sexta-feira, 20 de outubro de 2017

Ordem e progresso. Um ano de golpe. Crônicas da Resistência.




Mais uma vez a jornalista e editora Cleusa Slaviero reúne resistentes para escreverem "crônicas da resistência", um trabalho altamente meritório. Assim que ler o livro farei uma pequena resenha. A coletânea tem como prefaciadora, a psicanalista e escritora, Maria Rita Kehl. Este é o terceiro volume de crônicas: o primeiro versou sobre o golpe, logo que ele aconteceu; o segundo, seis meses após a sua ocorrência, quando foram feitas as primeira análises e, agora Um ano de golpe, com as reflexões críticas sobre o ocorrido ao longo do transcurso de seu primeiro aniversário do fatídico acontecimento.

Mais uma vez compareci com uma crônica, no limite estabelecido de 4.000 caracteres, sob o título -

ORDEM E PROGRESSO 

Recentemente li O Coração das Trevas e vi Apocalipse Now. Guardo as imagens de devastação, destruição e morte. Nenhuma resistência foi tolerada. Não me sai da mente a loucura de Kurtz e o seu grito de desespero, ó horror, ó horror. É o preço do progresso. Extermina o colonizado e destroça a psique do colonizador.
 Um ano de golpe - Crônicas da resistência. Um livro organizado por Cleusa Slaviero para a Editora ComPactos.

Já na antiga Grécia, berço da civilização ocidental, Vico, pela voz de Adorno, nos adverte sobre a origem dos conceitos geradores da infelicidade: “Esses conceitos provêm, da praça do mercado de Atenas”. E mais, Platão e Aristóteles os revestiram com o caráter da universalidade. Vejam bem, da praça do mercado.

Homero nos deixou a imagem fabulosa do mito das sereias. Adorno a adaptou ao mundo burguês. As sereias, simultaneamente, encantam e levam à irreversível danação. O que faz Ulisses? Tapa o ouvido dos remadores e cobra força redobrada dos músculos. O estoicismo do trabalho e da obediência os salvaria. Ulisses também precisa se salvar. Manda se amarrar ao mastro. Criou-se um sistema de negação do usufruir. Dor e sofrimento não fazem bem a ninguém. Como fuga, se alimentavam de lótus, que abafava a consciência da infelicidade.

Superadas as trevas medievais, a razão, pelo esclarecimento nos prometeu a autonomia da maioridade. A ciência progrediria e os homens se entenderiam e viveriam em paz.  Utopias de um tempo. Rapidamente a razão se tornou calculadora e instrumental do lucro e, mais uma vez, as doutrinas se formularam a partir do mercado. Foram os tempos do colonialismo, do imperialismo e das guerras. Ó horror!

O Brasil entra em cena. A situação só piora. Ocorre o genocídio das populações indígenas, sob o beneplácito geral. Seus assassinos, os bandeirantes, são ainda os herois de hoje. Seu espírito predador se incorporou na elite brasileira, a mais perversa do mundo, como ouvi de Paulo Freire. A escravidão é abolida, mas não a sua obra. Políticas de exclusão deliberada persistem através de um espírito escravocrata, incrustado entre os dominantes.

Pouco se praticou a democracia. Quando se esboçam políticas pró-cidadania, armam-se os golpes. O projeto de industrialização e de formação de uma Nação surge tardiamente e sofre fortes resistências. Entre 1930 e 1984, houve duas ditaduras de longa duração e uma tentativa de golpe a cada três anos. O mais longo interregno democrático foi vivido com a Constituição de 1988, até o golpe de 2016.

Quais as razões para o novo golpe? Trago à lembrança D. Hélder Câmara. Num pequeno livro ele fala de burguesia consular, em que “pequenos ricos locais ajudam os grandes ricos estrangeiros e são por eles ajudados”. Isso sempre me intrigou. A nossa elite trama contra o próprio país, em troca de miçangas. 

A um ano do golpe, o que vemos? A destruição sistemática da Nação e da cidadania. As riquezas nacionais sendo entregues e os pilares da cidadania destruídos. Assim o Pré- Sal, o congelamento de gastos públicos, a reforma do ensino médio e das leis trabalhistas, o fim da CLT, o desmantelamento do SUS e a destruição da Previdência. O neoliberalismo é a mais antissocial das ideologias. 

Tenho lido sobre o fim da era do humanismo, sobre o adoecimento e a onda de suicídios. O lótus, com inúmeras novas fórmulas, não mais satisfaz. Mais uma vez as ideias que povoam as mentes têm sua origem no mercado, com agravantes. Elas já não se restringem ao mercado. Habitam todas as esferas do viver e do conviver. A competição é eleita como valor supremo e a transcendência é substituída pela reificação. As palavras generosidade, compaixão e cuidado foram abolidas. Tudo para alimentar o voraz capital, agora em sua fase mais perversa, a do capitalismo financeiro. Para acumular, precisa destruir. Destruir direitos.

Deixo as palavras finais para Boaventura S. Santos: “desigualdade passou a chamar-se mérito; miséria, austeridade; hipocrisia, direitos humanos; guerra civil descontrolada, intervenção humanitária; guerra civil mitigada, democracia”. Fascismo social.

Ao final, a imagem que me sobra é uma horrível e enorme cabeça. A cabeça do monstro golpista que, ao contemplar a obra da devastação que causou, e diante de sua autodestruição psíquica, se estraçalha em ódio peçonhento, em meio a uivos de um sádico prazer. Ó horror, Ó horror.

Pedro Eloi Rech. Administrador de tempo livre e do blog www.blogdopedroeloi@uol.com.br





terça-feira, 17 de outubro de 2017

Confesso que perdi. Juca Kfouri.

Como gosto do Juca Kfouri e também de memórias, não tive dúvidas em comprar e ler este seu livro, Confesso que perdi. memórias. O fato de gostar de Juca Kfouri se deve ao seu espírito crítico e ao seu bom humor, que sempre acompanhei, especialmente pela Folha de S. Paulo e depois pelo rádio, na CBN. Não o conheci nem na Placar e nem na Playboy, onde ele permaneceu por mais tempo.
 O belo livro de memórias de Juca Kfouri. Confesso que perdi - memórias.

O livro tem vinte e um pequenos capítulos e um breve epílogo. Futebol e política, como ele diz, se misturam que nem água e sabão, ocupam todos os espaços ao longo destes capítulos. Tanto na política como no futebol ele fez opões claras, sendo que a do futebol vai para além da opção. O Corinthians é uma verdadeira paixão. Quanto à política a sua opção é pela democracia e pela esquerda. O seu jornalismo tem a marca da transparência. Achei um tanto curiosa a sua aproximação com FHC.

