terça-feira, 28 de julho de 2015

Chica que manda. A vida de Chica da Silva - contada por Agripa Vasconcelos.

Quando visito uma cidade sempre busco uma livraria local. Busco livros que contem da história da cidade. Em Diamantina não foi diferente. Já na primeira saída, numa das primeiras ladeiras encontramos uma bela livraria, onde junto funcionava um bar e café. Questão de sobrevivência. Diamantina, embora com menos de 50.000 habitantes é uma cidade universitária. No momento não nos interessavam os livros. Estávamos a procura de um restaurante com música ao vivo. Posteriormente voltei para os livros e comprei dois. Chica que manda, de Agripa Vasconcelos e Arraial do Tijuco - Cidade Diamantina, de Aires da Mata Machado Filho.
Um belo livro. Chica que manda, sobre Chica da Silva. A autoria é de Agripa Vasconcelos.

Chica da Silva sempre me inspirou muita curiosidade, mesmo mal sabendo que ela era uma escrava poderosa. Também me lembrava vagamente do filme em que ela foi representada por Zezé Motta. Agora estava a frente de um romance  histórico de rara beleza e marcante conteúdo.Nunca tinha ouvido falar de Agripa Vasconcelos, o seu fabuloso autor. A obra é editada pela Itatiaia, de Belo Horizonte. A edição que comprei é de 2010. Agripa é escritor mineiro de Matosinhos, nascido em 1900 e falecido em 1969. Foi médico de profissão. Como escritor misturou fantasia e realidade das Minas Gerais, em seus períodos colonial e imperial. O livro integra uma coleção de seis livros, que leva por título Sagas do país das gerais.
Arraial do Tijuco - Cidade diamantina. Mais história da bela cidade.

Os livros são apresentados na contracapa, da seguinte maneira: Fome em Canaã - Romance do ciclo do latifúndio nas Gerais; A vida em flor de Dona Bêja - Romance do ciclo de povoamento das Gerais; Sinhá Braba (D. Joaquina do Pompéu) - Romance do ciclo da agropecuária das Gerais; Congo Sôco (O barão de Catas Altas) -  Romance do ciclo do ouro nas Gerais; Chica que manda (Chica da Silva) - Romance do ciclo dos diamantes nas Gerais e Chico-Rei Romance do ciclo da escravidão nas Gerais. Está aí, pronto um projeto para um curso sobre as origens históricas das Minas Gerais. E que projeto!
Chica da Silva era uma mulata, pai branco e a mãe escrava negra. Por ironia, daria para dizer que isso era um fato raro nas Gerais. Mas, nesta condição, era uma escrava. Pertencia a um senhor que de maneira nenhuma queria se desfazer dela. A sua verdadeira história começa quando chega ao Arraial do Tijuco o novo contratador de Diamantes, João Fernandes. Foi amor à primeira vista. Tomou a moleca de seu proprietário por um dinheiro absurdo, mas mesmo assim, o antigo proprietário não queria se desfazer dela. Razões sentimentais? Falou mais alto o poder. Assim como foi amor à primeira vista também foi amor por toda a vida.
Durante a Vesperata, o casal Chica da Silva e João Fernandes circula entre o povo.

Mas quais eram os encantos da escrava que tanto satisfaziam o seu amo e amante. É difícil de contar. Mas é óbvio que a sexualidade esteve presente, mas o fato é que ia para muito além dela. Um jeito de ser, uma forte determinação, coragem nas decisões, sempre altiva, fidalguia extrema e rápida adaptação aos costumes das cortes reais europeias, ensinada por damas lisboetas. A sua prodigalidade e hospitalidade encantava a todos. A riqueza de João Fernandes se encarregava de suas vestimentas caras, de seu corpo sempre perfumado e coberto das mais finas joias. Ricos jantares, bailes com banda de música e apresentações de teatro eram a diversão de seletos convidados.

"Tendo-lhe manifestado a amante o desejo de conhecer um navio - ela que, nascida escrava no Distrito Diamantino, jamais arredara os pés das Gerais, - não hesitou o contratador de diamantes João Fernandes de Oliveira em mandar construir gigantesca represa e, nas suas águas, por a flutuar uma nau verdadeira, réplica das que haviam feito a glória de Portugal". Esta é a história símbolo do seu querer e poder. O casal tornou-se muito querido pela população e os controles portugueses, sob o comando do contratador, não eram os mais rígidos, em função da alta produtividade das minas. "Se apanhavam diamantes como jabuticabas", se lê no livro.
A casa de Chica da Silva, em Diamantina.


O romance é longo e 17 capítulos são distribuídos ao longo de 408 páginas. A narrativa é muito rica, iniciando pelo encontro dos diamantes no início do século XVIII, o pouco valor a eles atribuídos no início e a chegada febril dos caçadores de diamantes, depois de descoberto o seu valor, com a avaliação de lapidadores holandeses. É um rico passar pela história, pelos reis portugueses, D. João V, D. José I e o terrível e temido marquês de Pombal e de D. Maria I. Também é muito rica a descrição de todo o processo da extração dos diamantes e os terríveis castigos impostos aos escravos, além das adversidades dos bichos e das serpentes. As inquisições portuguesas sempre produziram sangue e, nunca provas ou verdades.
A representação da luxúria. Quadro na casa de Chica da Silva.


O temor de Portugal com a insubordinação da colônia foi terrível e também foi o motivo pelo qual o contratador foi chamado de volta a Portugal, afastando-o das Gerias e de sua paixão e cuja ausência, após 12 anos, a leva à morte. João Fernandes era rico e poderoso demais. Pombal o percebera. Esta contextualização histórica é extraordinária. Na surdina lê-se em Tijuco, a Declaração da Independência dos Estados Unidos e é  celebrada a notícia da ocorrência da Tomada da Bastilha.

O grande problema do casal eram os ciúmes doentios de ambos. As vinganças de Chica, contra suspeitas aproximações femininas na vida do contratador, recebiam vinganças absurdamente desproporcionais. As vinganças eram terríveis como deixar comer as carnes dos pés do menino Zezinho por piranhas esfomeadas, apenas por ser irmão de Gracinha e de mandar enterrar a esta, ainda viva, simulando rapto, sem nenhuma confirmação de suspeitas. Os crimes são horrorosos e repetidos. João Fernandes era um pouco mais comedido em suas atrocidades. O povo nunca acreditou que Chica tivesse cometido tais crimes. Com a morte do escravo delator Jaconias todas as provas materiais de seus crimes desaparecem, mas não em sua consciência, em seus pesadelos e delírios finais.
Esta bela ladeira nas proximidades da casa de Chica da Silva.


João Fernandes se tornou o homem mais rico da colônia, ou quem sabe de todo o império. Por isso mesmo foi posto sob terrível vigilância portuguesa e se chegou ao absurdo de mandar, não cercar a cidade com um muro para melhor controlar o contrabando de diamantes, mas fazer uma enorme vala com tal fim, que simbolicamente representa o fosso que impediu o reencontro dos eternos amantes apaixonados, ricos mas infelizes pela impossibilidade de continuarem vivendo a sua grande paixão. João Fernandes e Chica da Silva tiveram vários filhos, 17 no total, mas conforme o romance, nasceram já como flores murchas, sem nenhum brilho. Viveram juntos por mais de 15 anos, entre os anos de 1755 e 1770.

Além da rica e viva descrição da paixão do casal, a obra vale também, pela descrição de usos e costumes da época, pela apresentação da violência que foi a exploração portuguesa na colônia e pela contextualização histórica de um momento de ebulição no mundo, qual seja, a segunda metade do século XVIII.

segunda-feira, 27 de julho de 2015

Em Diamantina - A casa de JK.

