domingo, 28 de fevereiro de 2016

"Francisco é um Jesuíta Paraguaio", afirmou Umberto Eco.


Recentemente tivemos a oportunidade de visitar as missões jesuíticas em terras paraguaias, argentinas e no Rio Grande do Sul. O nosso grupo foi formado pelo meu amigo Valdemar, o seu cunhado Adilson e eu. Simplesmente ficamos maravilhados diante do que vimos. Houve total superação de todas as expectativas que tínhamos. Particularmente chamou a atenção a organização que os padres jesuítas deram às suas 'reduções'.
Adilson, Valdemar e eu na redução jesuítica de Trinidad, no Paraguai.


Romina foi a nossa guia no Paraguai, em Trinidad. Ela é uma menina maravilhosa, que põe paixão no trabalho que realiza. Ao falar dos jesuítas, ela meio que titubeava, temendo não conseguir esclarecer de maneira suficiente a grandeza do trabalho destes jesuítas, mas sem hesitação nenhuma, manifestava ódio total aos bandeirantes. Os bandeirantes foram talvez a razão principal deste aldeamento, como método geral deste projeto de 'conquista espiritual'.

Já de volta e, sabedores da morte de Umberto Eco, Valdemar me contou que o escritor também havia escrito sobre os jesuítas no Paraguai. Facilmente localizei o texto no portal do Instituto Humanitas, da Unisinos, uma universidade jesuítica. O texto fazia referência a visita do papa Francisco ao Paraguai, mesmo antes até, de sua visita à sua natal Argentina. O texto tinha por título Cinco razões pelas quais o papa escolheu visitar o Paraguai. A primeira delas era esta afirmação de Umberto Eco de que Francisco era um jesuíta paraguaio. Eco se refere às missões como um "Santo Experimento".
A grandeza da igreja da redução de Trinidad.


A referência que Eco fez a estas missões se deveu a visita do Papa Francisco ao Paraguai em julho de 2015. Bem antes, certamente por ocasião do anúncio desta visita, Eco escreveu para o The new York Times em setembro de 2013 sobre o significado desta visita. Na época ela causava estranheza, uma vez que o papa argentino preferiu visitar o Paraguai, antes mesmo, do que a sua terra natal. O Instituto Humanitas, UNISINOS - comenta o artigo e encontra a seguinte explicação: "É um erro considerá-lo um jesuíta argentino. Talvez deveríamos considerá-lo um jesuíta paraguaio", afirmava Eco em seu artigo. Quais seriam as razões para tal.

O texto do Instituto Humanitas interpreta dessa maneira o artigo do escritor e semiólogo italiano. Vou reproduzi-lo ipsis literis para melhor identificar as citações:  - Neste texto, o autor de O Nome da Rosa sugere que a educação religiosa do primeiro pontífice latino-americano "foi influenciado pelo 'Santo Experimeto' dos jesuítas no Paraguai", referindo-se às experiências das famosas missões jesuíticas guaranis que foram fundadas a partir do século XVII, em territórios que hoje compreendem parte do Paraguai, Argentina e Brasil".
A cátedra da catedral de Trinidad.

O texto continua citando Eco. "Os missionários jesuítas decidiram reconhecer os direitos dos indígenas (especialmente dos guaranis que viviam principalmente no Paraguai em condições praticamente pré-históricas) e os organizaram em 'reduções', que eram comunidades autossustentáveis. Os jesuítas os ensinaram a se organizar por si mesmos, em total comunhão com os bens que produziam, embora com o objetivo de 'civilizá-los', ou seja, de convertê-los. Para alguns dos nativos também ensinaram arquitetura, agricultura, o alfabeto, música e artes; desse espaço, saíram alguns escritores e artistas de talento", relata Umberto Eco.

O texto do Instituto continua: - O semiólogo acredita que esta experiência, que considera "utópica", ainda que "paternalista", influenciou em grande medida no caráter e, sobretudo, na formação religiosa do atual Pontífice. "Agora, se decidirmos avaliar as ações de Francisco a partir deste ponto de vista, devemos considerar o fato de que se passaram quatro séculos desde esse 'Santo Experimento"; que agora se reconhece amplamente a noção de liberdade democrática, inclusive entre os fundamentalistas católicos; que o Papa atual, certamente, não tem a intenção de realizar nenhum experimento desse tipo na ilha de Lampedusa; e que o melhor que poderia conseguir é eliminar gradualmente o Instituto para as obras de religião, o chamado banco do Vaticano", destaca Eco.
A redução jesuítica de Jesus de Tavarangue, no Paraguai.

O texto do Instituto termina esta primeira razão da preferência da visita ao Paraguai, afirmando que  - nesta influência histórica dos jesuítas estaria um dos primeiros elementos que aproximam afetivamente o atual papa Francisco ao universo cultural do Paraguai.

Em outros posts já descrevi a nossa visita, inclusive sobre as razões do final deste "Santo Experimento". A experiência utópico religiosa socialista deveria ser extinta para eliminar esta experiência de economia coletiva tão bem sucedida, para nestas terras implantar o latifúndio e novamente reduzir os índios guaranis ao seu estágio de condições pré históricas. O latifúndio os desquerenciou, mas não conseguiu apagar nestes descendentes guaranis a grandeza da herança que lhes foi deixada pelo "Santo experimento". Destacaria, do Rio Grande do Sul, o canto dos "Troncos Missioneiros", que em tudo aquilo que cantam, eles ainda ecoam a voz das missões.



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sexta-feira, 26 de fevereiro de 2016

O Quarto de Jack. Lenny Abrahamson.

Quando algum filme recebe a indicação ao Oscar de melhor filme, pode ter certeza que ele tem méritos por ter recebido esta indicação. Isso ocorre com O Quarto de Jack. É um filme muito lindo e que mexe profundamente com o emocional. Não concorre apenas ao Oscar de melhor filme, mas também aos de melhor roteiro adaptado, de melhor atriz para Joy (Brie Larson) e de melhor diretor para Lenny Abrahamson.

O roteiro é adaptado do romance Room da irlandesa canadense Emma Danoghue, escrito em 2010. Alguns afirmam que ela teria se inspirado no caso do austríaco que manteve presa a sua filha por 20 anos e com ela ela teve sete filhos, em um caso que se tornou famoso. Mas isso são coisas da imaginação. A adaptação do romance mereceu a indicação ao Oscar de melhor roteiro adaptado e foi escrito pela própria autora do livro.

