sexta-feira, 29 de novembro de 2013

Tereza Batista - Cansada de Guerra. Jorge Amado.

Jorge Amado escrevia fácil e bonito, embora ele negasse o fácil. Estou eu aqui, pensando bobagem, querendo comparar os livros de Jorge. Tarefa impossível. Todos tem a sua grandeza, a grandeza de Jorge. Mas se tem um livro em que Jorge efetivamente se empenhou, deve ter sido este, Tereza Batista - Cansada de Guerra. Para isto ele tinha um motivo. Tereza Batista é o povo brasileiro, o sofrido povo brasileiro. Ao mesmo tempo tão sofrido e tão feliz, mais sofrido do que feliz, mas que viveu, nos seus momentos de felicidade, uma felicidade sem par. Não tem como não se apaixonar por Tereza Batista. Não tem como não se apaixonar pelo povo brasileiro.
A versão da edição comemorativa do centenário de Jorge Amado de - Tereza Batista - cansada de guerra. Companhia das Letras

Para dizer que Tereza Batista é o povo brasileiro, o escritor, para anunciar este fato, recorre a toda a sua família e a ninguém menos do que a sua própria mãe para dizê-lo: "Eulália Leal Amado, Lalu na voz geral da benquerença, lhe digo, meu senhor, que Tereza Batista se parece com o povo e com mais ninguém. Com o povo brasileiro, tão sofrido e nunca derrotado. Quando o pensam morto, ele se levanta do caixão". Eis o anúncio feito e, em literatura sob a forma de cordel.
Capa da edição de lançamento de Tereza Batista, em 1972, pela Livraria Martins Editora.

A partir de uma entrevista de Lygia Fagundes Telles, é escrito o posfácio do livro. Ela fala de três Jorges que ela conheceu e daí parte para as mulheres, personagens de Jorge e em especial para Tereza Batista: "Não são mulheres solitárias, elas precisam do homem assim como o homem precisa delas, na alegria, sim, principalmente na alegria. Assim essas mulheres - as de família e as putas - estão sempre liderando as histórias de amor. A vida virou um artigo de luxo? Então as mulheres consideradas alegres tem que ser pagas por assim compensar as mulheres casadas e em geral tristes, lamurientas, porque, ah! os filhos, os gastos, os problemas... Olha aí o homem fugindo do cotidiano familiar para se divertir nos cabarés das profissionais pagas pelos coronéis para o amor sem compromisso, viva o presente que é irresponsável e tem bebida e tem marinheiros e música... As mulheres sem máscaras, essas as grandes personagens que Jorge Amado escolhia sem o menor preconceito e sem perder a doçura porque quem gosta da vida não gosta da morte. Daí não atormentar essa vida com a ameaça do fim, ah! a saudável alegria antes do ponto final A vida com bom humor. Repito, neste país país tão pobre e tão rico era preciso mesmo conquistar o leitor, parceiro do escritor, ou melhor, cúmplice desse escritor..."
Tereza Batista e suas colegas de ofício salvam a população da epidemia da bexiga negra.

Para os materialistas e para os racionais, Jorge deixa uma advertência, afinal, a história se passa na Bahia: "Não discuto a conta feita pelo amigo, o número certo das intervenções indébitas mas não se esqueça que o caso se deu na cidade da Bahia, situada no oriente do mundo, terra de esconjuros e ebós. Aqui, meu prezado, os absurdos são o pão de cada dia desse povo incapaz de inventar uma mentira ainda mais no propósito de assunto tão mexido". São milagres demais que acontecem, especialmente, na parte final do livro, no episódio do balaio fechado das prostitutas, quando o próprio Exu faz as mais terríveis ameaças para todos os envolvidos neste movimento. Ai de quem furasse a greve!

A primeira aparição de Tereza Batista no livro, ocorre em um bordel de Aracaju, a famosa casa Paris Alegre, de Flori Pachola. Nesta casa a artista dança e intervém nas confusões, especialmente, quando mulher apanha. Tereza Batista, em antecipação à lei Maria da Penha, não suporta ver mulher apanhando e quando isto acontecia, ela intervinha, feroz. Um encontro casual em Aracaju, com o homem do mar, o navegador Januário Gereba, o Janu, de "algemas na mão e grilhetas nos pés", a enfeitiça, num amor impossível. Mas não para ela. Ela esperaria o tempo necessário.

Os sofrimentos de Tereza Batista começaram muito cedo, quando a pequena órfã foi vendida pela tia para o capitão Justiniano Duarte da Rosa, no qual Jorge personifica toda a maldade e perversidade da elite brasileira. O capitão usa uma coleira com argolas de ouro, cada argola representando uma menina deflorada. Só as meninas virgens mereciam argola. Tereza Batista tentou resistir. A obediência lhe veio com pancadas e tabefes, com chicotadas de taca de couro cru e com o ferro de passar, aceso. A maldade prossegue com Daniel, o filho do meritíssimo, que corneando o capitão, se aproveita da menina e a ilude e engana. Um mundo de horrores e falsidades. Nestas circunstâncias comete assassinato, mata o próprio capitão.
Edições, mundo afora, de Tereza Batista - cansada de guerra.

As doçuras ela experimenta com o coronel, usineiro e banqueiro, Emiliano Guedes,o homem do rebenque e da Rosa. Para Tereza, apenas a Rosa. Além de dinheiro ele possuía uma família, totalmente desajustada. Agora passa a ter também Tereza. As tragédias de sua vida familiar, lhe interrompem seis anos de vida feliz. Morre de felicidade, em cima de Tereza, para escândalo da sociedade. Novamente abraça o infortúnio. Isso tudo se passa na cidade de Estância, no Sergipe.

Não lhe sobrando alternativas de vida, com a vida que leva com as companheiras, escreve novas páginas de heroísmo em Buquim e Muricapeba. Entre as doenças brabas, como a bexiga, o tifo, a malária, o analfabetismo, a lepra, a doença de Chagas, xistossomose, a mais braba era a bexiga, de rápida contaminação e morte ligeira. A bexiga fez médico e enfermeira fugir. Só sobrou Tereza para lavar feridos e aplicar vacina. Tereza e suas colegas de ofício. Como gratidão, em vez de busto na praça, o medo da contaminação lhe roubou a freguesia. Foi procurá-la em outras plagas.

Atrás de Janu, vem se estabelecer na Bahia. Todos os dias vai ao porto saber de Januário. Fica sabendo que ele não tem mais as mãos algemadas, nem grilhetas nos pés. A esposa falecera. Entre a espera de notícias de Janu, ocorre o mais grave dos episódios narrados no livro, a greve das prostitutas. Elas deveriam ser transferidas da Barroquinha para a ladeira do Bacalhau. A greve do chamado Balaio Fechado, que seria uma sexta feira da paixão, em pleno romper da primavera, irrompeu  no dia em que no porto chegaram três navios de soldados americanos. Tereza e as ameaças de Exu a possíveis fura-greves, tornaram o movimento vitorioso. Até fuga para a igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Negros houve, como também, procissão em honra de Santo Onofre, o padroeiro das prostitutas. Por que santo Onofre é o padroeiro das prostitutas eu não sei dizer e, muito menos, Jorge o contou.

O famoso episódio da greve do Balaio Fechado, em literatura de cordel.

Nas suas andanças, as paixões de homens sempre se renovaram por causa de sua extraordinária beleza. Um novo homem bom entra em sua vida, o viúvo Almério das Neves. Agora é ela que tem as algemas nas mãos e grilhetas nos pés, pelo amor por Janu, aquele do encontro de Aracaju e já sabedora da morte de sua mulher. Mas descobre-o morto no mar, num naufrágio nas costas do Peru. Esta morte a fere de dor mortal. Vida para dar, já não tem mais. Assim oferece companhia para Almério, num casamento em que a Bahia inteira foi convidada para a festa. Os que não foram vieram de incheridos. Na festa, a maior que a Bahia já conheceu, Caymmi, Caetano e Gil cantaram, a orquestra dos castelos e seus jazz band animaram os convidados. Mas festa mesmo, só aconteceu, quando o trio elétrico puxou animada festa de carnaval. Era o povo brasileiro em festa.