Juscelino Kubitschek de Oliveira, um dos nomes mais memoráveis e queridos da história do Brasil, manifestou desejo expresso em cultivar a sua memória, deixando com um amigo o pedido para que a casa onde nasceu fosse comprada. Esse seu desejo foi realizado e, hoje em Diamantina, a visita à casa é algo imperdível. É antes de tudo uma viagem sentimental, um mergulho na infância simples e humilde do grande presidente e um desfilar em meio a suas predileções, como o gosto pela comida simples e a participação nas serestas, junto com os amigos, sempre presentes em sua vida. Deveria ser uma pessoa de muito agradável convivência.
Monumento em homenagem ao presidente.


A visita à casa segue mais ou menos o roteiro de sua vida. Fotos da infância, suas vestimentas do tempo do seminário, as suas notas escolares, o seu quarto muito simples, os amigos de copo e de bar e o seu grupo de seresteiros, mostrando a sua inclinação para as alegrias da vida. Um largo sorriso aberto é a sua marca registrada. Você encontra ainda o seu consultório médico em Belo Horizonte, mas também encontra a sua profunda tristeza, quando rememora momentos de seu exílio. Dá nó na garganta e lágrimas nos olhos, ao mesmo tempo que surge no coração um ódio saudável contra os regimes de exceção. Ou seria de amor à democracia, mesmo com todas as suas imperfeições.
A casa de JK, onde hoje se encontra o memorial em sua homenagem

A rua São Francisco é uma íngreme ladeira. Na parte baixa dela se encontra a estátua com que a cidade homenageou o presidente e muito próximo está a igreja de São Francisco de Assis. Subindo a ladeira você encontra a casa. Ela está muito bem conservada. É cobrado um ingresso para a visita. Continuando a subida, você encontra a estação ferroviária e a igreja do Sagrado Coração de Jesus e ao lado da igreja, o seminário onde ele estudou. Consta que ele não tinha vocação religiosa. O seminário foi a única forma que ele encontrou para poder estudar. Os seminários foram grandes responsáveis pela formação de muita gente. Olha eu aí.
Próximo ao monumento, a bela igreja de São Francisco. Subindo a ladeira você encontra a casa de JK.


As notas escolares do menino Juscelino não eram muito boas, aluno mediano, poderíamos dizer. Como os sistemas educacionais normalmente privilegiam a memória e não a inteligência, isso não é grave. Gostei muito de uma frase em que ele diz que, como tinha tempo sobrando, o tal do tempo livre, para além das matérias, "prossegui lendo tudo o que me caía em mãos".  A leitura, a avidez pela leitura, essa sim é que tem importância. É ela que faz penetrar no mundo das curiosidades. A saída do seminário levou Juscelino ao estudo da medicina, profissão que exerceu por um bom tempo, já em Belo Horizonte.
Neste seminário, ao lado da igreja do Sagrado Coração de Jesus, JK iniciou seus estudos.


Numa das salas está o seu quarto de dormir, que também era o seu quarto de estudos. Tudo muito simples. Pouco além do necessário, como uma cama, uma mesa e uma cadeira. Em outra sala se fala de comidas. Seu pai era comerciante de joias e levava uma vida modesta. Havia até preocupação com a alimentação, para que ela não faltasse. Você encontra até a receita de seu prato preferido, o Xico Angú com a tal da galinha com quiabo. A receita, fornecida pela mãe do frei Betto, se encontra nesta sala. A sua vida simples contrastava, porém, com a fartura, a fartura da alegria e dos muitos amigos e pelo gosto pela seresta, adquirido junto com a musicalidade da cidade. Fotos o mostram participando delas, bem como outras, em rodas de cerveja nos bares da cidade.  Na pacata cidade, não se deslumbrava ainda o seu futuro de grande presidente.
O quarto simples do menino, que viria a ser o grande presidente.


Continuando a visita, você é levado a Belo Horizonte, ao seu consultório da clínica médica, já que exercia a profissão. O casamento o levou a altas rodas sociais e aí inicia a sua carreira política. Mas não enveredaremos por aí. Isso pode ser encontrado no seu acervo no Memorial JK em Brasília, ou na memorável biografia - JK O artista do impossível, de autoria de Cláudio Bojunga. Uma biografia em que seus feitos e realizações, são contados em 1.062 páginas muito bem escritas.

A cena que muito me emocionou está num quadro, em que ele, no exílio, passa um final de ano com amigos brasileiros, a convite destes. Se sente feliz por estar entre brasileiros e se sente infeliz por não estar pisando em solo brasileiro, donde fora banido pelo arbítrio. Logo ele, que por sua obra, tanto fez por essa Nação. Qual fora o seu erro? Ser querido e popular. Por isso teria que ser apagado da memória para não servir de referência para insubordinações e insubmissões, das quais a sua terra era pródiga em exemplos. Era um líder e isso era insuportável aos militares golpistas da democracia.
Receita do prato preferido de JK. Xico Angu.


Em conversas com o povo, soube que o ódio contra JK se estendeu para a sua cidade natal. O apagar da memória do presidente deveria ser completado com o apagar da memória da histórica cidade. Como se faria isso? Relegando-a ao abandono, ao desamparo da Nação/Pátria. Triste memória. Por outro lado também fiquei muito satisfeito em saber que um antigo curso federal de odontologia foi transformado na Universidade Federal dos Vales do Jequetinhonha e do Mucuri, ao longo do governo Lula. O braço paterno da Nação/Pátria novamente se estendia para o amparo desta querida cidade e de seu querido povo. Uma universidade federal, inclusive com curso de medicina, numa cidade de menos de 50.000 habitantes. Quando programar uma visita a Diamantina, reserve no mínimo umas três horas para uma bela e mística visita à casa de JK.
JK, o artista do impossível - A bela biografia de JK.


E se quiser mais, recomendo a biografia do Cláudio Bojunga, JK - O artista do Impossível. Nesta biografia existe uma bela frase em epígrafe - "Não existem precursores, só existem retardatários". Mas JK foi sempre um precursor! E para dar um gostinho, vamos ao início da leitura, com a evocação de Guimarães Rosa: "Minas é uma montanha, montanhas, o espaço erguido, a constante emergência, a verticalidade esconsa, o esforço estático; a suspensa região - que se escala". E continua: "vales escorregados e andantes belos rios, nas linhas das cumeeiras, na aeroplanície e nos cimos profundamente altos, azuis que já estão nos sonhos - a teoria dessa paisagem". E arremata, Minas é "Brasil em ponto de dentro, Brasil conteúdo, a raiz do assunto". Este é o cenário das andanças do grande presidente, o artista do impossível.

sexta-feira, 24 de julho de 2015

Sobre o significado da palavra Amém. Reflexões a partir de Diamantina.

É impossível passear pelas ladeiras de Diamantina e cruzar por pessoas sem receber um bom dia ou um boa tarde, em cumprimento. Com um pouco mais de atenção, então, já se puxa uma conversa, que bem pode ser longa. Foi o que nos aconteceu, quando iniciamos as primeiras caminhadas pelas ladeiras da histórica cidade. Cruzamos com o sr. Gil, que mora em Belo Horizonte, mas também possui casa em Diamantina. A nossa conversa  durou por todos os dias em que permanecemos na cidade.  Ele foi o nosso guia informal e, por informal, também nos passou o seu nome. "Sou mais conhecido como Amém", nos disse ele. Uma herança de infância, dos tempos de coroinha. Nunca tinha encontrado ninguém que, ou por nome, ou por apelido era chamado de Amém. Meio que, pelo meu gosto pela insubordinação, até não gosto ou não gostava muito da palavra.
Gil Botelho e a sua gaita de boca. Gil é o nosso amigo Amém.

Foi preciso ir até Diamantina e encontrar o Amém. Amém nos mostrou a cidade e organizou uma cantoria no Recanto do Antônio, bar e restaurante, tocando o seu instrumento, a gaita de boca. A musicalidade é uma das marcas registradas da cidade. Lembrem de JK e o seu gosto pelas serestas. O fato de encontrar alguém que atende por Amém me remeteu a uma das últimas leituras minhas. Francisco de Assis e Francisco de Roma - Uma nova primavera na Igreja, de Leonardo Boff.
Neste livro o teólogo Leonardo Boff fala do significado da palavra Amém.