Vamos a alguns elementos do filme. A primeira parte passa-se no quarto, O quarto de Jack. Jack é um inteligente menino de cinco anos. O quarto é dividido com a sua mãe, Joy. Ele é um minúsculo esconderijo onde Joy foi aprisionada pelo Nick, que a mantém prisioneira com o filho. A relação entre a mãe e o filho é extremamente afetuosa, mas que não esconde também momentos de profunda tensão, especialmente quando das visitas de Nick. A situação se complica quando Joy percebe que Nick está desempregado e os mantimentos básicos começam a faltar. Essa situação poderia redundar em morte, jamais em libertação. 


Joy estabelece um plano, envolvendo o pequeno Jack. Ele simula uma doença. Nick não se comove para levá-lo a um médico. Então o plano passa pela morte. Jack é enrolado num tapete e Nick o leva e o abandonaria num bosque, mas instruído pela mãe, numa diminuição da velocidade do carro, o pequeno e esperto menino salta e é acudido. Nick, desesperado, empreende fuga. A polícia facilmente desvenda o caso e libertam também Joy. Os dois recebem tratamento de adaptação. Não sei porque, mas me lembrei da Alegoria da Caverna.

A adaptação ao mundo, fora do quarto, não é fácil. A relação de Joy com o seu pai é complicada e o fato ganha a mídia. A entrevista toma rumos complicados e Joy entra em pânico, tentando o suicídio. O pequeno Jack sente a falta da mãe, que está em recuperação. Nesse momento ocorre a cena mais emocionante do filme. A cena do corte do cabelo de Jack. Nele estava, simbolicamente, na imaginação do menino, a força para viver. A música sempre acompanha devidamente o volume das emoções. Outra cena marcante é quando Jack fala que sente saudades do quarto e aponta o motivo para tal. Ali a mãe esteve sempre presente. Nunca lhe faltou.

Entre as dificuldades de adaptação ao mundo real, existe uma volta ao quarto. O filme insinua que a adaptação ao mundo real já estava completa. Jack com muita naturalidade se despede dos poucos objetos que havia no quarto, dando adeus à cozinha, à banheira, ao guarda-roupa, à cama e ao aparelho de televisão, com a qual dividira o seu mundo entre a imaginação e o real. O teor do filme é um tema muito sensível e extremamente ao gosto do povo americano e como está revestido de muita beleza e ternura é candidatíssimo ao Oscar. Um, mas que não está em jogo, ele já ganhou. Aquele que proporcionou ao público as maiores emoções.

Ponto alto do filme é a interpretação da mãe e do menino. O menino é encantador, de uma inteligência cativante. Joy, a mãe, interpretada por Brie Larson tem a indicação para a melhor atriz, sendo apontada como franca favorita para receber o prêmio. São atuações impecáveis. As indicações ao Oscar são em quesitos de substância, como melhor filme, direção, roteiro adaptado e melhor atriz.

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2016

São Borja. A Cidade dos Presidentes.

Sempre tive grande vontade de conhecer a cidade de São Borja. Dois fatos me davam maior motivação. A terra dos presidentes e os sete povos das missões. São Borja é uma cidade relativamente pequena para ter tanta importância histórica e ter fornecido ao país dois de seus presidentes, e, diga-se e registre-se, dois presidentes muito queridos. Getúlio Vargas e João Goulart (Jango). Considero Getúlio Vargas como o fundador do Estado/Nação e Jango como o presidente mais bondoso e generoso que este país já teve.
Entardecer em São Borja, tendo por fundo o rio Uruguai.

A cidade foi fundada pelos padres jesuítas, através de seu projeto de conquista espiritual, das reduções ou missões, no ano de 1682, sendo o primeiro dos chamados sete povos. Creio que o termo 'reduções merece uma explicitação. A busco em Eduardo Neumann, em seu livro O Trabalho Guarani Missioneiro no rio da Prata Colonial 1640 - 1750. Nas páginas 49 e 50 encontramos o seguinte: "A palavra redução cujos significados mais frequentes - reduzir, diminuir - ou ainda no sentido missionário de reconduzir a um local era facilmente compreendida de modo pejorativo. Sem dúvida o princípio geral da redução foi o de congregar em povoados várias parcialidades indígenas".
 São Borja, em frente a casa de João Goulart.

Além do projeto da Conquista Espiritual, título de um livro clássico sobre o tema, escrito pelo jesuíta peruano Antonio Ruiz de Montoya, a proteção aos índios guaranis para defendê-los das incursões dos bandeirantes eram a outra grande finalidade. O objetivo dos bandeirantes era o aprisionamento para fins de escravidão. Uma história de muita perversidade. As reduções foram um projeto utópico, entre os maiores que já existiu e era uma utopia religiosa socialista. É inimaginável a grandeza do alcance desse projeto. Em tempos em que Buenos Aires contava com cinco mil habitantes, cada redução contava entre três e sete mil guaranis aldeados.
São Borja. Em frente a casa de Getúlio Vargas.

São Borja é uma cidade da fronteira, situada no oeste do Rio Grande do Sul, na região do pampa.  seu desenvolvimento econômico está ligado à agro pecuária explorada em latifúndios. O destaque todo especial vai para a cultura do arroz, responsável por cerca da metade do PIB do município. Turismo, comércio e indústria completam as atividades econômicas. Sua população é formada por cerca de 63.000 habitantes. No ensino superior destaca-se um campus da  Universidade Federal do Pampa. Do outro lado da fronteira, na cidade de santo Tomé, existe uma faculdade de medicina destinada a estudantes brasileiros. O problema está na validação do diploma para ele ser legal no Brasil.
Junto ao mausoléu de Getúlio Vargas, na praça central de São Borja.

Chegamos à cidade ao final da tarde de sábado de carnaval. Depois de passar pelo porto, onde se preparava a noite de carnaval, nos hospedamos para proceder as visitas turísticas no domingo. Uma grande decepção. As casas de memória de Getúlio e de Jango estavam fechadas. Na porta de ambas havia o comunicado de um plantão com o número de telefone e o nome da pessoa a ser contactada, mas não tivemos retorno. Nós não fomos os únicos a querer fazer a visita. Era domingo de carnaval, está certo, mas também é o tempo em que existe a folga para viajar. Os presidentes merecem uma atenção maior. Menos mal, pois, os dois presidentes tem boas biografias. Destacaria os três volumes da biografia de Getúlio, escritos por Lira Neto e a da Jango, de Jorge Ferreira.
O jazigo da família do presidente Getúlio Vargas, no cemitério de São Borja.