Quando o casamento ia se celebrar, Januário Gereba apareceu. O casamento "embucetou", não aconteceu e muito menos o povo ficou sem festa. A festa era de Tereza Batista. A festa era de todo o povo brasileiro.


quarta-feira, 27 de novembro de 2013

Ser Escravo no Brasil. Kátia de Queirós Mattoso.

"Escrito para um público amplo... descreve-se com riqueza de detalhes o dia-a-dia dos escravos... um surpreendente relato das relações econômicas e sociais". The New York Times Book Review. Esta é a apresentação que está na contra capa da edição brasileira do livro de Kátia  de Queirós Mattoso, Ser escravo no Brasil, em sua reimpressão de 2003, da Editora Brasiliense. A primeira edição do livro ocorreu em 1982 e foi escrito em francês. A edição brasileira tem a tradução de James Amado, que me consta ser o irmão de Jorge, o irmão famoso. O livro tinha a pretensão de relatar ao mundo as tristes experiências da escravidão brasileira.
Ser escravo no Brasil. O monumental livro de  Kátia de Queirós Mattoso.

Cheguei ao livro através de Antônio Cândido, quando este deu em 1990, dez indicações de livros essenciais para a compreensão de Brasil. Tenho um post sobre estas indicações. Antônio Cândido dividiu o Brasil em grandes temas e para cada um destes temas sugeriu um grande livro. Para a questão da escravidão, indicou este, do qual passarei a dar a estrutura fundamental. Ele foi escrito em francês com a finalidade de ser lido ´"por um público amplo", mas acabou mesmo sendo a grande referência no Brasil. Kátia é grega de nascimento que se radicou em Salvador, sendo professora na Universidade Federal da Bahia.
Foto de Kátia de Queirós Mattoso. - Nasceu na Grécia em 1931 e faleceu em Paris em 2011. Foi professora na Universidade Federal da Bahia.

O livro de 2003 tem prefácio do historiador Ciro Flamarion S. Cardoso que destaca três virtudes fundamentais no livro: "1. Uma base documental sólida, proveniente da intimidade com as fontes primárias (em especial da Bahia) e ao mesmo tempo com a extensa bibliografia do escravismo brasileiro; 2) enquanto muitos livros de síntese no fundo generalizam a experiência da escravidão numa única região ou a partir das realidades que afetavam a um só tipo de escravos (os domésticos, por exemplo), neste texto se procurou considerar todas as principais situações regionais e estruturais; 3) o tema da alforria e dos libertos, raramente visto em debates neste país, tem grande peso e desenvolvimento". 

O meu objetivo não é o de apresentar uma síntese do livro. Seria impossível num único post. O que eu quero é fazer é a provocação para a sua leitura. Por isso vou apresentar a estruturação do livro. Ele foi dividido em três partes e nove capítulos. As três partes envolvem o ser vendido como escravo, o ser escravo e o deixar de ser escravo. Os relatos não são frios e acadêmicos. Foram escritos com muita paixão. Mas vamos a estrutura do livro:
Cenas do transporte de "mercadorias humanas" da África para o Brasil.

A primeira parte tem como título Ser vendido como escravo. Vai da página 15 até a 96. Possui três capítulos com os seguintes títulos: Capítulo Primeiro: Na África - Ser vendido como escravo. Capítulo Segundo: Ser uma mercadoria como as outras. Capítulo Terceiro: Ser uma mercadoria apreciada. Não darei detalhes, mas gostaria de salientar a escolha da autora para a qualificação atribuída ao escravo como uma mercadoria. Ela está revestida de um significado profundo.

A segunda parte tem como título Ser escravo. Ocupa as páginas entre a 97 e a 172. Possui também três capítulos, dos quais também darei os títulos: Capítulo quarto: O africano se adapta ao Brasil e aos brasileiros. Capítulo quinto: As solidariedades. Capítulo sexto: Refúgios e refugos. A narrativa cresce em sua dramaticidade, na descrição de sofrimentos e da construção de uma identidade, praticamente impossível, pois, lhe falta uma das características essenciais do humano, que é a liberdade. A descrição da religiosidade do escravo negro me marcou profundamente. Cinicamente comparavam os seus sofrimentos com os sofrimentos de Cristo na cruz, que lhes proporcionava uma vida livre. Me veio à lembrança o livro de Primo Levi, Os Afogados e os Sobreviventes, em que ele afirma que o suicídio é um ato da liberdade humana e, portanto, não praticável, nas condições em que se encontrava no campo de concentração de Auschwitz. Mas o livro também aborda os diferentes refúgios em que os escravos procuravam conforto. Um destes refúgios era o suicídio.

Aplicação de chicotadas no pelourinho. O castigo mais aplicado aos escravos.

A terceira parte é dedicada ao tema Deixar de ser escravo? Observem a interrogação. Esta parte também possui três capítulos, que ocupam as páginas que vão da 173 até a 240. Capítulo Sétimo: A carta de Alforria. Capítulo oitavo: A miragem da liberdade. Capítulo nono: O liberto, ponte nas relações sociais. Dois destaques, o terceiro tópico da apresentação de Ciro Flamarion do tema raramente abordado e o título do oitavo capítulo como a miragem da liberdade. Como o texto já está se alongando, recomendo as duas páginas finais do livro, onde tem o depoimento de libertos, mas não resisto a uma pequena descrição sobre o dia seguinte ao da libertação:

"Neste final do século XX, essa liberdade nos parece inteiramente teórica, assim como a emancipação outorgada em 1888, quando da abolição da escravatura, a milhares de homens e mulheres, lançados de um dia para outro à alegria de de uma liberdade reconquistada e aos temores de um amanhã sem pão e sem teto". Aproveito ainda para apresentar as três virtudes essenciais do escravo: a obediência, a humildade e a fidelidade.
Também me atrevo a duas indicações sobre o tema da escravidão. Joaquim Nabuco e Florestan Fernandes. De Joaquim Nabuco, o seu projeto de acabar com a obra da escravidão, com a integração efetiva no ex escravo na sociedade e de Florestan, sobre as dificuldades do ex escravo se integrar a uma sociedade competitiva. Mas o livro da Kátia nos faz testemunhar a realidade do quanto os livros realmente nos formam e moldam a nossa consciência e o nosso olhar. Um livro de primeira grandeza.

segunda-feira, 25 de novembro de 2013

A partir da execução das penas - novas reflexões em torno do mensalão.


"O aspecto com que mais me identifico na obra de Manoel Bomfim é aquele que o opõe a todos os antigos e modernos pensadores coniventes com os grupos de interesse que mantêm o Brasil em atraso. É sua extraordinária capacidade de indignação e de esperança. É sua convicção de que construiremos aqui uma civilização solidária e bela, assim que retirarmos o poder de decisão das mãos de nossas classes dominantes, infecundas e infiéis". Esta afirmativa faz parte da apresentação de Darcy Ribeiro ao livro de Manoel Bomfim, A América Latina - Males de Origem, um livro diferente de toda a literatura de interpretação do Brasil, até pelo menos, a chegada dos anos 1930. O livro foi escrito em 1905 e ocultado da formação dos brasileiros.
Este é o livro apresentado por Darcy Ribeiro, que contém a frase em destaque.

Da afirmação do Darcy quero sublinhar isto: assim que retirarmos o poder de decisão das mãos das nossas classes dominantes. A democracia brasileira é recente, tênue e frágil. No final dos anos 1990, Chico Oliveira escrevia um texto sobre o tema, mostrando todos os obstáculos que foram interpostos em sua construção. Mencionou as duas longas ditaduras e fez uma relação de todas as tentativas de golpes que ocorreram nos interstícios democráticos. Conclusão. Mais anos de ditadura do que de democracia e, um espírito ditatorial, sempre pairando sobre a frágil democracia (o texto se encontra no livro do Gaudêncio Frigotto - Teoria e Educação no Labirinto do Capital, uma publicação da Vozes).