Lá pela página 94 desse livro o teólogo fala da fé. Da fé em seu sentido mais comezinho, "para aquém das doutrinas, dogmas e religiões, pois aí aparece em sua densidade humana". Apresenta-a como uma ordem básica que perpassa a realidade e que impede a primazia do absurdo. "Crer é dizer: 'sim e amém' à realidade. O filósofo L. Witgenstein podia dizer em seu Tractatus logico-philosophicus: 'Crer é afirmar que a vida tem sentido'. Este é o significado bíblico para fé - he-emin ou amém - que quer dizer: estar seguro e confiante. Daí vem o 'amém' que significa: 'É isso mesmo'. Ter fé é estar seguro do sentido da vida".

Boff fala que este significado é antes antropológico do que religioso e que vale muito a pena sacrificar-se para realizar um sentido que valha a pena. Dizer que este sentido, que a fé é Deus, é o discurso das religiões e que segundo o papa Francisco, esta fé é uma lâmpada para guiar os passos no caminho da vida. Esta é a fé de muitos ateus e agnósticos que mesmo sem a fé religiosa, se empenham em afirmar um sentido para a vida, na construção de uma sociedade justa e solidária. O teólogo continua as suas reflexões:
No recanto do Antônio, Valdemar, o meu companheiro de viagem, o Amém, o tecladista que não me lembro o nome, o Antônio, o dono do recanto, Nilson, o músico e cantor e eu com a gloriosa camisa tricolor.


"Esta fé básica impõe limites à pós-modernidade vulgar que se desinteressa por uma humanidade melhor e que não tem compromisso com a solidariedade pelo destino trágico dos sofredores" mas a parte mais bonita, desta fé a impor limites, para que um destino seja atingido, vem a seguir, quando afirma: "Pelo fato de o rio possuir margens e limites é que ele chega ao mar. Mas estes limites podem também represar as águas que deveriam fluir. Então os rios se esparramam pelos lados e se transforma em charcos". Estas frases me deixaram pensativo e me convenceram de que sou portador de fé. E como portador de fé, vou dizer amém, sim senhor.
O Recanto do Antônio, bar e restaurante. O nosso santuário de encontros em Diamantina.


Muitas vezes em minhas militâncias usei a frase de Bertolt Brecht, que usa o rio e as suas margens para explicar a violência na sociedade. Ela diz mais ou menos assim: O que é violento? A água revolta e agitada de um rio ou as calmas e tranquilas margens que as comprime? Deve ser esta a invocação ou precaução que tenho com a palavra Amém. As margens podem oprimir sim, mas também, como vimos com o sábio teólogo, elas podem indicar direção e rumo. As vezes, em atos de rebeldia, podemos e devemos tomar  e domar estas margens para formar belos lagos, mas jamais permitir que a total ausência de sentido e significado, transforme estas águas em águas paradas ou em charcos putrefatos, onde só vicejam vidas pútridas e repelentes.
O rio, antes de alcançar o seu destino, pode nos brindar com belas paisagens.


Mas como Santo Agostinho, quando pedia a Deus a virtude da castidade, mas ao mesmo tempo pedia a Deus que Ele não tivesse pressa, também eu em minha fé, faço o meu pedido, para que estas margens não sejam muito severas e nem muito retilíneas. Gosto das volteadas pelo caminho e no tempo, sem tanta pressa de chegar ao destino, Mas chegar, sim. E para que, na caminhada, encontre bons companheiros pelo caminho como aconteceu agora em que encontramos tantos e tão bons e que, inclusive, atendem o estranho nome de "Amém". Amém, ou Assim Seja.

quinta-feira, 23 de julho de 2015

Viagem a Minas Gerais. Diamantina. As Programações Culturais.

A natureza em Diamantina já foi generosa. "É só apanhar no chão os diamantes, como quem apanha jabuticabas...". É o que está escrito no belo livro Chica que manda, que conta a vida de Chica da Silva, escrito por Agripa Vasconcelos. Além dos diamantes, também havia a extração de ouro. Em compensação, as terras são pouco dadas, até para a pecuária. A minha primeira impressão foi a de que não dá nem para a criação de cabras. Então necessariamente as atividades econômicas tem que ser outras. Em outro post já relacionei as riquezas históricas, que movimentam a atividade turística. Hoje quero me dedicar às atividades culturais.
Em meio a este cenário, a riqueza do ouro e dos diamantes. Cachoeira dos Cristais.

Junto com os casarões e ladeiras, que formam as atrações históricas, com muita sabedoria, a cidade organizou uma série de atividades culturais, que resultam em intensa atividade turística. Festas tradicionais da herança portuguesa lotam os hotéis e as pousadas da cidade. As festas mais expressivas são as da Semana Santa, com a reprodução das cenas da Paixão, a festa do Divino Espírito Santo, uma das festas mais bonitas em seu caráter simbólico e as festas juninas. A cidade tem em Santo Antônio o seu padroeiro. Em toda a cidade você vê bandeiras e estandartes alusivos a estas festividades. Nestas ocasiões as janelas dos casarões são ricamente ornamentadas.
Para as festas, as janelas dos casarões da cidade são enfeitadas. No caso, para a Vesperata.

Outra festa bem concorrida é a do carnaval, quando um pessoal mais jovem toma conta das ladeiras da cidade. "Aí é só cachaça e bagunça ", me contava o dono de uma das pousadas. Por falar em carnaval, me lembro do conselho que eu sempre dava para os meus alunos. "Cuidado com as tentações. Elas podem não voltar". Mas devo concordar, não deve ser fácil ser dono de pousada em tempos de carnaval.

Sempre que vou a uma cidade histórica gosto de me fazer acompanhar por guias. Embora, muitas vezes sejam muito detalhistas, eles tem explicitações que contextualizam os fatos, situando-os no tempo e no espaço. Em Diamantina isso não foi necessário. Tivemos um encontro casual com o Gil Botelho, o popular Amém e ele nos acompanhou pela cidade. Assim fomos ao Beco do Mota, a igreja do Carmo, para a casa da Chica da Silva, para A Baiúca, para a joalheria Pádua, para o Mercado dos Tropeiros, parando para almoçar  no Apocalipse.
Na pousada Relíquias do Tempo você encontra o Museu das Manifestações Folclóricas Religiosas.

Vou contar uma história do Beco do Mota, história sempre repetida na cidade. Beco é o nome dado para os locais mal frequentados. Este lugar, em Diamantina, fica distante da catedral de Santo Antônio, a uns cem metros de distância, apenas. É óbvio que hoje se transformou em área comercial nobre. Mas que, na época, devia ser um escândalo, ah! isso devia. Mas vamos a história. Conta-se que havia na cidade um médico muito humanitário, o Dr. Lomelino Ramos Couto. Um dia, tendo sido procurado insistentemente por toda a cidade e só ser encontrado depois de várias horas de busca, veio a explicação, absolutamente convincente: "Eu estava atendendo a uma puta que pariu". No solar dos Couto, o do médico humanitário da história, funciona hoje a pousada Relíquias do Tempo, onde funciona um museu dedicado à mineração e outro, às Manifestações Folclóricas Religiosas. Esta pousada está aberta a todos, não sendo necessário ser hóspede. Sem dúvida que é uma atração cultural à parte. Se eu voltar à cidade, ali providenciarei reserva, com boa antecedência.
O Beco do Mota, local que já foi famoso e onde o médico atendeu a tal da "puta que pariu".

