Neste livro, Retrato de Portinari, de Antonio Callado, a relação entre o pintor e o modelo se inverteu. Em vez de Antonio Callado servir como tal, foi Candido Portinari que posou repetidas vezes, quase que diariamente, para que Callado lhe traçasse o perfil, que pintasse a sua maneira de ser para nos dar o grande retrato daquele que foi o maior nome da pintura brasileira, e uma das maiores expressões da pintura modernista mundial.. O resultado foi um trabalho maravilhoso, que nos deu a conhecer dois grandes artistas. A pintura de Portinari e a escrita de Antonio Callado.
Dois grandes artistas. Um da pintura e outro da palavra. Portinari e Callado.
O livro se divide em duas partes. A primeira foi escrita em 1956 e foi uma encomenda do MAM do Rio de Janeiro, com o intuito de divulgar o artista. A segunda parte foi escrita mais de 20 anos depois, em 1978, retratando os últimos anos de vida do pintor, ou seja, o tempo que separou a primeira parte do livro (1956) e o ano de 1962, o ano da morte. Como no livro ocorre o encontro de duas grandes personalidades, vamos datar os dois. Candido Portinari nasceu em Brodowski, SP., filho de imigrantes italianos, em 1903 e morreu no Rio de Janeiro em 1962. Já Antonio Callado nasceu em Niteroi, em 1917 e morreu no Rio de Janeiro em 1997.
Ana Arruda Callado, esposa de Antonio, assim apresenta a edição de 2003, da Jorge Zahar: "Antonio Callado e Candido Portinari, cada um com seus instrumentos próprios de trabalho, tentaram retratar o Brasil que amavam, para melhor compreendê-lo - e com sua interpretação levar os demais brasileiros a também amá-lo [...] Este livro fixa um momento de encontro e trabalho conjunto desses dois grandes artistas, o escritor e o pintor, e o nascimento de uma intensa amizade, baseada em mútua admiração e muitas afinidades [...] O resultado é mais que um diálogo rico de informações, é uma troca afetiva".
Portinari retratando Antonio Callado. O livro representa uma troca afetiva.
O menino Candido, como filho de imigrantes italianos, teve uma infância pobre em meio ao mundo rural, com destaque para as lavouras cafeeiras. Aos cinco ou seis anos já abandonou os primeiros rabiscos para desenhar conscientemente uma maçã. Ainda na infância chegou a trabalhar numa fábrica de carroças, pintando as letras iniciais dos donos, ajudando ainda na pintura da igreja e nas esculturas de seus santos, na sua cidade natal. De Brodowski segue para o Rio de Janeiro para a Escola de Belas Artes, sempre enfrentando muitos problemas em sua vida de menino pobre.
A vida começa a se modificar quando ganha uma bolsa de estudos, em Paris. Lá permanece por dois anos, praticamente sem produzir. Passa os seus dias entre o museu do Louvre e o palácio de Luxenbourg, a observar, a se dedicar à contemplação, a fonte de toda a arte. Callado faz uma exaltação à concessão de bolsas para jovens talentos como poucas vezes eu vi. Não é que a bolsa produza o artista mas o ajuda imensamente em sua formação. Se em Paris Portinari apenas observava, na sua volta, em menos de seis meses, produziu mais de quarenta quadros, que fizeram a sua fama. Instado sobre o fenômeno, simplesmente respondeu que de volta ao Rio de Janeiro não tinha para onde ir e, assim, dedicou-se a pintar.
Das reminiscências da infância, o tema do café. 1935.
Portinari sempre foi um artista engajado, retratando em seus quadros a grande injustiça social brasileira. Ficou célebre o caso em que, numa exposição em Paris, que tinha como tema os meninos de Brodowski e retirantes, o duque de Windsor, querendo lhe comprar um quadro, perguntou se não tinha umas flores... A resposta veio pronta: "Flores, não, só tenho miséria". Ele era indignado com o "divórcio entre a terra brasileira e a civilização que fingimos ter". Criticava o fato de ainda ter, "no interior, escravos que só o deixarão de ser quando completarmos a Abolição com uma Reforma Agrária". Os trabalhadores no café e os pés na terra retratam esta situação.