Nos anos 1980 o Brasil vive seus primeiros passos de uma democracia efetiva, continua Chico Oliveira, na sua análise. Democracia vinda do povo, de suas bases e não de conchavos vindos de Brasília, da capital da República. Nomina as lutas pela redemocratização, da anistia, pelas diretas e, pela Assembleia Nacional Constituinte. A força vinha diretamente do povo, dos movimentos sociais, das lutas sindicais e, inclusive foi criado um partido, para ser a expressão destes movimentos, o Partido dos Trabalhadores. Um partido de massas e radical, na expressão etimológica do termo, um partido de raízes, de raízes plantadas em meio ao povo trabalhador deste país.
Neste livro estão as reflexões de Francisco Oliveira, sobre a democracia brasileira.

Este partido representava, ou ameaçava ser, uma alternativa de poder. A figura carismática de Lula em muito contribuiu para isso. Afinal de contas, figuras messiânicas fazem parte de nossas origens portuguesas. Muitas tentativas de alcançar o poder foram feitas. Nestas tentativas muito de pragmatismo foi sendo incorporado e muitos princípios foram deixados de lado, ao longo da caminhada. Muitos companheiros do partido da estrela, que denunciava as mazelas da elite brasileira, abandonaram o seu lume, quando este partido, ao arrepio de muitos de seus princípios, se transformou em alternativa concreta de poder. Isto aconteceu no ano de 2002. Veio um governo difícil. Uma herança maldita tinha que ser desfeita para assentar bases econômicas e, minimamente oferecer perspectivas que caminhavam na direção da grande meta de o país crescer, junto com a distribuição de seus resultados.

As maiores dificuldades vieram do campo político. Para chegar ao poder em 2002 alianças políticas inimagináveis foram feitas e dinheiro não contabilizado sustentou o peso econômico do processo eleitoral. No poder, na construção da governabilidade, seguiu-se o caminho sempre praticado no Brasil e creio que no mundo. Quando vi o Filme da biografia do Lincoln fiz um post perguntando se teria sido Lincoln, o precursor do mensalão. A governabilidade quase levou Lula ao impeachment e levou a eleição de 2006 ao segundo turno. E aí veio o segundo governo Lula e, usando uma expressão de Maquiavel a virtù e a fortuna se abraçaram. O crescimento econômico veio, mesmo em meio a uma crise econômica terrível e veio acompanhado de distribuição de renda.

Recorro a uma expressão de Márcio Pochmann para caracterizar este período. No Brasil a ascensão econômica de seu povo se fez tanto pelo elevador, quanto pela escada. Obviamente, que o elevador estava reservado aos ricos, mas para o pobre, não se impediu a ascensão pelas escadarias. Ali não se postou um exército e os instrumentos de exceção para impedir que também o povo melhorasse um pouco a sua condição. As eleições de 2010 caracterizaram-se pela despolitização e por uma baixaria sem precedentes. José Serra até ganhou o apelido de Zé Bolinha. Para 2014 todas as pesquisas indicam uma reeleição tranquila da presidente (a) Dilma. Para o desespero das classes dominantes.

Que alternativas de retomada de poder se apresentam então para estas classes dominantes, já que as eleições, mesmo com todos os seus vícios, não mais se apresentam como um caminho de sua retomada? O mensalão e a sua midiatização oferecem neste momento dois caminhos para estas classes dominantes. Procuram mergulhar, com o auxílio da mídia, o Partidos dos Trabalhadores na lama, ocultando esta mesma lama, com quantidades infinitamente maiores, dos olhos da população, procurando nela criar o sentimento de que a justiça está sendo feita e que a corrupção está sendo combatida, ou então um segundo caminho, que passa pela "populistização" do ministro Barbosa, como um novo líder messiânico, único a salvar o Brasil e que, para isso todos os meios se justificariam.

Muitas pessoas se afastaram do PT por causa da forma de atuação de José Dirceu, a figura de maior projeção entre os condenados e, certamente não estamos falando de nenhum santo. A política não é feita por anjos. Mas qual foi a prova material desta acusação? Me lembro de uma das melhores pessoas que conheci ao longo da minha vida, que infelizmente já partiu para outras lutas, o advogado formado pela São Francisco, Dr. Ivo Sooma. Todo o povo de Umuarama o conheceu. Ele me afirmava que não existia nenhuma prova contra José Dirceu. E na competência e honestidade do Dr. Ivo eu sempre confiei plenamente. Qual foi então o motivo da condenação? Que - como ministro chefe da Casa Civil, hipoteticamente, ele deveria ter conhecimento de tudo o que se passava. Foi, portanto, condenado por uma hipótese, por uma suposição, por uma presunção.

Será que esta hipótese, então não se aplicaria, por analogia, e com ainda maior propriedade, ao presidente da República? Por que então não deram este passo, de incluir o presidente Lula nas acusações do mensalão? Seria um acovardamento? Institucionalmente não podemos contestar decisões do poder judiciário, mas o mínimo que se pode esperar, é que mensalões, propinodutos e similares das tradicionais classes dominantes, também venham a ser julgados. Enquanto isso eu continuo acreditando no Darcy e nas crenças de Manoel Bomfim de que esse é um país viável e com a convicção de que construiremos aqui uma civilização solidária e bela, assim que retirarmos o poder de decisão das mãos de nossas classes dominantes, ou então, de que este poder a eles não retorne. Tanto os indicadores econômicos e especialmente os sociais nos indicam que um país mais justo e igual está em construção.



sexta-feira, 22 de novembro de 2013

Tributo a Harmonia II. A terra em que eu nasci.


Em post anterior eu dava alguns dados históricos sobre a cidade de Harmonia. Hoje eu dou algumas de suas características. Falamos da colonização alemã da cidade. Hoje eu dou o meu testemunho pessoal. Eu fui aprender a falar português na escola, pois, em casa só falávamos o alemão. A minha mãe nunca aprendeu a falar o português. A língua alemã estava presente em tudo. Nas lojas, nas conversas com os vizinhos e, especialmente, nos sermões do cônego Mallmann, nas missas de domingo. Assim ganhei um precioso presente, embora fosse um alemão dialeto, que também merece uma pesquisa. Aqui este dialeto se preserva. Lembro também que assinávamos um jornal de Porto Alegre, A Nação, com suplemento em alemão, que publicava romances, por capítulos e uma revista religiosa, a Sankt Paulusblatt, que trazia o obituário das pessoas que faleciam na região. Acho que não erro ao dizer que me alfabetizei, antes de ir para a escola, lendo para minha mãe, os romances seriados sobre o Luis Buger e Die Mucker kommen.
A revista que nunca faltou em nossa casa e que em muito contribuiu com a minha alfabetização.

Também dou alguns dados institucionais de Harmonia. Como vimos, a colonização começou em 1863, com a venda de colônias de terras. A localidade foi elevada à condição de distrito em 1992, ficando sob a jurisdição do município de São João do Montenegro, que era um município enorme. Me lembro perfeitamente dos meus primeiros passos escolares, com o professor Rambo, na escola paroquial e com a professora Marina Gegler, no Grupo Escolar, que a gente sempre usava no cabeçalho dos trabalhos a inscrição: Harmonia - Terceiro Distrito de Montenegro. Naquele tempo ainda não usávamos papel e caneta. Usávamos uma pequena ardósia e um Griefel, com o qual escrevíamos, mas cujo nome em português eu desconheço e também não me atrevo a descrevê-lo.
A presença alemã ainda continua muito forte em Harmonia. Vejam a Rathaus.

Harmonia foi elevada a condição de município em 13.04.1988, com o desmembramento de terras, antes pertencentes aos municípios de Montenegro e Bom Princípio. A história da origem do nome da cidade é muito bonita. Conta-se que o povo, nas suas horas de lazer, se reunia para cantar e fazer músicas e deste espírito de convívio fraternal surgiu o nome, representando a grande identidade destas pessoas: Harmonia. Quem nasce em Harmonia recebe a designação de harmoniense, mas eu sempre prefiro dizer que quem nasce em Harmonia é uma pessoa harmoniosa.
A igreja matriz de Harmonia, a obra mais imponente e o grande centro de formação e da construção do  imaginário de todos os harmonienses.