Mas, quero dar destaque a três apresentações culturais específicas.  O concerto de órgão na igreja de Nossa Senhora do Carmo, que ocorre às sextas feiras que antecedem aos sábados em que ocorre a Vesperata. A particularidade deste concerto é que ele acontece num órgão inteiramente construído na própria igreja entre os anos de 1782 e 1787 e está totalmente restaurado. É um espetáculo extremamente erudito. Vejamos o que está escrito no folheto do concerto que assistimos: "Hoje o órgão Almeida e Silva (o construtor) e Lobo de Mesquita (o primeiro organista) voltou a dignificar o culto à Virgem do Monte Carmelo e faz reviver a voz do padre organeiro que, de maneira autóctone não mediu esforços para superar suas próprias limitações e é hoje a única prova viva da materialização do espírito do compositor em sua forma mais sublime: a música".
Esta pousada oferece uma hospedagem junto ao passado histórico da cidade. Mesmo não se hospedando, os seus museus merecem uma visita.

Logo após o término do concerto começa outra das atrações culturais, já na saída da igreja do Carmo. A serenata. Ela é formada por um dos grupos de seresteiros da cidade, que saem caminhando com as cantorias pelas ruas da cidade, rumo a rua da Quitanda, sendo acompanhados pelo povo. No dia, duas músicas ficaram gravadas na minha memória. Oh Minas Gerais e Saudades de JK. Soube depois que esta é de autoria de Moacir Franco. É um espetáculo bem semelhante ao que ocorre em Conservatória, no Rio de Janeiro. Um espetáculo memorável. Mas já que estamos falando da rua da Quitanda, é ali que ocorre o maior de todos os eventos. A Vesperata.
A Baiúca fica numa esquina da Rua da Quitanda, onde ocorre o maior evento cultural da cidade. A Vesperata.

Nos dias em que ocorre a Vesperata, sempre aos sábados, entre os meses de abril e outubro, duas vezes por mês, as janelas dos casarões se engalanam com ricas ornamentações, para receberem duas bandas musicais da cidade, a banda da polícia militar e a banda dos meninos e meninas dos projetos sociais. Lembra as antigas retretas das praças nas cidades do interior, nos anos 1970. Os músicos, trajados a rigor, se apresentam das janelas dos casarões, dirigidos por um maestro, que os comanda a partir de um pequeno palco erguido na rua. O repertório é muito variado. A Cavalaria Ligeira, de Franz von Suppé fez o maior sucesso. Roberto Carlos e Wando também fizeram parte do repertório. Evidentemente que Oh! Minas Gerais e Peixe Vivo também não poderiam faltar. Evocações a Minas e a JK. As datas da Vesperata são amplamente divulgadas.
Na Vesperata também esteve presente o casal mais famoso da cidade, João Fernandes e Chica da Silva.

Mais uma palavra sobre a Vesperata. Para assisti-la, ou você se acomoda nas laterais da rua, ou então compra mesa, com direito a quatro cadeiras, que infalivelmente são todas elas vendidas. As janelas das quais os músicos tocam os seus instrumentos ocupam três ruas. Existe alguma semelhança, em função da apresentação nas janelas, com o espetáculo natalino do HSBC, em Curitiba. Mas também é só. No dia da apresentação, do dia 11 de julho, que foi a que assistimos, também apareceu em uma das janelas o casal João Fernandes e Chica da Silva. Depois, muito simpáticos, desceram do casario e percorreram a rua, entre as mesas, para fotografias. A Chica estava lindíssima com a sua peruca de cabelos brancos, que fizeram a sua fama. Mas a observação mais importante. É um espetáculo que custa muito pouco aos organizadores, mas que lota a cidade em todas as suas apresentações. Uma questão de inteligência. Em função das chuvas, as apresentações são suspensas entre os meses de novembro a março.
Com os amigos paulistas no Recanto, ou no santuário do Antônio.

Antes de terminar, quero ainda apresentar um outro local cultural. O mais encantador de todos. O Recanto do Antônio, restaurante e bar. Deu empatia. Antônio, o dono, Nilson, o músico cantor, Amém o nosso guia, também músico e instrumentista da gaita de boca, os casais paulistas com quem juntamos mesa e o Valdemar, companheiro de viagem, passamos ali muitos momentos agradáveis. Lágrimas corriam os rostos, mas lágrimas de alegria e de recordação de boas emoções. Feliz o dia em que o mundo verter apenas lágrimas de alegria. O recanto do Antônio é imperdível. Já o chamei de santuário.

Em suma, já o disse em uma outra ocasião, alguns reais a menos no bolso e muito conhecimento, recordações, afeto e gratidão no peito, na memória e no coração. E se planejar uma viagem de férias, ponha Diamantina no seu roteiro. E, conforme Darcy Ribeiro, que é da região, da cidade de Montes Claros, nos diz, que não existem nos Estados Unidos cidades nem sequer parecidas com as cidades históricas brasileiras, como Ouro Preto e Salvador e que, seguramente, poderíamos entre elas incluir Diamantina. 


terça-feira, 21 de julho de 2015

Viagem a Minas Gerais. Diamantina. As grandes atrações.

Creio que dá para classificar em três as grandes atrações existentes na histórica cidade de Diamantina, nas Minas Gerais. As riquezas históricas, as culturais e as naturais. Poderíamos ainda citar os seus grandes personagens históricos, como o presidente JK e a mítica e lendária Chica da Silva, a Chica que pode, incrivelmente poderosa, amante de João Fernandes, o contratador de diamantes e o homem mais rico da colônia.
A casa de Chica da Silva. Chica foi amante do homem mais rico da colônia.

 As riquezas históricas que datam do século XVIII (1713 é o ano de fundação de Arraial do Tijuco, que deu origem a Diamantina, emancipada da cidade de Serro, em 1831) se constituem de igrejas, dos casarios coloniais, do mercado dos tropeiros e das íngremes ladeiras, com seu típico calçamento. A extração do ouro e o encontro de diamantes motivou a ocupação do lugar. O auge de seu esplendor se deu após os meados do século, no tempo de João Fernandes e de Chica da Silva. Entre as belezas naturais está a formação montanhosa (Serra do Espinhaço), uma vegetação de cerrado e belas cachoeiras e grutas, como a dos Cristais, da Sentinela, do Conselheiro Mata e a gruta do Salitre. Entre as atrações culturais está a rica herança portuguesa da Semana da Paixão, da festa do Divino Espírito Santo, da festa junina (Santo Antônio é o padroeiro), o carnaval, a serenata, a Vesperata e o sarau Arte Miúda. Os personagens históricos oferecem as casas de Chica da Silva e de JK.
A igreja de N. Sa. do Carmo e o seu famoso órgão. A torre com o sino fica nos fundos da igreja, a pedido de Chica da Silva. Ela não queria ser perturbada pelo toque dos sinos. Sua casa está próxima.

Entre as riquezas naturais, também já trabalhadas pela mão humana, está a vila do Biribiri, com a antiga fábrica de têxteis e a cachoeira dos Cristais. As cachoeiras do Sentinela e do Conselheiro Mata, a gruta do Salitre e o Caminho dos Escravos, completam estas riquezas. Não exploramos muito esta parte, nos limitando a uma visita a Biribiri. Nas cachoeiras se formam belos lagos, muito próprios para banhos. Nos ocupamos mais da parte histórica e cultural, a parte urbana.
A cachoeira dos Cristais, próximo a vila de Biribiri.

Entre as riquezas históricas, a igreja do Carmo certamente merece o maior destaque. A primeira capela data de 1731, mas no local foi construída a igreja atual, em 1771. Muito ouro, belas imagens e um órgão muito particular, que foi construído entre os anos de 1782 e 1787, sendo o mais antigo construído no Brasil. O órgão foi inteiramente restaurado e nas vésperas da Vesperata são oferecidos concertos altamente eruditos. Tivemos a oportunidade de assistir uma apresentação do organista Evandro Archanjo, sendo que Bach e Haydin constavam do repertório, tocados nos 549 tubos ou flautas do famoso órgão. A igreja também ganhou fama por causa de Chica da Silva, que tinha a sua casa nas imediações. Por sua exigência a torre campanário situava-se nos fundas da igreja e não na sua entrada, ou laterais. Ela não queria ser incomodada. A igreja é mantida pela  Ordem Terceira  de N. Sa. do Carmo.
A bela igreja de São Francisco de Assis.