Começou cedo no jornalismo, onde fez sucesso, para além do esperado, como confessa. A sua família de alta classe média lhe proporcionou boa formação, tendo optado pelo curso de ciências sociais na USP. Este curso o colocou na Aliança Nacional Libertadora, na prisão, e o levou para a luta pela redemocratização e para a democracia corinthiana. A primeira matéria de impacto jornalístico foi o desvendar da máfia da loteria esportiva. Aí teve o seu primeiro contato com Aécio Neves, então diretor do setor de loterias da Caixa, já no governo Sarney. A impressão não foi boa.

Lamenta duas derrotas que teve nestes primeiros anos de atividades jornalísticas: A luta pelas diretas e a democracia corinthiana. Este tema o puxa para as mazelas da cartolagem do futebol brasileiro, das quais se ocupou ao longo dos muitos anos em que esteve à frente da Revista Placar. Da Playboy lembra das grandes entrevistas que fez, merecendo destaque todo especial a que foi feita com Pelé. A sua atuação crítica lhe rendeu muitos dissabores, mas a sua competência profissional sempre o fez ter ótimos empregos. Passou por praticamente todos os órgãos da imprensa brasileira, como a editora Abril, a Folha de S.Paulo, a rede Globo, a CNT., o SBT., a TV Cultura, a CBN, ESPN e o UOL.

Sempre foi escalado para as grandes coberturas, como as copas do mundo e para as olimpíadas, das quais conta preciosos detalhes de bastidores. Já nos capítulos finais Juca aumenta as críticas aos organismos dirigentes do futebol brasileiro e mundial, com destaque para o capítulo 16 em que fala da FIFA, de seus chefões e chefinhos e dos escusos acordos entre João Havelange, Ricardo Teixeira, dos diretores da Adidas e da ISL. Fala da sequências das copas de 2010, 2014 e 2018 e do conluio celebrado entre as construtoras e as máfias do futebol. Vê com satisfação o envolvimento do FBI e da justiça suíça no afastamento e prisão de muitos dirigentes.

Carlos Nuzman também merece sua atenção, dizendo que ele "sempre considerou João Havelange como modelo, disputou o amor dele com Ricardo Teixeira e, aparentemente, se deu melhor, porque ainda não teve maiores complicações  na justiça". Se tivesse esperado mais um pouco para escrever, isto já estaria desmentido. Conta ainda sobre três coberturas de olimpíadas que fez e que foram inesquecíveis: a de Barcelona em 1992; a de Londres em 2012 e a do Rio de Janeiro em 2016.

Logo que vi o livro, impliquei com o seu título. Como pode um jornalista tão considerado e bem sucedido usar um título não negativo: Confesso que perdi. Mas aí entra a elevada preocupação social que sempre caracterizou tão bem a sua vida. Depois de relatar um sério caso de saúde que teve, ele arremata: "Dar uma simplificada na vida acabou sendo o caminho escolhido. Menos confusão, mais curtição, embora o país não ofereça as condições para desfrutar de coisa alguma, cada vez mais injusto, cada vez mais intolerante, cada vez mais burro". Também fala do impedimento da presidente Dilma: "O espetáculo dantesco de cinismo e hipocrisia quando a Câmara dos Deputados votou o impeachment foi dessas coisas de envergonhar a própria vergonha. Um bando de corruptos amaldiçoando a corrupção.....".

No epílogo puxa três parágrafos iniciados com derrotado para se justificar: "Derrotado, sem dúvida, porque nem o Brasil, nem o futebol brasileiro, nem o jornalismo tupiniquim são hoje a coroação de meus sonhos de juventude".
"Derrotado porque, como dizia o grande Darcy Ribeiro, sinto orgulho de minhas derrotas e morreria de vergonha se estivesse ao lado vencedores".
"Derrotado, porque, apesar de profissionalmente vitorioso, por jamais ter transigido em meus princípios e de ter um padrão de vida que nem sequer sonhei ao começar a carreira de jornalista, e de vitorioso pessoalmente, por causa das pessoas que me cercam, vivo num país infeliz e injusto e que, no que se refere ao futebol, poderia ser a NBA desse esporte mas é apenas exportador de pé de obra".

Também Sócrates ganhou um capítulo especial e sobra espaço ainda para as cinco máximas que o acompanharam ao longo de sua exitosa vida profissional e, presumo, também pessoal. São elas: "Imprensa é oposição, o resto é armazém de secos e molhados", e "Quem se curva diante dos opressores mostra o traseiro para os oprimidos", duas frases de Millor Fernandes; "Viver é muito perigoso" de Guimarães Rosa"; "Não há derrotas definitivas para o povo", de D. Paulo Evaristo Arns e "Desesperar jamais", de Vitor Martins, parceiro de Ivan Lins.

Um livro cheio de leveza e de beleza, que são marcas do grande jornalista e também de muito aprendizado, de um humano aprendizado, tão raro em tempos de tanto obscurantismo. Grande Juca. Admiração ainda maior.

quarta-feira, 11 de outubro de 2017

História de São José do Hortêncio. Felipe Kuhn Braun.

Continuo na minha fase saudosista. Esta fase teve origem na visita que fiz ao meu irmão, em Mondaí SC., recentemente.  Entre as conversas, retornamos às longínquas origens em Harmonia, em meio a reportagens, livros e cartas, que ele guarda com muito cuidado. Entre os livros, um deles me chamou particular atenção. A História de São José do Hortêncio - A antiga picada dos portugueses. Se eu falar da portugieserschneis, as pessoas da minha idade certamente se lembrarão.
O livro sobre São José do Hortêncio, da Editora Oikos.

Eu conheço esta pequena cidade, pois numa certa ocasião fui para lá, em companhia de um outro irmão meu. São José do Hortêncio tem hoje, apenas algo em torno de quatro mil habitantes, o que não faz jus à sua antiquidade e à sua importância histórica. São José do Hortêncio foi simplesmente a primeira localidade de imigração germânica no vale do rio Caí e a primeira paróquia da região.(Isso praticamente significa, para os dias de hoje, a sua elevação a município, devido a unidade entre a Igreja e o Império) A fundação desta paróquia data de 1849 e ela esteve ao cuidado dos padres jesuítas alemães, que acabavam de chegar ao Brasil no ano anterior. Os jesuítas a conduziram até o ano de 1911, passando então o comando para os padres seculares. Os primeiros registros da presença alemã datam de 1828, quando lá já havia lusitanos. Lembrando que os primeiros imigrantes alemães chegaram em São Leopoldo, no vale do rio dos Sinos, em 25 de julho de 1824.

O meu interesse pelo livro se deve a uma observação sobre as primeiras famílias que ali se estabeleceram. Na página 44 do mesmo se lê o seguinte: Nicolau Rech: Imigrante católico, nascido em 1802, emigrou solteiro no ano de 1829, vindo como militar. Casou-se com Margarida Ludwig, com quem teve 9 filhos. Seu filho Jorge aparece na lista de fundadores da igreja matriz de São José do Hortêncio. Como vimos, esta foi fundada em 1849. Numa anotação do meu irmão, os primeiros filhos aparecem como tendo sido batizados em São Leopoldo e outros em São José do Hortêncio. Alguns não tiveram o registro de batismo, em função da Revolução Farroupilha. Entre estes devia estar o pai do meu avô. O meu avô eu cheguei a conhecer. 