Também já falei da estrutura fundiária de Harmonia, condição que lhe conferiu o título de cidade brasileira com o menor número de pessoas pobres. Em compensação Harmonia também não ostenta ninguém na lista Forbes. Simplesmente não existem também pessoas muito ricas. A renda é muito bem distribuída e os indicadores sociais são elevadíssimos. Não há mortalidade infantil, a taxa de analfabetos é de 2,09% da população e a expectativa de vida é de 76,03 anos. O PIB per capita chega a R$ 20.897,00 pelo censo de 2010. O mesmo censo lhe confere 4.254 habitantes e está distante de Porto Alegre, 65 quilômetros. As cidades maiores mais próximas são as de São Sebastião do Caí e Montenegro.
Altar central da igreja matriz e o seu padroeiro, São João Nepomuceno.

A religiosidade domina por completo o imaginário do povo. O cônego Mallmann, que por cinquenta anos foi o vigário do local, era um padre sério e rigoroso. Tinha todo o povo sob o seu comando. Um poder imensurável. Ein Bild von einem Priester, ainda ouvi recentemente, numa referência a ele. Ele foi o responsável pela construção de uma nova igreja matriz para Harmonia, uma igreja de enormes proporções. Me lembro dos meus irmãos carregando pedras para a sua construção, de uma pedreira que tinha nas proximidades de nossa casa. O padroeiro da cidade é São João Nepomuceno, um santo tcheco, mártir por guardar os segredos da confissão. O rei queria saber dos pecados da rainha. O santo tem uma estátua do século XIV, na famosa ponte São Carlos, sobre o rio Moldava, uma das grandes atrações turísticas da bela cidade de Praga. O seu dia, no mês de maio, dava os festejos de Kerb, festas de grande tradição nas colônias alemãs, com bailes fabulosos no salão Fink. Muitos amores, ali devem ter começado.
O belo vitral da sagrada família na igreja de Harmonia. Ele foi uma doação da família de José Reichert, o meu avô materno.

Este espírito de religiosidade me levou ao seminário. As famílias tinham que ter um filho padre, pregava o cônego Mallmann, em seus sermões. A minha ida ao seminário foi o fato mais decisivo em minha vida. Foi por este caminho que enveredei pelos estudos. Lembro perfeitamente. Eu era ainda muito pequeno, quando houve a sagração episcopal de D. Cláudio Colling, filho ilustre de Harmonia, ele teve uma festa extraordinária. Desde aquele dia eu sempre quis ser bispo, para ter uma festa igual.
Tributo a meus pais, em descanso no cemitério de Harmonia.

Mas Harmonia também tem cachaça. E da boa e, premiada. O Leando, filho do Ivo Hilgert, um colega meu de estudos, tem o alambique onde é produzido o Harmonie Schnaps, que recentemente ganhou o prêmio de medalha de ouro para a sua cachaça envelhecida e a grande medalha de ouro para a sua cachaça prata. No lugar onde hoje está este alambique, já existia um, de propriedade de Albino Gaspar Ledur, onde eu ia com o meu pai comprar cachaça, que desde aqueles tempos tinha fama de ser boa. Meu pai tinha o hábito de tomar ein schluck, antes do almoço para abrir o apetite, nos dizia ele.
Esta é uma amostra da internacionalmente premiada Harmonie Schnaps.

Harmonia integra a Rota Sabores e Saberes, dos caminhos turísticos pelo vale do Caí, contribuindo com duas de suas atrações. O alambique do Harmonie Schnaps e o horto das margaridas, com a produção de fitoterápicos. Ainda vou fazer um terceiro post, apenas para mostrar uma preciosidade histórica da minha muito querida cidade de Harmonia. Sim, mais um lembrete. Em Harmonia também adquiri uma das belas virtudes que eu continuo cultivando, a de ser gremista.

quarta-feira, 20 de novembro de 2013

Tributo a Harmonia I. A Terra em que eu nasci.

Ao falar de Harmonia, rendo o meu primeiro tributo aos meus pais, Pedro Alfredo Rech e Berta Cristina Rech, tendo Reichert como seu sobrenome de família. Pessoas simples, como todas as pessoas nascidas em Harmonia e que tiveram em comum tanto a origem germânica, quanto a religião católica como heranças. É uma peculiaridade não só de Harmonia, mas também de muitas outras cidades do vale do rio Caí. Pessoas simples, mas de conceitos e valores, que nos foram transmitidos com muita maestria, acima de tudo pelos seus exemplos, com todo o destaque do mundo para a simplicidade.
Vista parcial de Harmonia, com destaque especial para a sua igreja matriz.

Se apontei coisas comuns nas cidades do vale do Caí, creio que posso assinalar duas peculiaridades que só podem ser encontradas em Harmonia. Uma é a figura do Cônego Oscar Mallmann, padre vigário do lugar, por mais de cinquenta anos e a outra é a Cooperativa dos Suinocultores do Vale do Caí Superior, que certamente mexeu com praticamente todos os seus habitantes, melhorando-lhes a sua condição de vida. Imaginem o poder do vigário. Sempre digo que a sua trajetória merecia um filme, senão, ao menos, um bela biografia, que certamente seria uma hagiografia. Quanto a cooperativa, exemplo raro de sobrevivência, em meio a existência breve que tem inúmeros frigoríficos, que é o que ela é, em sua essência, bem que mereceria uma dissertação ou, no mínimo um estudo de caso, se é que ainda não tem.
Foto do cônego Oscar Mallmann, vigário de Harmonia por mais de cinquenta anos. Foto na entrada da igreja matriz.

As origens de Harmonia remontam aos idos de 1863, quando as terras de Juca Teixeira, residente no Parecy, atual município de Pareci Novo, começaram a ser vendidas aos colonos alemães que estavam chegando. Coube a Pedro Kuhn, como encarregado do governo, organizar a colonização, medindo e vendendo as terras. A propriedade básica que cada família poderia comprar era a de uma colônia de terras, uma área de 250.000 metros quadrados, uns dez alqueires de terra, ou ainda, algo em torno de 24 hectares. A propriedade em que nós nos criamos tinha esta dimensão de 24 hectares.

Este é um dado muito importante. Ao longo dos anos 2000 Harmonia recebeu a designação de cidade brasileira com o menor número de pobres do Brasil e é óbvio que isto tem uma causa. E a causa fundamental para isso é a sua distribuição fundiária. Embora estas propriedades já tenham sido dividas por heranças, ainda garantem a renda necessária para se manterem afastados da pobreza, todos aqueles que ainda nelas permanecem. Também é evidente que houve muita diversificação na produção, o que também possibilitou melhores rendas em cima destas propriedades. Nelas se pratica a verdadeira agricultura familiar. 
Placa na entrada da igreja matriz de Harmonia, homenageando os párocos. Veja o Padre Oscar Francisco Mallmann - 1930 e o próximo só foi aparecer em 1981, portanto mais de 50 anos.

O vale do Caí faz com que todas as cidades de seu vale tenham hoje uma localização muito privilegiada, não muito distantes, ou mesmo integrando a região metropolitana de Porto Alegre, com toda a infraestrutura que se possa sonhar e imaginar. Nem sempre foi assim. Escoar a produção sempre foi uma dificuldade enorme. Os porcos tinham que ser levados até São Sebastião do Caí, para a partir dali, pelo rio, serem levados para a sua industrialização e mercados consumidores. Está nesta dificuldade a origem da cooperativa, da qual falamos no início do post, e da qual conto uma breve história, ajudado por um texto de Alex Steffen, postado por Renato Klein nas histórias do Vale do Caí.
Sede da Prefeitura Municipal de Harmonia.

