terça-feira, 27 de janeiro de 2015

Lavoura Arcaica. O filme.

Raduan  Nassar é um escritor ímpar. Escreveu pouco. Três livros apenas, Lavoura Arcaica, Um copo de cólera e Menina a caminho, que reúne os contos escritos entre 1960 e 1970. Parou de escrever ainda na década de 1980. Lavoura Arcaica foi escrito em 1975 e se tornou bastante conhecido a partir de 1989, quando foi reeditado pela Companhia das Letras e começou a receber indicações como um livro cobrado em vestibulares. O livro é um retrato de sua infância e adolescência e as desventuras com o pai, com a severidade de sua pequena moralidade que sufocava o seu desejo de liberdade.
Lavoura Arcaica foi levado ao cinema pelo diretor Luiz Fernando Carvalho.

Raduan Nassar nasceu em 1935, filho de uma família de libaneses, de tradição católica, mas muito católica. Lavoura Arcaica retrata cenas de sua vida familiar, com fortes traços autobiográficos na figura de André, o filho rebelde, que, ao fugir de casa, teria destroçado a unidade da família. Mas esta não se refaz quando volta para casa, pelo contrário, aí é que ela implode completamente. Alceu Amoroso Lima, o Tristão de Ataíde, qualificou a obra como um "drama tenebroso, em estilo incisivo, nunca palavroso ou decorativo, da eterna luta entre a liberdade (André) e a tradição (o pai), sob a égide do tempo".

Lavoura Arcaica chamou a atenção do cineasta Luiz Fernando Carvalho, um nome respeitado. Levou a obra para o cinema em 2001. Provavelmente Luiz Fernando Carvalho é tão exigente consigo mesmo e com a produção de sua arte, quanto o foi Raduan Nassar, na escrita do livro. O filme é longo, tem quase três horas de duração. A fidelidade ao texto é absoluta. Isso até se transformou numa acusação, de ele ter sido textual demais. Reproduz na íntegra muitos diálogos, que na verdade são mais monólogos de André, quando este expõe ao irmão Pedro, os seus desencontros com o pai e com a vida. Da mesma forma são reproduzidos os sermões do pai para os filhos, militarmente ocupando os seus lugares à mesa.
O grande livro foi levado ao cinema em 2001. Grande sucesso de crítica. Muitos prêmios.

O filme é introspectivo, dá forma, ou transforma a imaginação de Raduan em imagens reais e concretas. O seu andar é lento, contrastando com as agitações que o tempo provoca, nos confrontos com o pai. Ternura e revolta se somam no bom filho, mas que, qual semente, também contém o "germe do mal". A briga de André, mais do que com o pai, é com ele mesmo, com o desejo de afirmação de sua individualidade e liberdade, que o leva ao desespero. O filme também retrata os costume libaneses que se preservaram junto aos seus imigrantes.
Selton Mello interpreta André, o personagem em torno do qual tudo gira. É um retrato de seus conflitos, na sua busca por liberdade e identidade. Não reprodução.

As atuações são soberanas. Selton Mello interpreta André e Raul Cortez faz o papel do pai. Já Simone Spoladore interpreta Ana, a irmã, por quem André alimenta uma paixão incestuosa. Juliana Carneiro da Cunha interpreta a ternura e a sobriedade da mãe, ficando para Leonardo Medeiros o papel de Pedro, o irmão mais velho e olhos e extensão da autoridade do pai. As cenas de rebeldia, de Lula o irmão mais novo e de Ana, em seu impulso de luxúria e de vida, um "demônio versátil", são particularmente maravilhosas.
Cena maravilhosa. Ana, a irmã. Da capela, para uma explosão de vida e de sensualidade.

O filme foi um sucesso de crítica e recebeu prêmios pelo mundo afora, onde participou. Mas não foi um sucesso de público. Assim como o livro, que se destina somente a leitores, o filme também se destina apenas a cinéfilos e não para o público. Não é um filme de mero entretenimento. É um filme que provoca a reflexão, e como tal, produz os seus incômodos e os seus desassossegos. A claridade que havia na fazenda, mais tarde veio a perturbar o menino André, que procurava cumprir uma cobrança que Saramago sempre se fazia; "Nunca te permitas ser menos do que és". Magnífico.


segunda-feira, 26 de janeiro de 2015

Lavoura Arcaica. Raduan Nassar.

"Torna-te quem tu és" (Nietzsche). "Segundo minhas experiências, na escola como em casa faziam de tudo para apagar nossa peculiaridade" (Fellini).

"- Não aguento mais esta prisão, não aguento mais os sermões do pai, nem o trabalho que me dão, e nem a vigilância do Pedro em cima do que faço, quero ser dono dos meus próprios passos; não nasci para viver aqui, sinto nojo dos nossos rebanhos, não gosto de trabalhar na terra, nem nos dias de sol, menos ainda nos dias de chuva, não aguento mais a vida parada desta fazenda imunda". Lula, o irmão mais novo de André em Lavoura Arcaica, de Raduan Nassar.
Na literatura brasileira, um de seus maiores monumentos. Lavoura Arcaica. Raduan Nassar.

André é o protagonista do romance Lavoura Arcaica, de Raduan Nassar, um dos livros mais plenos de ternura da literatura brasileira, mas a ternura e o afeto também podem transformar uma casa, em casa de perdição, como ele afirma. O tema do livro é o processo de socialização. O livro me fez lembrar o grande escritor Philip Roth, especialmente, dois de seus livros, O complexo de Portnoy e Indignação. Estes livros são um acerto de contas do autor com a sua socialização, dentro da rígida cultura judaica. São iconoclastia pura. Raduan Nassar também faz um acerto de contas de sua socialização, não com a cultura judaica, mas com a cultura libanesa cristã. Qual delas seria mais rígida? qual delas oprimiria mais? Qual delas procuraria mais fendas?
Raduan Nassar, ao final dos anos 1980 abandona a literatura. Uma pena. Devia ter seus motivos!