As outras igrejas famosas são a de São Francisco, a do Rosário dos Pretos e a do Sagrado Coração, ao lado do seminário, que se tornou conhecido, por nele ter estudado o ilustre aluno que viria a ser o presidente JK. Fica no alto, muito próximo da estação ferroviária, onde hoje se localiza também a estação rodoviária. Entre as construções históricas ganha destaque também o Mercado dos Tropeiros, construído em 1889 e cujas formas, a pedido de JK, Niemeyer levou para Brasília, ao Palácio da Alvorada.
Vista do mercado dos tropeiros, uma construção de 1889.


Os dois personagens históricos mais famosos tem casas abertas à visitação. A de Chica da Silva foi totalmente restaurada e é bem cuidada, mas desprovida de peças de museu. Tem muitos poemas laudatórios nas paredes e um tributo às virtudes da fé da esperança e da caridade e uma representação dos sete pecados capitais. Da casa se tem uma bela vista panorâmica. Vale muito a visita. Para a casa de JK, reserve um bom tempo, pois, a visita é um mergulho na infância e adolescência do menino. Também tem um culto nostálgico de sua memória.
A casa do presidente JK. Muito de sua infância e adolescência.


Embora o acervo de JK esteja quase todo em Brasília, na casa encontramos fotos de seu tempo de escola, dos companheiros de seresta, de suas roupas do tempo de seminário, a mobília simples de seu quarto e cenas de seu cotidiano na cidade. Tem até a receita do prato preferido de JK, escrita pela mãe do Frei Betto. Confesso que verti uma lágrima, diante de um agradecimento de JK, quando foi convidado por amigos brasileiros para passar um final de ano, nos difíceis tempos do exílio. A marca registrada de seu amplo sorriso sempre o acompanha em todas as fotos. Na rua onde se encontra a casa também encontramos uma enorme estátua sua, uma homenagem que a cidade lhe presta. Diamantina conferiu a JK uma de sua belas marcas, que é a musicalidade, pelo gosto da vida de seresteiro.
 Xico Angu, o prato preferido do presidente JK.

Se me for permitido, tenho uma dica para dar. Por recomendação do Amém, fomos visitar a pousada Relíquias do Tempo. Você se hospeda dentro da própria história da cidade. A pousada ocupa um dos tradicionais casarões e abriga o museu Daniel Luiz do Nascimento e tem belíssimas representações das festas populares da cidade. A pousada é aberta a visitação, mesmo não estando hospedado, como foi o nosso caso. A pousada tem duas alas, uma histórica e outra moderna, atendendo as necessidades de expansão. Também por indicação do Amém, visitamos o Memorial Museu do Pão de Santo Antônio, um museu tipográfico, único no gênero. Junto ao museu funciona um asilo de idosos, que luta pela sua auto sustentação, num trabalho exemplar. Encontramos ali, Dona Salu, uma senhora de 106 anos de idade.
 Junto ao Memorial Museu do Pão de Santo Antônio um asilo. Dona Salu e seus 106 anos.

Em Diamantina deixamos atrações sem serem visitadas. Não deu tempo para tudo e também não estou escrevendo sobre todas elas. O fato de não ter visto tudo nos deixou com uma certa obrigação de voltar, fato que já estou seriamente considerando, pois, além das maravilhas da cidade tem os encantos de seu povo e, particularmente os nossos amigos Antônio, o músico Nilson e o Amém.
Não poderia deixar de mostrar a representação do meu pecado preferido entre os sete pecados capitais. A luxúria. Quadro na casa de Chica da Silva.

Em outro post destacaremos as programações culturais da cidade, com destaque para a principal delas, ou seja, a vesperata.




segunda-feira, 20 de julho de 2015

Viagem a Minas Gerais. Diamantina. Expectativas.

Há muito eu planejava uma viagem para conhecer a cidade histórica de Diamantina, nas Minas Gerais. Amigos que a tinham visitado, a enorme simpatia que alimento em torno da figura do presidente JK, a curiosidade em torno da mítica figura de Chica da Silva e, ultimamente, a curiosidade em torno da vesperata, me motivaram para empreender a viagem. Tomada a decisão, viajaria a Belo Horizonte de avião, e continuaria a viagem de ônibus. Encontrando o meu amigo Valdemar numa festa, falei-lhe do meu plano e ele, de imediato, me falou que iria junto. A única alteração no planejamento foi a de que alugamos um carro no aeroporto de Confins.
A catedral de Diamantina, dedicada a Santo Antônio. Ao seu redor estão as riquezas históricas da cidade, Patrimônio Cultural da Humanidade.

Meio desligadão, comprei a passagem aérea, sem antes verificar a questão da hospedagem. Evidentemente fiz coincidir a viagem com a apresentação da vesperata. Não havia vagas nos hoteis e pousadas da cidade. Além da vesperata, era julho, mês de alta temporada. Mesmo assim fomos. Do aeroporto fomos diretamente para Diamantina, num percurso de pouco menos de 300 quilômetros. Nos dirigimos ao hotel Tijuco, um hotel projetado por Niemeyer. Não havia vagas, mas a atendente nos disse que não haveria problemas, pois, uma pousada estava inaugurando por esses dias, a pousada João e Maria, onde facilmente nos acomodamos.
João e Maria, a simpática pousada em que ficamos hospedados. Recém inaugurada.

Depois de acomodados, e diga-se, otimamente acomodados e em excelente localização, fizemos as primeiras incursões pela cidade. E vai aí a primeira dica importante sobre a locomoção na cidade. Toda ela deve ser feita a pé. Esqueça o carro, a não ser para os passeios pela área rural. As atrações da cidade estão, todas elas, muito próximas da catedral metropolitana de Santo Antônio, que tem a sua origem na construção da primeira capela, em 1713, em homenagem ao santo. Ao seu redor está a prefeitura e os bancos, o prédio histórico do mercado, cercado por íngremes ladeiras. Muito próximo daí está também A Baiuca, uma espécie de Boca Maldita, ou o bar Vesúvio da cidade. Então você já está na rua da Quitanda, onde acontece a famosa vesperata e o destino da serenata, que ocorre na noite de sexta feira.
 Uma espécie de Boca Maldita de Diamantina. Bom lugar para um começo de conversa.

Já meio de posse da cidade, tomamos a primeira cerveja em Diamantina, afinal de contas, os trabalhadores das cervejarias não podem ficar desempregados. Sempre bebo por motivos humanitários. O local onde a tomamos, no Bar do Antônio, nos foi indicado numa livraria bar e café, ao perguntar onde haveria música ao vivo à noite. O Recanto do Antônio, restaurante e bar é uma história a parte. Ali jantamos e, já na primeira noite, juntamos mesas. Só saímos dali, às três e meia da madrugada com o tempo passado em agradáveis conversas e cantorias. Antônio, o proprietário do bar e Nilson, o cantor foram extremamente hospitaleiros conosco. Nilson foi cantor profissional nos Estados Unidos e Nat King Cole e Ray Charles não saíam de seu repertório, além de muita música popular brasileira, inclusive, Lupicínio Rodrigues. Diamantina é uma cidade voltada para a música.
O Recanto do Antônio, restaurante e bar. Ótima comida e música e muita hospitalidade.

Diamantina é uma cidade histórica ligada a extração do ouro e de diamantes. Foi fundada como Arraial do Tijuco, em 1713 e elevada à condição de cidade em 1831, emancipando-se do município de Serro. É nessa região que nasce o rio Jequetinhonha, que deságua no Atlântico. Outros rios da região buscam o rio São Francisco. A cidade está localizada na serra dos Cristais, que integra a chamada serra do Espinhaço. A altitude da cidade é de 1.280 metros e faz frio, um frio de altitude. Tem que levar blusa, não é só short e camiseta. A sua população gira em torno de 48.000 habitantes. Os solos são absolutamente rochosos, pouco dados para a pecuária e muito menos para a agricultura.
O histórico mercado da cidade. Ele serviu de inspiração para Niemeyer para o Palácio da Alvorada. Observe a paisagem de fundo.