O espírito cooperativo em Harmonia foi precedido por uma organização comunitária de nome Sociedade União Popular que fazia as mediações comerciais com os colonos. Por sugestão de Siegrfried Kniest, que andava pela região e mantinha o contato com os colonos, a sociedade evoluiu para a formação da cooperativa, que foi fundada em 29 de julho de 1935. Na reunião de fundação, 38 colonos estiveram presentes. Alex Steffen assim narra o espírito que animava estes herois fundadores:

"O que mais motivou estas pessoas a lutar por esta conquista, foram as grandes dificuldades enfrentadas para levar a sua produção até Montenegro, distante 25 km de Harmonia, por estradas em péssimas condições, com carroças puxadas por burros, em viagens que podiam durar até dois dias. Através de mutirões liderados pelo primeiro presidente Miguel Menz, a construção do matadouro se tornou uma realidade, sendo que em janeiro de 1938, aconteceu o grande momento da inauguração da fase de industrializção dos suínos, que tinha como produto principal a banha".
Vista da rua principal de Harmonia.

A cooperativa está hoje presente nos supermercados brasileiros com a marca Ouro do Sul. Os produtos são muito apreciados em função de sua qualidade. A cooperativa, com o seu frigorífico, deve hoje ser a maior empregadora da cidade. Harmonia também desenvolveu o seu parque industrial, com destaque para uma fábrica de brinquedos e uma de bebidas, mas estas não são do meu tempo. Do texto de Alex Steffen ainda transcrevo o nome de todos os presidentes da cooperativa e assim dar uma fonte para pesquisas. Descendentes destes podem ser facilmente encontrados em Harmonia ou na região. São eles: 

Miguel Menz: 1935 a 1939;
Antônio Scherer: 1945 a 1950;
João Alfredo Berwanger: 1950 a 1957;
João Hullen: 1957 a 1974;
René Vicente Vier: 1974 a 1982;
Lotário Hoerlle: 1982;
Hugo Amândio Keller: 1982 a 1990;
Theobaldo Valério Persch: 1990 a 1994;
Renato Kuhn: 1994 a 1998
Theobaldo Valério Persch: 1998 a 2010.

Este é um dos belos vitrais da igreja de Harmonia, que foi doação da família de José Reichert, o meu avô materno.

Salvo informações em contrário, Theobaldo Valério Persch deve continuar sendo o presidente deste órgão cooperativo. Pelos sobrenomes dá para ter uma ideia da origem alemã da cidade. Sobre o seu histórico e sobre as suas atrações eu falo num post próximo.

Um pós escrito - (Em 12.12.13). Lendo o livro de Emílio Willems, A aculturação dos alemães no Brasil, encontro o seguinte: " Um dos maiores proprietários daquela zona era José Inácio Teixeira, dono da fazenda Pareci que se estendia entre os rios Maratá e Caí, em ambas as margens do arroio São Salvador, até a região do planalto. Em 1854 começou a colonização destas terras onde em 1862 já se contavam 80 famílias. É digno de nota que o povoamento da área do Caí se fazia como autocolonização. Quase todos os moradores eram filhos ou netos de imigrantes alemães" (Página 72-3). Segundo Antônio Cândido este livro é a maior referência para se estudar a colonização alemã no Brasil. 

quarta-feira, 13 de novembro de 2013

Versão de Kátia de Queirós Mattoso sobre o Quilombo de Palmares.


Quando Antônio Cândido lista os dez livros que, segundo ele, são fundamentais para compreender o Brasil, ele anteriormente faz a apresentação dos tópicos que necessariamente precisariam ser levados em consideração, como, por exemplo, a presença lusa, a presença indígena, a presença do negro escravizado para o trabalho e os diversos períodos históricos presentes em nossa formação. O livro que ele indica para a presença do escravo, recai sobre o livro de Kátia de Queirós Mattoso, Ser Escravo no Brasil. O livro data de 1982 e foi escrito em francês, visando dar ao público estrangeiro uma visão do que foi a escravidão no Brasil. A tradução é de James Amado, que eu saiba, é o irmão do Jorge Amado. No Brasil o livro foi editado pela Brasiliense.
O extraordinário livro de Katia de Queirós Mattoso - Ser Escravo no Brasil.

Este é o terceiro post que faço sobre o Quilombo dos Palmares, que considero o momento mais importante para a formação de uma consciência que nos esclareça sobre o que foi o fenômeno da escravidão no Brasil. Apresentei a versão do historiador português Joaquim Pedro de Oliveira Martins, que mesmo trilhando por ideologias contraditórias, entre elas o racismo, apresentou uma bela descrição do quilombo. Esta descrição está contida no livro de Manoel Bomfim, A América Latina - Males de Origem, livro que também figura na listagem apresentada por Antônio Cândido. A segunda versão retirei do romance de formação de Jorge Amado, Jubiabá, em que o pai de santo Jubiabá, formando a consciência de Antônio Balduíno, lhe conta a história, focando-a no seu herói Zumbi, que passou a ser a grande referência de vida de Antônio Balduíno.
Do livro de Bomfim, outra descrição de Palmares, vista como a Troia negra.

Hoje apresento a terceira a terceira versão. Kátia, em seu livro descreve três quilombos, os mais importantes na sua ótica. Além de Palmares ela descreve também o de Trombetas no Pará e o do Buraco do Tatu, nas proximidades de Salvador. Mas vamos a descrição de Palmares:
Neste romance de formação de Jorge Amado, Jubiabá forma a consciência de Antônio Balduíno, contando-lhe a história de Zumbi dos Palmares.

"Em 1630, os holandeses estabeleceram-se em Pernambuco. Os portugueses formam um regimento de pretos, comandado pelo heroi Henrique Dias, também preto, que os ajuda a combater o invasor batavo. Outros negros, porém, como calabar, organizam-se para lutar contra seus antigos senhores e colaboram com o inimigo, enquanto ainda outros tomam pelo caminho da fuga, atraindo a repressão tanto de holandeses quanto de portugueses.  Abrigados na rica floresta dos Palmares, impenetrável, abundante de recursos naturais, esses fugitivos estabelecem uma "república" de 60 léguas de superfície com várias cidades: Zumbi, Arotirene, Tabocas, Lambrangaga, Subupira, Osenga e Macaco, a capital, cidade grande de 1.500 casas Em 1643, a República dos Palmares conta com 6.000 casas. Em 1670 este número sobe para 20.000. Subupira, o centro de instrução militar, é uma praça forte de 800 cabanas. O primeiro chefe eleito dessa "república" é o rei Ganga-Zumba, que será assassinado em 1678, por haver consentido em negociar com os brancos e com eles assinar um tratado de paz. Seu sucessor, o legendário Zumbi, encarna a resistência negra

Cabanas que compunham a "República dos Palmares", a Troia negra.

Esses reis governam da cidade de onde são originários e que assim se torna a capital do quilombo. São assistidos por um conselho dos anciãos, escolhidos entre os chefes das outras cidades. Rei e chefes têm guardas pessoais. Palmares conta com sacerdotes de todos os cultos religiosos, católico e africanos. Todos os escravos que buscam refúgio nos Palmares são considerados livres. Em contrapartida, o negro apanhado pela força permanece escravo, tendo, contudo, a possibilidade de comprar sua alforria. Somente os chefes vestem-se bem. As armas de fogo são proibidas à população e o homicídio, o roubo e o adultério são severamente reprimidos. Como todos os quilombos, Palmares, tem falta de mulheres e não se hesita em organizar expedições para resgatá-las nos engenhos e povoados distantes. Vive da pesca e da apanha, mas também do milho, da mandioca, das batatas-doces, dos feijões e da cana cultivados no território da República. A carne consumida é produto da caça. Não há criatórios de gado, mas galinhas e frangos cacarejam em torno das cabanas.

Outra vista do que foi a "República de Palmares".

Pedreiros, carpinteiros, caldereiros, tecelões, poteiros, exercem seus ofícios e sabe-se que Palmares mantém relações comerciais com os holandeses e até mesmo com os portugueses. Foram necessárias 18 expedições holandesas ou portuguesas para dominar a República dos Palmares e ainda pairam dúvidas sobre se aquele quilombo foi uma tentativa original e racional de negros fugidos desejosos de estabelecer um estado monárquico de tipo eletivo, ou se representa um fenômeno de resistência cultural, de "regressão tribal". Estamos diante de uma "fuga para a África?" E se há tal, de que África se trata, já que Palmares congrega homens originários de horizontes muito diferentes e das diversas classes sociais?"