O livro, dividido em duas partes, a partida e o retorno, inicia com André recebendo a visita de Pedro, o irmão mais velho e uma espécie de olhos do pai, em missão a ele confiada: trazer André de volta para casa e reconstituir a unidade da família, na velha fazenda. O encontro permite uma volta no tempo para reconstituir a infância e os motivos da partida. A narrativa se aproxima mais de um monólogo de André, metabolizando a sua amargura, do que um diálogo com o irmão. André tem verdadeiras explosões de paixão em suas reminiscências de uma adolescência contida. Os sermões do pai contrastavam com o afago e a ternura da mãe. A sexualidade irrompe numa paixão incestuosa com a Ana, a irmã. O trabalho se transforma na monotonia e repetição do cotidiano. Pedro apenas reproduz a voz do pai, no seu desejo de volta. A volta para o arcaico, para um mundo de valores arcaicos, contidos numa fazenda.
Tradição X Liberdade. Os conflitos de André, o principal personagem da obra. No cinema foi interpretado por Selton Mello.

Pedro obtém êxito em sua empreitada. André consente em voltar. O filho pródigo à casa torna. A unidade em torno da família estará reconstituída. A autoridade do pai está refeita, os seus sermões poderão ter continuidade.  Os verdadeiros valores, os da paciência, da hierarquia e da unidade familiar estão preservados. Haverá festa, a festa de André. Mas, mal e mal está ele de volta, quando então, tudo começa a implodir. Os primeiros a se manifestar serão Lula, o irmão mais novo e Ana, a que não saía da capela.

Lula vê no irmão um fraco e promete não repetir suas fragilidades. Abandonará o lar ao meio dia, no dia da festa de André. Ana explode num ritual de sensualidade, num violento ímpeto de vida, contida pelas horas de aflição e de rezas na capela, "era a comunhão confusa de alegria, anseios e tormentos, ela sabia surpreender, essa minha irmã, sabia molhar a sua dança, embeber a sua carne, castigar a minha língua no mel litúrgico daquele favo..." Mas o pai recompõe a ordem, interceptando tudo:
Lavoura Arcaica, numa edição da José Olympio. O livro ganhou outra dimensão após a republicação pela Companhia das Letras.


"o alfanje estava ao alcance de sua mão, e, fendendo o grupo com a rajada de sua ira, meu pai atingiu com um só golpe a dançarina oriental (que vermelho mais pressuposto, que silêncio mais cavo, que frieza mais torpe nos meus olhos!), não teria a mesma gravidade se uma ovelha se inflamasse, ou se outro membro qualquer do rebanho caísse exasperado, mas era o próprio patriarca, ferido nos seus preceitos, que fora possuído de cólera divina (pobre pai!), era o guia, era a tábua solene, era a lei que se incendiava - ...".

Os sermões e as "verdades" neles contidas é que eram insuportáveis ante os anseios de liberdade de um tempo novo. Essa contradição está presente até as últimas palavras inscritas no livro, com as quais homenageia o pai: "e, circunstancialmente, entre posturas mais urgentes, cada um deve sentar-se num banco, plantar bem um dos pés no chão, curvar a espinha, fincar o cotovelo do braço no joelho, e, depois, na altura do queixo, apoiar a cabeça no dorso da mão, e com olhos amenos assistir ao movimento do sol e das chuvas e dos ventos, e com os mesmos olhos amenos assistir à manipulação misteriosa de outras ferramentas que o tempo habilmente emprega em suas transformações, não questionando jamais sobre seus desígnios insondáveis, sinuosos, como não se questionam nos puros planos das planícies as trilhas tortuosas, debaixo dos cascos, traçadas nos pastos pelos rebanhos: que o gado sempre vai ao poço". Ah, o tempo!
Dionísio encarna no corpo de Ana. Implosão da autoridade paterna e explosão de sensualidade, sexualidade e vida. Cena do filme.


Torna-te que tu és. Se isso for possível, ante o peso insuportável da manutenção das tradições, da lei e da ordem, mesmo causando ela, a mais absoluta desordem, do mais desordenado dos mundo. Diques represam torrentes de águas em busca de vazão.

Vejam ainda, Alceu Amoroso Lima, na contra capa do livro, comentando a obra: "Drama tenebroso, em estilo incisivo, nunca palavroso ou decorativo, da eterna luta entre a liberdade e a tradição, sob a égide do tempo. Livro impressionante, magistral". Ah, o tempo! Se Philip Roth é um iconoclasta de seu processo de socialização, Raduan Nassar escreve prosa feita poesia, entremeada de uma ternura muito triste e reflexiva sobre o mesmo tema.


quinta-feira, 22 de janeiro de 2015

Macunaíma. Uma rapsódia de Mário de Andrade.

Macunaíma - o heroi sem nenhum caráter não é um livro fácil de ser lido. Para isso nos faltam, essencialmente, elementos culturais ligados a cultura indígena, as suas crenças e lendas. Isso contrasta com a facilidade com a qual o livro foi escrito, uma brincadeira de férias. "É um livro de férias escrito no meio de mangas abacaxis e cigarras de Araraquara, um brinquedo. Entre alusões sem malvadeza ou sequência desfatiguei o espírito nesse capoeirão da fantasia onde a gente não escuta as preocupações os temores, os sustos da ciência ou da realidade - apitos dos polícias, breques por engraxar. Porém imagino que como todos os outros o meu brinquedo foi útil".  Coisa de uma semana.
Li esta edição de Macunaíma, da Coleção Folha. Tem uma preciosidade ao final.