Curioso em torno das atividades econômicas, li que a riqueza se constitui da agropecuária, da indústria, da extração mineral e do turismo. Confesso que vi muito pouco de agropecuária. Os solos são de rocha mesmo. Onde há vegetação, ela é típica de cerrado. No domingo de manhã fui a feira local de frutas e verduras, no histórico mercado da cidade. A cidade é universitária. Um antigo curso federal de Odontologia foi transformado na Universidade Federal dos Vales do Jequetinhonha e do Mucuri, criada no governo Lula. Como reminiscência dos tempos do ouro e dos diamantes a cidade abriga uma histórica joalheria, a mais antiga do Brasil, a joalheria Pádua, fundada em 1888 e atravessando já o seu terceiro século. Evidentemente que o turismo é seu trunfo econômico mais forte. Vamos apresentar as suas atrações em um outro post.
Uma universidade federal para alavancar e dar sustentabilidade à região.

Na sexta feira, antes que fôssemos a procura dos principais pontos históricos e turísticos cruzamos com o Gil Botelho, o popular Amém. Poucas palavras trocadas e o Amém já era o nosso guia turístico informal. Além de nos levar para a casa da Chica da Silva, da igreja do Carmo, do beco do Mota, da Baiuca e da Joalheria Pádua, nos deu ainda ainda inúmeras outras valiosas indicações. Amém também é músico. O seu instrumento é a gaita de boca. Ele também organizou o nosso almoço de sábado, de novo no bar do Antônio, numa programação especial para nos agradar. O almoço durou a tarde inteira. Vou falar mais do Amém, também em outro post. Na sexta de noite começam as atrações da cidade. Um concerto de órgão, no mais antigo órgão fabricado no Brasil, na igreja do Carmo e ao seu final, a partida da serenata, que sai da igreja em direção a rua da Quitanda foram as atrações. Oh Minas Gerais e Saudades de JK se destacaram no repertório. Bem, no próximo post vamos falar das atrações artísticas e da programação festiva da cidade.

sexta-feira, 17 de julho de 2015

A Sociedade Brasileira em Transição. Paulo Freire. Do livro, Educação como Prática da Liberdade.




Extraído do livro: FREIRE, Paulo. Educação como prática da liberdade. São Paulo: Paz e Terra. 2000.
O magnífico livro de Paulo Freire, donde foi extraído o texto.

 Como cito este texto com frequência o deixo postado no blog. É de longe um dos meus preferidos.

                   "O conceito de relações, da esfera puramente humana, guarda em si, como veremos, conotações de pluralidade, de transcendência, de criticidade, de consequência e de temporalidade. As relações que o homem trava no mundo com o mundo (pessoais, impessoais, corpóreas e incorpóreas) apresentam uma ordem tal de características que as distinguem totalmente dos puros contatos, típicos da outra esfera animal. Entendemos que, para o homem, o mundo é uma realidade objetiva, independente dele, possível de ser conhecida. É fundamental, contudo, partirmos de que o homem, ser de relações e não só de contatos, não apenas está no mundo, mas com o mundo. Estar com o mundo resulta de sua abertura à realidade, que o faz ser o ente de relações que é.

            Há uma pluralidade de relações do homem com o mundo, na medida em que responde à ampla variedade dos seus desafios. Em que não se esgota num tipo padronizado de resposta. A sua pluralidade não é só em face dos diferentes desafios que partem do seu contexto, mas em face de um mesmo desafio. No jogo constante, de suas respostas, altera-se no próprio ato de responder. Testa-se. Age. Faz tudo isso com a certeza de quem usa uma ferramenta, com a consciência de quem está diante de algo que o desafia.  Nas relações que o homem estabelece com o mundo há, por isso mesmo, uma pluralidade na própria singularidade. E há também uma nota presente de criticidade. A captação que faz dos dados objetivos de sua realidade, como dos laços que prendem um dado a outro, ou um fato a outro, é naturalmente crítica, por isso reflexiva e não reflexa, como seria na esfera dos contatos. Ademais, é o homem, e somente ele, capaz de transcender. A sua transcendência, acrescente-se, não é um dado apenas de sua qualidade “espiritual” no sentido em que a estuda Erick Kahler. Não é o resultado exclusivo da transitividade de sua consciência, que o permite auto-objetivar-se e, a partir daí, reconhecer órbitas existenciais diferentes, distinguir um “eu” de um “não eu”. A sua transcendência está também, para nós, na raiz de sua finitude. Na consciência que tem desta finitude. Do ser inacabado que é e cuja plenitude se acha na ligação com o seu Criador. Ligação que, pela própria essência, jamais será de dominação ou de domesticação, mas sempre de liberação. Daí que a religião – religare – que encarna este sentido transcendental das relações do homem, jamais deva ser um instrumento de sua alienação. Exatamente porque, ser finito e indigente, tem o homem na transcendência, pelo amor, o seu retorno à sua Fonte. Que o liberta. No ato de discernir, porque existe e não só vive, se acha a raiz, por outro lado, da descoberta de sua temporalidade, que ele começa a fazer precisamente quando, varando o tempo, de certa forma então unidimensional, atinge o ontem, reconhece o hoje e descobre o amanhã. Na história de sua cultura terá sido o do tempo – o da dimensionalidade do tempo – um dos seus primeiros discernimentos. O “excesso” de tempo sob o qual vivia o homem das culturas iletradas prejudicava sua própria temporalidade, à de sua historicidade. Não há historicidade do gato pela incapacidade de emergir do tempo, de discernir e transcender, que o faz afogado num tempo totalmente unidimensional – um hoje constante, de que não tem consciência. O homem existe –existere- no tempo. Está dentro. Está fora. Herda. Incorpora. Modifica. Porque não está preso a um tempo reduzido a um hoje permanente que o esmaga, emerge dele. Banha-se nele. Temporaliza-se.

            Na medida, porém em que faz esta emersão do tempo, libertando-se de sua unidimensionalidade, discernindo-a, suas relações com o mundo se impregnam de um sentido conseqüente. Na verdade, já é quase um lugar-comum afirmar-se que a posição normal do homem no mundo, visto como não está apenas nele mas com ele, não se esgota em mera passividade. Não se reduzindo tão-somente a uma das dimensões de que participa – a natural e a cultural – da primeira, pelo seu aspecto biológico, da segunda pelo seu poder criador, o homem pode ser eminentemente interferidor. Sua ingerência, senão quando destorcida e acidentalmente, não lhe permite ser um simples espectador, a quem não fosse lícito interferir sobre a realidade para modificá-la. Herdando a experiência adquirida, criando e recriando, integrando-se as condições de seu contexto, respondendo a seus desafios, objetivando-se a si próprio, discernindo, transcendendo, lança-se o homem num domínio que lhe é exclusivo – o da história e da cultura.

            A integração ao seu contexto, resultante de estar não apenas nele, mas com ele, e não a simples adaptação, acomodação ou ajustamento, comportamento próprio da esfera dos contatos, ou sintoma de sua desumanização, implica em que, tanto a visão de si mesmo, como a do mundo, não podem absolutizar-se, fazendo-o sentir-se um ser desgarrado e suspenso ou levando-o a julgar o seu mundo algo sobre que apenas se acha. A sua integração o enraíza. Faz dele, na feliz expressão de Marcel, um ser “situado e datado”. Daí que a massificação implique no desenraizamento do homem. Na sua destemporalização. Na sua acomodação. No seu ajustamento.