Palmares chegou a abrigar 30.000 fugitivos. O de Trombetas no Pará, 2.000. O Buraco do Tatu chegou a ter  32 cabanas. O texto foi extraído de: QUEIRÓS MATTOSO, Kátia de, Ser Escravo no Brasil. São Paulo.Brasiliense.  2003. Páginas 159 a 161.

terça-feira, 12 de novembro de 2013

Retornando às Origens. Tupandi. RS.

Estou tentando fazer uma pequena reconstituição histórica de minhas origens, bem como mostrar os vínculos que ainda tenho com estas mesmas origens. Pertenço a uma família de cinco irmãos: respectivamente Hédio José Rech, Roque Aloísio Rech (In memoriam) José Irineu Rech, Canísio Rech e eu, Pedro Eloi Rech. Somos filhos de Pedro Alfredo Rech e de Berta Cristina Rech, que de origem, tinha o sobrenome Reichert. Todos nascemos em Harmonia, assim também como os nossos pais. Originariamente, o maior número de parentes que tenho, levam os sobrenomes de Rech ou de Reichert. O meu avô paterno, Pedro Rech teve nove filhos e o avô materno, José Reichert, teve mais, teve 14.

Mas como entra Tupandi nesta história? É que meu irmão José Irineu casou-se com uma menina que morava em Tupandi, Selima Froener (In memoriam) e construiu a sua vida nesta cidade de Tupandi. Como o visito todos os anos, tenho também eu, os meus vínculos com Tupandi. Hoje o meu irmão está casado com Araci, que veio de São José do Hortêncio. Tupandi é uma bela cidade de 3.919 habitantes, segundo o censo do IBGE de 2010.
Vista panorâmica de Tupandi, com destaque para a igreja matriz e para a sociedade local.

Tupandi integra a história comum a todos os municípios do vale do rio Caí. As principais cidades do vale são Montenegro e São Sebastião do Caí. Sua história remonta ao século XIX, mais precisamente ao ano de 1885, quando Juca Inácio Teixeira, residente em Pareci, (hoje sede de município sob denominação de Pareci Novo) começou a lotear sua imensa área de terras ao longo da margem direita do rio Caí, entre os imigrantes alemães, que continuavam chegando. Em 1900 foi criado o distrito administrativo de Estação Salvador, sob jurisdição do município de São João do Montenegro. O nome era uma homenagem a um eremitão, de nome Salvador, por aí residente.

Em 1937 a Estação Salvador passou a denominar-se Natal, continuando a pertencer ao município de São João do Montenegro, que agora já se denominava simplesmente de Montenegro. O nome de Tupandi veio em 1944, por decreto estadual, continuando ainda a pertencer ao município de Montenegro. O significado da palavra Tupandi é de luz do alto ou luz do céu. Bonito nome. Sua situação se altera em 1982, com a emancipação do município de Bom Princípio, ao qual Tupandi passa a pertencer, diga-se de passagem, por pouco tempo. Em 1988 ocorreu uma nova onda de emancipações e o município de Tupandi foi criado em 09.05.1988. Emancipou-se de Bom Princípio, recebendo também, parte de seu território de Salvador do Sul.
Sede da municipalidade da bela e socialmente bem situada cidade de Tupandi.

Como toda a região, é formada por minifúndios, tendo na agricultura, ou na economia primária a sua principal fonte de rendas. Merecem destaque a avicultura e a suinocultura, além da produção de cítricos e a pecuária leiteira. A produção de aves obedece ao sistema de integração e, recentemente passou por uma séria crise, que envolveu a empresa Doux - Frangosul. A crise, que redundou em enormes atrasos no pagamento aos produtores integrados, terminou quando a empresa foi vendida para o grupo JBS.

Tupandi também tem um recente mas forte crescimento industrial. Em 1988 instalou-se no município a fábrica de móveis Kappesberg, uma das maiores indústrias moveleiras do país, atuando tanto no mercado interno, quanto no externo. Integra o polo moveleiro de Bento Gonçalves, o maior do país. Possui mais de 1700 trabalhadores em suas linhas de produção. A empresa foi fundada e é administrada por gente do próprio local. Artefatos de cimento também merecem destaque.
A cidade de Tupandi é bi lingue. Vejam a forte presença da língua alemã. Rathaus tem o significado de  sede da municipalidade e Gemeinderat, conselho municipal ou câmara de vereadores.

Os indicadores sociais de Tupandi são um destaque na região, especialmente a sua renda per capita, de R$ 38.098,00. Apenas 1,8% de sua população é analfabeta, a expectativa de vida é de 76,6 anos e a mortalidade infantil é, simplesmente, zero. É a sua estrutura fundiária que garante este bem-estar de sua população. Renda extremamente bem distribuída e um poder municipal com elevado espírito social e comunitário.

Mais um indício da forte presença alemã. Uma placa publicitária. Ao fundo a torre da igreja matriz.

Um fato recente atribulou profundamente o município e as suas consequências podem ser desastrosas. As eleições de 2010 foram anuladas pelo poder judiciário, sendo que o candidato vitorioso teve os direitos políticos cassados, sendo impedido de concorrer novamente. O perdedor pode competir novamente. As eleições de 2010 tiveram uma diferença em torno de 20 votos. Os grupos se rearticularam e em outubro houve novas eleições. O grupo que havia vencido em 2010 foi novamente vencedor, ampliando inclusive, a diferença. O vencedor foi Hélio Inácio Müller, do PP e coligado com o PMDB, PDT e PSDB, com 1787 votos e o candidato derrotado foi José Hilário Junges, do PTB, que não coligou com ninguém e teve 1714 votos. Ambos já foram prefeitos, em mandatos anteriores. Como podem observar, os sobrenomes comprovam a origem alemã da cidade.
Que os recentes fatos negativos sejam rapidamente esquecidos e que a paz volte a imperar em Tupandi.

Tupandi chegou a ser manchete estadual em função destas eleições. O fato é  vergonhoso desde a origem, por causa da anulação da votação e agora foi agravada pelos incidentes posteriores, em que houve, inclusive, incêndio de carros. Esperamos e desejamos que a paz se restabeleça.


segunda-feira, 11 de novembro de 2013

Antônio Prado. A mais italiana das cidades do Brasil

Dois motivos moveram a minha curiosidade sobre a cidade de Antônio Prado. Uma foi o cenário do filme O Quatrilho, que usou as casas italianas da cidade em suas filmagens e a outra, era a placa na estrada, na BR 116, depois de Vacaria, no sentido Porto Alegre, que indicava na direção da cidade. Como, ao menos anualmente passava pelo local, imaginava poder encurtar caminho. É o que eu faço agora, quando vou ao Rio Grande do Sul. Tomo a RS-122 e já saio em Flores da Cunha, Caxias do Sul e Farroupilha, no rumo das planícies do vale do rio Caí, onde moram meus familiares e onde vou me reencontrar com os meus tempos de infância.
A mais italiana das cidades do Brasil. Até as boas vindas são um Benvenuti.

Para quem quiser localizar a cidade de Antônio Prado, já está dada a dica. Para quem vem de Vacaria, pela BR 116, é só ficar atento para a saída da RS 122, que chegará até Antônio Prado. Para quem vem de Porto Alegre, é seguir até Caxias e observar a saída para Flores da Cunha, que também logo, logo chegará à cidade. Mas o que esta cidade tem de especial? Uma única resposta, já justifica uma visita. O lema da cidade, que é: A mais italiana das cidades do Brasil.

Antônio Prado se situa na região nordeste do Rio Grande do Sul, na Serra Gaúcha, numa altitude de 658 metros. A sua história está totalmente vinculada a imigração italiana, tendo sido o sexto e último polo desta imigração, como política oficial do Segundo Reinado. Antônio da Silva Prado era o ministro da agricultura nesta época e é por isso que a cidade o homenageou. As suas origens remontam a 1886, mas a fundação irá ocorrer em 1899. A região é quase integralmente povoada por colonos italianos, originários da região do Vêneto, com o seu característico dialeto. A capital do Vêneto, no nordeste da Itália, é Veneza, sendo que Pádua e Verona são as outras cidades mais importantes.
Italianos do Vêneto e católicos. Duas marcas na colonização de Antônio Prado. A igreja matriz.