Este senhor Nicolau Rech deve ter sido o avô do meu avô. Esta ascendência já vai longe. O fato de ser militar não significa muita coisa. Foi este, inclusive, um dos motivos pelos quais os alemães da região do Hunsrück decidiram emigrar. Os pesados serviços militares que lhes eram impostos. Era o tempo das guerras napoleônicas. Esta região está na divisa com a França. Lembrando ainda que a unificação alemã só ocorrerá bem mais tarde, apenas em 1871.

O livro é de autoria de Felipe Braun Kuhn, jornalista de profissão. Ele é um estudioso da imigração alemã no Brasil. A parte inicial do livro é dedicada aos motivos que levaram os alemães para a emigração e à escolha do Brasil como seu destino. A maior parte do livro é dedicada às atividades da comunidade católica de São José do Hortêncio, pelo fato, deduzo, de que existe o maior número de registros. Estes são um tanto monótonos, pois os fatos, invariavelmente se repetem, ano após ano: a troca dos padres, as dificuldades financeiras dos colonos, o irmão leigo que ajuda nas tarefas da igreja, as cartas aos superiores bem como as respostas e as visitas destes. Também merecem registro as epidemias, as secas e as procissões pedindo chuvas, bem como as enchentes provocadas pelos seus excessos.

Depois vem os registros da comunidade protestante. Quero destacar que ao longo do Império, a construção de igrejas do credo protestante era proibida e os registros de suas atividades não tinham o devido reconhecimento. Os demais temas que merecem notas são o registro das ocupações e profissões, as atividades dos comerciantes e a sua ascensão econômica, a guerra do Paraguai, que envolveu cinco pessoas do local, os Muckers, as bandinhas e as diversões, além de observações sobre o sistema educacional. Alguns colonos, inclusive, chegaram a ser proprietários de escravos. O livro também é acompanhado de uma bateria de fotos das famílias dos descendentes. Fotos de família, de casamentos, de primeira comunhão e de festas da comunidade. Estas já remetem para a década de 1920.
Um mapa para ajudar na localização. Sempre é bom.

Merece também um destaque especial o fato da rápida multiplicação das famílias. Todas tiveram muitos filhos e o problema das terras promoveu novas migrações. Raros são os descendentes de alemães, espalhados pelo Brasil afora, que não tiveram um de seus ascendentes originários de São José do Hortêncio. Assim ocorreu com a povoação de todo o vale do rio Caí, do rio Taquari, da região missioneira, tanto no Rio Grande do Sul, quanto na Argentina e no Paraguai, de Santa Catarina, e depois, Brasil afora. Doze paróquias se desmembraram da paróquia original.

Li o livro com os olhos e os interesses voltados para Harmonia. A primeira data remete ao ano de 1887, ano em que a sede da paróquia de Tupandi (São Salvador) é transferida para Harmonia, a partir de informações falsas que o bispo teria recebido. A solução encontrada foi a elevação à paróquia das duas localidades, sendo que Harmonia não seria entregue aos padres jesuítas e sim aos padres seculares. A segunda referência data de 1904, quando Harmonia recebeu a visita do padre Theodor Amstad para formar a Associação de Poupança e a terceira, é referente ao ano de 1909, quando houve uma reunião regional do clero.

O episódio da visita do padre Theodor Amstad, um jesuíta suíço, me despertou particular interesse. Este padre é singular. Tem algumas observações bem peculiares no livro, que não passam despercebidas a um olhar mais atento. Uma é sobre as suas obrigações religiosas, que teriam sido negligenciadas e uma outra fala de um possível envolvimento seu em política, tomando partido. O certo é que ele teve muitas ideias cooperativas e em Harmonia existe, até hoje, uma cooperativa, que começou com a união dos suinocultores. O padre tem muita história em Nova Petrópolis, ligadas a atividade cooperativa no mundo das finanças. Tem a ver com o SICREDI, fundado pelo padre em 1902, nesta cidade de Nova Petrópolis, cuja paróquia, por sinal, também foi desmembrada de São José do Hortêncio.

Muito boa a leitura que me satisfez muitas das minhas curiosidades neste meu tempo de saudosismo. Ainda uma observação, no sentido de destacar a importância histórica desta cidade. No livro A missão dos jesuítas alemães no Rio Grande do Sul, o padre Ambros Schupp (Ed.Unisinos) chama São José do Hortêncio como a outra colônia-mãe, sendo Dois Irmãos a outra, ou a primeira que ele descreve.

terça-feira, 10 de outubro de 2017

Os Muckers. P. Ambrósio Schupp S.J.


Creio que estou vivendo uma fase saudosista em minha vida. Estou retomando memórias de minha infância e, posso afirmar, das mais longínquas. Se tinha uma coisa que me assustava muito era a frase, dita por meu pai ou minha mãe, ou simplesmente lida nos jornais, Die Mucker Kommen. Os Muckers estão chegando. Aprendi a associar tudo o que se podia imaginar de ruim, a estes Muckers, sem ter a mínima ideia de quem eles poderiam efetivamente ser.

Agora, após uma visita ao meu irmão, vi com ele alguns materiais sobre as origens da imigração alemã e, consequentemente, sobre as nossas origens familiares. Já li o livro Os imigrantes do Husnrück e encontrei, na Estante Virtual, o livro Os Muckers, de autoria do padre Ambrósio Schupp, um padre jesuíta. O livro foi originalmente escrito em alemão e recebeu tradução de Alfredo Cl. Pinto. O livro foi muito bem escrito e é afirmada e reafirmada a fidelidade absoluta aos fatos. Toda a narrativa obedece a depoimentos de envolvidos, autos de processos ou cópias da imprensa da época. Porém, os adjetivos empregados, demonstram uma clara tomada de posição.
O livro. Um importante documento histórico.

O fato ocorrido remete ao ano de 1872, junto ao morro Ferrabraz, no hoje município de Sapiranga, mas os seus antecedentes ou as suas causas remetem a problemas trazidos desde a Alemanha. Aliás, se o livro tem algum defeito, ele está justamente na não análise das causas e dos objetivos deste movimento. De acordo com a leitura, o fato ocorreu de uma forma meio espontânea, como uma consequência da ausência de padres e de pastores, somado à possibilidade da livre interpretação da Bíblia, por parte dos protestantes. Do movimento são abstraídas as causas econômicas e ideológicas.