Fomos à igreja matriz. Em frente, na praça da cidade, está o mausoléu em homenagem a Getúlio Vargas, onde também estão os seus restos mortais. A carta testamento tem destaque todo especial. A última visita foi a cemitério da cidade. Lá estão os jazigos das famílias de Vargas e de Goulart. No jazigo da família de João Goulart também está enterrado o governador Leonel de Moura Brizola, uma vez que pertence à família. Foi casado com a irmã do presidente, Neusa Goulart Brizola. Chama a atenção a simplicidade destes jazigos.
Jazigo da família Goulart, onde estão enterrados Jango e Brizola.

Deixamos a cidade no rumo de São Miguel das Missões, a única missão dos setes povos que integra o Patrimônio da Humanidade. De São Borja levamos uma pequena decepção pelo fato de não termos tido a oportunidade de vermos as casas de memória dos dois grandes presidentes, que por sinal tem as suas casas na mesma rua, distantes uma da outra, por apenas duas quadras. Mas, valeu a visita de caráter cívico patriótico.

terça-feira, 16 de fevereiro de 2016

Missões Jesuíticas no Brasil. São Miguel Arcanjo.


As atividades missionárias dos padres jesuítas foram chamadas de reduções ou missões. A redução, segundo Eduardo Neumann, em seu livro O Trabalho Guarani Missioneiro no Rio da Prata Colonial, tem o significado de "reduzir, diminuir - ou ainda no sentido missionário de reconduzir a um local era facilmente compreendida de modo pejorativo. Sem dúvida o princípio geral da redução foi o de congregar em povoados várias parcialidades indígenas. A redução foi a maneira (método) de empreender a Missão". Estes 'aldeamentos' ou 'redutos' tinham em média, entre três e sete mil habitantes.
Um por de sol em São Borja, a primeira redução dos sete povos das missões.

Na redução se formavam os chamados cabildos, que nos dão a ideia atual do município. Sua organização era a mais autônoma possível. Dois ou três padres orientavam e supervisionavam os trabalhos. As missões representaram um salto cultural e organizacional extraordinário. Além da conquista espiritual a defesa contra o ataque dos bandeirantes era o outro grande motivo deste empreendimento que somou fé, socialismo e utopia. Pode-se dizer que havia respeito às diferenças culturais, o que proporcionou grande enriquecimento cultural. Os guaranis eram muito habilidosos e dotados de extrema musicalidade. A região, ainda hoje é terra de músicos.
As imponentes ruína de São Miguel. Patrimônio da Humanidade.

No Brasil, e especificamente no Rio Grande do Sul, houve sete povos, ou sete reduções. A saber: São Nicolau do Piratini, São Francisco de Borja, São Luiz Gonzaga, São Miguel Arcanjo, São Lourenço Mártir, São João Batista e Santo Ângelo Custódio. Ruínas conservadas existem apenas em São Miguel. Elas integram o Patrimônio da Humanidade. São Miguel é também a que tem melhor infraestrutura turística, entre todas as missões, incluindo as do Paraguai e da Argentina.

A preocupação com a preservação começou nos anos 1940 e contou com os trabalhos do arquiteto Lúcio Costa. Na entrada você é convidado a assistir um vídeo que foi muito bem produzido. Logo na entrada da praça está o museu que tem um belo acervo de imagens barrocas, extremamente bem conservadas, como também diferentes utensílios, que nos dão uma mostra da habilidade dos artesãos guaranis. A praça e a igreja são enormes e impressionam. Encontramos aí também o campanário mais bem conservado. Chama atenção a sua imponência. À noite é oferecido um espetáculo de som e de luzes. Não permanecemos para assisti-lo.
A cruz de Lorena. Dois braços. Fé em dobro.

Também chama a atenção, tanto em São Miguel, quanto em toda a região missioneira a existência da cruz de Lorena, que tem como principal característica os seus dois braços, que simbolizam a fé em dobro. Existem lojas de artesanato, retratando as ruínas e a famosa cruz. Numa das lojas existe também uma livraria temática, que creio eu, possui para a venda algo em torno de 20 diferentes títulos. Você encontra aí livros que dificilmente são encontrados nas livrarias tradicionais. Também os descendentes guaranis estão por aí para vender o seu artesanato. E para revigorar os ânimos, você também encontra a Seiva Missioneira, uma cachaça produzida na cidade que leva o nome da maior das batalhas da guerra guaranítica, Caibaté.
Ainda a imponência das ruínas de São Miguel.


O sonho foi grande. Um dos maiores já sonhados. Mas veio a decadência. Vários são os fatores. Aqui no Brasil o grande motivo foi o Tratado de Madri de 1750, quando se trocou a portuguesa colônia do Sacramento pelos espanhois sete povos das missões. As populações guaranis se rebelaram, originando as guerras guaraníticas com direito a heroi e meio santo, Sepé Tiaraju, ou simplesmente São Sepé. No caso das missões na Argentina e no Paraguai, o principal fator foi a expulsão dos jesuítas. Eles e as suas experiências foram como que amaldiçoadas por todos. Os jesuítas foram expulsos dos territórios portugueses em 1759 e dos espanhois em 1767. Em 1773 a ordem foi extinta pelo papa e refundada em 1814. Muita história a ser investigada. teria sido em função de um projeto socialista de poder?

O projeto de economia coletiva e de relativa autonomia política foi destruído. Franciscanos e beneditinos substituíram os jesuítas. A lógica da dominação colonialista total foi restabelecida e os índios não se submeteram. O avanço do latifúndio os desquerenciou. Foram trabalhar como peões e por meio de cantos e pajeadas lamentam o seu triste, porém, altivo destino. O orgulho guarani missioneiro persiste. As desventuras da posse da terra e da exclusão social estão nos cantos de Cenair Maicá e de Noel Guarany e nas pajeadas de Jayme Caetano Braun, que já se foram e presentes também, nas vozes que ainda ecoam fortes, e que, em tudo o que cantam ecoam as vozes das missões, como as de Pedro Ortaça e de Jorge Guedes.
Pedro Ortaça. De guerreiro guarani a payador missioneiro.