As matas da região eram tidas como impenetráveis, sendo habitadas pelos índios caigangues. Os primeiros exploradores chegam dos campos de Vacaria, por volta do ano de 1886, quando ali se estabeleceu um paulista de nome Simão David de Oliveira, que emprestou o seu nome aos caminhos abertos na região, o Passo do Simão.Como fez parte de um projeto oficial, dinheiro público foi ali investido para minimamente possibilitar o início da colonização. Assim foram abertas estradas, construídas balsas e os primeiros barracões para alojar os colonos. O isolamento da região a poupou dos conflitos políticos do Rio Grande do Sul, como a Revolução Federalista, que tanto ensanguentou as plagas gaúchas.
Uma das mais típicas casas italianas, tombada pelo IPHAM. Ao todo são 48 casas tombadas.

Com muitas dificuldades os colonos vão se dedicando às atividades do campo, dedicando-se à agricultura, com o cultivo da videira, do milho, do feijão e da cebola, à pecuária, com a produção de bovinos, suínos e da avicultura. A estrutura fundiária é a da pequena propriedade familiar. A indústria obedeceu ao princípio da transformação, com destaque para a indústria moageira, vinícola e moveleira. A sua população, de acordo com o censo do IBGE, de 2010 é 12.833 habitantes, que tem uma renda per capita de R$ 22.023,00.

Mas o maior patrimônio do município é hoje a sua história e a sua memória. Os seus casarões, tanto em madeira, quanto em alvenaria foram religiosamente preservados e a cidade ostenta o título de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Tem inúmeros prédios tombados pelo IPHAN. O folheto de propaganda institucional do município diz o seguinte: "Com aproximadamente 14.000 habitantes, Antônio Prado é uma cidade que encanta a todos que por ela passam, onde, os dias são sempre italianos. Dentre as várias casas existentes, de bela e particular arquitetura, quarenta e oito (48) são tombadas pelo IPHAN (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. É o maior acervo arquitetônico em área urbana referente à imigração italiana no Brasil, sendo considerado importante para a preservação da cultura e da identidade nacional".
No centro de informações turísticas da cidade. Um tratamento com muito gentileza.

As principais atrações turísticas da cidade são a própria cidade, com o seu centro histórico, a igreja matriz e os seus sinos, a casa de artesanatos, o centro cultural padre Schio, onde se localiza o museu municipal, a casa dona Zilba, casa da família Zilba Grazziotin, aberta à visitação, as escadarias da fé, o moinho Francescatto, a ferraria  dos Marsílio, o santuário da Madona de Monte Bérico, entre outras tantas, com destaque para a bela paisagem natural da serra Gaúcha. Também são promovidos festivais com a típica gastronomia italiana.
Até a cidade do cinema de Roma está presente na cidade.

Satisfiz a minha curiosidade. A visita valeu a pena. Quanto ao filme O Quatrilho, de Fábio Barreto o folheto de turismo institucional assim estabelece a relação entre a cidade e o filme, ao dizer que é uma cidade de cinema. "Antônio Prado possui um patrimônio tombado constituído por casas de madeira e alvenaria que foram construídas no final do século XIX e no início do século XX pelos imigrantes italianos. Em virtude da manutenção e preservação desse patrimônio, em 1995, Antônio Prado emprestou sua imagem de centro histórico, sendo cenário para as gravações do filme O Quatrilho de Fábio Barreto, uma adaptação da obra de José Clemente Pozenato.
Mais uma das paisagens do típico casario italiano da cidade.

Ainda tenho a dizer que o filme de Fábio Barreto data de 1995, é estrelado por Patrícia Pillar e Glória Pires e que recebeu a indicação para o Oscar de melhor filme estrangeiro. A história é do início do século XX e conta-se ser uma história real. O quatrilho é uma referência a um jogo de cartas, em que a cada rodada existe a troca de parceiros. No filme, dois casais dividem casa para sobreviverem e as paixões originárias de invertem. É um filme belíssimo. Personagens anarquistas sempre me agradam muito.  

sexta-feira, 8 de novembro de 2013

Jubiabá. Jorge Amado.


O posfácio, ao livro Jubiabá, de Jorge Amado, escrito por Antônio Dimas, para a edição comemorativa ao centenário de nascimento de Jorge Amado, da Companhia das Letra é tão bonito, que dá vontade de usar apenas esta referência para apresentar esta obra de Jorge Amado, possivelmente o seu primeiro grande romance e onde aparecerão muitos dos temas que serão permanentes na literatura do grande escritor, como os meninos de rua e o mar, que ainda está em formação. A obra é de 1935, quando Jorge tinha apenas 22-23 anos de idade.
A edição da Companhia das Letras de Jubiabá. Literatura da década de 1930.

A intenção do romance fica explicitada em carta de Jorge para o escritor português, Ferreira de Castro, para quem, entre outros, dedica o livro. Mais explícito é impossível: "Venho de passar quatro meses na Bahia, recolhendo material para um romance sobre negros. Chamar-se-á Jubiabá, nome de um macumbeiro de lá, e espero fazer um livro forte, fixando nas duas primeiras partes - "Bahia de Todos os Santos" e "Grande Circo Internacional" - todo o pitoresco do negro baiano - música, religião de candomblé e macumba, farras, canções, conceitos, carnaval místico - e toda a paradoxal alma do negro - raça liberta, raça de grandes gargalhadas, de grandes mentiras e raça ainda escrava do branco, fiel como cão, trazendo nas costas e na alma as marcas do chicote do Sinhô Branco. A terceira parte - "A Greve" - será a visão da libertação integral do negro pela sua proletarização integral. Que acha v. do plano?" Esta carta consta do posfácio de Antônio Dimas.
A primeira edição de Jubiabá, O pitoresco do negro baiano. O livro é de 1935.

Antônio Dimas enquadra este romance como um romance de formação, em que Antônio Balduíno, o Baldo, discípulo de Jubiabá, o pai de santo, vai conhecendo e formando a sua visão de mundo entre o "olho da maldade" e o "olho da piedade". Baldo e Jubiabá moram no morro do Capa-Negro. Baldo é criado solto no mundo, tendo como referência apenas uma tia, a tia Luiza, que enlouqueceu de tanto trabalhar, carregando coisas na tabuleiros na cabeça  e que, por isso mesmo, cedo morreu. Baldo vira chefe de gangue e herói do morro, ao derrotar, em luta de boxe, em pleno largo da Sé,o ariano Ergin. Já seria uma insinuação a suposta superioridade racial dos brancos? Certamente que sim. A vitória de Baldo e a consequente derrota de Ergin são assim, profundamente emblemáticas e simbólicas

Jubiabá e os seus olhos da maldade e da piedade eram a referência moral do morro e a única voz a que Antônio Balduíno efetivamente obedece. É de Jubiabá que Antônio Balduíno ouve a história sobre Zumbi dos Palmares, no dia do enterro de sua tia Luiza. Como perdera a sua única referência, Zumbi ascende à categoria de heroi único do menino em formação. Zumbi se jogou da montanha para não mais ser escravo. Antônio Balduíno também não queria ser escravo. Queria ser livre, embora não compreendesse bem o que significava este "ser livre". Virou lutador de boxe, chefe de gangue de meninos de rua, compositor de sambas, artista de circo e muito mais.
Ilustrações do amigo Carybé para o livro de Jorge Amado.

Uma paixão de infância o atormenta a vida toda. Lindinalva, a filha do Comendador. Todas as muitas mulheres que Antônio Balduíno possuíra, todas tomaram a forma da menina branca e sardenta. Ela o esnobou. O comendador cai em desgraça e morre em casa de mulher dama. Lindinalva está grávida de advogado branco que a abandona. Para Lindinalva, agora já mãe de um menino forte, sobra como opção de sobrevivência, trabalhar na Pensão Monte Claro, na prostituição de alto luxo. Porém o tempo se encarregou de levá-la para a rua de Baixo, na prostituição barata, até parar na ladeira do Tabuão, donde só sairia, ou para o hospital, ou para o necrotério. Degradação completa. 