O livro do padre Ambrósio, que foi escrito ainda no século XIX, deve ter originado, por muito tempo, a única interpretação dos fatos e por isso mesmo, a verdadeira ou oficial. Esta interessava tanto aos padres, quanto aos pastores. É sabido que os alemães que se estabeleceram em São Leopoldo, as margens do rio dos Sinos, ali chegaram em 1824, em função das difíceis condições existentes na Alemanha, especialmente em consequência das guerras napoleônicas. Trouxeram também as suas divisões religiosas, entre os protestantes e os católicos. Os protestantes também trouxeram o movimento pietista.

O livro é dividido em três partes, divididas em pequenos capítulos. As partes tem os seguintes capítulos: 1. Os fanáticos; 2. Assassinos-incendiários e 3. Os rebeldes. Só por estes títulos já dá para ver a neutralidade do livro. O livro tem uma bela introdução sobre a colonização alemã no Rio Grande do Sul, seguramente um documento de valor histórico.

Na primeira parte, os fanáticos, entramos em contato com o curandeiro João Jorge e com Jacobina, o casal protagonista de toda a história. No começo, o papel principal era exercido pelo curandeiro, mas aos poucos este papel passa a ser exercido por Jacobina, pelo seu misticismo e capacidade de convencimento. Em pouco tempo conseguiu atrair muita gente, diante dos quais começou as suas pregações e interpretações bíblicas. Cada vez mais gente e gente com certa influência afluiu ao Ferrabraz. Também entra em cena um certo personagem misterioso. O movimento começou a dividir as famílias entre os seguidores e os chamados ímpios. A divisão também atingiu protestantes e católicos. A dissolução das famílias, segundo o padre narrador, também constava da doutrina dos seguidores de Jacobina. O movimento começa a preocupar as autoridades e, tanto João Jorge, quanto Jacobina chegam a ser presos. Mas isso só fez o movimento crescer.

Na segunda parte, Assassinos e incendiários, são descritas as cenas de violência, que segundo o autor, foram promovidas pelos Muckers, numa ampla ofensiva decretada contra os ímpios. Na calada da noite os Muckers promoviam os ataques aos inimigos mais declarados, incendiando-lhes paiol e casas e assassinando mulheres e crianças. A sanha sanguinária dos principais líderes é descrita com forte carga nas tintas. Ganhou grande destaque a chamada "Noite da carnificina", em que foram lançados muitos ataques simultaneamente. As "orgias de sangue" alcançam, inclusive, picadas mais distantes, narra o autor. Providências por parte dos colonos e das autoridades passam a ser tomadas. Mas, ao que tudo indica, também havia divisão entre estas autoridades.

Na terceira parte, Os rebeldes, são narradas as providências tomadas pelos colonos e pelas autoridades para por fim ao movimento. Isto não foi nada fácil. Os Muckers se organizaram para a resistência e a organização militar do Império era deveras frágil (recém tinham saído da Guerra do Paraguai) e com problemas de toda ordem, como os comandos, a desobediência e a falta de treinamento. Várias expedições resultaram em baixas e grandes derrotas, que causavam ou sentimento de admiração ou de pavor. Finalmente, depois de impor disciplina e um pouco de treinamento, em agosto de 1874, os Muckers são rendidos pelas forças legalistas. De uma maneira geral, a paz volta aos campos ensanguentados por mais este movimento messiânico, tão presente em nossa história, principalmente entre as populações economicamente menos favorecidas. Em tempo. Também houve uma delação premiada. Jacobina havia escolhido, entre os seus apóstolos, também um Judas.
Harmonia. No livro tem esta foto da minha terra natal. Não teve participação neste episódio dos Muckers.


Assisti também o filme, Os Mucker, do ano de 1978. O filme já contém alguns elementos mais críticos, envolvendo questões econômicas e ideológicas. E o filme tem uma preciosidade. O genuíno alemão da região alemã do Hunsrück, falado entre os colonos. É fácil localizá-lo no YouTube.

segunda-feira, 9 de outubro de 2017

Eleições APP-2017. Nota oficial da chapa 2.

Com a finalidade de deixar este documento num espaço permanente, visando especialmente finalidades de pesquisa, transcrevo este documento para este espaço do blog. É a nota oficial da chapa 2. App Independente, democrática, de base e de luta sobre o processo eleitoral. O documento é de 5 de outubro de 2017.





-


quinta-feira, 5 de outubro de 2017

O cemitério dos vivos. Lima Barreto.

Antes de efetivamente falar de O cemitério dos vivos, vamos falar um pouco sobre o Lima Barreto, sobre a sua formação. Apesar de sua origem humilde, uma série de influências o fizeram ser um homem de uma formação esmerada, a melhor que se poderia imaginar. Passou pelos estudos preparatórios e ingressou, como se diria hoje, na faculdade de engenharia, da qual, segundo ele, felizmente desistiu.

Os seus desencontros na vida e com a vida, em grande parte, decorreram dessa sua formação e o fato de não encontrar uma ocupação que realmente contemplasse este seu nível de formação. Exerceu uma função burocrática e rotineira no Ministério do Exército. Na literatura teve pouco reconhecimento, embora escrevesse muito. Por artigos em jornais e revistas procurou tornar-se conhecido, mas isso em muito pouco o ajudou. A tudo isso se aliou uma insegurança extrema diante das dificuldades da vida, entre elas, as questões financeiras que sempre o atormentaram. Tudo isso o levou ao álcool, muito álcool, e aos delírios por ele causados e a dois internamentos em hospício, ao qual chegou, segundo ele próprio, da pior maneira possível, pelas mãos da polícia. No hospício ele teve uma certeza mais do que absoluta: a de que ele não era um louco.
Os dois livros de memória de Lima Barreto.  Acima de tudo, grande contribuição para os estudos da psiquiatria.

Nestas condições ele escreveu dois livros notáveis. O primeiro, Diário do hospício, é um livro de memórias e um mínimo de ficção. É uma descrição valiosa destas suas desventuras, em dois internamentos. O segundo, O cemitério dos vivos é mais notável. Nele, se não fosse conhecida a sua biografia, já não se distinguiria entre a realidade e a ficção. As descrições são acompanhadas de profundas e lúcidas reflexões. Estabelece relações com Dostoiévski, com as Memórias da casa dos mortos e com os sofrimentos e impactos de Cervantes em sua prisão em Argel. Este livro deveria ser leitura obrigatória para todos os estudantes de medicina que se dedicam à neurologia e à psiquiatria. São observações de uma pessoa com a mais alta e elevada formação possível e em absoluto estado de lucidez, observando o tratamento que ele e os demais receberam, naquilo que se chama de um tratamento para a loucura.

O próprio Lima conta sobre os objetivos deste seu livro: "Essa narração, porém, não tem por fim indicar medidas de administração; quero contar simplesmente as impressões da minha sociedade com os loucos, as minhas conversas com eles e o que esse transitório comércio me provocou pensar".