O canto é um lamento daquilo que já existiu e que poderia continuar existindo, mas o ser humano continua um especialista em provocar sofrimentos para todos, indistintamente. Termino com uma frase do meu amigo Valdemar: Com as reduções ampliamos os nossos conhecimentos. Acrescentaria que também aumentou o desejo de uma maior justiça social e de maior sentimento de humanidade. Ainda aproveito para registrar o agradecimento ao Adilson e ao Valdemar, grandes companheiros desta magnífica empreitada. A sede de saber foi a melhor companhia que tivemos nesta viagem.

Deixo ainda a mensagem de um folheto do Ministério do Turismo: "Conheça a Rota das Missões. Aqui você encontra o local da realização da utopia do Cristianismo - A Terra sem Males. São atrativos ligados a história, a religião, a antropologia, a arqueologia, a culinária, aos espetáculos, as caminhadas e muito mais. Tudo em perfeita harmonia com a natureza e a cultura dos diversos povos que compõe o espaço, como os Guarani, os alemães, os poloneses e italianos compondo o tradicional gaúcho missioneiro". Segue o link da música missioneira de Pedro Ortaça.

https://www.youtube.com/watch?v=DnLtgOcBxIU





segunda-feira, 15 de fevereiro de 2016

Missões Jesuíticas na Argentina. San Ignacio Miní e Nuestra Señora de Loreto.

O nosso dia começou, ainda na cidade de Encarnacion. Embora a agitação do dia anterior, já cedo rumamos em direção ao centro da cidade de Posadas. A travessia, mais uma vez foi tranquila. A ponte estaiada que une as duas cidades recebe o nome do padre Roque Gonzales, um dos três mártires rio-grandenses. O fluxo de turistas argentinos para as praias do rio Paraná, no lado paraguaio, eram enormes.
A catedral da cidade de Posadas.


No centro de Posadas, a capital da província de Missiones, visitamos a catedral e a Plaza de Armas, além de uma livraria, em busca de literatura missioneira. Soube por diversas consultas que à noite é possível jantar ao som de um chamamé. Mas nós seguimos em busca da Ruta 12, pela qual  se chega, depois de uns 70 quilômetros andados, às quatro missões argentinas que integram o Patrimônio da Humanidade. San Ignacio Miní, Nuestra Senora de Loreto, Santa Ana e Santa Maria La Mayor. Loreto mereceu a nossa primeira das visitas.

Loreto nos remete a Guaíra. Certamente muitos lembram da pequena igrejinha existente nesta cidade paranaense. A conheci nos tempos em que morava em Umuarama, quando ainda existiam as Sete Quedas. Pois bem, perseguidos pelos bandeirantes, os jesuítas transferiram a missão. Levaram em torno de um mês descendo as águas do rio Paraná. A redução ocupa uma área de 75 hectares  e se dedica hoje, especialmente, à preservação florestal, de mata atlântica.. Um guia acompanha a visita. A mata tomou conta de quase tudo. Este trabalho da natureza foi muito facilitado pelo uso do adobe, as casas construídas com o uso do barro.
Uma coluna da ruína de Loreto.


As tempestades neste local são muito frequentes. Os ventos são muito fortes e derrubam muitas árvores.  O trabalho de sua remoção é uma das tarefas maiores dos funcionários do local. Muitas escavações ainda precisam ser feitas, pois são visíveis apenas pequenas partes das ruínas. Mas dá para ter uma noção perfeita do que foi a redução. Para variar, em meio a visita, um temporal irrompeu. Chuva da pesada. Conseguimos abrigo mas como a demora foi grande, enfrentamos a chuva na sua primeira amenizada. Na espera, fomos conversando com o guia. Um dado que creio ser mais ou menos geral. O interesse pela restauração destas reduções data dos anos 1940.

Um almoço nos separou de San Ignacio Miní. San Ignácio está muito bem conservada e pode ser vista em muitos detalhes. É outra das reduções que nos fornecem uma ideia completa do que era o projeto. A nossa visita foi inteiramente prejudicada pela chuva. Visitamos e fotografamos, mas não estivemos acompanhados de guia. Mas são perceptíveis a grande praça, a igreja, o colégio, as oficinas e as casas dos indígenas. Esta redução também oferece o espetáculo de som e de luzes. Saímos do local, simplesmente encharcados. Foi uma pena.
San Ignacio Miní, a mais preservada das reduções na Argentina.


Uma dica importante. Procure se hospedar nas proximidades dessas reduções. Não visitamos Santa Maria La Mayor, nem Santa Ana, mas elas também ficam nas proximidades. Fazer o ponto em Posadas fica bastante distante, uns setenta quilômetros. Num dia normal, isto é, sem chuvas dá para visitar as quatro. Encontramos uma dificuldade em localizar a Ruta 14, que dá destino para Santo Tome e São Borja,  sem voltar para Posadas, mas, depois de alguns quilômetros a mais, nos localizamos. Em Santo Tome, damos uma volta pela cidade, mas não nos animamos muito. Nem tentamos ver uma loja de vinhos e, assim, fizemos todo o caminho argentino, sem ao menos trazer uma única garrafa em nossa bagagem. O câmbio não está favorável. Também não trouxemos nenhum artesanato, que sinceramente, não vimos à venda.
Mais uma vista de santo Ignacio Miní.


Em Santo Tome me lembrei muito dos momentos tensos que envolveram o enterro do presidente João Goulart, que morreu exilado na Argentina. A ditadura militar não o queria no Brasil, nem mesmo depois de morto. Este foi um dos episódios mais lamentáveis em nossa história. Coisas somente possíveis em ditaduras.
Entardecer no rio Uruguai, no porto de São Borja.


Antes da travessia, a aduana e o serviço de imigração. Sem problemas, a não ser o pedágio mais caro que já vi em toda a minha vida. R$ 54,00 para voltar ao Brasil. Compensou todos os pedágios não pagos ao longo das rodovias. Se não me engano foram apenas dois. Imbuídos de um profundo sentimento cívico, entramos em São Borja, a pequena cidade que deu ao Brasil dois de seus queridos presidentes. Getúlio Vargas, o grande estadista construtor do Brasil como uma Nação e João Goulart, que na minha visão, foi o mais generoso e bondoso de nossos presidentes. Mais um dia pleno, tendo a lamentar, apenas, as fortes chuvas.

domingo, 14 de fevereiro de 2016

Missões Jesuíticas no Paraguai. Trinidad e Jesus de Tavarangüe

Este post tem um objetivo específico. Situar as missões ou reduções jesuíticas no Paraguai e, se possível, orientar outros turistas peregrinos em viagem para este projeto utópico, um dos maiores de toda a história da humanidade. Não quero estabelecer juízos de valor, embora tenha crescido a minha admiração pelos jesuítas e ter reformulado o meu conceito a respeito da grandeza dos índios guaranis. Eles formavam uma grande e bela civilização.
A enorme igreja da redução de Trinidad.