Ao longo de minha vida aprendi uma lição definitiva. A aprendi com Alberto Manguel, em Uma história da leitura. Diz assim: "Parece que mesmo para ler no nível mais superficial o leitor precisa de informações sobre a criação do texto, o pano de fundo histórico, o vocabulário especializado e até sobre a mais misteriosa das coisas, o que Santo Tomás de Aquino chamava  de Quem auctor intendit, a intenção do autor". Página 107. O que deveria ser um bom prefácio para um livro? Ou então uma resenha? Creio que seria exatamente isso.
O escritor e folclorista Mário de Andrade. Captando um Brasil em formação, em busca de identidade.


Mário de Andrade, já datando-o e situando-o, nasceu em 1893 e morreu em 1945. A primeira edição do livro apareceu em 1928. O Brasil de então vivia uma grande agitação e efervescência em busca de uma afirmação e identidade. Neste período ocorreu a famosa semana da arte moderna de 1922, a revolta dos tenentes, no mesmo ano, a revolta paulista de 1924 e a Coluna Prestes e, mais tarde, a revolução de 1930. De uma forma ou de outra, Macunaíma representa um pouco de tudo isso.

A principal característica de Macunaíma está anunciada no subtítulo do livro, - o heroi sem nenhum caráter. Mário explica o significado da palavra caráter, um sentido próprio, obviamente. "E com a palavra caráter não determino apenas uma realidade moral não em vez entendo a entidade psíquica permanente, se manifestando por tudo, nos costumes na ação exterior no sentimento na língua na História na andadura, tanto no bem como no mal". Macunaíma é o povo brasileiro em busca de sua identidade, em formação, por isso "o brasileiro não tem caráter porque não possui nem civilização própria nem consciência tradicional". Ele está em formação, em mistura. "Macunaíma vinha com os dois manos para São Paulo". No caminho tomou um banho num lago de água encantada e "quando o heroi saiu do banho estava branco loiro e de olhos azuizinhos, água lavara o pretume dele. E ninguém não seria capaz mais de indicar nele um filho da tribo retinta dos Tupinambás". Quanto ao mano Maanape, quando este se foi lavar "conseguiu molhar só a palma dos pés e das mãos. Por isso ficou negro bem filho da tribo dos Tapanhumas. Só que as palmas das mãos e dos pés dele são vermelhas por terem se limpado na água santa". Depois conclui:
Macunaíma no cinema. Macunaíma é Grande otelo. A imaginação ganhou imagens.


"Estava lindíssimo no Sol da lapa os três manos um loiro um vermelho outro negro, de pé bem erguidos e nus". Estão aí as três raças formadoras do povo brasileiro. Este será o grande tema da literatura e da ciência já na década de 1930, a começar com Gilberto Freyre e o seu Casa-Grande&Senzala de 1933 e que mais tarde terá a sua forma consagrada por Jorge Amado em Tenda dos Milagres, "e há de nascer, de crescer e de se misturar... Quanto mais misturado, melhor".

Mas quem era mesmo Macunaíma para Mário de Andrade? Mário responde: "E o homem sou eu, minha gente, e eu fiquei para vos contar a história. Por isso que vim aqui. Me acocorei em riba dessas folhas, catei meus carrapatos, ponteei na violinha e em toque rasgado botei a boca no mundo cantando na fala impura as frases e os casos de Macunaíma, heroi de nossa gente". Mais algumas coisas, agora sobre o livro.
Mário de Andrade está no meio dessa turma, a turma da semana de arte moderna. 1922.


"Este livro afinal não passa duma antologia do folclore brasileiro" e "Amar, verbo intransitivo + clã = Macunaíma". Ou ainda: "Contar a embrulhada geográfica proposital de fauna e flora". A explicação dada quanto ao emprego do estilo também ajuda a entender o livro: "empreguei essa fala simples tão sonorizada, música mesmo, por causa das repetições, que é costume dos livros religiosos e dos contos estagnados  no rapsodismo popular". Fala para justificar o emprego de pornografia, por ela existir nas lendas indígenas. Se existe pornografia, ela, ao menos, para os nossos dias, é bem leve. Mas quero ficar com a palavra rapsódia. Qual é a sua principal característica? Vejamos uma definição, buscada no Aurélio:

"Cada um dos livros de Homero. Trecho de uma composição poética. Entre os gregos, fragmentos  de poemas épicos cantados pelo rapsodo (cantor ambulante de rapsódias). Fantasia  instrumental que utiliza temas e processos de composição improvisada tirados de cantos tradicionais e populares". Assim Macunaíma pode ser considerada uma rapsódia das lendas indígenas. Ao rapsodo tudo é permitido inventar e contar e do jeito que quiser. Não precisa se preocupar com o tempo, com o espaço, com a vida ou com a morte.
Compreender o tempo. Neste livro tem um capítulo para Mário de Andrade.


Isso permite morrer e ressuscitar, estar em lugares distantes num único dia, se transformar, contar casos, citar ditos populares, mesmo que ingênuos ou provocar adivinhações como esta, da página 111, só para ilustrar: O que é:
Mano, vamos fazer
Aquilo que Deus consente:
Ajuntar pelo com pelo,
Deixar o pelado dentro.
Capa da primeira edição de Macunaíma. São Paulo - 1928.


Dois capítulos me chamaram mais a atenção: o de número sete, Macumba, uma elegia dionisíaca de tempos gregos antes da racionalidade que ainda sobreviviam no terreiro de tia Ciata e a famosa carta pras icamiabas, uma carta do Imperator Macunaíma para as mulheres de São Paulo. Mais fina ironia do que essa é impossível. Uma observação final retirada do segundo prefácio: "Nas épocas de transição social como a de agora é duro o compromisso com o que tem de vir e quase ninguém não sabe". Página 194. Macunaíma era grande, quase um gigante, mas a cabeça era pequena. Ai, Que preguiça!