"Só tenho miséria". Cena de Os Retirantes. A injustiça social sempre presente .
Um dos capítulos mais bonitos do livro é o que leva por título A arte ri por último, especialmente quando trata da relação entre a arte e a ciência. São as críticas ao racionalismo e ao espírito científico por ele engendrado. A ciência não dá pintura. O que dá pintura são os mistérios e a contemplação. Embora a sua formação dentro do marxismo, também aplicava a mesma fórmula aos mistérios religiosos para a criação artística.
Não posso terminar este post sem fazer uma referência ao seu espírito insubmisso e a sua intransigência com relação aos seus princípios. Convidado para a inauguração de seus painéis, a Paz e a Guerra, no prédio das Nações Unidas, em Nova York, o departamento cultural da embaixada dos Estados Unidos lhe fazia uma exigência para conceder-lhe o visto. Lhe pediram uma assinatura num documento em declarava não mais pertencer ao Partido Comunista. Embora, já de longa data, não tivesse mais relação com o Partido, ele nunca, nem sequer, respondeu à Embaixada. "Deixou que os quadros se inaugurassem sozinhos".
Sempre em ótimas companhias. Em 1952. Graciliano e Pablo Neruda à esquerda e Jorge Amado à direita. Estes comunistas adoráveis.
Portinari morreu cedo, em consequência da pintura, mais precisamente, das tintas. Callado nos conta que, já antes, ele se tinha enamorado da morte. Depois da separação com a mulher, viveu uma intensa solidão. Contra as tintas Portinari conseguiu se defender, mas nunca da solidão. Gênio de artista genial. A sua grande amizade duradoura foi com Graciliano Ramos. Se entendiam perfeitamente no rigor dedicado ao trabalho. A sua morte prematura ocorreu quando tinha apenas 58 anos, nos deixando, espalhadas pelo mundo afora, em torno de quatro a cinco mil obras. O livro vem fartamente ilustrado e acompanhado de um informativo sobre o Projeto Portinari.
Dois grandes artistas. Um da pintura e outro da palavra. Portinari e Callado.
O livro se divide em duas partes. A primeira foi escrita em 1956 e foi uma encomenda do MAM do Rio de Janeiro, com o intuito de divulgar o artista. A segunda parte foi escrita mais de 20 anos depois, em 1978, retratando os últimos anos de vida do pintor, ou seja, o tempo que separou a primeira parte do livro (1956) e o ano de 1962, o ano da morte. Como no livro ocorre o encontro de duas grandes personalidades, vamos datar os dois. Candido Portinari nasceu em Brodowski, SP., filho de imigrantes italianos, em 1903 e morreu no Rio de Janeiro em 1962. Já Antonio Callado nasceu em Niteroi, em 1917 e morreu no Rio de Janeiro em 1997.
Ana Arruda Callado, esposa de Antonio, assim apresenta a edição de 2003, da Jorge Zahar: "Antonio Callado e Candido Portinari, cada um com seus instrumentos próprios de trabalho, tentaram retratar o Brasil que amavam, para melhor compreendê-lo - e com sua interpretação levar os demais brasileiros a também amá-lo [...] Este livro fixa um momento de encontro e trabalho conjunto desses dois grandes artistas, o escritor e o pintor, e o nascimento de uma intensa amizade, baseada em mútua admiração e muitas afinidades [...] O resultado é mais que um diálogo rico de informações, é uma troca afetiva".
Portinari retratando Antonio Callado. O livro representa uma troca afetiva.