No livro O Trabalho Guarani Missioneiro no Rio da Prata Colonial - 1640-1750, de Eduardo Neumann, encontramos o significado da palavra redução: "A palavra redução cujos significados mais frequentes - reduzir, diminuir - ou ainda no sentido missionário de reconduzir a um local era facilmente compreendida de modo pejorativo. Sem dúvida o princípio geral da redução foi o de congregar em povoados várias parcialidades indígenas. A redução foi a maneira (método) de empreender a Missão; em suma 'Missão por redução' que é o projeto global de catequização espanhola".

Assim houve trinta reduções jesuíticas em terras espanholas, das quais oito se situaram no atual território do Paraguai, quinze na Argentina e sete no Rio Grande do Sul. O território 'reduzido' se situava  nas regiões banhadas pelos rios Paraná e Uruguai. Elas surgiram, além do projeto da conquista espiritual, como um ato de defesa dos índios guaranis por parte dos jesuítas, contra o aprisionamento e a escravização empreendida pelos bandeirantes. Algumas datas ajudam a nos situar no tempo. A primeira década do século XVII teria marcado o seu início. Já a data do Tratado de Madri (1750) marca o início do declínio. Algumas datas relativas aos jesuítas também são interessantes. A Companhia de Jesus foi fundada em 1540. A expulsão dos territórios portugueses ocorreu em 1759 e dos espanhois em 1767. Em 1773 a ordem foi extinta e restaurada em 1814. Quanto a números, estes variavam entre três e oito mil índios reduzidos. Um dado interessante nos foi dado pelo guia argentino em San Ignacio Miní. Nesta época Buenos Aires contava com algo em torno de cinco mil habitantes.
As belas colunas romanas na missão de Trinidad.

Entre as oito reduções paraguaias, três são regularmente visitadas. As de Trinidad e de Jesus de Tavarangüe são Patrimônio da Humanidade e se situam a uns trinta quilômetros da cidade de Encarnación. Na de San Cosme Y San Damian existe um observatório astronômico, que tem origem naquele que foi o maior centro astronômico da América do Sul e que conserva até hoje um relógio solar da época. Por ficar mais distante de Encarnación (70 quilômetros) é menos visitada. Não é Patrimônio da Humanidade por ter sofrido modernizações. 

A melhor visita que fizemos foi a da santíssima Trindade. Na recepção, além da venda do ingresso (que serve paras as três reduções) existe uma sala, onde é passado um vídeo, uma pequena exposição com dados referenciais, para então começar a visita. Creio que quem quer ter uma noção geral de como era o projeto, este é o local ideal, o mais perfeito. "Trinidad conta com uma imponente praça, uma grande igreja maior, o colégio, as oficinas, as casas dos indígenas, o cemitério, a horta e um museu", diz o folheto "Roteiro jesuítico", distribuído na entrada. É a melhor conservada, quanto ao seu todo. Existem guias à disposição, com preço de acordo com a tua generosidade e avaliação. A nossa guia foi a Romina, uma descendente dos guaranis.
Adilson, a guia Romina e o corintiano Valdemar, já nas informações finais.

Romina é uma apaixonada pela causa. O seu encanto pelos jesuítas só não é maior em função de seu vínculo com o povo guarani. Em compensação, ela meio que tremia e alterava a voz quando o assunto eram os bandeirantes. Ela nos forneceu dados interessantíssimos. Em torno de 14.000 padres se inscreveram para o projeto das missões. 81 foram os escolhidos para realizar a tarefa. Alguns tinham até cinco títulos acadêmicos. A autonomia dos indígenas era quase total. Apenas três brancos permaneciam na redução, com ausências constantes, em função de viagens. Caciques e pajés tomavam conta. A economia era auto suficiente e geravam grandes riquezas excedentes para pagar o Império espanhol, a Companhia de Jesus e a igreja de Roma e, ainda, para as grandes construções, projetadas por renomados arquitetos europeus. Erva mate e gado eram as riquezas maiores.

Os guaranis eram extremamente habilidosos na aprendizagem dos vários ofícios e eram dotados de grande musicalidade. Eram extremamente devotados à comunidade e os espaços reservados para prisões eram de dimensões muito pequenas. Romina se encantava quando falava do encontro das culturas. É um dos poucos exemplos em que houve incorporação e metabolização de culturas. Embora os princípios religiosos estivessem acima de tudo, não houve o espírito de destruição. O outro - era tido em conta e era ouvido. Assim, as duas culturas se enriqueceram. Romina também se emocionou quando falou do quarto voto dos jesuítas. Os três tradicionais, de castidade, pobreza e obediência e o quarto, que era o da obediência, de novo, mas com uma significação reforçada pelo compromisso de pertencimento ao grupo.
Na entrada de Trinidad, um café turístico que vale uma visita.

Voltamos ao local à noite para o espetáculo de som e de luzes. Música barroca e um projeto altamente profissional de iluminação. Um local  de profunda religiosidade e de perfeito transcender (ascender - se elevar através). Enquanto esperávamos o início do espetáculo fizemos um lanche, num pequeno café turístico, na entrada do parque. A qualidade da recepção, marcada pela refinada educação de sua sócia gerente, Marizza e de sua jovem filha, linda flor em botão, foram a maior unanimidade entre nós três, Valdemar, Adilson e eu, ao longo de toda a viagem. Evidentemente que isto é uma recomendação. Ali são servidos, inclusive, pratos típicos da cozinha paraguaia.
Na redução de Jesus de Tavarangüe, a influência árabe na arquitetura.

Jesus de Tavarangüe foi a última das reduções a ser povoada e, por isso mesmo, ficou inconclusa. Hoje existe apenas a igreja e o colégio. O estilo arquitetônico já é bem diferente do de Trinidad, onde prevalece o românico. Aqui já se nota uma profunda influência árabe. É uma das maiores igrejas de todas as reduções. A palavra Tavarangüe indica para a cidade do futuro. Uma palavra final sobre a decadência do projeto missioneiro. Com a expulsão dos jesuítas do império espanhol em 1767, os indígenas, ao não aceitarem as imposições dos dominicanos e franciscanos, preferiram a dispersão ao aldeamento. Questões de altivez e de insubordinação. Este foi mais um dia de raros privilégios. Quanta riqueza histórica e cultural.






sábado, 13 de fevereiro de 2016

Viajando pelas terras missioneiras. Paraguai - Argentina e Brasil.