Mas antes que a preguiça tome conta, digo ainda, que Macunaíma adorava "brincar", se espantava com a máquina e fazia confusão entre o homem e a máquina, gostava de cachaça, brigava com o gigante, mostrava ingenuidade ao negociar e ser trapaceado pelo turco e se apavorava diante da "pouca saúde e da muita saúva", os males de seu país.



segunda-feira, 19 de janeiro de 2015

O Velho. A história de Luiz Carlos Prestes.

O Velho. A história de Luiz Carlos Prestes é um filme documentário produzido em 1997, sob a direção de Toni Venturi e narração de Paulo José que retrata os mais de 90 anos vividos pelo "Velho", como era chamado, especialmente em seu círculo familiar. Os recursos de som e imagem são bem trabalhados e se constituem no ponto alto da obra. São mostradas fotos de personagens e de documentos junto com entrevistas de pessoas relevantes e ainda, de estudiosos de sua vida.
O DVD - O Velho - A história de Luiz Carlos Prestes.  Um documentário de 1997.

O documentário é dividido em seis partes: A inocência, a coragem, a esperança, a sombra, a maturidade e o resto dos anos. Na abertura são mostradas cenas da derrubada do muro de Berlim, em 1989, para logo em seguida mostrar cenas da Revolução Russa de 1917. A vida de Prestes foi profundamente marcada por esses fatos históricos. Eles direcionaram e redirecionaram todo o ideário de sua vida. Por sessenta anos estes fatos marcaram e dividiram a história do século XX. Havia dois grandes polos ideológicos, duas grandes formas de organizar a sociedade, que dividiram profundamente a humanidade, numa guerra ideológica sem precedentes.
A primeira parte do documentário se ocupa da Coluna Prestes.


Na primeira parte - a inocência - a Coluna recebe a maior atenção. Ela foi produto dos anos 1920 e foi uma reação imediata à eleição de Artur Bernardes, presidente insuportável aos quarteis. Ela começou em 1924 e terminou em 1927 com o grande feito de nunca ter sido derrotada. A Coluna chamou a atenção dos jovens tenentes, que dela participaram, para os graves problemas sociais existentes, especialmente o retrato da miséria no Brasil interiorano. Mostra ainda o seu encontro com a literatura marxista.

Na segunda parte - a coragem - já o encontramos na URSS (1931) trabalhando como engenheiro e se preparando para a revolução brasileira. Mostra a desconfiança dos soviéticos em relação a ele e, inclusive, se suspeita que Olga fora indicada para acompanhar os seus passos. A ação revolucionária se deflagra em 1935 com o episódio da Intentona Comunista, que foi um fracasso. Mostra que a organização do Partido Comunista do Brasil (PCB) se dava quase que exclusivamente dentro do exército e que ele obedecia às diretrizes traçadas pela Terceira Internacional. O episódio de 1935 serviu para isolar ainda mais os comunistas da população em geral.
Olga Benário, a mulher de Prestes era alemã de origem judaica. Foi entregue aos nazistas pelo governo Vargas.

Na terceira parte - a esperança - o foco recai essencialmente sobre o Estado Novo e o seu período posterior, marcado pela redemocratização, fato que dá origem ao título de "a esperança". Neste período o Partido vive na legalidade e elege deputados constituintes para 1946 e o próprio Prestes como senador, por São Paulo. A vida livre é breve. O Partido logo será decretado ilegal, os constituintes tem seus mandatos cassados e Prestes volta à clandestinidade. Um período bastante contraditório porque Prestes apoiara  a permanência de Getúlio no poder em 1945, mesmo tendo sido preso e, Olga, a sua mulher ter sido entregue à polícia de Hitler. O mundo e o Brasil viviam a Guerra Fria.

Na quarta parte - a sombra - Prestes é mostrado como clandestino dentro de seu próprio partido. As contradições do regime soviético começavam a aflorar e houve o processo de depurações, que levavam todos a desconfiar de todos e ninguém confiar em ninguém. Prestes mantém o seu prestígio, por ser visto como a única pessoa capaz de manter a unidade do partido. Por isso ele era tolerado, mas já vivendo num grande isolamento. Era o fenômeno do stalinismo. Marca também o encontro com Maria Ribeiro, a sua segunda esposa, com quem teve sete filhos. Maria já tivera dois, numa relação anterior.
A numerosa família de Prestes. Maria, sua segunda mulher, ao centro.

Na quinta parte - a maturidade -  é mostrado o governo JK e os espíritos desarmados desse período. Mostra toda a impaciência dos quarteis, com os governos, Jânio e, especialmente, Jango Goulart. Mostra toda a passividade do Partidão, diante do dilema entre a luta armada e a resistência passiva. A maioria dos militantes optou pela luta armada e o partido se fragmentou. Ele volta para a URSS, com a liderança desgastada e contestada. Volta ao Brasil com a Anistia de 1979. Segundo Maria, a vivência na URSS foi o melhor período em suas vidas (1971-1979).

A última parte - o resto dos anos - é muito bonita e revela dados pouco conhecidos, como a relação com a sua numerosa prole, um fato nada comum na vida de um revolucionário. De maneira geral os depoimentos dos filhos vão na direção de uma relação filial fria e distante, de um pai ausente. Ele dividia a sua solidão com os seus livros. Com os netos já teve uma relação de absoluta dedicação e ternura. Se desliga do partido e ainda participa da reorganização sindical dos trabalhadores e das eleições presidenciais de 1989. 1990 será o ano de sua morte. Já era mais visto com os olhos da curiosidade do que da admiração.
"O Velho". Um documentário da longa vida de Prestes.

