Mais uma vez a jornalista e editora Cleusa Slaviero reúne resistentes para escreverem "crônicas da resistência", um trabalho altamente meritório. Assim que ler o livro farei uma pequena resenha. A coletânea tem como prefaciadora, a psicanalista e escritora, Maria Rita Kehl. Este é o terceiro volume de crônicas: o primeiro versou sobre o golpe, logo que ele aconteceu; o segundo, seis meses após a sua ocorrência, quando foram feitas as primeira análises e, agora Um ano de golpe, com as reflexões críticas sobre o ocorrido ao longo do transcurso de seu primeiro aniversário do fatídico acontecimento.
Mais uma vez compareci com uma crônica, no limite estabelecido de 4.000 caracteres, sob o título -
ORDEM E PROGRESSO
Recentemente li O
Coração das Trevas e vi Apocalipse
Now. Guardo as imagens de devastação, destruição e morte. Nenhuma resistência
foi tolerada. Não me sai da mente a loucura de Kurtz e o seu grito de
desespero, ó horror, ó horror. É o preço do progresso. Extermina o colonizado e
destroça a psique do colonizador.
Um ano de golpe - Crônicas da resistência. Um livro organizado por Cleusa Slaviero para a Editora ComPactos.
Já na antiga Grécia, berço da civilização ocidental, Vico,
pela voz de Adorno, nos adverte sobre a origem dos conceitos geradores da
infelicidade: “Esses conceitos provêm, da praça do mercado de Atenas”. E mais,
Platão e Aristóteles os revestiram com o caráter da universalidade. Vejam bem,
da praça do mercado.
Homero nos deixou a imagem fabulosa do mito das sereias.
Adorno a adaptou ao mundo burguês. As sereias, simultaneamente, encantam e
levam à irreversível danação. O que faz Ulisses? Tapa o ouvido dos remadores e cobra
força redobrada dos músculos. O estoicismo do trabalho e da obediência os
salvaria. Ulisses também precisa se salvar. Manda se amarrar ao mastro.
Criou-se um sistema de negação do usufruir. Dor e sofrimento não fazem bem a
ninguém. Como fuga, se alimentavam de lótus,
que abafava a consciência da infelicidade.
Superadas as trevas medievais, a razão, pelo esclarecimento nos prometeu a autonomia
da maioridade. A ciência progrediria
e os homens se entenderiam e viveriam em paz.
Utopias de um tempo. Rapidamente a razão se tornou calculadora e
instrumental do lucro e, mais uma vez, as doutrinas se formularam a partir do
mercado. Foram os tempos do colonialismo, do imperialismo e das guerras. Ó
horror!
O Brasil entra em cena. A situação só piora. Ocorre o
genocídio das populações indígenas, sob o beneplácito geral. Seus assassinos,
os bandeirantes, são ainda os herois de hoje. Seu espírito predador se
incorporou na elite brasileira, a mais perversa do mundo, como ouvi de Paulo
Freire. A escravidão é abolida, mas não a sua obra. Políticas de exclusão
deliberada persistem através de um espírito escravocrata, incrustado entre os
dominantes.
Pouco se praticou a democracia. Quando se esboçam políticas
pró-cidadania, armam-se os golpes. O projeto de industrialização e de formação
de uma Nação surge tardiamente e sofre fortes resistências. Entre 1930 e 1984,
houve duas ditaduras de longa duração e uma tentativa de golpe a cada três
anos. O mais longo interregno democrático foi vivido com a Constituição de
1988, até o golpe de 2016.
Quais as razões para o novo golpe? Trago à lembrança D.
Hélder Câmara. Num pequeno livro ele fala de burguesia consular, em que “pequenos ricos locais ajudam os grandes
ricos estrangeiros e são por eles ajudados”. Isso sempre me intrigou. A nossa
elite trama contra o próprio país, em troca de miçangas.
A um ano do golpe, o que vemos? A destruição sistemática da Nação
e da cidadania. As riquezas nacionais sendo entregues e os pilares da cidadania
destruídos. Assim o Pré- Sal, o congelamento de gastos públicos, a reforma do
ensino médio e das leis trabalhistas, o fim da CLT, o desmantelamento do SUS e
a destruição da Previdência. O neoliberalismo é a mais antissocial das
ideologias.
Tenho lido sobre o fim da era do humanismo, sobre o
adoecimento e a onda de suicídios. O lótus,
com inúmeras novas fórmulas, não mais satisfaz. Mais uma vez as ideias que
povoam as mentes têm sua origem no mercado, com agravantes. Elas já não se
restringem ao mercado. Habitam todas as esferas do viver e do conviver. A
competição é eleita como valor supremo e a transcendência é substituída pela
reificação. As palavras generosidade, compaixão e cuidado foram abolidas. Tudo
para alimentar o voraz capital, agora em sua fase mais perversa, a do
capitalismo financeiro. Para acumular, precisa destruir. Destruir direitos.
Deixo as palavras finais para Boaventura S. Santos:
“desigualdade passou a chamar-se mérito; miséria, austeridade; hipocrisia,
direitos humanos; guerra civil descontrolada, intervenção humanitária; guerra
civil mitigada, democracia”. Fascismo social.
Ao final, a imagem que me sobra é uma horrível e enorme
cabeça. A cabeça do monstro golpista que, ao contemplar a obra da devastação
que causou, e diante de sua autodestruição psíquica, se estraçalha em ódio
peçonhento, em meio a uivos de um sádico prazer. Ó horror, Ó horror.
Pedro Eloi Rech. Administrador de tempo livre e do
blog www.blogdopedroeloi@uol.com.br