segunda-feira, 22 de dezembro de 2014

O Primo Basílio. Eça de Queirós.

Leituras necessariamente chamam mais leituras. Bom escritor conduz à leitura de muitos de seus livros, se não a todos. De Eça de Queirós li primeiramente A Relíquia. Uma fábula de ironia e de sarcasmo. Adorei. Depois li Os Maias. Uma monumental tragédia e uma viva descrição da sociedade portuguesa da segunda metade do século XIX. Daí vi a minissérie produzida pela Rede Globo, numa adaptação de Maria Adelaide Amaral. É daqueles trabalhos do qual se pode dizer que complementou a compreensão da obra. Vi a entrevista dela falando do seu trabalho. Para realizá-lo estudou Eça por inteiro. Motivado fui adiante, agora com O Primo Basílio.
Li esta edição da Biblioteca Folha de O Primo Basílio.


É fácil escrever romances que envolvam o tema do adultério? Não creio que o seja, por vários motivos. Não deve ser fácil arranjar um final para obras com esse teor. Um final feliz é praticamente impossível. As alternativas também não são muitas. Muitas estão contidas no livro, especialmente, no imaginário do desespero de Luísa: suicídio, convento, fuga, assassinato para lavar a honra. Mas creio que o principal obstáculo era o tema, ainda como um tabu. A família era intocável. Deveria ser mostrada e vista como uma instituição perfeita. Os desejos deveriam ser totalmente controlados pela moral religiosa ou pela retilínea razão. O livro foi escrito entre os anos de 1876-1877. Flaubert, com a sua Madame Bovary, fora levado aos tribunais e só foi salvo da prisão pela autopunição de seu personagem. Nos tribunais Madame Bovary foi transformada numa obra moralista. Isso, apenas vinte anos antes.

Na coleção Os Imortais da Literatura Universal também está -  O Primo Basílio.

Vamos à história. Luísa e Jorge formam um jovem casal. Jorge é engenheiro de minas, com cargo público. Luísa, diríamos hoje, era do lar. Vivia no ócio e tinha uma formação limitada. Pela descrição de Eça, devia ser muito bonita e sedutora. Tinham uma vida absolutamente normal. Tinham duas empregadas: Juliana e Joana. Luísa tinha uma amiga, insuportável aos olhos de Jorge e, com razão, - Leopoldina. Sebastião, o médico Julião e Dona Felicidade, praticamente completavam o círculo de amizades. Sim, falta ainda o outro personagem, o primo de Luísa, o personagem do título, O Primo Basílio.

Jorge fora ao Alentejo em visita de trabalho. Leopoldina visita Luísa que a recebe, mesmo sabendo das restrições de Jorge. Leopoldina não era um exemplo de virtudes. Ela e os livros promoviam as viagens imaginárias que faziam Luísa superar o tédio do ócio-ócio, diariamente feito repetição. O primo, que fora também o primeiro namorado, veio visitá-la. No lar havia um foco de intriga. A relação entre Juliana e Luísa não era das melhores. Juliana fora chamada por Jorge, numa espécie de gratidão, pela assistência de Juliana, no caso da morte de sua mãe. Luísa mal e mal a tolerava. Estavam longe da teoria de que o poder se estabelece na relação. Era imposição, no duro.
Eça de Queirós em O Primo Basílio traça o perfil da família pequeno burguesa de Lisboa.


Luísa não resiste ao jogo de sedução do primo. Dos encontros furtivos passam a encontros diários no Paraíso, uma pensão nada paradisíaca. Carecem de cuidados, para alegria e assunto da vizinhança. Um dia o primo falta ao encontro. Ela lhe escreve: Meu adorado Basílio. Juliana intercepta a carta. A chantagem começa. Basílio vai embora e Jorge, finalmente volta. Jorge estranha a mudança de Luísa com relação a Juliana. Os papéis se tinham invertido. Luísa, a empregada e Juliana, a patroa. Juliana pedira a Luísa uma fortuna pela devolução da carta. Juliana escreve para o primo, em Paris, para lhe mandar o dinheiro. Nada de resposta. Jorge estranha tudo, inclusive o amor intensificado de Luísa.