O livro está dividido em cinco capítulos. O primeiro é quase pura ficção. Seria o que poderíamos dizer, os anos de formação de Vicente Mascarenhas. A sua timidez, o seu interesse por literatura, os seus projetos e sonhos de ser um escritor reconhecido, o seu casamento e sobre o seu único filho. Chama atenção neste capítulo uma descrição da arrogância da ciência e da pretensão doutoral dos brasileiros, tão presente ao longo de sua obra. Os bruzundangas.

No segundo capítulo ele narra do seu internamento num dia de natal. É submetido a todas as humilhações possíveis a um ser humano. Aí é que se recorda de Dostoiévski e de Cervantes, recolhidos em prisões. Ele não faz distinção entre prisão, hospício e inferno. O seu estado psicológico está assim descrito: "Veio-me, repentinamente, um horror à sociedade e à vida; uma vontade de absoluto aniquilamento, mais do que aquele que a morte traz; um desejo de perecimento total da minha memória na terra; um desespero por ter sonhado e terem me acenado tanto grandeza, e ver agora, de uma hora para outra, sem ter perdido de fato a minha situação, cair tão, tão baixo, que quase me pus a chorar que nem uma criança". 

O capítulo mostra o choque entre seus sonhos de jovem, a sua formação relacionada com a sua origem, proveniente de uma mistura racial, os seus altos sonhos com a literatura, a sua permanente falta de dinheiro, que o levou a bebidas baratas, à cachaça. O seu estado de ânimo está assim descrito: "Tinha trinta e poucos anos, um filho fatalmente analfabeto, uma sogra louca, eu mesmo com uma fama de bêbado, tolerado na repartição que me aborrecia, pobre, eu vi a vida fechada. Moço, eu não podia apelar para minha mocidade; ilustrado, não podia fazer valer a minha ilustração; educado, era tomado por um vagabundo por todo mundo e sofria as maiores humilhações. A vida não me tinha mais sabor e parecia que me abandonava a esperança".

Novas reflexões são trazidas no capítulo terceiro. Desta vez elas atingem o próprio estado da loucura. Quais seriam as suas origens, causas e explicações? Procura desmistificar as absurdas teorias da origem hereditária. Se assim fosse, quem não seria louco, deduz. E a sua reflexão continuava, sobre o ser moral que está no homem: "Eu sofria honestamente por um sofrimento que ninguém podia adivinhar; eu tinha sido humilhado, e estava, a bem dizer, ainda sendo, eu andei sujo e imundo, mas eu sentia que interiormente eu resplandecia de bondade, de sonhos de atingir a verdade, do amor pelos outros, de arrependimento dos meus erros e um desejo imenso de contribuir para que os outros fossem mais felizes do que eu, e procurava e sondava os mistérios de nossa natureza moral, uma vontade de descobrir o seu núcleo primitivo de amor e de bondade". Em meio a tudo isso, ele recebe tratamentos um pouco mais humanizados e isso lhe faz renascer as esperanças.

O quarto capítulo trata fundamentalmente das relações que ocorrem no presídio. Lima é observado e ganha um tratamento diferenciado. Ele jamais o reivindicou, especialmente, por sentimentos de culpa, que o aniquilavam. De maneira geral, os funcionários eram portugueses pobres. Descreve, mas pede para não generalizar, um brasileiro, lhe conferindo as qualidade de exibição, mando e autoritarismo. Com ele teve um atrito, dos poucos que teve. Soberba, superioridade e inferioridade nas relações ganham também as suas observações. Considera a falta de solidão um dos piores suplícios do hospício. Sempre tem um louco por perto a incomodar. A hora mais triste é a que está entre o pós jantar e o dormir, quando afloram na memória os tristes episódios da vida.

No quinto capítulo descreve e reflete sobre a sua relação com os médicos. Descreve com atenção especial dois médicos com atitudes opostas. De um teme que lhe aplique os novos inventos da medicina. De outro, exalta as suas qualidades humanas. Da ciência louva o progresso da técnica, mas duvida das ciências médicas, por sua arrogância e o distanciamento na interação do médico com o paciente. Este é tratado como um objeto. Passou por cinco médicos, cada um com as suas peculiaridades. Descreve, ainda as cinco sessões do hospício. Sobra tempo também para uma reflexão sobre a bebida, quando um dos médicos constata que ela não lhe provocara estragos tão grandes. "Eram mínimos", constatou. E aí começa a sua nova reflexão:

"Ela não me matava, ela não me estragava de vez, não me arruinava. De quando em quando, provocava-me alucinações, eu incomodava os outros, metiam-me em casas de saúde ou no Hospício, eu renascia, voltava, e assim levava uma vida insegura, desgostosa, e desgostando os outros, sem realizar plenamente o meu destino, que as coisas obscuras queriam dizer não ser o de um simples bêbado. Era preciso reagir".

Lima Barreto não reagiu. O memorável escritor sucumbiu diante de seus problemas, na jovem idade de 42 anos. Um brasileiro que retratou a si e ao seu país. Um escritor profundamente temperado pelos sofrimentos que a vida impõem, especialmente para aqueles que melhor os compreendem. O cemitério dos vivos é o livro em que Lima Barreto melhor expõe as angústias de sua vida. Profundamente existencial.




Diário do Hospício. Lima Barreto.

Cheguei a estes dois livros do Lima Barreto (reunidos num só), Diário do hospício e O Cemitério dos vivos, pela lista dos mais vendidos na FLIP - 2017. Ele ocupou o sétimo lugar. Lembrando que Lima Barreto foi o escritor homenageado desta edição da Feira. Entre os mais vendidos também figurou a maravilhosa biografia do escritor, em terceiro lugar, de autoria de Lília Schwarcz, Lima Barreto - Triste visionário. Uma biografia notável. http://www.blogdopedroeloi.com.br/2017/08/lima-barreto-triste-visionario.html
Os dois livros do Lima Barreto. Diário do hospício e O cemitério dos vivos.

No Diário do hospício nos deparamos com o Lima Barreto memorialista, embora no livro constem também alguns lances de ficção, poucos na verdade. O livro, da Companhia das Letras tem prefácio de Alfredo Bosi e inúmeras notas explicativas de Augusto Massi e Murilo Marcondes de Moura. As memórias estão contadas em dez capítulos. Desde já destaco o terceiro, que em cinco páginas descreve seu drama vivido em companhia do álcool. O capítulo tem por título: A minha bebedeira e a minha loucura. Dá vontade de transcrever o capítulo inteiro. Mas vamos aos outros.

No primeiro capítulo O Pavilhão e a Pinel faz uma detalhada descrição do hospício. Diz ter chegado a ele da pior forma possível, pelas mãos da polícia. Aliás, a comparação entre a prisão e o hospício é uma constante ao longo da obra. Também nela está onipresente a comparação com o inferno. Dante recebe inúmeras citações. O tratamento dado é desumano e as humilhações são constantes. Deixa também a certeza de que ele não é louco. Está ali por causa do álcool, ao qual estão associados os seus problemas familiares, o seu não reconhecimento, a sua origem e a cor da pele, além dos seus constantes problemas financeiros.