            Não houvesse essa integração, que é uma nota de suas relações, e que se aperfeiçoa na medida em que a consciência se torna crítica, fosse ele apenas um ser de acomodação ou de ajustamento, e a História e a Cultura, domínios exclusivamente seus, não teriam sentido. Faltar-lhes-ia a marca da liberdade. Por isso toda vez que se suprime a liberdade, fica ele um ser meramente ajustado ou acomodado. E é por isso que, minimizado e cerceado, acomodado a ajustamentos que lhe sejam impostos, sem o direito de discuti-los, o homem sacrifica imediatamente a sua capacidade criadora. Esparta não se compara a Atenas, e Toynbee adverte-nos da inexistência do diálogo naquela e da disponibilidade permanente da segunda à discussão e ao debate das ideias. A primeira, “fechada”. A segunda “aberta”. A primeira rígida. A segunda plástica, inclinada ao novo.

            Os contatos, por outro lado, modo da esfera de ser da esfera animal, implicam, ao contrário das relações, em respostas singulares, reflexas e não reflexivas e culturalmente inconseqüentes. Delas resulta a acomodação, não a integração. Portanto, enquanto o animal é essencialmente um ser de acomodação e do ajustamento, o homem o é da integração. A sua grande luta vem sendo, através dos tempos, a de superar os fatores que o fazem acomodado e ajustado. É a luta por sua humanização, ameaçada constantemente pela opressão que o esmaga, quase sempre até sendo feita – e isso é o mais doloroso – em nome de sua própria libertação.

            A partir das relações do homem com a realidade, resultantes de estar com ela e de estar nela, pelos atos de criação, recriação e decisão, vai ele dinamizando o seu mundo. Vai dominando a realidade. Vai humanizando-a. Vai acrescentando a ela algo de que ele mesmo é o fazedor. Vai temporalizando os espaços geográficos. Faz cultura. E é ainda o jogo destas relações do homem com o mundo e do homem com os homens, desafiado e respondendo ao desafio, alterando, criando, que não permite a imobilidade, a não ser em termos de relativa preponderância, nem das sociedades nem das culturas. E, na medida em que cria, recria e decide, vão se conformando as épocas históricas. É também criando, recriando e decidindo que o homem deve participar destas épocas.

            E o fará melhor, toda vez que, integrando-se ao espírito delas, se aproprie de seus temas fundamentais, reconheça suas tarefas concretas. Uma das grandes, senão a maior, tragédia do homem moderno, está em que é hoje dominado pela força dos mitos e comandado pela publicidade organizada, ideológica ou não, e por isso vem renunciando cada vez, sem o saber, à sua capacidade de decidir. Vem sendo expulso da órbita das decisões. As tarefas de seu tempo não são captadas pelo homem simples, mas a ele apresentadas por uma “elite” que as interpreta e lhas entrega em forma de receita, de prescrição a ser seguida. E, quando julga que se salva seguindo as prescrições, afoga-se no anonimato nivelador da massificação, sem esperança e sem fé, domesticado e acomodado: já não é sujeito. Rebaixa-se ao puro objeto. Coisifica-se. – “Libertou-se diz Fromm – dos vínculos exteriores que o impediam de trabalhar e pensar de acordo com o que havia considerado adequado. Agora – continua – seria livre de atuar segundo sua própria vontade, se soubesse o que quer, pensa e sente. Mas não sabe. Ajusta-se ao mandado de autoridades anônimas e adota um eu que não lhe pertence. Quanto mais procede deste modo, tanto mais se sente forçado a conformar sua conduta à expectativa alheia. Apesar de seu disfarce de iniciativa e de otimismo, o homem moderno está esmagado por um profundo sentimento de impotência que o faz olhar fixamente e, como que paralisado, para as catástrofes que se avizinham”.

            Por isso desde já, saliente-se a necessidade de uma permanente atitude crítica, único modo pelo qual o homem realizará sua vocação natural de integrar-se, superando a atitude do simples ajustamento ou acomodação, aprendendo temas e tarefas de sua época. Esta, por outro lado, se realiza à proporção em que seus temas são captados e suas tarefas resolvidas. E se supera na medida em que temas e tarefas já não correspondem a novos anseios emergentes, que exigem, inclusive, uma visão nova dos velhos temas. Uma época histórica representa, assim, uma série de aspirações, de anseios, de valores, em busca de plenificação. Formas de ser, de comportar-se, atitudes mais ou menos generalizadas, a que apenas os antecipados, os gênios, opõem dúvidas ou sugerem reformulações. Insista-se no papel que deverá ter o homem na plenificação e na superação desses valores, desses anseios, dessas aspirações. Sua humanização ou desumanização, sua afirmação como sujeito ou sua minimização como objeto, dependem, em grande parte, de sua captação ou não desses temas. Quanto mais dinâmica uma época na gestação de seus temas próprios, tanto mais terá o homem de usar, como salienta Barbu, “cada vez mais funções intelectuais e cada vez menos funções puramente instintivas e emocionais”. Exatamente porque, só na medida em que se prepare para esta captação, é que poderá interferir, ao invés de ser simples espectador, acomodado às prescrições alheias que, dolorosamente, ainda julga serem opções suas.

            Mas, infelizmente, o que se sente, dia a dia, com mais força aqui, menos ali, em qualquer dos mundos em que o mundo se divide, é o homem simples esmagado, diminuído e acomodado, convertido em espectador, dirigido pelo poder dos mitos que forças sociais poderosas criam para ele. Mitos que, voltando-se contra ele, o destroem e aniquilam. É o homem tragicamente assustado, temendo a convivência autêntica e até duvidando de sua possibilidade. Ao mesmo tempo, porém, inclinando-se a um gregarismo que implica, ao lado do medo da solidão, que se alonga como “medo da liberdade”, na justaposição de indivíduos a quem falta um vínculo crítico e amoroso, que a transformaria numa unidade cooperadora, que seria a convivência autêntica. “O espírito gregário, disse um personagem de Pasternack, (No Doutor Jivago) é sempre o refúgio da falta de dons”. É a armadura, acrescentemos nós a que o homem se escraviza e dentro da qual já não ama. Quanto menos puder visualizar esta tragédia, tanto mais aceleradamente se irá transformando no rinoceronte de Ionesco. E nada mais saberá, talvez, além de que é belo ser rinoceronte. E sem a capacidade de visualizar esta tragédia, de captar criticamente seus temas, de conhecer para interferir é levado pelo jogo das próprias mudanças e manipulado pelas já referidas prescrições que lhe são impostas ou quase sempre maciamente doadas. Percebe apenas que os tempos mudam, mas não percebe a significação dramática da passagem, se bem que a sofra. Está mais imerso nela do que emerso.

            As sociedades que vivem esta passagem, esta transição de uma para outra época, estão a exigir, pela rapidez e flexibilidade que as caracterizam, a formação e o desenvolvimento de um espírito também flexível. O uso, para repetir Barbu, de “funções cada vez mais intelectuais e cada vez menos instintivas e emocionais”, para a integração do homem. A fim de que possa perceber as fortes contradições que se aprofundam com o choque entre os valores emergentes, em busca de afirmação e de plenificação, e valores do ontem, em busca de preservação. É este choque entre um ontem esvaindo-se, mas querendo permanecer, e um amanhã por se consubstanciar, que caracteriza a fase de trânsito como um tempo anunciador. Verifica-se nessas fases, um teor altamente dramático a impregnar as mudanças de que se nutre a sociedade. Porque dramática, desafiadora, a fase de trânsito se faz então um tempo enfaticamente de opções. Estas, porém, só o são realmente na medida em que nasçam de um impulso livre, como resultado da captação crítica do desafio, para que sejam conhecimento transformado em ação. Deixarão de sê-lo à proporção em que expressem a expectativa de outros.

            Nutrindo-se de mudanças, o tempo de trânsito é mais do que simples mudança. Ele implica realmente nesta marcha acelerada que faz a sociedade à procura de novos temas e de novas tarefas. E se todo Trânsito é mudança, nem toda mudança é Trânsito. As mudanças se processam numa mesma unidade de tempo qualitativamente invariável, sem afetá-la profundamente. É que elas se verificam pelo jogo normal de alterações sociais resultantes da própria busca de plenitude que o homem tende a dar aos temas. Quando, porém, estes temas iniciam o seu esvaziamento e começam a perder significação e novos temas emergem, é sinal de que a sociedade começa a passagem para outra época. Nestas fases, repita-se, mais do que nunca, se faz indispensável a integração do homem. Sua capacidade de apreender o mistério das mudanças, sem o que será delas um simples joguete".






quarta-feira, 8 de julho de 2015

Três tipos de razão? A razão intelectual, a razão cordial e a razão espiritual.