Sem solução e no extremo de seu desespero Luísa conta tudo a Sebastião. Este, com o auxílio de um policial resgata a carta e, aparentemente, tudo volta ao normal, senão quando, numa manhã chega uma carta vinda de Paris. Jorge a recebe. Se Luísa não tem mais preocupações, agora elas são de Jorge. E a história se encaminha para o seu final. Sebastião ajudara a Luísa, absolvendo-a de culpa. Ela foi totalmente atribuída à irresponsabilidade e à safadeza do primo. Quando Basílio, de volta a Lisboa, soube da morte da prima, ele simplesmente diz a um amigo: "Que ferro! Podia ter trazido a Alphonsine".
A cidade de Lisboa, o cenário de O Primo Basílio.


Ao final dos dezesseis capítulos do livro - Li a edição da Biblioteca Folha -  tem uma carta do Eça para o amigo Teófilo Braga, escrita um ano após a publicação do livro. Esta carta é muito interessante e esclarecedora sobra a obra. Agradece o estímulo recebido e conta sobre o porquê de tê-la escrito. O amigo lhe cobrara sobre o tema da família. Ele escreve: "Perfeitamente: mas eu não ataco a família - ataco a família lisboeta, - a família lisboeta produto do namoro, reunião desagradável de egoísmos que se contradizem, e mais tarde ou mais cedo centro de bambochata. No Primo Basílio que apresenta, sobretudo, um pequeno quadro doméstico, extremamente familiar a quem conhece bem a burguesia de Lisboa". Depois descreve os personagens do casal. Primeiro ela, depois ele:

" - A senhora sentimental, mal educada, nem espiritual (porque cristianismo já não o tem; sanção moral da justiça, não sabe o que isso é), arrasada de romance, lírica, sobreexcitada no temperamento pela ociosidade e pelo mesmo fim do casamento peninsular que é ordinariamente a luxúria, nervosa pela falta de exercício e disciplina moral, etc, etc, - enfim a burguesinha da baixa; por outro lado o amante - um maroto, sem paixão nem a justificação da sua tirania, que o que pretende é a vaidadezinha de uma aventura, e o amor grátis". Descreve ainda os outros personagens, entre eles, o conselheiro Acácio.
Tenho minhas dúvidas se Eça teria aprovado esta versão brasileira de O Primo Basílio para o cinema. Ela é ambientada em São Paulo nos anos JK.


A Acácio, o incrível personagem mais que centenário e imorredouro, define como representando "o formalismo oficial". O conselheiro é o personagem meio onipresente, atemporal e universal, que se faz de entendido em tudo, qua arrota sabedoria em citações e palavreado pomposo destituído de significado, aplicável a qualquer situação. É extremamente moralista, embora vivesse amasiado com a criada, que por sua vez o traía. Em O Primo Basílio faz o necrológio de Luísa, exaltando a sua casta pureza. Como podem ter notado, a obra se reveste de uma atualidade impressionante, tanto assim que o filme brasileiro, adaptado da obra, o ambienta em São Paulo - dos anos 1950.



 

quarta-feira, 17 de dezembro de 2014

1930-1964. Um Panorama Cultural.

Este post tem origem no livro Memórias Póstumas de Noel Rosa - Uma longa conversa entre Noel  e São Pedro num botequim lá do céu, de autoria de Luciana Sandroni. A efervescência musical de Noel Rosa ocorreu nos anos 1930. Ele morreu no ano de 1937, com apenas 26 anos de idade. Viveu o tempo suficiente para ter o seu nome gravado para sempre no panorama cultural brasileiro, como um dos fundadores do autêntico samba brasileiro, ao introduzir elementos africanos na música e a crítica social nas letras de seus sambas.
Um belo livro sobre a vida de Noel Rosa. A Vila Isabel, sua vida e sua arte e o seu legado.