No segundo capítulo Na Colmeil descreve este pavilhão no qual ficou internado, por uma deferência do Dr. Juliano Moreira, uma exceção, no bom sentido, entre os médicos alienistas que o tratam. A frieza dos demais também é constante na obra. Aplicam teorias sem quererem saber a quem elas são aplicadas. Os considera arrogantes e prepotentes, em nome da ciência que julgam dominar. Também aparecem as primeiras descrições dos colegas e da biblioteca do estabelecimento.

Do terceiro capítulo, A minha bebedeira e a minha loucura, tomo apenas uma descrição: "Saído dela (da leitura de Maudsley, O crime e a loucura), escrevi um decálogo para o governo de minha vida; entre os artigos havia o mandamento de não beber alcoólicos, coisa aconselhada por Maudsley, para evitar a loucura. Nunca o cumpri e fiz mal. Muitas coisas influíram para que viesse a beber; mas de todas elas, foi um sentimento ou pressentimento, um medo, sem razão nem explicação, de uma catástrofe sempre presente. Adivinhava a morte de meu pai e eu sem dinheiro para enterrá-lo; previa moléstias com tratamento caro e eu sem recursos; amedrontava-me com uma demissão e eu sem fortes conhecimentos que me arranjassem colocação condigna com a minha instrução; e eu me aborrecia e procurava distrair-me, ficar na cidade, avançar pela noite adentro; e assim conheci o  chopp, o whisky, as noitadas, amanhecendo na casa deste ou daquele.

No quarto capítulo Alguns doentes, Lima defende uma interessante tese de que "não há espécies, não há raças de loucos; há loucos só". Isso devia ser muito forte para ele, pois, conviveu com as teses da degeneração das raças quando elas se misturavam. Este era o seu caso. Por isso a constatação tem tanta ênfase. Também faz a afirmação categórica de que a ciência não pode tudo. Continua tergiversando sobre as possíveis causas da loucura, como o álcool e o amor, ou a falta dele. Descreve os primeiros de seus colegas.

No quinto capítulo Guardas e enfermeiros, estes merecem a sua atenção. De maneira geral lhes faz referências elogiosas. Mas se ocupa mais de reflexões existenciais, sobre a inutilidade da vida. Neste capítulo entram também os primeiros elementos de ficção. Daí em diante, dos capítulos VI a IX, eles não tem mais título e o Xº, nem mesmo recebe numeração. No VIº ele continua analisando seus colegas e faz interessantes considerações sobre o endividamento e sobre os crimes de uxoricídio.

No VIIº capítulo, um dia de tédio, o dia São Sebastião, ganha as suas reflexões. Se depara com uma espécie de arrependimento por não ter seguido na vida por caminhos já batidos, por ter ousado e de querer reconhecimento. Volta à ficção falando de sua mulher, já morta e se culpa por não tê-la amado. No VIIIº capítulo, mais descrições e auto reflexão. Conta sobre a inadequação da biblioteca e busca em sua infância a sua iniciação na literatura com a obra de Júlio Verne. Sobre um suicídio que ocorre nas dependências do hospício ele afirma não ter encontrado forças para cometê-lo também, mas que se voltasse a este local, também nele encontraria a sua morte. No IXº capítulo encontrei duas observações interessantes: poucos internos se davam ao choro e todos, numa rotina de inspeção, manifestavam a imensa vontade de sair deste ambiente.

Já o Xº capítulo consta de umas dez páginas de anotações para um próximo livro. Mais observações em torno do suicídio e uma perspicaz observação sobre os padres, que transcrevo: "Houve festa na capela e ao sair o café (à uma hora) cruzei-me com os padres. Que lorpas! E a Constituição! Padres como esses não fariam mal se não fossem eles a guarda avançada do estado-maior jesuítico que nos pretende oprimir, favorecendo os ricos e pavoneando os seus preconceitos".

E um último pensamento, sobre os livros. Existe uma relação entre a inteligência e a loucura? Entre as suas anotações do capítulo X existe uma anotação a respeito. Mas, no primeiro capítulo existe uma pequena frase que é extraordinária: "Ah! A literatura ou me mata ou me dá o que eu peço dela". Um livro fundamental para melhor compreender este tão fantástico escritor, genuinamente brasileiro.


quarta-feira, 4 de outubro de 2017

O jovem Karl Marx no cinema.

Há tempos aguardava o lançamento de O jovem Karl Marx no cinema, no circuito comercial. Como este lançamento não ocorria, até desisti de procurar. Foi então que o meu amigo Marco Aurélio Gaspar me mandou o link para assisti-lo. Não dá para entender as razões pelas quais o filme ainda não estreou nos cinemas brasileiros. Seria medo de reações, afinal vivemos um grande tempo de intolerâncias. MBL e similares.



O filme, antes de tudo é muito bonito e dá grande ênfase no lado humano dos principais personagens. Assim mostra o amor do jovem Marx pela bela e aristocrata Jenny Westphalen, o nascimento de Laura, a segunda filha do casal, em meio a todas as dificuldades materiais possíveis e as relações complicadas entre Friedrich Engels e o seu pai, o rico industrial da Ermen & Engels, que já naqueles tempos era uma multinacional do setor têxtil. Também o calor dos debates, das disputas ideológicas, ganha um grande foco.

O filme retrata, como é afirmado no título, o jovem Marx. Não é um filme de fácil assimilação para um país que tem pouca tradição em estudar o tema. Não é um filme para principiantes. Tem que entender um pouco a evolução da filosofia alemã e um pouco de história deste conturbado período. É um tempo de monarquias em queda, como resultado das revoluções e estragos causados por Napoleão Bonaparte. O filme não mostra os seus anos de formação, mas sim, os seus primeiros anos de atividade, digamos assim, de atividade profissional, como jornalista.

Começa com o seu primeiro artigo polêmico escrito na Gazeta Renana, sobre a coleta de lenha nas florestas de Colônia. Neste artigo já se discute  a questão da propriedade privada. A censura e os mecanismos de perseguição policial são imediatamente acionados e o jovem Marx, já casado, se refugia, junto com Ruge, na França. Em Paris também conhece um mundo de hostilidades, por parte do regime de Guizot. Em Paris conhecerá outro jovem, Friedrich Engels, filho de um dos mais ricos industriais, mas movido a desvendar o mundo de injustiças, que promoveram a fortuna da família. Engels é diretamente responsável por colocar Marx em contato com o mundo do trabalho nas fábricas inglesas, com o seu A situação da classe trabalhadora na Inglaterra.