A maior riqueza do documentário são as entrevistas em que foram colhidos os depoimentos. Merece destaque o próprio Prestes, presente ao longo de todo o documentário, de seus filhos, de Miguel Costa Jr.,  Fernando Moraes, Carlos Heitor Cony, Brizola, Fernando Gabeira, entre outros. Não existe nenhuma participação de Anita, a filha de Prestes com Olga Benário. Daniel Aarão Reis também se queixa da não participação de Anita na elaboração de seu livro. Olga está preparando a sua versão da vida do pai, em livro a ser lançado, ainda no primeiro semestre de 2015, pela Boitempo.

quinta-feira, 15 de janeiro de 2015

Luís Carlos Prestes. As influências na sua formação.

Sempre que leio uma biografia, um dos meus olhares se dirige para as influências que o biografado teve em sua formação, quais as matrizes ideológicas que o influenciaram, como foi a sua escola e, especialmente, as suas leituras. Se houve mudanças profundas em seu modo de ver o mundo procuro ver os caminhos alternativos que foram percorridos. Fiz isso agora com a bela biografia - Luís Carlos Prestes, um revolucionário entre dois mundos, de autoria de Daniel Aarão Reis.
Luís Carlos Prestes, um revolucionário entre dois mundos, entre duas ideologias.


Na vida de Prestes ocorreu esse fenômeno da grande guinada. Um é o Prestes que comandou a Coluna, outro será o Prestes que entrou em contato com a literatura marxista, quando tinha um pouco menos do que trinta anos. O primeiro capítulo da longa biografia, que consumiu cinco anos e meio de trabalho do pesquisador e historiador, é dedicado à formação do biografado. O capítulo recebe a denominação de Anos de formação.

As primeiras influências de Prestes lhe vem da família. De sua mãe vem o catolicismo junto com os seus valores. Uma presença constante e muito forte. De seu pai vem o gosto ou a necessidade de se dedicar a vida militar. Precisaria ganhar a vida, que nunca lhe foi fácil. Atrás da vida militar existia todo um conceito de formação com as marcas do positivismo. O positivismo lhe ficou entranhado, passando a sonhar com a condução de um povo para grandes transformações, conduzido por uma elite esclarecida. Sua formação militar se deu Rio de Janeiro, embora tivesse nascido em Porto Alegre. Formou-se engenheiro e sempre despontou como o melhor aluno de matemática da turma.
Dos tempos da Coluna lhe veio o contato com a realidade e a consciência das injustiças.

Essa formação o colocou no mundo da racionalidade, uma racionalidade mais técnica do que humana. Ele próprio, em autocrítica fala das deficiências em sua formação, no programa "Roda Viva" da TV Cultura. Veja o relato de Aarão Reis, na página 467 do livro: "A Coluna fora uma experiência decisiva: Abriu-me os olhos [...] éramos ignorantes, formados numa Escola Militar, nós não conhecíamos nem sociologia... Queríamos derrubar Artur Bernardes, mas as coisas eram bem mais complexas. Só obtivera respostas satisfatórias quando encontrara o marxismo-leninismo"

O contato com o marxismo se deu em Buenos Aires, onde se encontrava depois do fim da Coluna. Lá o Partido Comunista tinha existência legal e teve um encontro com Victório Codovilla, o seu Secretário Geral. Não foram muitos os contatos e era apenas considerado como "um pequeno burguês radical". Mas recebia e comprava livros nas boas livrarias da cidade, livros sobre marxismo e comunismo.Também recebia livros de escritores brasileiros: "Escritores enviavam livros autografados, como Oswald de Andrade, Plínio Salgado, Graça Aranha, Afonso Schmidt e Monteiro Lobato". Veja um depoimento seu sobre estes tempos:
A formação marxista, com os livros que lhe foram recomendados por dirigentes do Partido.

"Estudei marxismo. Convenci-me que o caminho era o indicado pelo Partido Comunista Argentino e pelos comunistas brasileiros. [...] Li O Capital, de Marx e de Engels, Ludwig Feuerbach e o fim da filosofia clássica alemã.; A origem da família, da propriedade privada e do Estado e Do socialismo utópico ao socialismo científico". E dá mais uma importante informação: "No entanto, frisou, o mais decisivo de todos fora O Estado e a Revolução, de Lenin. E mais outra importante informação de que estas leituras se assentaram sobre a racionalidade adquirida na Escola militar: "O pensamento lógico e a base materialista adquiridos nos estudos de ciências naturais na Escola Militar, facilitaram a apreensão dos postulados marxistas". Pág. 122. Tinha estudado numa escola de qualidade.
Mais títulos lidos em sua formação marxista. Textos de Engels.

Um outro depoimento importante se encontra na página 144. Nele ele destaca a importância da formação teórica: "Tive que travar tremendas lutas comigo mesmo, na medida em que me convencia do que havia de falso e ilusório no mundo de preconceitos que haviam sido metodicamente arrumados na minha cabeça. Foi a especulação teórica, em busca de solução de um problema político, que me levou ao marxismo. Não nasci marxista, muito ao contrário, não foi sem vencer as maiores resistências do meu próprio eu que consegui assimilá-lo. Para ser honesto comigo mesmo, não podia deixar de tomar o caminho revolucionário. Era preciso entregar-me por inteiro à causa da luta pela transformação radical da situação do povo brasileiro".
Prestes, uma história em defesa de uma ideologia. Para isso precisou de muita formação teórica.

Em Moscou, Prestes se trancava no escritório, quase o dia inteiro, "lia muito, sempre fora um leitor compulsivo, devorador de livros de suas disciplinas preferidas: história, política, economia, filosofia" Pág. 353. Essas são as disciplinas essencialmente formadoras e que por isso mesmo sempre são o alvo preferido dos direitistas que querem uma Escola Sem Partido - sem política, mentes dóceis. Acho que está cumprida a tarefa. Já percorremos os caminhos da formação de um dos maiores visionários que Brasil já conheceu.

quarta-feira, 14 de janeiro de 2015

Anita Prestes critica o biógrafo de seu pai, Daniel Aarão Reis.