Quis ver alguma coisa a mais. E isso eu vi no livro Olhando para dentro - 1930-1964, sob a coordenação de Angela de Castro Gomes e, mais precisamente, no quinto capítulo em que Eliana de Freitas Dutra examina a evolução cultural ocorrida nesse período. O livro integra a coleção História do Brasil Nação: 1808- 2010, sob a direção de Lilia Moritz Schwarcz. Os principais focos estão centrados no livro e nas revistas, no rádio e na música, no teatro de revista e no emergente cinema brasileiro. Outro foco é a preocupação do Estado brasileiro com a questão. Afinal, o período tem uma forte marca do Estado Novo e do Departamento de Imprensa e Propaganda, o famoso DIP.
Neste livro está o texto de Eliana de Freitas Dutra, que mostra a evolução do panorama cultural de 1930 a 1964.

Não é um texto longo, ocupando as páginas 229 a 274, com fartas ilustrações fotográficas, que ocupam até páginas inteiras. A parte que eu mais gostei foi a que se refere ao livro e a preocupação com a formação de leitores. Como sempre, havia na época, os otimistas e os pessimistas. Eliana destaca a importância do livro, meio cultural de raiz, que abre as possibilidades para as outras expressões e manifestações da cultura. Os grandes vilões para a falta de leitores eram a pouca escolarização do povo, o alto custo do papel e do livro e a falta de estímulo para o ofício de escritor. Raros são os que viveram exclusivamente dos direitos autorais. Os fatores favoráveis foram o surgimento dos métodos ativos da Escola Nova e as políticas de Estado em favor da leitura, como o surgimento de bibliotecas e do lançamento de coleções, editadas com o auxílio de dinheiro público.

Também contribuiu o espírito nacionalista da época e a preocupação com a literatura juvenil. O grande nome a batalhar para a edição de livros foi Monteiro Lobato, o proprietário da Companhia Editora Nacional. Também foi na década de 1930 que surgiram os grandes livros de interpretação do Brasil. Assim, a Editora Schmidt lança Casa-Grande&Senzala, de Gilberto Freyre, em 1933 e, em 1936 é lançado Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda, que inaugura a coleção Documentos Brasileiros da José Olympio. Ainda em 1936 Gilberto Freyre lança Sobrados e Mocambos, da Coleção Brasiliana, da Companhia Editora Nacional.
Monteiro Lobato foi um dos homens que se preocupou com a difusão do livro.


Pela importância desses livros deixo aqui o pequeno comentário da autora: "Os livros de Gilberto Freyre mergulham no universo escravocrata, na vida nos engenhos, e mostram a força do legado dos negros na formação da cultura brasileira. Por seu lado, Sérgio Buarque se debruça sobre a difícil herança da experiência histórica colonial e o destino da modernidade brasileira".

A questão nacional, a preocupação com a interpretação do país e o seu sentido abrem a possibilidade para muitos ensaios e para a riqueza extraordinária dos temas regionais. As editoras são também grandes responsáveis pelo impulso literário das décadas seguintes. A José Olympio lança escritores como José Lins do Rego, Jorge Amado, Rachel de Queirós, Graciliano Ramos e Guimarães Rosa. Já a Globo, de Porto Alegre, edita Érico Veríssimo, Mário Quintana e Augusto Meyer. Entre as editoras ainda merecem destaque a Livraria Martins Editora, a Melhoramentos e a Francisco Alves.
Edição comemorativa do livro de nº 200 do Catálogo Brasiliana, da Companhia editora Nacional.


O cinema vai ganhar força nas décadas de 1930 e 1940 com a Brasil Vita Filmes, com a Atlântida Cinematográfica e mais tarde com a Vera Cruz. Na época também se discutia a relação entre o livro e o cinema, se o cinema não representaria o fim do livro. Uns achavam que o cinema até ajudaria a ilustrar melhor o próprio livro. Já se discutia também o cinema como um recurso didático. O cinema brasileiro ganha os seus primeiros prêmios internacionais.