O menino Candido, como filho de imigrantes italianos, teve uma infância pobre em meio ao mundo rural, com destaque para as lavouras cafeeiras. Aos cinco ou seis anos já abandonou os primeiros rabiscos para desenhar conscientemente uma maçã. Ainda na infância chegou a trabalhar numa fábrica de carroças, pintando as letras iniciais dos donos, ajudando ainda na pintura da igreja e nas esculturas de seus santos, na sua cidade natal. De Brodowski segue para o Rio de Janeiro para a Escola de Belas Artes, sempre enfrentando muitos problemas em sua vida de menino pobre.
A vida começa a se modificar quando ganha uma bolsa de estudos, em Paris. Lá permanece por dois anos, praticamente sem produzir. Passa os seus dias entre o museu do Louvre e o palácio de Luxenbourg, a observar, a se dedicar à contemplação, a fonte de toda a arte. Callado faz uma exaltação à concessão de bolsas para jovens talentos como poucas vezes eu vi. Não é que a bolsa produza o artista mas o ajuda imensamente em sua formação. Se em Paris Portinari apenas observava, na sua volta, em menos de seis meses, produziu mais de quarenta quadros, que fizeram a sua fama. Instado sobre o fenômeno, simplesmente respondeu que de volta ao Rio de Janeiro não tinha para onde ir e, assim, dedicou-se a pintar.
Das reminiscências da infância, o tema do café. 1935.
Portinari sempre foi um artista engajado, retratando em seus quadros a grande injustiça social brasileira. Ficou célebre o caso em que, numa exposição em Paris, que tinha como tema os meninos de Brodowski e retirantes, o duque de Windsor, querendo lhe comprar um quadro, perguntou se não tinha umas flores... A resposta veio pronta: "Flores, não, só tenho miséria". Ele era indignado com o "divórcio entre a terra brasileira e a civilização que fingimos ter". Criticava o fato de ainda ter, "no interior, escravos que só o deixarão de ser quando completarmos a Abolição com uma Reforma Agrária". Os trabalhadores no café e os pés na terra retratam esta situação.
"Só tenho miséria". Cena de Os Retirantes. A injustiça social sempre presente .
Um dos capítulos mais bonitos do livro é o que leva por título A arte ri por último, especialmente quando trata da relação entre a arte e a ciência. São as críticas ao racionalismo e ao espírito científico por ele engendrado. A ciência não dá pintura. O que dá pintura são os mistérios e a contemplação. Embora a sua formação dentro do marxismo, também aplicava a mesma fórmula aos mistérios religiosos para a criação artística.
Não posso terminar este post sem fazer uma referência ao seu espírito insubmisso e a sua intransigência com relação aos seus princípios. Convidado para a inauguração de seus painéis, a Paz e a Guerra, no prédio das Nações Unidas, em Nova York, o departamento cultural da embaixada dos Estados Unidos lhe fazia uma exigência para conceder-lhe o visto. Lhe pediram uma assinatura num documento em declarava não mais pertencer ao Partido Comunista. Embora, já de longa data, não tivesse mais relação com o Partido, ele nunca, nem sequer, respondeu à Embaixada. "Deixou que os quadros se inaugurassem sozinhos".
Sempre em ótimas companhias. Em 1952. Graciliano e Pablo Neruda à esquerda e Jorge Amado à direita. Estes comunistas adoráveis.
Portinari morreu cedo, em consequência da pintura, mais precisamente, das tintas. Callado nos conta que, já antes, ele se tinha enamorado da morte. Depois da separação com a mulher, viveu uma intensa solidão. Contra as tintas Portinari conseguiu se defender, mas nunca da solidão. Gênio de artista genial. A sua grande amizade duradoura foi com Graciliano Ramos. Se entendiam perfeitamente no rigor dedicado ao trabalho. A sua morte prematura ocorreu quando tinha apenas 58 anos, nos deixando, espalhadas pelo mundo afora, em torno de quatro a cinco mil obras. O livro vem fartamente ilustrado e acompanhado de um informativo sobre o Projeto Portinari.