Daniel Aarão Reis é um historiador respeitado. O vejo como alguém da esquerda e foi ferrenho adversário do regime ditatorial brasileiro. É nestas áreas que concentra os seus estudos. Foi um dos organizadores de alguns dos seis volumes, mais precisamente os volumes I, V e VI (Este da Boitempo) da História do marxismo no Brasil, publicados pela Editora da UNICAMP. É doutor em história pela USP e professor na Universidade Federal Fluminense e pesquisador do CNPq. Consumiu cinco anos e meio na produção de Luís Carlos Prestes. Um revolucionário entre dois mundos, um lançamento de novembro de 2014, da Companhia das Letras.
A biografia de Prestes, escrita por Daniel Aarão Reis e duramente contestada por Anita Prestes.

Prestes teve uma longa vida de 90 anos (1889-1990) e destes, ao menos em 70, atuou como protagonista de nossa história, jamais sendo mero coadjuvante. Isso é mais do que suficiente para ser um personagem polêmico. Viveu em um período fortemente marcado pelas ideologias e embora sofrendo as influências do catolicismo e do positivismo, converteu-se ao credo marxista-leninista, sendo um de seus mais ardentes devotos. Consagrou sua vida à causa do comunismo. Como também este passou por profundas transformações, evidentemente, apareceriam profundas contradições.
Anita, filha de Prestes e Olga Benário. A menina foi resgatada da polícia nazista pelo trabalho incansável de Dona Leocádia, a mãe de Prestes. Isso pode ser lido em Olga, de Fernando Moraes.


Em seu primeiro exílio da URSS Prestes teve contato com Olga Benário e receberam a missão de promover a revolução proletária no Brasil. O seu projeto, que ficou conhecido como a Intentona Comunista de 1935, fracassou e os dois conheceram as agruras da polícia, especialmente, no período do Estado Novo. Olga Benário  foi deportada pelo regime de Vargas e entregue à polícia de Hitler. Lá seria executada. No processo de deportação Olga estava grávida de Anita, que foi tirada das garras do nazismo, graças ao trabalho incansável da mãe de Prestes, Dona Leocádia.

Anita teve formação em química industrial, mas logo se dedicou à história. A memória de seu pai teria que ser preservada. Foi dela a primeira grande reação ao lançamento, em novembro de 2014, pela Companhia das Letras, da biografia de seu pai, escrita por Daniel Aarão Reis, uma biografia que pretende ser "a principal referência sobre o "Velho", o mito e o homem", conforme se lê na orelha do livro. A crítica é pesadíssima. Desqualifica tanto o historiador, quanto a sua pessoa.
Luís Carlos Prestes, o "Velho". Uma longa jornada com muita determinação.


"Estamos diante de um livro escrito por um historiador, que poderia ser usado em sala de aula de um curso de história como modelo para os estudantes do que não deve ser um um trabalho de historiador". Assim Anita abre o texto de sua crítica. A seguir cita Hobsbawm sobre o que deveria ser a obra de um historiador. Fontes várias, checagem rigorosa de dados e o estabelecimento das conexões. Nada disso foi feito, afirma ela. Efetivamente o livro não segue a metodologia de uma tese de doutorado. As notas sobre as fontes estão ao final do livro, capítulo por capítulo, mas não tem a indicação das páginas. É um trabalho que sobra ao leitor, caso queira a precisão. Afirma categoricamente que a opção metodológica é "marcada pela incompetência e irresponsabilidade do pesquisador", sendo ele responsável por erros factuais e de informações falsas.
Prestes e a sua presença no mundo. Junto com Fidel Castro.

Assim haveria erros nas páginas 26, 347, 279 e 480. Aponta também questões de interpretação, em que o biógrafo atribui "posições centristas a Prestes". Ele sempre teria sido um revolucionário. Estas estariam nas páginas 330, 338, 358 e 437. Aponta ainda que existem erros nas legendas de várias das fotografias que ilustram o livro. O livro, critica ela, é um texto "eivado de fofocas, mexericos, intrigas e mentiras, em que se reproduzem as invencionices da viúva de Prestes" e de outros detratores. As relações de Anita com Maria, a esposa do segundo casamento, conforme o relato de Aarão Reis, nunca foram das melhores.
Anita é doutora em história pela UFF e professora na UFRJ.


Termina com mais acusações: "Trata-se de um livre anticomunista, cujo objetivo é a desqualificação de Prestes, de sua mãe, de suas irmãs e também de sua esposa Olga Benário Prestes. Não poderia também faltar a acusação de que o autor está a serviço da burguesia. Todas essas acusações estão disponíveis no Google.  Anita está preparando a sua versão da biografia de seu pai, a ser lançada em 2015, pela Boitempo. Entre a ortodoxia e a heterodoxia,  teremos o privilégio da pluralidade.

Daniel Aarão Reis comentou que iria rever os supostos erros e corrigi-los numa próxima edição, se fosse o caso. Também se queixou que não teve a colaboração de Anita na pesquisa de seu trabalho. Também senti a total ausência de Anita nos depoimentos do filme documentário O Velho - A história de Luiz Carlos Prestes.




terça-feira, 13 de janeiro de 2015

Luís Carlos Prestes. Um revolucionário entre dois mundos. Daniel Aarão Reis.

Um livro denso. Ele tem 536 páginas em letra bem miúda. Sua leitura me consumiu uma semana de trabalho. Como sempre, Daniel Aarão Reis, fez um trabalho sério, desta vez na reconstituição da história deste cidadão brasileiro, contemplado com o honroso título de "O cavaleiro da Esperança". O livro em questão é Luís Carlos Prestes. Um revolucionário entre dois mundos. O livro pretende ser, conforme está dito na orelha do livro, "a principal referência sobre o 'Velho', o mito e o homem". Um homem tão polêmico, que viveu tanto tempo, com tantas certezas e sempre como protagonista, não poderia deixar de suscitar controvérsias. A principal foi feita pela filha, Anita Leocádia, que comentaremos em outro post. O livro é um lançamento de novembro, da Companhia das Letras.
A densa biografia de Prestes escrita pelo historiador Daniel Aarão Reis.