A música se entrelaça com o rádio, surgindo os grandes cantores e as rádios com seus programas de auditório que fizeram muito sucesso e lançaram os grandes cantores(as) como Ary Barroso, Emilinha Borba, Lamartine Babo, Sílvio Caldas e Vicente Celestino, pela Rádio Nacional e Carmen Miranda, Noel Rosa e Francisco Alves pela Mayrink Veiga. A Rádio Nacional será a responsável por trazer, em 1950, Luiz Gonzaga. E assim, a autêntica música popular brasileira vai ganhando a sua forma.
O rádio ajudou a consolidar a autêntica música popular brasileira. As cantoras do rádio.


Um último aspecto a destacar. A presença do Estado. Exerceu influência negativa sob a forma de censura e positiva promovendo edições e lançamentos de livros, inclusive no exterior. Tirava proveito político com a arte e a cultura, usando-a para alavancar o projeto nacional-desenvolvimentista da época. Ressalte-se ainda que politicamente o período é totalmente dominado pela figura Getúlio Vargas.
Em 1950 já temos a televisão. A TV Tupi.


terça-feira, 16 de dezembro de 2014

Tenda dos Milagres. A minissérie.

Faz uns dois anos que li Tenda dos Milagres de Jorge Amado. Foi, entre os seus livros, o que mais me impressionou. Soube também que é o romance preferido do próprio autor. E não é por nada. O livro é o maior tributo ao legítimo povo brasileiro, nem branco, nem negro e nem índio, mas, isso sim, estes três povos absolutamente misturados. Um tributo à miscigenação e contra os preconceitos culturais e raciais que a acompanharam. Agora acabo de assistir a minissérie produzida pela Central Globo de Produções, numa adaptação de Aguinaldo Silva e Regina Braga e direção geral de Paulo Afonso Grisolli. São quatro discos com quase catorze horas de duração. A minissérie foi lançada em 1985.
Capa de Tenda dos Milagres, da minha coleção.

Em outro post falei o que Jorge Amado acha da adaptação de suas obras para o cinema e para a televisão. Parece não gostar muito. Seria a transformação de um trabalho artesanal numa espécie de produção em série. De um homem diante da máquina de escrever e do papel para uma equipe de especialistas, dividindo as tarefas.  As adaptações de Jorge Amado, de uma maneira geral, são muito bem feitas. Os recursos da dramaturgia, do vídeo, da reconstituição de época e da música tem muito a acrescentar na obra do autor, sem deformar a verdadeira intenção do autor com a sua obra.

A adaptação é extremamente fiel ao legado de Jorge Amado. O personagem central é Pedro Arhcanjo (Nelson Xavier), seguramente um bom baiano ou a soma de muitos deles. Ele e mestre Lídio (Milton Gonçalves), o riscador de milagres, numa jura de amor imorredouro, se sensibilizam com o sofrimento da Bahia negra, sofrimento imposto pela elite econômica branca, latina e católica. O tempo descrito é o dos anos 1930. Tempos de Hitler e tempos do professor Nilo Argolo (Osvaldo Loureiro), o todo poderoso professor da faculdade de medicina da Bahia, a primeira do Brasil. Tempos de racismo, de eugenia e de arianismo, que tinham como contrapartida, a condenação à inferioridade da raça negra e, mais ainda, das raças misturadas.
A Tenda dos milagres se situava no Pelourinho e era a verdadeira Universidade Popular da Bahia.


A proposta da elite era o zelo pela moralidade e pelos bons costumes, não seguidos pelos negros, que cultivavam as suas próprias tradições, as tradições trazidas da mãe África. Estas tradições ligavam os negros aos festejos do carnaval e aos cultos religiosos realizados nos inúmeros terreiros espalhados por toda a Salvador. Estes cultos são respeitosamente mostrados, sempre presididos pelas mães de santo, como Magé Bassã (Chica Xavier) e por Sabina de Iansã (Solange Couto), após a sua falta. A cultura afro é perseguida com toda a violência policial, sempre agindo no esmero de prestar bons serviços para a elite.