Em Paris também conhece Proudhon, o famoso anarquista de Lyon. Começa aí uma longa disputa pela hegemonia na condução teórica das lutas operárias. Este é um período de intensa produção teórica, de refutação das doutrinas idealistas, do surgimento do materialismo histórico, do tempo em que se afirma o princípio de que é preciso ir além das interpretações de mundo para começar sim, a sua transformação. Nada de doutrinas piedosas e utópicas.  O modo de produção capitalista traz em sua raiz a oposição entre a classe trabalhadora e a burguesia. Ele não permite conciliações. Ele exige a Revolução.

Após sua expulsão de Paris Marx se estabelece em Bruxelas e, mais uma vez, pelas mãos de Engels, entra em contato com a Liga dos Justos, a principal organização dos trabalhadores da Inglaterra. Inserir-se nesta organização não foi tarefa fácil. Não será qualquer teórico que dará orientação para os trabalhadores. Mas Marx e Engels vão ultrapassando as rejeições e recebem a encomenda de um documento teórico que conduza a ação dos trabalhadores do mundo inteiro.

Está assim posto o nascimento do Manifesto do Partido Comunista. É um dos momentos mais impressionantes do filme. A disciplina de Engels, a relativa lentidão de Marx na produção teórica, sempre na busca da perfeição em seu último grau e a participação de Jenny na redação final do documento. Com o Manifesto, Liga dos Justos se transforma na Liga dos Comunistas, e aos poucos, Marx e Engels se tornarão hegemônicos na interpretação teórica que conduzirá as lutas operárias pelo mundo afora, longe de haver qualquer tipo de unanimidade.

Marx é um dos pensadores mais complexos que o mundo já conheceu. A filosofia, com ele, encontrou a sua utilidade prática. Ela deveria proporcionar a transformação do mundo e a emancipação da classe trabalhadora. Ele é uma síntese do pensamento alemão, francês e inglês de sua época. Tudo indicava que a Revolução aconteceria sob os princípios do Manifesto, já no ano de 1848, o ano de sua publicação. Vide o ocorrido na França.

Creio que o maior mérito do filme está em mostrar as disputas que se travam pela hegemonia da interpretação do mundo decadente da época e de afirmação dos próximos passos na condução do processo histórico. Creio que Engels tinha uma visão extraordinária desse processo, sempre reconhecendo a superioridade da capacidade teórica de Marx para fazer a análise do mundo em crise, no qual estavam inseridos. O filme é uma produção da França, Bélgica e Alemanha. O jovem Marx é interpretado por August Dieh, Jenny por Vicky Krieps e Engels por Stefan Konarske.
O belo livro de Nicolai Lápine. O Jovem Marx.
A biografia de Engels escrita por Tristán Hunt.

Tenho duas sugestões de leitura por fazer. A primeira, O jovem Marx, de Nicolai Lápine. O livro é dividido em três partes: 1. Em busca de concepção do mundo própria, com dois capítulos: Dos bancos da escola ao doutoramento em filosofia e Através da filosofia para a política. 2. Passagem para o materialismo e para o comunismo, também com dois capítulos: Início da passagem para o materialismo e para o comunismo e Através da crítica de Hegel, rumo a uma concepção científica do mundo. 3. Nas fontes de uma concepção científica integral do mundo, mais uma vez com dois capítulos: Ponto de partida do comunista e O fundamento econômico e filosófico do comunismo. A segunda leitura é a densa biografia, Comunista de casaca - A vida revolucionária de Friedrich Engels, escrita por Tristán Hunt. E a certeza de que, enquanto houver capitalismo, o marxismo não estará superado. O link do filme não está mais disponível por questões de direito autoral.

terça-feira, 3 de outubro de 2017

Assentamento Contestado, na Lapa. Uma visita.

30 de setembro 2017. Um sábado. Atendendo a um convite dos meus amigos, Regina e Valdemar, fui com eles ao Assentamento Contestado, na Lapa. É um assentamento do MST. Era uma atividade escolar promovida pela professora Regina, junto aos alunos do curso de direito da UNINTER. Foram dois ônibus e mais de cinquenta alunos.
O senhor Antônio e a sua conversa.
O resultado. 108 famílias produzindo produtos agro ecológicos.

Lá fomos recebidos pelo senhor Antônio, que com toda a tranquilidade e transparência começou a sua fala e se pôs a disposição para responder aos questionamentos propostos. A sua fala podia facilmente ser comprovada com a prática do que se via ao redor. Origem do MST, recrutamento de pessoal, acampamentos e assentamentos, relação com o governo foram as primeiras questões. As áreas escolhidas para serem ocupadas também ganharam o seu foco e o assentamento Contestado, em particular. Era uma área enorme, pertencente à INCEPA, que era grande devedora de tributos. Estes tributos entraram nas negociações para a desapropriação. O assentamento envolve 320 hectares de terra, na qual estão hoje assentadas 108 famílias.

A produção também mereceu um foco especial. A agro ecologia. Junto ao assentamento funciona uma escola latino americana de agro ecologia. Defendem a posição de que a propriedade da terra deve pertencer essencialmente às futuras gerações, por isso todo o cuidado com a preservação. Outro destaque é a questão da saúde alimentar. Livrar o corpo humano dos agro tóxicos. A melhor forma de fazê-lo é pela agricultura familiar e evitando as monoculturas. O agro negócio é para eles um enorme lixo tóxico e de empobrecimento rápido das terras.

 Com o senhor Antônio, visitando as instalações.

A organização da produção mereceu outro foco. A organização em cooperativa, visando a comercialização. Desde a compra dos insumos até a venda dos produtos colhidos, tudo passa pela organização cooperativa. Praticamente todos os assentados dela participam. Tem até industrialização de muitos de seus produtos. Atendem os mercados da Lapa e região e chegam a Curitiba, atendendo a vendas até pela via do WhatsApp. Produtos agro ecológicos da agricultura familiar. Acima de tudo um conceito.

Ao meio dia foi servido um almoço e, logo após, retomados os trabalhos. Tomo o depoimento de um aluno como o resultado do encontro. Este aluno rompeu com a sua timidez para falar o seguinte: "Vim aqui movido pela curiosidade. Vim com todos os preconceitos incutidos pela Mídia. Saio daqui com uma nova visão".  Os trabalhos foram encerrados com uma visita às instalações: o mercado da cooperativa, os depósitos e a pequena agro indústria. Um dia extremamente proveitoso, que eu considero como um dia em que ocorrem aqueles choques, aqueles que provocam verdadeiras rupturas em nossa formação, essencialmente conservadora em seus propósitos e origens.
 Antônio Tavares. Uma vida ceifada pelas lutas. Quem é o assassino?