Num belo dia estávamos em um churrasco numa chácara em Campo Magro. Comentei com o meu amigo Valdemar Reinert que eu iria visitar a cidade de Diamantina, em Minas Gerais. Verificamos o voo e fomos juntos. Em Diamantina combinamos a próxima viagem - que seria para as terras missioneiras da América do Sul, onde se encontram sete patrimônios culturais da humanidade. Dois no Paraguai, quatro na Argentina e um no Rio Grande do Sul. Farei abordagens em posts separados. As missões ou as reduções foram um dos projetos mais utópicos de toda a história da humanidade. Uma utopia religiosa e socialista.
Este mapa dá uma boa ideia sobre a localização geográfica dos trinta povos das missões.

Chegou o tempo da partida. À nossa comitiva se somou o Adilson, cunhado do Valdemar, que mora em Florianópolis. O esperamos no modesto aeroporto da progressista cidade de Chapecó. Aí ficamos num dilema sobre o caminho a percorrer. Se entraríamos na Argentina por Santa Catarina, ou pelo Rio Grande do Sul. Optamos para fazer a travessia por Dionísio Cerqueira, em terras catarinenses. Mas para quem sai de Curitiba, a melhor opção é fazer o cruzamento pela cidade de Barracão. A ruta 12 leva para Posadas.

Em São Miguel do Oeste, ao pararmos num bar, para um pequeno lanche e informações mais precisas, ocorre a primeira peripécia da viagem. Foi o primeiro contato com um missionário de uma outra causa, que não era a jesuítica. Era um missionário da causa separatista, O Sul é o meu País. Como a recepção não foi positiva, o assunto puxado foi a ditadura militar, com loas para o general Geisel. Como o assunto também não empolgou, houve uma guinada à esquerda. Brizola e o MST foram a sua nova tentativa. A Encruzilhada Natalino foi dada como a origem do MST.. Outros temas se seguiram mas precisávamos partir. E o homem queria conversar. Propôs até um churrasquinho.
Adilson, Valdemar e eu em Trinidad, a mais conservada das reduções.

O serviço de imigração é tranquilo. Carteira de identidade ou passaporte são necessários. A carteira de identidade deve ser nova, aquela que tem fotografia colorida. O cartão verde de seguros pode ser adquirido com facilidade. O carro precisa de dois triângulos de sinalização. Não fomos parados nenhuma única vez, nem na Argentina, nem no Paraguai. A paisagem é belíssima. Creio que devemos ter passado por reservas florestais. Chegando a Posadas optamos por seguir direto a Encarnación, já no Paraguai e, acertamos em cheio. Uma moderna ponte separa, ou une, as duas cidades. Boas refeições, ótima acolhida e, acima de tudo, uma educação refinada de seu povo. Aí visitamos dois Patrimônios da Humanidade: Santíssima Trinidad e Jesus de Tavarangue.  Ficam a uns 30 quilômetros da cidade. Mais distante está Sán Cosme e Damian, que não visitamos. Ao todo eram oito as reduções jesuíticas no Paraguai.
A igreja e o colégio. É o que sobrou na redução de Jesus de Tavarangüe.

De noite voltamos a Trinidad para o show de som e de luz, um espetáculo imperdível. E, ainda em Encarnación, fomos ao sambódromo da cidade, pois, ali se realiza o mais tradicional dos carnavais do Paraguai, que tem raízes plantados nos idos de 1916. Depois de novamente atravessar a ponte, que leva o nome do padre Roque Gonzales, um dos três mártires rio-grandenses, dos quais eu ouvi falar muito na minha infância passada em Harmonia, damos uma passada no centro de Posadas, a capital da província de Missiones. Ao atravessarmos a ponte deparamos com uma enorme fila de argentinos em busca da Costanera, uma rua litorânea de 27 quilômetros, em Encarnacion, nas margens do rio Paraná. É o maior balneário do Paraguai. Seguramente um investimento com retorno garantido. São 27 quilômetros de aterros. As praias se tornaram possíveis com a construção da hidroelétrica binacional de Yacyretá.

As missões na Argentina eram em número de quinze. Quatro são Patrimônio da Humanidade. A de Sán Ignacio Miní, a de Nuestra Señora de Loreto e as de Santa Ana e Santa Maria La Mayor. Visitamos a de Sán Ignacio e a de Nuestra Señora de Loreto. Fomos surpreendidos por uma forte chuva, que muito prejudicou a nossa visita. Uma observação importante. Essas missões estão a uns setenta quilômetros de distância de Posadas. Elas se situam na Ruta 12. Pelo meio da tarde voltamos ao Brasil. Buscamos a ruta 14, no rumo de São Borja, a cidade brasileira de dois presidentes. São Borja está a apenas 164 quilômetros de distância de Posadas.
Adilson e o guia em Nuestra Señora de Loreto. A preservação florestal é prioridade. As ruínas estão devidamente protegidas.

Em São Borja, ainda no mesmo dia, visitamos o porto, onde estava sendo preparada a noite de carnaval. Um lembrete. Para sair da Argentina, na cidade de San Tomé, paga-se um pedágio de cinquenta e quatro reais. Portanto, não dá para ficar passeando de ida e volta entre Sán Tomé e São Borja. A travessia é feita por ponte sobre o rio Uruguai. Reservamos o domingo para a visita aos museus das casas dos dois presidentes. Elas estão muito próximas e se situam na mesma rua. Apesar de terem plantões anunciados, com números de telefone e nomes de pessoas a serem chamadas, ninguém atendeu. Assim, em domingo de carnaval, não conseguimos fazer a visita. Visitamos ainda a igreja da cidade e, em frente a ela, o mausoléu do presidente Vargas, onde também estão os seus restos mortais. A visita ainda se estendeu ao cemitério, onde se encontram os túmulos das famílias de Vargas e de Jango Goulart. No túmulo da família de Jango também está enterrado o governador Leonel de Moura Brizola, que era casado com Neusa, a irmã do presidente.
Ruínas de São Miguel, a última etapa da viagem missioneira.