A liberdade para festejar o carnaval e a liberdade do culto às tradições africanas torna-se o principal objetivo dos grandes amigos Pedro Archanjo e Mestre Lídio. Estes criam a Tenda dos Milagres, em pleno Pelourinho que, aparentemente, era apenas a oficina de trabalho do riscador de milagres. Na verdade, era o grande centro de referência e o ponto de encontro dos sofridos negros em suas perseguições. Magé Bassã faz entender a Pedro Archanjo que a luta seria difícil e que ela exigia disciplina e organização. Deveria haver um trabalho teórico que desse consistência à defesa da causa. Assim Pedro Archanjo, com a ajuda do professor Fraga Neto (Gracindo Júnior), torna-se bedel da faculdade de medicina, transformando-se no contraponto às doutrinas do professor Argolo.

Archanjo abandona a sua vida de vadiagem para se dedicar a uma vida de estudos e de pesquisa e isso lhe exige muita dedicação, organização e disciplina. Redige livros sobre os costumes do povo baiano e alcança o ponto máximo quando descreve, em seu terceiro livro, a origem miscigenada das famílias brancas da Bahia. A indignação de Argolo atinge o seu ápice, pois ele provara que ele e o prof. Argolo eram primos, descendentes do mesmo avô. Também fizeram circular um jornal com as causas negras, ajudados por uma jornalista, Ana Mercedes (Tânia Alves), vinda do Rio de Janeiro. A reação se fez violenta, na mesma proporção do avanço da causa. Os sofrimentos são inenarráveis.


Archanjo tinha os seus afilhados. O mais importante deles foi Damião (Joel Silva), o primeiro aluno do curso de engenharia e que se enamorou de Luísa (Júlia Lemmertz). O problema é que Luísa é a filha do professor Argolo. Muito romance e suspense se formam em cima deste par. Damião fez carreira no Rio de Janeiro, junto com a equipe de Paulo Frontin. Zabela (Yara Cortes) cumpre papel relevante na minissérie. Seu humor e a onipresente ironia a tornam um personagem com uma presença extremamente agradável.

As cenas de maior violência ocorreram na repressão a festa de 75 anos de Magé Bassã, na destruição da gráfica de mestre Lídio e na sua morte, as cenas da prisão de Ana Mercedes e as perseguições a Pedro Archanjo. Os delegados competem entre si como se estivessem a disputar o troféu de quem era o mais violento. Também o negro Zé Alma Grande (Tony Tornado) se esmerou nessa função. A minissérie termina com o grande reconhecimento a mestre Pedro Archanjo, amado e idolatrado pelo povo da Bahia. Há de nascer, há de crescer e há de se misturar. Essa frase ganha destaque todo especial, tanto no livro, quanto na minissérie.

Gostaria de destacar mais duas coisas. Uma sobre a luta de Jorge Amado em defesa da liberdade religiosa e outra sobre as contradições existentes dentro da Rede Globo de Televisão. Jorge Amado se elegeu Deputado Constituinte e conseguiu aprovar o item referente à liberdade religiosa na Constituição de 1946. Esse item permanece inalterado na atual Constituição brasileira (1988). Quanto a Rede Globo tenho a lamentar o seu comportamento jornalístico, especialmente em tempos de eleição, em que sempre evidencia favorecimentos e, não raras vezes, tendências golpistas. Como é que uma emissora com esse tipo de comportamento produz esta obra prima em favor, acima de tudo, de todas as formas da liberdade de expressão e um libelo contra o racismo e contra a eugenia e a favor da mistura benfazeja de raças e de culturas. A Bahia é um jeito de viver.



segunda-feira, 15 de dezembro de 2014

Em meio a duas tradições, surge a Música Popular Brasileira.

Terminei de ler um livro maravilhoso. Memórias Póstumas de Noel Rosa - Uma longa conversa entre Noel e São Pedro num botequim lá do céu. O livro tem texto de Luciana Sandroni, partituras de Maria Clara Barbosa e ilustrações de Gustavo Duarte e é um lançamento da Companhia das Letrinhas. O livro foi concebido num formato maravilhoso. São Pedro instigando  Noel Rosa para que este escrevesse as suas memórias, deixando de lado, em nome da moral cristã a parte ofensiva à moral e aos bons costumes. Afinal de contas... São Pedro tem as suas responsabilidades. E Noel, por sua vez, aprontou bastante.
Um livro espetacular. Noel conta as suas memórias desde um botequim lá do céu.