Quero ainda destacar as palavras iniciais da fala do senhor Antônio. Muito próprias para alunos de um curso de direito. É preciso saber o que é a lei, quem a faz e para que e para quem ela é feita. Dentro da ordem, estas 108 famílias que, digamos, hoje vivem bem, estariam provavelmente vivendo a verdadeira tragédia humana das periferias das nossas grandes cidades, vítimas da venda das pequenas propriedades agrícolas, que promoveram o chamado êxodo rural brasileiro, especialmente, ao longo do período da ditadura civil-militar que se instalou no país em 1964. Muito aprendizado e os parabéns à professora Regina e ao coordenador do curso que também acompanhou as atividades. Importa ainda dizer que o assentamento está dotado de serviços de infra estrutura de educação e de saúde. Eles aprenderam a reivindicar organizadamente. Não confiam muito na representação política, via partidos. É democracia direta.

segunda-feira, 2 de outubro de 2017

Os imigrantes do Hunsrück. Haus Weber. Selbrício Bohn.

"Aos primeiros a morte, aos segundos a miséria e aos terceiros, então o pão".

Numa visita ao meu irmão Hédio, na cidade de Mondaí (SC), as origens familiares vieram à tona em nossas conversas. Fotografias, cartas e livros. Entre os livros, apareceu um que me despertou particular interesse. Trata-se de Os imigrantes do Hunsrück. Nossos antepassados: sua partida, sua viagem e chegada em São Leopoldo. Na capa consta que o autor é Selbrício Boh, mas este dado não corresponde. Selbrício é o tradutor. O autor, como consta no interior do livro, é Haus Weber, um escritor da região do Husrück, de onde partiram os emigrantes alemães com destino a São Leopoldo.
O livro contém o romance e os nomes dos emigrados entre 1824 e 1892.

O livro tem muitos problemas, começando por este que já apontei. O maior problema está, creio eu, nem mesmo na tradução, mas no português. Frases inconclusas, erros de grafia e parágrafos inteiros, meio sem sentido. Com um pouco de esforço, no entanto, você consegue ler o livro. É louvável o esforço do Selbrício, que em viagens à região do Husnrück, descobriu o livro e nos legou um importante documento.

O livro é composto de cinco capítulos. No primeiro estão transcritas as dificuldades vividas na Alemanha, na região do Hunsrück, região próxima aos rios Reno e Mosel, nas proximidades da França, com quem disputava o território. Os maiores problemas eram as guerras, (as guerras napoleônicas) os pesados serviços militares obrigatórios, a miséria e a fome e, especialmente, a ausência de perspectiva de futuro. Isto levou muitos ao sonho na distante América. Um projeto de colonização do Império brasileiro chamou a atenção de muitos.

Entre estes muitos havia o casal João Pedro e Regina Teis. Eles tinham cinco filhos, dois meninos e três meninas. Também havia o Frederico Gewehr, marceneiro de profissão. No mercado de Kastellaun ouviram falar do Brasil. Não sem resistência, o pai de Regina vendeu um pedaço de terra, sua futura herança. Esta venda tornou a viagem possível. Estes não foram os colonos da primeira viagem. Esta ocorreu em 1824, no navio Protector. A chegada em São Leopoldo ocorreu em 25 de julho de 1824. Josão Pedro, Regina e Frederico partiram em 1827.

A saída da Alemanha, por si só já foi uma verdadeira epopeia. A ela está reservado o capítulo de número dois. Ela durou um mês inteiro. Embarque no porto de Oberwesel e chegada em Colônia. De Colônia seguiram por terra, pelos serviços postais, até Hannover, para finalmente atingirem o porto de Bremen, do qual saíram, sem a perspectiva de volta. Um misto de medo e esperança foram os grandes companheiros desta viagem. Da data de saída, 1º de abril de 1827, até a chegada ao Rio de Janeiro, em 3 de agosto, decorreu uma eternidade. Mais alguns dias estariam em Porto Alegre e São Leopoldo.

Mas este já é o tema do terceiro capítulo. Na chegada ao Rio de Janeiro tiveram até uma saudação imperial. Já em Porto Alegre e em São Leopoldo alguns colonos das primeiras viagens os aguardavam. Por estradas lamacentas foram até São Leopoldo. Mata virgem, cobras e índios hostis se constituíram em seus novos medos. Os lotes 53 e 54 estavam agora na mão de seus destinatários, as famílias Teis e Gewehr. Horta, pomar e as primeiras plantações vieram junto com um poço. As dificuldades iniciais estavam sendo superadas.

O capítulo IV ocupa apenas três páginas. Ele tem uma espécie de sub título: São Leopoldo, cinco anos depois, 1832. Nele é narrado um ataque indígena com a queima das casas e muitas mortes. Os nossos imigrantes sobreviveram. Em resposta vieram as armas de fogo e uma espécie de militarização da região.

A relativa estabilização dos colonos é descrita no quinto capítulo. Já contam com vaca leiteira, cabra e galinhas. Com fins estratégicos, as casas passam a ser agrupadas. Frederico vai para Porto Alegre exercer a profissão de marceneiro. Um novo e grave problema os aguarda. Em 1835 irrompe a Revolução Farroupilha. Procuram não se envolver. Mas uma lealdade ao imperador os faz ficar ao lado do Império. A revolução vitima o filho mais velho da família. O veneno de uma cobra ceifa a do outro. Em 1854 já havia na região onze mil colonos. E, temendo um estado alemão, os novos colonos serão destinados aos vales do rio Pardo e Jacuí. Ainda no ano de 1854, havia na região, entre serrarias, moinhos e fábricas, 12 igrejas luteranas e 9 católicas, além de 24 escolas de língua alemã.
Um retrato de família, a do meu avô.


Frederico não seguiu uma regra muito comum entre os colonos. Casou-se com uma mulata e com ela teve 4 filhos cor café marrom. As filhas se casaram e para o orgulho da família, Lisa, a mais nova das meninas, tornou-se professora. Em 1870 morre João Pedro e em 1875, Regina, terminando assim a saga das primeiras famílias, da primeira geração, dos emigrantes do Hunsrück, os imigrantes da região do vale do rio dos Sinos. Deixaram mais de dois milhões de descendentes, numa das regiões brasileiras que desconhece a pobreza e a miséria.

O livro tem ainda outra preciosidade. Traz o nome, ou melhor o sobrenome de todos os emigrados da região do Hunsrück, até o ano de 1892. Para quem quiser levantar dados para uma pesquisa sobre a origem familiar encontra aí os primeiros dados, com os quais consegue iniciar os trabalhos. Já encomendei outro livro, A História de São José do Hortêncio, para onde se destinou Nicolau Rech, que deve ter chegado à região em 1829, com 26 anos de idade. Era militar. Ele deve ter sido o avô do meu avô. O meu pai deve ter sido já da 4ª geração de descendentes. Hoje são muito comuns os encontros de famílias. Nunca participei, mas deve ser bem interessante. Muitas histórias para contar. Selbrício conta sobre um desses encontros, o encontro da família Bohn em São Sebastião do Caí em 1999.