O livro é estruturado em 17 capítulos e um posfácio. Nele são narrados  os longos anos de vida deste que foi um dos mais emblemáticos personagens de nossa história, nascido em Porto Alegre, que cedo foi ao Rio de Janeiro se formar no colégio militar em profissão de caráter técnico: engenheiro. Sempre foi bom em matemática. Isso lhe conferiu um pensamento extremamente racional, que se somou a concepção positivista presente no exército, de protagonismo de uma elite pensante esclarecida na condução da massa. Esse olhar racional o fazia ver as contradições políticas de seu tempo, as contradições da "República Velha".

A figura mítica surge logo no início, em uma de suas primeiras atividades. A Coluna Prestes. Esta é descrita em três capítulos. Foram percorridos 24.947 quilômetros, entre 1924 e 1927 e a sua maior glória foi a de nunca terem sofrido uma derrota. O seu objetivo imediato era a derrubada do governo de Artur Bernardes, mas as causas são mais profundas. Um Brasil que queria se transformar num Estado/Nação. As insatisfações começaram com o movimento tenentista de 1922, se aprofundaram em 1924 e desembocaram na revolução de 1930. Prestes ainda não tivera contato com a doutrina marxista e nem conferiu o seu apoio a Getúlio.
Um traçado dos 24.947 quilômetros percorridos pela Coluna Miguel Costa/Prestes. Um contato com o Brasil profundo e a sua miséria.

Após a Coluna, no exílio em Buenos Aires, recebe a visita de dirigentes do Partido Comunista que lhe fornecem a literatura que dará embasamento teórico para as suas futuras ações e também passará por um estágio na URSS onde entrará em contato com o stalinismo, tornando-se um fervoroso adepto. Mas o seu olhar sempre se mantém sobre o Brasil e a transformação de suas estruturas através de um processo revolucionário. Nesse sentido, o seu primeiro movimento será a Intentona Comunista de 1935. Um episódio muito controvertido e um grande fracasso e que será usado como um dos pretextos para a decretação do "Estado Novo".  É o momento de viver na clandestinidade e em que se dará a deportação de sua companheira Olga, grávida de Anita, entregue à polícia do nazismo de Hitler.
A menina Anita Leocádia, filha de Prestes e Olga Benário. Uma comovente história, bastante conhecida dos brasileiros pelo livro de Fernando Moraes, Olga. Essa foto está no livro.

Com o fim da guerra e os ares da redemocratização vem o apoio a Vargas, num dos processos mais contestados de sua vida. Num breve período de liberdade, se elegerá senador pelo Partido e junto com 14 deputados federais integrarão a Assembleia Constituinte de 1946. O período de liberdade é interrompido pelo espírito da guerra fria, que cassa o registro do Partido e o mandato dos parlamentares eleitos. Segue um novo período vivido por Prestes e o seu partido, entre o exílio, a clandestinidade e um certo consentimento sobre a sua organização e as suas atividades.

Quando você chegar a esta parte, você estará chegando à parte final do livro. Mesmo assim, ainda tem um longo trecho a percorrer. É o período de franca decadência e que marcará a total fragmentação das esquerdas. Estas iniciam com o XX Congresso do PCUS e as denúncias de Kruschev sobre as atrocidades patrocinadas por Stálin, os conflitos sino-soviéticos, por Cuba, pelo surgimento do euro comunismo e o reflexo disso tudo aqui no Brasil. A isso se somam os erros de avaliação e posicionamento relativos à ditadura militar. A maioria opta pela luta armada, enquanto Prestes fica na resistência passiva.
Uma longa vida de viagens e encontros. Com Fidel Castro em Cuba. Quem seria o Fidel brasileiro?
A anistia e a volta ao Brasil constituem a parte final do livro. Prestes já será uma figura mais mítica e lendária do que real. Fica isolado do Partido, dele não mais participando. Nas eleições de 1989 apoiará Brizola no primeiro turno e Lula no segundo. A sua morte ocorre em 7 de março de 1990 e o poupará de ver dois fatos que certamente o abalariam muito, se ainda vivo: o fim da União Soviética (1991) e o quase fim de seu Partido, aqui no Brasil. Em janeiro de 1992, a maioria do PCB cria o PPS como sucedâneo do Partidão. A sigla PCB, no entanto, por via judicial, permaneceu com um pequeno grupo de militantes. O livro analisa ainda duas importantes entrevistas concedidas, uma ao "Roda Vida" e, outra, ao "Programa do Jô" e termina com a homenagem que lhe foi prestada no carnaval de 1998 pela Escola de Samba Acadêmicos do Grande Rio, Pelas trilhas destas terras. 

O livro também revela interessantes dados da vida privada de Prestes, como um segundo casamento seu com Maria do Carmo Ribeiro, que lhe deu abundante prole, era muito bonita e muito mais nova que o marido. Do legado familiar de Prestes, em setembro de 2014, estavam vivíssimos oito filhos (nove com Anita), vinte e cinco netos e treze bisnetos com mais dois a caminho, espalhados pelo mundo, conforme os rastros deixados pelos caminhos do comunismo. Três baterias de fotografias completam a edição.
O historiador e pesquisador Daniel Aarão Reis, da UFF. Uma tradição de estudos da esquerda.