Noel só poderia escrever sobre música. Afinal ele nascera no bairro musical de Vila Isabel e em meio a uma família de músicos. O livro narra como eram os saraus de domingo à tarde em sua casa: "Arlinda no Pleyel, (a marca de um piano), Martha no bandolim, tia Carmen no violino, Neca no violão e na voz. Minhas avós, tio Eduardo, Hélio e eu (Noel) formávamos a plateia. Arlinda tocava os clássicos - Chopin e Liszt -, mas se soltava mesmo quando interpretava os nossos compositores: Chiquinha Gonzaga com seu famoso "Corta-jaca"; Ernesto Nazareth com "Odeon", "Brejeiro" e tantas outras. Na hora das canções, meu pai cantava músicas do Catulo da Paixão Cearense".

Como dá para perceber, duas eram as origens das músicas tocadas ou cantadas na época. Ou o clássico ou a que veio do nordeste. O primeiro grupo a que Noel pertenceu foi "Os Tangarás", que cantavam música nordestina, caprichando, inclusive, no sotaque. Mas Noel não se identificava muito. Ele queria cantar uma música nova, que vinha do morro de São Carlos, da primeira escola de samba, de Ismael Silva e Bide, que faziam um samba diferente "mais marcado, mais ritmado". Ismael e Bide "foram os primeiros a usar a cuíca, o surdo e o tamborim no samba, marcando bem o ritmo, e isso fazia toda a diferença".  Queria cantar também a sua cidade, a vida real, o bonde, a falta de dinheiro, o malandro e, a sua vila, a querida Vila Isabel. E assim passou a compor o seu primeiro samba. Era um samba muito diferente. A música do povo negro, embora todos os preconceitos, irá dar origem a autêntica Música Popular Brasileira.
O livro traz muitas ilustrações. Elas são de Gustavo Duarte.

Mas vamos dar voz a quem entende. Maria Clara Barbosa, responsável pelas partituras das músicas faz uma apresentação da música de Noel. Achei muito interessante. Ela abre o texto falando das duas tradições musicais existentes no Rio de Janeiro, em princípios do século XX: "A linhagem europeia englobava a música clássica e, no seu ramo popular, as polcas, as mazurcas, valsas, modinha e tangos. Esses gêneros [...] estavam presentes nos teatros e nas casas de família". "Paralelamente , em alguns bairros boêmios, assim como nos morros e subúrbios, a linhagem africana, com os batuques originários de Angola, começava a incorporar as formas melódicas e harmônicas dos gêneros europeus, dando origem ao lundu, ao maxixe e ao samba".
O mundo da música. Noel largou até do curso de medicina para se dedicar só à música.

Maria Clara, conta mais: "Com isso, os instrumentos de sopro dos ranchos, o bandolim e o violão vêm se juntar às vozes e aos atabaques para criar um novo som, que as rádios e os discos se encarregavam de divulgar". Conta ainda que em 1917 foi gravado o primeiro samba "Pelo Telefone", de Donga, ainda bastante influenciado pelo maxixe e acrescenta: "Esse ritmo sincopado depois se desenvolve em uma versão urbana que era a música dos negros do Rio de Janeiro vinda dos morros, dos subúrbios e, especialmente, das festas na casa de Tia Ciata, mãe de santo e partideira que fez da Praça Onze o berço do novo gênero musical que ficou conhecido como samba carioca". Continua depois falando do carnaval carioca da década de 1920 e da música nordestina, para ali encontrar Noel Rosa e falar de toda a sua influência sobre o samba.