De São Borja fomos direto a outro Patrimônio da Humanidade, as ruínas de São Miguel. Percebe-se que é a mais visitada de todas e a que tem melhor infraestrutura turística, com museu e artesanatos e, pasmem..., livros temáticos à venda, inclusive o clássico A Conquista espiritual, do padre Antônio Ruiz de Montoya.  Ainda entramos no centro de Santo Ângelo para ver a sua bela catedral e fomos direto para a parte final da viagem, para dois dias de descanso nas águas termais de Piratuba, que é uma destas muitas maravilhas que deram certo, por esse Brasil afora.
A bela catedral missioneira de Santo Ângelo


Em Florianópolis deixamos o nosso bom companheiro de viagem e voltamos a Curitiba. Percorremos 3.020 quilômetros e na bagagem trouxemos muita história, muita cultura e, na lembrança, as muitas conversas com pessoas que encontramos ao longo da trajetória e, na memória, fica a imagem de grandeza dos povos guaranis e os insondáveis mistérios das utopias socialistas dos padres jesuítas. Lamentamos não termos ouvido nenhum chamamé ao vivo, a mais típica das músicas missioneiras. Em compensação trouxe uma Seiva Missioneira, produzida nas terras onde ocorreu a maior batalha da guerra guaranítica, a de Caibaté.

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2016

Trumbo. Lista Negra. Hollywood e o Macarthismo no Cinema.

O Século XX foi o século das grandes guerras. Guerras imperialistas, diga-se logo. Guerras sangrentas, acrescente-se. Capacidade de destruição levada à perfeição com o uso da bomba atômica, quando a guerra já estava definida. Crueldade humana inimaginável e inacreditável nos campos de concentração nazistas. E depois disso, o mundo melhorou?  Sempre lembro e relembro de Adorno em seu clássico texto Educação após Auschwitz: "A exigência que Auschwitz não se repita é a primeira de todas para a educação". O que efetivamente aconteceu?


A aliança nazi-fascista protagonizou o impossível. A união entre capitalistas e comunistas para a derrubada de um monstro. Esta união nunca foi assimilada ou metabolizada pela extrema direita americana. No entanto, ela foi extremamente necessária para a derrota de Hitler. Se as chamadas forças ocidentais não estivessem totalmente exauridas a guerra teria tido continuidade, pois, o inimigo maior ainda precisaria ser derrotado: o comunismo soviético.

O fim da guerra marcou o início de outra, talvez pior do que a real; a chamada guerra fria, marcada pela bipolaridade do mundo. Duas potências econômicas dividiriam entre si o mundo e sobre ele manteriam uma vigilância sem precedentes, tanto em seus territórios, quanto sobre os do adversário. Vigilância ou espionagem? Ou intervenções diretas mesmo? Afinal de contas, quem não se lembra dos tempos da Ideologia da Segurança Nacional? Nenhuma ideologia triunfa se não tiver um inimigo forte a combater. 


E na terra das proclamadas liberdades, o que acontecia? Uma verdadeira caça às bruxas. Esta caça às bruxas ganhou um nome. Macarthismo. O Macarthismo via tantos inimigos comunistas, quanto os cristãos veem demônios. No Congresso americano foi criado um Comitê de Atividades Antiamericanas. Este comitê foi um tormento para toda a inteligência do país. Liberdade de criação, imaginação fecunda e o uso da inteligência, eram atividades não toleradas. Toda a efervescência  cultural era suspeita. Universidades, o mundo da literatura e do jornalismo e, em especial, o cinema eram os moinhos propagadores dos ventos da agitação e da subversão comunista. Em Hollywood se formou uma lista negra, a lista que dá título ao filme. Os roteiristas eram os alvos preferidos. Entre eles, um da lista dos dez, era Dalton Trumbo. Chaplin, por ser inglês, foi expulso do país.


Na época era muito comum os intelectuais serem comunistas. As guerras imperialistas desgastavam o capitalismo e a participação decisiva do socialismo soviético na derrota de Hitler só fizeram por crescer a convicção de que o comunismo representava uma alternativa para o mundo. As decepções vieram mais tarde, especialmente, a partir de 1956, com a realização do XXº PCUs. Dalton Trumbo era um desses intelectuais. Trumbo era um dos mais renomados roteiristas de Hollywood. Entrou na lista proibida, por não entregar os companheiros para o tal do Comitê do Congresso. Seu crime? Nunca delatou ninguém, além de ser comunista, é óbvio. Dois crimes bárbaros.

As perseguições logo se fizeram sentir. Nenhum diretor poderia contratá-lo. Boicote total. Como só sobraram os roteiristas de segunda linha, o cinema começou a decair. A solução foi contratá-los sob o artifício do uso de nomes falsos. Mas vieram as premiações e o problema da entrega dos troféus. Nessas condições Trumbo recebeu prêmios por A Princesa e o Plebeu e por Arenas Sangrentas. Mas as dificuldades foram crescendo. Dramas familiares, relação com a mulher e os filhos, além da questão financeira e da própria prisão.

Como não há mal que dure para sempre, também os Estados Unidos superaram este seu mundo de trevas, pela atenuação das perseguições e, talvez mais, pela ação decisiva de diretores e produtores em favor do restabelecimento da liberdade de criação no mundo do cinema. Assim Otto Preminger não o escondeu como o roteirista de Exodus, um monumental sucesso de bilheteria. e o mesmo aconteceu com Spartacus, filme que teve a atuação e a produção executiva de Kirk Douglas e a direção de Stanley Kubrick. Kirk Douglas ignorou protestos e proibições e, assim, muito contribuiu para o sepultamento da tal da lista negra..


O filme também dá destaque a uma homenagem que ele recebeu em 1970, do sindicato dos roteiristas, numa espécie de desagravo. Nesta homenagem faz um belo discurso, mostrado ao final do filme, destacando que "Quando você olha para trás, com curiosidade em relação àquele período sombrio, não é bom procurar vilões, herois, santos ou demônios, porque não há; há apenas vítimas". Efetivamente, há apenas vítimas. O grande mérito do filme está, no entanto, em mostrar este período nebuloso e nos fazer ver, que sob o domínio do capital, a liberdade é uma espécie de recreio vigiado das crianças. Se cometerem deslizes, haverá castigo.