Não deve ter sido tarefa fácil para Daniel Aarão Reis escrever esta biografia. Nela consumiu cinco anos e meio de trabalho. Como já afirmei, desde muito cedo Prestes sempre foi protagonista, jamais coadjuvante, em todo o nosso processo histórico. As suas primeiras marcas começam na década de 1920 e alcançam até o ano de 1990. Cravou a sua presença em nossa história por mais de setenta anos. Prestes nasceu em 1989 e faleceu em 1990. A análise de tão longa vida necessariamente teria que provocar contradições. Mas este será o tema de um novo post. Este post é mais um trabalho da parceria do blog com a Companhia das Letras.
     

terça-feira, 6 de janeiro de 2015

Os Sete Enforcados. Leonid Andreiev.

Este livro eu li por indicação de Graciliano Ramos. Sim, é isso mesmo que você está lendo. É óbvio que isso não ocorreu pessoalmente. Ele indicou os dez melhores romances de todos os tempos e entre eles estava Os sete enforcados de Leonid Andreiev. Confesso que nuca tinha ouvido falar deste escritor russo. Segundo Fernando Sabino, Os Sete Enforcados formam junto com A Morte de Ivan Illitch, de Tolstoi, A Dama de Espadas, de Puchkin e O Capote, de Gogol o grande quarteto de novelas imortais da literatura russa.
Edição brasileira de Os Sete Enforcados, de Leonid Andreiev. Um libelo contra a pena de morte.

Para não deixar você curioso dou os outros nove livros indicados por Graciliano. São eles: D. Quixote, de Cervantes; Viagens de Gulliver, de Jonathan Swift; Gargântua, de Rabelais; As Ilusões Perdidas, de Balzac; Ana Karenina, de Tolstoi; Candide, de Voltaire; Crime e Castigo, de Dostoiévski; Pickwick, de Charles Dickens e Os Maias, de Eça de Queirós.

O título do livro Os Sete Enforcados nos dá uma ideia clara sobre a temática do livro. Algo meio lúgubre e mórbido como eram os tempos vividos por seu autor, Leonid Andreiev. Ele viveu o conturbado período do fim da monarquia absolutista da Rússia e da Revolução bolchevique, à qual, no entanto, não aderiu. Ele nasceu em 1871 e morreu em 1919. A sua vida foi permeada de uma tentativa de suicídio aos 22 anos, que lhe deixou uma lesão cardíaca, que mais tarde veio  a ser a sua causa de morte. A Revolução de 1917 o levou ao exílio na Finlândia.
O escritor russo Leonid Andreiev, (1871 a 1919). Tempos de revolução e de banalização da morte.


Foi considerado como o escritor de temas malditos, que ninguém, em seu tempo, ainda tinha coragem de abordar, como o sexo e a prostituição. O livro que eu li é da Rocco - jovens leitores e integra a coleção organizada por Fernando Sabino, Novelas Imortais. Nesta edição tem uma introdução do autor à edição americana, na qual ele próprio comenta o seu livro e define com clareza o seu objetivo: "Meu objetivo foi destacar o horror e a iniquidade da pena de morte sob quaisquer circunstâncias." E continua: "O horror da pena de morte é grande quando ela recai sobre pessoas honestas e corajosas, cuja única culpa é o amor excessivo e o senso de justiça - em tais casos a consciência se revolta. Mas a corda é ainda mais horrível quando forma seu nó em volta do pescoço de pessoas fracas e ignorantes".

Aí já está explicitado o tema da obra. A condenação à morte por forca de cinco jovens terroristas, três homens e duas mulheres, pessoas absolutamente jovens e dois prisioneiros comuns, condenados à mesma pena por roubos e assassinatos cometidos. Os cinco jovens, - Sergey Golovin, Musya, Werner, Vasily Kashirin e Tânia Kovalchuk haviam planejado um atentado contra o ministro, que não foi consumado em função da descoberta do plano pela ação policial. Já Ivan Yanson e Mikhail Golubetz ou Tsiganok, de apelido, eram criminosos comuns. O primeiro matara o seu patrão e o segundo tinha uma vida toda ligada ao crime.
Detalhes da capa de Os Sete Enforcados. A corda, o pescoço e a morte.


O livro não é longo e está dividido em doze pequenos capítulos. Pode ser lido em único fôlego. Coisa de menos de um dia. Conta sobre a descoberta do atentado ao ministro e o pavor dele diante da morte se o atentado se houvesse perpetrado, sobre o perfil de cada um dos sete condenados e a sua reação diante do julgamento, condenação e as diferentes reações no tempo de espera da execução. Como o título já diz, todos foram condenados à morte por enforcamento. O último capítulo é dedicado ao ato do enforcamento. O próprio autor já dera o perfil dos condenados como sendo jovens sonhadores e amantes da justiça e os presos comuns como pessoas fracas e ignorantes.

Sendo o livro um libelo contra a pena de morte a sua força está na descrição psicológica dos personagens diante da morte, no encontro de alguns com os pais, em atitudes de compreensão ou não diante do ocorrido e da solidão da maioria dos sete, abandonados nos seus isolamentos. Yanson chegara a receber uma carta, provavelmente de seus familiares, que nunca foi lida, por seu analfabetismo e por desconhecimento da língua dos que o rodeavam. Alguns dos jovens pertenciam a classe média. Outro ponto forte é o limite que se estabelece entre a vida e a morte. Quando se está diante da morte anunciada se prefere o silêncio, ocultar o medo e deseja que a execução ocorra o mais cedo possível. Mas esse tempo tem a duração da eternidade.
Tradução direta do russo de Os Sete Enforcados. Reflexões sobre o tempo de espera da morte.


O autor, ainda na apresentação, diz que relata a história de sete enforcados entre os milhares que sofreram a mesma pena, que atinge os alicerces da alma. As cenas de enforcamento eram tão comuns, conta ainda, que "em suas brincadeiras, crianças encontram corpos mal enterrados, e as pessoas contemplam com horror as botas dos camponeses que surgem à flor do chão; os carrascos que levaram à cabo essas execuções estão enlouquecendo e sendo conduzidos para sanatórios - e não raro enforcados também".