Mostra Noel nas rodas de samba do bairro do Estácio de Sá, onde foi criado o bloco carnavalesco Deixa Falar, que é considerada como a primeira escola de samba e destaca as suas maiores qualidades: "A vivacidade rítmica e a qualidade melódica das criações de Noel Rosa já lhe garantiram um lugar de destaque no nosso cancioneiro popular. Mas foi nas letras que se revelou toda a sua genialidade, ao ir muito além dos tradicionais lamentos de amor para abarcar temas da atualidade social e política - às vezes com um humor realmente cáustico". E se derrama em elogios ao traçar um paralelo com Chico Buarque de Holanda:
26 anos bastaram para que Noel se transformasse num dos maiores nomes da MPB.

"Alguns de seus sambas são verdadeiras crônicas de costume, tendo influenciado autores como Chico Buarque, com o qual divide a extraordinária façanha de modificar antigas formas musicais para expressar seu sentimento poético". Felizmente nessa época já tínhamos atingido a era da reprodução fonográfica e a sua obra está integralmente preservada. Deixo ainda um último registro, voltando ao texto de Luciana Sandroni, quando São Pedro conta a Noel o que aconteceu após a sua morte, só para registrar a sua grande aceitação, superando a condição de raça. Isso já anos de 1950:  " - Aracy de Almeida estava no auge da carreira e fez um show na boate Vogue, em Copacabana; a boemia, nessa época , foi para a zona sul. E o que ela cantava? "Três apitos", "Com que roupa", "Conversa de botequim", "Palpite infeliz", "Último desejo", e por aí vai. O público grã-fino se encantou com suas músicas, e Aracy gravou um álbum triplo com suas composições".












sexta-feira, 12 de dezembro de 2014

"Onde está a honestidade"? Noel Rosa.

Este post tem a sua origem no dia 9 de dezembro, o dia marcado para lembrar que a corrupção precisa ser combatida. Por ele, quero prestar uma homenagem para todos aqueles que acreditam que a corrupção foi inventada no dia primeiro de janeiro de 2003, no dia em que Lula, do Partido dos Trabalhadores, tomou posse como presidente da República Federativa do Brasil. O dedico para todos aqueles que acreditam, ou melhor, se esforçam por acreditar, que antes nunca houve corrupção e que alimentam esta crença, seja por desonestidade, por preconceito ou meramente por ignorância.
O belo livro - Memórias Póstumas de Noel Rosa - uma longa conversa entre Noel e São Pedro num botequim lá do céu.

Para estes trago uma passagem do belo livro da Companhia das Letrinhas com o título de Memórias Póstumas de Noel Rosa - Uma longa conversa entre Noel e São Pedro num botequim lá do céu. Qualquer livro de memórias de Noel Rosa, ou sobre o Noel, só poderia se ocupar, prioritariamente, de  música. Não será, no entanto, o que eu pretendo fazer. O livro é belíssimo e nos dá um belo panorama da cultura brasileira dos anos 1930 e nos conta sobre o surgimento da autêntica Música Popular Brasileira. As letras das músicas de Noel são crônicas de uma época, com forte teor de ironia e de crítica social.

Mas, nem tudo são alegrias neste maravilhoso livro. Duas fatalidades acontecem quase que simultaneamente. A doença e o suicídio de Manuel, seu pai e primeiro professor de violão e o diagnóstico de tuberculose dele próprio. Tuberculose, na época, era uma espécie de condenação, ou anúncio antecipado de morte. De fato, Noel morreu logo depois, aos 26 anos de idade. Neste período de fatalidades escreveu uma de suas músicas, que ficou bastante conhecida, exatamente pelo seu conteúdo de crítica social. - Onde está a honestidade?
Noel junto com o violão. A crítica social sempre esteve presente em suas composições.

O pai de Noel, seu Manuel, não seguiu a profissão da família, a medicina. Passou por muitas dificuldades. Fora comerciante e, com a crise que veio junto com a Primeira Guerra Mundial em 1914, simplesmente faliu. Foi arrumar emprego em São Paulo, em Araçatuba, como agrimensor. Só vinha para casa em finais de ano. Depois da volta para o Rio teve uma fase de inventor, até arrumar um emprego, por influência de um amigo, na Prefeitura do Distrito Federal, como funcionário da Inspetoria de Abastecimento.