O filme também recebeu muitas críticas, entre elas a de ser propaganda comunista. Em tempos de ódios acirrados estas coisas acontecem. Isso pode ser visto, agora, na campanha presidencial dos Estados Unidos. Os republicanos estão na disputa para ver quem é o mais conservador para disputar o posto de presidente da República. Conservador é um termo muito generoso. O mesmo fenômeno de ódio pode ser visto também aqui no Brasil, quando Bolsonaros se transformam em opção eleitoral. Pasmem! A história de ódio está se repetindo. O filme é importante contribuição para que isso não se repita. O filme tem uma indicação a Oscar. Bryan  Cranston concorre ao prêmio de melhor ator. Simplesmente imperdível.






segunda-feira, 1 de fevereiro de 2016

Mulheres de Cinzas. Mia Couto.

Mulheres de Cinzas é um romance do escritor moçambicano Mia Couto, lançado em fins de 2015. Embora eu conhecesse mais Mia Couto como contista, desta vez o encontro com ele se dá por um romance, que integra um plano maior. Logo ao abrir o livro, em sua primeira página, já lemos: As areias do imperador. Uma trilogia moçambicana. Estamos, portanto, no primeiro volume. Faço esta resenha, na parceria que o blog mantém com a Companhia das Letras. A Companhia das Letras publica o escritor no Brasil.
"A única saída para uma mulher é passar despercebida, como se fosse feita de sombras ou de cinzas".

Vamos situar o romance, que une "sua prosa lírica característica a uma extensa pesquisa histórica", lemos na orelha da capa. A pesquisa histórica é uma referência à dominação portuguesa sobre Moçambique, a sua terra natal. Vejamos o que o autor nos diz na esclarecedora nota introdutória: "Este é o primeiro livro de uma trilogia sobre os derradeiros dias do chamado Estado de Gaza, o segundo maior império em África dirigido por um africano. Ngungunyane (ou Gungunhame como ficou conhecido pelos portugueses) foi o último dos imperadores que governou toda a metade sul do território de Moçambique. Derrotado em 1895 pelas forças portuguesas comandadas por Mouzinho de Albuquerque, o imperador Ngungunyane foi deportado para os Açores, onde veio a morrer em 1906". (...)

O personagem central do livro é Imane, uma menina nativa de 15 anos, que é a principal narradora da história, tarefa que é intercalada com as cartas do sargento português, Germano de Melo, um degredado por haver participado de rebeliões contra o rei, em Portugal. O local dos acontecimentos é a cidade, ou melhor, o povoado de Nkokoline, mas as cidades de Inhambane e Lourenço Marques (atual Maputo) também são bastante citadas. As cartas do sargento são endereçadas para o Conselheiro José d'Almeida, sediado em Lourenço Marques e datadas do ano de 1884 e se estendem também para o ano seguinte. Nos situamos, portanto, no começo da narrativa.

Onde está a grande riqueza do livro? As virtudes do escritor já são bastante conhecidas. O seu lirismo, a sua poesia, a sua imaginação criativa, a sua magia mítica alcançam neste livro seus pontos culminantes. Destacaria também o imenso amor às tradições de sua terra, através das histórias que conta e da reverência aos seus valores que exalta. Um exemplo é Imani, uma menina cristianizada pelas missões portuguesas, num diálogo com o sargento: - "Mas tu não és católica? - Sou. Mas tenho muitos outros deuses". E estes deuses estão todos presentes nos muitos valores que lhes são transmitidos pelos antepassados. No caso do livro, especialmente pelo avô, pelo pai e pela mãe.

O outro grande tema é o do imperialismo, da dominação e da conquista. O imperialismo é o destroçar de tudo. Das tradições, dos valores, da solidariedade e dos laços familiares, dividindo, inclusive, os membros de uma mesma família. As cartas do sargento são um lamento permanente dos horrores causados pelas guerras e da impotência portuguesa diante das mesmas, por não conseguir o domínio sobre os nativos e por dividi-los com promessas impossíveis de serem cumpridas. São um lamento profundo e uma terapia psicanalítica permanente. Vai contando as suas frustrações, em meio a uma réstia de ternura, que nutre pela menina negra, Imani.
O premiadíssimo escritor moçambicano, nascido em 1955.

Até o escritor Eça de Queiroz é lembrado num desabafo sobre a sua terra: "Portugal acabou". E o lamento do sargento segue: "Ao escrever estas palavras diz ele que lhe vieram as lágrimas aos olhos. É essa a minha e a sua doença: a nossa pátria sem futuro, vazada pela ganância de um punhado, dobrada sob os caprichos da Inglaterra". O pavor do militarismo e do armamentismo também estão sempre sob certeira mira, como nos mostra este diálogo em que a mãe pede para o filho enterrar as armas: "Todas as armas? - perguntou o filho. Todas. As dos portugueses também. - As dos portugueses não podemos, mãe. - Você não entende uma coisa, meu filho. Não é a guerra que pede armas. É o contrário, as armas é que fazem nascer a guerra". E essa sobre o militarismo, posta em epígrafe num dos capítulos: "O soldado ganha a farda; o homem perde a alma."

Deixo ainda uma frase extraordinária sobre a ambição e toda a ganância do imperialismo, retirada do último dos 29 capítulos do livro: "Não sabe a italiana que no princípio de tudo, quando a terra não tinha ainda donos, os rios e as nuvens corriam por debaixo do chão. Chegou o demônio e espetou o dedo na areia. A sua unha comprida esgravatou nas profundezas. procurava pedras que brilhassem à luz do Sol. As nossas mães pediram aos deuses que protegessem as estrelas que haviam escondido debaixo da areia. pediram que o diabo abdicasse de arrancar os brilhantes minerais e que desistisse de os entregar à ganância dos que queriam enriquecer. Mas o diabo não desistiu. Porque ele tinha , entre os poderosos, quem rezasse por ele. E quebraram-se-lhe as unhas e sangraram os seus dedos magros e longos. Pela primeira vez no ventre da Terra se coagulou o contaminado sangue do demônio. As riquezas do subsolo estavam amaldiçoadas. As nuvens e os rios abandonaram o ventre do planeta para escaparem dessa maldição. E tornaram-se as veias e os cabelos da Terra".

A solidão do sargento Germano em Nkokoline me fez lembrar de uma outra solidão em um fim de mundo. O deserto dos Tártaros de Dino Buzzzati. As dores da existência são profundas, especialmente, quando esta carece de significado e, mais ainda, quando isso é percebido. Sobre o imperialismo, ainda uma última frase, posta em epígrafe, no capítulo 21. Ela é do imperador Teodoro II, da Etiópia: "Conheço o jogo dos europeus. Mandam, primeiro, os comerciantes e missionários; depois, os embaixadores; depois os canhões. Bem podiam começar pelos canhões".