em Lourenço Marques (atual Maputo), em Moçambique, filha de pais portugueses, viu desde a infância o tratamento reservado aos africanos. Exclusão social - as melhores praias, os restaurantes e as boas escolas eram destinadas aos brancos -, trabalhos subalternos e mal remunerados, o racismo a transpirar em cada gesto cotidiano. Tudo isso foi testemunhado pela autora, que ali viveu até a adolescência, quando teve que se estabelecer em Portugal com o processo de descolonização que sobreveio após a Revolução dos Cravos, em 1974.

Misturando memória, crônica  e ensaio com potência literária e testemunhal similar a textos de Primo Levi, Elias Canetti e Graciliano Ramos, este livro é um acerto de contas da autora com o passado colonial de Portugal, mas também com o seu próprio pai, um eletricista que em Moçambique obteve uma confortável condição social. O pai (evocado com iguais doses de crueza e carinho, saudade e alguma repulsa) parece personificar a metrópole: despreza e explora os nativos enquanto vive numa redoma de privilégios cercada de miséria, ignorância e brutalidade.

Tudo isso numa linguagem desassombrada e veemente, lírica e evocativa. Um triunfo literário e pessoal - daquela que já se impôs como uma das principais vozes do nosso idioma. E este seu livro devastador e apaixonante converteu-se numa das obras decisivas do nosso tempo". E parabéns para a Universidade Federal do Rio Grande do Sul pela inclusão deste livro e de seus temas no vestibular de acesso aos seus cursos.


quarta-feira, 1 de dezembro de 2021

Sábado. Ian McEwan.

A vida de professor não é fácil. Compatibilizar o ofício de ministrar aulas com uma leitura mais ou menos sistemática é muito difícil, ainda mais, quando você é apenas um professor horista. Não sobra tempo para a leitura, ou então, você a faz em partes, nas raras horas de folga. Falo isso, ao rever em minha estante, livros ainda não lidos. Entre eles localizei um, comprado em 2006. Lembro que o livro era muito comentado em nosso círculo de conversas, da turma dos professores do curso de Publicidade e Propaganda da Universidade Positivo. Trata-se de Sábado, romance de Ian McEwan.

Sábado. Ian McEwan. Companhia das Letras. 2005. Tradução: Rubens Figueiredo.

Terminei de lê-lo. É um belo romance, escrito para leitores atentos. Trata, como sugere o título, da vida desenvolvida ao longo de um sábado, geralmente um dia livre, livre do tripalium dos demais dias da semana. O dia começou cedo, ainda na madrugada, por uma crise de insônia e termina, apenas na madrugada de domingo, quando o personagem do livro dorme após um dia de exaustão física que chegara, praticamente, aos limites. Tem assunto, portanto, para um dia inteiro.

Quem são então os personagens desse Sábado. Henry Perowne, um médico neurocirurgião bem sucedido, é o personagem principal. O seu Sábado deveria ser um dia maravilhoso e raro em sua vida. Entre os seus afazeres para o dia, constava o preparo de um jantar todo especial, um jantar exclusivamente familiar. Dele participariam Rosalind, a esposa e advogada por profissão, Dayse, a filha, prestes a publicar um livro de poesia. Viria de Paris. Haveria ainda dois outros participantes: Theo, o filho músico e o avô, o pai de Rosalind, John Grammaticus, um poeta consagrado. Aparar arestas com a neta seria uma das finalidades do encontro. Questões entre poetas.

O dia será longo. Ele será descrito em cinco capítulos, dos quais eu não posso adiantar quase nada para não dar pistas da trama. É importante saber que o romance foi escrito no ano de 2005 (retratará um sábado do ano de 2003) e o cenário político do pós "torres gêmeas" e a iminente guerra contra o Iraque, de Saddam Hussein, estarão presentes nos fatos do dia. As ruas de Londres, a cidade onde se dão os fatos desse Sábado, serão tomada por multidões de manifestes em favor da paz. Com essa pequena contextualização, vamos aos capítulos: No primeiro, a família é apresentada, além das preocupações de Henry, em sua insônia da madrugada. No segundo, Perowne se desloca por ruas da cidade, com o seu Mercedes S500 e se envolve num pequeno acidente de trânsito. No terceiro aparecem as compras e o preparo para o jantar; no quarto ocorrerá um assalto e no quinto uma cirurgia de emergência.

A riqueza do romance não está, portanto, na narrativa da trama mas na força dos pensamentos e dos diálogos travados entre os personagens, com destaque para as reflexões de Perowne, sobre o significado da vida. Seus diálogos com a filha são fantásticos. O teor do desentendimento entre Grammaticus e Dayse é facilmente imaginável. O ambiente familiar é maravilhoso. Muitos fatos do passado, da memória, serão trazidos ao presente. Até destaquei um trecho, já do final do livro: "Chegará o tempo em que ele (Henry) vai operar menos e fará mais trabalho administrativo - eis outro tipo de vida - e Rosalind sairá do jornal para escrever o seu livro, e chegará o tempo em que não encontrarão mais forças para a praça, os drogados, o barulho do trânsito e a poeira. Talvez uma bomba em nome da jihad os leve para os subúrbios, junto com todos os demais corações fracos, ou até mais para o interior do país, ou para o castelo - o seu sábado se tornará um domingo" (Página 330).

Na contracapa do livro temos uma pequena apresentação do mesmo: "Sábado, 15 de fevereiro de 2003. O exímio neuro-cirurgião Henry Perowne aproveita o dia de folga para jogar squash e organizar um jantar festivo para a família em sua residência, num ponto elegante de Londres. Imbuído das certezas do homem de ciência e cercado pelo confronto de praxe em sua classe social, Perowne verá sua consciência passar por uma prova de fogo, depois de um incidente trivial numa rua da cidade. O pano de fundo é uma manifestação em que um milhão de londrinos desfilam contra a invasão iminente do Iraque. O trauma dos atentados de 11 de setembro em Nova York ainda é recente, e o temor de que ocorram atentados em Londres tira o sono de muita gente. Perowne está inquieto. Com a destreza de suas mãos, ele faz milagres em cirurgias cerebrais descritas aqui com precisão. Mas até que ponto poderá controlar as forças irracionais que rondam sua casa e sua família e ameaçam o mundo que ama?".

A edição brasileira, da Companhia das Letras, é de 2005. Tem tradução de Rubens Figueiredo e tem 336 páginas. O escritor, nascido em 1948, tem entre outros romances, o famoso Reparação, de 2002. Ian McEwan é dos mais consagrados escritores ingleses de sua geração.