Construo este texto a partir de algumas frases de um parágrafo retirado do livro do teólogo Leonardo Boff, Francisco de Assis e Francisco de Roma - Uma nova primavera na Igreja. Estas frases dizem o seguinte: "Será essa aliança de paz e de sinergia entre ser humano e natureza, entre tecnociência e Mãe Terra que permitirá o surgimento de um novo modo de habitar a única Casa Comum que temos, a Terra. Será o triunfo do paradigma do cuidado em oposição ao paradigma da dominação, a vitória do coração sensível sobre a mente fria e conquistadora. Precisamos das três inteligências: a intelectual, a cordial e a espiritual, para vivermos como humanos. Juntas, poderão nos devolver a sensatez e o amor indispensável para com tudo o que existe e vive" (página 75-6). Me permitirei uma liberdade, igualando o sentido das palavras razão e inteligência, fazendo a adequação ao título.
O livro do teólogo Leonardo Boff que deu origem a este post.


O teólogo dá algumas explicitações. Na página 99 lemos o seguinte: "Estamos todos impregnados pela razão intelectual, funcional, analítica e eficientista". A partir desta síntese admirável se perfilou em minha mente toda a construção da modernidade. Descartes, David Hume, Kant e, ainda, Lutero. Também os construtores das suas instituições,  Maquiavel, John Locke, Voltaire, Adam Smith, Bentham, Hegel e Marx. É o mundo do Renascimento, do Iluminismo e de suas benéficas consequências políticas e científicas e para a autonomia do indivíduo ou do sujeito, e a desconstrução de um mundo de mitos e dogmas. Kant que o diga, em sua apologia à ilustração.

Mas também me lembrei de Pascal, ainda nos alvores da construção desta modernidade. "O coração tem razões que a própria razão desconhece". Depois rememorei as marcas de sua fragilidade com Schopenhauer e Nietzsche, com a sua insuficiência em Freud e o inconsciente e  as violentas críticas de Adorno, da racionalidade técnica e instrumental, em sua Dialética do Esclarecimento. Mas também lembrei do mundo do nihilismo e do indivíduo, como o fim do sujeito, e da concepção de sociedade como uma mera soma de indivíduos. Sem antes ter passado por uma profunda crise existencial.
Para o teólogo, o homem em sua totalidade precisa somar as razões intelectual, cordial e espiritual.

O teólogo continua, na página 111. "Hoje entendemos que precisamos resgatar, urgentemente, a razão cordial e sensível para enriquecer a razão intelectual. Só com a razão intelectual, sem a razão cordial, não vamos sentir o grito dos pobres, da Terra, das florestas e das águas. Sem a razão cordial não nos movemos para ir ao encontro dos que gritam e sofrem para socorrê-los, oferecer-lhes um ombro e salvá-los. Da razão cordial nasce a ética, aquele conjunto de valores que orientam nossa vida". Antes já nos fazia a advertência:

"Toda modernidade se construiu quase que exclusivamente sobre a inteligência intelectual; ela nos trouxe incontáveis comodidades. Mas não nos fez mais integrados e felizes porque colocou em segundo plano ou até recalcou a inteligência emocional ou cordial e negou cidadania à inteligência espiritual" (página 74-5). Por inteligência espiritual creio que poderíamos incluir tudo aquilo que nos relaciona com a transcendência.
 A contracapa do livro que traça o paralelo entre os Franciscos, o de Assis e o bispo de Roma.

Este texto é o que eu chamaria de um texto aberto, um texto para a provocação, para a abertura do diálogo, diálogo este, sempre na sua bela perspectiva de busca e não na afirmação de certezas e verdades. O teólogo faz uma referência sobre a abertura para o diálogo, na página 154. "O relevante mesmo é a capacidade de ambos (portadores de diferentes doutrinas) estarem abertos à escuta mútua. Para dizê-lo na linguagem do grande poeta espanhol Antonio Machado: 'Não a tua verdade. A verdade. Venha comigo buscá-la. A tua guarde-a para ti.' Mais importante que saber é nunca perder a capacidade de aprender. este é o sentido do diálogo". Que o digam Sócrates e Paulo Freire, ou ainda, Guimarães Rosa.

Qual é o contexto em que estou elaborando este texto? O da perspectiva do livro de Leonardo Boff, de que, ao inverno, sucede a primavera. Que o papa Francisco rompeu com a Igreja imperial, medieval e autoritária, inspirada no direito divino e na infalibilidade, para uma visão de busca de saídas sob a inspiração direta de Cristo e não na tradição da Igreja em ruínas, que o outro Francisco, o de Assis, recebera por revelação divina. "Francisco, vai e reconstroi a minha Igreja que está em ruínas".

Para encerrar quero ainda deixar registrada a posição dogmática do Papa João Paulo II, na crítica ao mundo moderno na sua mais importante encíclica Memória e identidade. (Editora Objetiva, 2005) Já no capítulo 2 ele fala das ideologias do mal, buscando as suas origens e as apontando como responsáveis pelo nazismo e comunismo, mas não pelas mazelas do capitalismo. Descartes é apontado como o grande culpado. É um dos textos mais explícitos e herméticos que eu conheço e que, por isso mesmo, estava levando a Igreja para o passado e não apontado para o futuro. Vejamos:
A encíclica de João Paulo II. Memória e Identidade.

"A fim de ilustrar melhor este fenômeno, é preciso remontar ao período anterior ao Iluminismo, sobretudo à revolução operada no pensamento filosófico por Descartes. Aquele seu "cogito, ergo sum, - penso logo existo" desencadeou uma reviravolta no modo de fazer filosofia: no período pré-cartesiano, a filosofia - e por conseguinte o cogito ou melhor, o cognosco - estava subordinada ao esse, era visto como primordial. Aos olhos de Descartes, por sua vez o esse aparecia secundário, enquanto ele considerava primordial, o cogito; deste modo realizava-se não só uma mudança de direção no filosofar, mas decididamente abandonava-se o que tinha sido até então a filosofia e, mais concretamente, a filosofia de Santo Tomás de Aquino: a filosofia do esse. Antes, tudo era interpretado na perspectiva do esse e procurava-se uma explicação de tudo dentro desta ótica: Deus, Ser plenamente auto-suficiente (Ens subsistens), era considerado o suporte indispensável para todo o ens non subsistens, ens participatum, isto é, para todos os seres criados e, por conseguinte, também para o homem. O cogito, ergo sum implicava uma ruptura com essa linha de pensamento: agora tornava-se primordial o ens cogitans, depois de Descartes, a filosofia torna-se uma ciência puramente de pensamento: tudo o que for esse - tanto o mundo criado como o Criador - permanece no campo do cogito como conteúdo do conhecimento humano. A filosofia ocupa-se dos seres enquanto conteúdos do conhecimento, e não como existentes fora dele" (página 19).

Que lamento! Lamento de perda de poder e de autoridade, mas acima de tudo, situa a importância de Descartes na construção do pensamento e do mundo moderno, que na voz de João Paulo II, depois de Descartes, tudo virou relativismo. Creio que este texto também nos mostra o porquê de tantos católicos conservadores  se apegarem tanto a esta concepção de fonte de autoridade.  Encerro por aí, citando ainda, Leonardo Boff  quando este fala da receptividade de Francisco como o bispo de Roma: "Já se fazem ouvir vozes dos mais radicais que pedem, para o 'bem da Igreja (a deles obviamente) orações nesse teor: 'Senhor, ilumine-o ou elimine-o'". E,como falamos de relativismo, parece que o Espírito Santo, efetivamente, ilumina de diferentes maneiras.