Antônio Balduíno reencontra Lindinalva nestas circunstâncias, estando já à beira da morte. Arrependida de seu desdém, pede a Baldo por Gustavinho, o seu filhinho. Baldo que também atravessava um momento difícil em sua vida, já pensava no caminho do mar como alternativa para os fracassos em sua vida. O olhar da piedade volta para a sua vida e passará a trabalhar de estivador, para cuidar de Gustavinho, como prometera para Lindinalva.
O fantástico elogio de Albert Camus para o livro de Jorge Amado.

É neste momento que começa a terceira parte do livro, a da greve, que "será a visão da libertação integral do negro pela sua proletarização integral", como Jorge explicitara para Ferreira de Castro, em carta sobre as intenções do romance. É o momento palanque do livro, quando Antônio Balduíno se torna líder da greve que irrompe na cidade de Salvador. Greve que começa com o pessoal dos bondes e se estende para os funcionários das companhias de eletricidade e de telefonia e das padarias e que ganha a adesão de todos os trabalhadores, que simplesmente param toda a cidade de Salvador. A vitória dos trabalhadores será simplesmente total e completa, tal a força que o movimento ganhara.

Antônio Balduíno, que admirava o ABC de Zumbi dos palmares e de outros herois negros sempre queria também para si um ABC. Ganhou um. Também virara um heroi. Neste seu ABC, se lia:
"Este é o ABC de Antônio Balduíno
negro valente e brigão
desordeiro sem pureza
mas de bom coração.
Conquistador de natureza
furtou mulata bonita
brigou com muito patrão
..................................................
morreu de morte matada
mas ferido à traição".

quinta-feira, 7 de novembro de 2013

A América Latina. Males de Origem. Manoel Bomfim.

"Em 1905, Manoel Bomfim estava à frente de seu tempo e a América Latina se encontrava atrás do tempo no mundo de então". Assim Luís Paulino Bomfim apresenta Manoel Bomfim, numa pequena biografia ao final de seu livro, América Latina - Males de Origem. 1905 é o ano da publicação do livro. O homem à frente de seu tempo é sergipano e filho de senhores de engenho. Ele se formou em medicina, mas as decepções com a morte de sua filha o fizeram abandoná-la, para dedicar-se à filosofia, à sociologia e à educação.
O livro de Manoel Bomfim. Foi publicado em 1905. Um vigor extraordinário. Uma edição da Topbooks, de 2005. Portanto, uma edição comemorativa ao centenário de sua publicação original.

A caracterização como homem à frente de seu tempo se deve ao vigor de seus escritos e o seu inconformismo com a realidade de toda a América Latina, dominada pelos povos ibéricos, de quem faz uma caracterização, que não lhes é nada favorável. O inconformismo o levou também a verdadeiros libelos contra a dita neutralidade científica, ao se posicionar com toda a clareza contra todos os determinismos reinantes em sua época, fundados em critérios de inferioridade de raça e de misturas raciais como fator de degeneração das populações que se misturaram.

O verdadeiro despertar em torno da nacionalidade brasileira, podemos assim dizer, que teve suas primeiras manifestações ao longo da década de 1920, para se firmar mesmo, apenas ao longo dos anos 1930. Não seria difícil situar na obra de Gilberto Freyre, Casa Grande e Senzala,como a primeira grande obra de reversão de expectativas em torno da irreversibilidade da natural inferioridade brasileira por questões de clima, de raça, de mistura de raças e pela sua adesão plena a um catolicismo extremamente conformador e conservador. Gilberto Freyre, embora encantado com a bondade dos senhores de engenho, representa um novo marco nas interpretações de Brasil.
América Latina. Uma origem e um destino comum?

É por isso mesmo que Manoel Bomfim é visto como um homem à frente de seu tempo. Bomfim, ao longo das mais de 400 páginas de seu livro, argumenta com argúcia e erudição com todos os teóricos, tanto da teorias raciais, quanto com aqueles que vêem na mistura de raças um fator de degeneração natural. O seu linguajar é vibrante e contundente. Mostra profundos conhecimentos de filosofia, de sociologia e de história. Particularmente, apreciei muito a sua visão histórica sobre a Península Ibérica, pois recentemente fiz um giro por ela. O ponto de origem na formação de portugueses e espanhois foi o das guerras da "Reconquista", que apresenta como a verdadeira origem de um povo dedicado ao saque e a pilhagem, da qual a América Latina foi a principal vítima, logo após a expulsão dos árabes de seu território.

O fundamental de sua visão sobre a América Latina é exatamente a teoria do parasita, que ele descreve longamente, já nos capítulos iniciais do seu livro. Fundado nos estudos de biologia, apresenta a tese de que o parasita perde ao longo de um tempo não muito longo, todos as suas aptidões vitais, atrofiando-as. Enquanto isso, se aperfeiçoam seus instrumentos de parasitagem. Em pouco tempo ele se degenera. Enquanto isso, o parasitado se depaupera, tendo todas as suas energias sugados pelo parasita. As suas primeiras observações são do mundo animal, do qual parte para as analogias ao mundo humano. É brilhante a sua observação quanto aos valores morais surgidos a partir da teoria do parasitismo.
A divisão política da América Latina, hoje.

Assim, os povos ibéricos exerceram sobre a América Latina os seus vícios de origem, adquiridos nos hábitos belicosos e predadores contra os árabes, os inimigos infiéis. Esta realidade fez deles um povo inapto para o trabalho e que encontraram na América Latina o seu habitat para continuarem a viver os seus hábitos, que a estas alturas já são abertamente qualificados como parasitários, dos quais a mais nefasta consequência foi a total aversão ao trabalho. Como solução para a continuidade de sua vida parasitária instituíram a escravização de indígenas e africanos para a realização de qualquer tipo de trabalho. Desta relação com a escravidão ele passa a assinalar a formação de valores morais numa sociedade parasitária. Sintetizo tudo isso numa única frase ou ideia. O único instrumento a regular a relação humana e a justiça era a força.

Também neste contexto mostra as teorias racistas e de inferioridade das raças que se misturaram como ideologias aplacadoras de consciência dos males perpetrados e sem nenhuma consistência científica. Outra constatação belíssima que o autor faz é com relação a culpabilização dos chamados inferiores, no caso, os trabalhadores escravizados. A escala de valores gerada pela escravização e as violentas formas de repressão só poderiam gerar uma cultura de ódio nas relações humanas, mas que seriam possíveis de reversão, assim que as relações se transformassem.
Anti racismo
A obra de Bomfim. Um desmentido categórico da superioridade ou inferioridade de raças, bem como de sua mistura.

Outra teoria impressionante é a do conservadorismo ou conservantismo. Para manter os  ditos privilégios dentro de uma sociedade parasitária, os parasitas só poderiam se ater às doutrinas conservadoras, pois, qualquer mudança, implicaria em alterar a estrutura parasitária da organização do Estado e da sociedade. Parasitismo e conservadorismo, assim se davam as mãos, para manter a opressão e aí sim, o atraso da América Latina, com relação aos povos tecnologicamente mais avançados. Creio que a esta altura já reunimos os elementos para a explicação para o título do livro: A América Latina. Os Males de Origem. E o livro escrito em 1905, mais de cem anos depois ainda se mantem mais atual do que nunca.

Mas Manoel Bomfim não fica apenas nos lamentos. Os seres parasitados, ao contrário do parasita, não se atrofiam ou se degeneram. Eles apenas se depauperam. Se retirarem dos seres parasitados os parasitas, eles terão plenas condições para reverterem a situação. Basta para isso combater a ignorância e a ignorância se combate com a instrução. Não falta também em seu livro, um convite para a utopia: "Utopia... Utopia... repetirá a sensatez rasteira. Utopia, sim; sejamos utopistas, bem utopistas: contanto que não esterilizemos o nosso ideal, esperando a sua realização de qualquer força imanente à própria utopia; sejamos utopistas, contanto que trabalhemos".

Livro de leitura obrigatória para quem minimamente quer conhecer o Brasil e, por extensão, toda a América Latina, uma vez que os males de origem são os mesmos.