O problema ocorreu quando o diretor desta Inspetoria foi demitido e o novo, arbitrariamente, resolveu aumentar os preços. Como seu Medeiros Rosa se posicionou contrariamente, pois a população estava sem dinheiro e os preços já estavam muito altos, também ele foi demitido. O livro faz um pequeno comentário: "Seu Manuel sabia que a ganância dos políticos era enorme", para logo em seguida acrescentar; "Papai não aguentou o baque: se trancou em casa, voltou a ficar calado, deprimido, isolado em seu mundo". Foi nesta ocasião que o pai foi internado e, por sentir a vida  inútil, se suicidou.
Está aí o samba em questão. Onde está a honestidade?


Mas o que eu quero contar é sobre o samba que o filho fez nesta ocasião. Isso ocorreu lá nos idos de 1936/37. Só para mostrar que já naquela época havia corrupção e que o povo já se revoltava contra ela. O samba levava por nome - "Onde está a honestidade"? Também quero deixar bem claro que não foi também nessa época em que a corrupção foi inventada. É evidente que a honestidade criticada é a honestidade dos políticos, já que o povo trabalhador sempre foi muito honesto (Deixo aqui registrado que por estes dias - 9.12.2014 - o governador do Paraná, Beto Richa deu aos paranaenses um pacote de maldades, como presente de natal, depois de...). Só tenho dúvidas mesmo, se esses políticos, que tem a honestidade questionada compram também a felicidade. Aí seria demais! No máximo alguma alegria passageira sarcástica. Vejamos a letra:
Noel compondo suas memórias. As letras de suas músicas, de sua crítica social, não precisavam de máquina de escrever. Estas eram feitas pelos botequins da Vila Isabel e dos morros dos arredores.
https://www.youtube.com/watch?v=5F6gfazcwAc


"Você tem palacete reluzente,
Tem joias e criados à vontade
Sem ter nenhuma herança nem parente,
Só anda de automóvel na cidade
E o povo já pergunta com maldade
Onde está a honestidade? Onde está a honestidade?
E o povo já pergunta com maldade
Onde está a honestidade, onde está a honestidade?

O seu dinheiro nasce de repente,
E embora não se saiba se é verdade
Você acha nas ruas diariamente
Anéis, dinheiro e até felicidade
E o povo.........

Vassoura dos salões da sociedade,
Que varre o que encontrar em sua frente,
Promove festivais de caridade
Em nome de qualquer defunto ausente
E o povo já pergunta com maldade:
Onde está a honestidade? Onde está a honestidade?
E o povo já pergunta com maldade:
Onde está a honestidade? Onde está a honestidade?

Resta uma pergunta. O que pensar de um sistema em que "ficar rico", "ter $uce$$o", "ser bem sucedido" são apresentados como os valores maiores? Tudo passa a ser permitido para que esses valores sejam atingidos. Então, a corrupção passa a fazer parte de todo um sistema e ser uma coisa muito antiga, bem antiga.

quinta-feira, 11 de dezembro de 2014

Memórias Póstumas de NOEL ROSA. Luciana Sandroni.

Acho conveniente começar esta resenha com o título completo do livro e algumas informações complementares. Vamos ao título: Memórias Póstumas de Noel Rosa - Uma longa conversa entre Noel e São Pedro num botequim lá do céu. O livro tem três autorias: Luciana Sandroni é responsável pelo texto, Maria Clara Barbosa pelas partituras e Gustavo Duarte pelas ilustrações. O livro é lançamento do mês de outubro, da Companhia das Letrinhas e, assim, é dedicado a um público juvenil, sem fazer mal nenhum, se for lido por adultos, como foi o meu caso.
Lançamento da Companhia das Letrinhas. Memórias Póstumas de Noel Rosa.

Como o título duplamente sugere, Noel Rosa, lá do céu, estimulado por São Pedro, passa a escrever as suas memórias. São Pedro, ao mesmo tempo em que o estimula, também o reprime. Afinal de contas, como um líder religioso, São Pedro tem que se preocupar com as questões morais e, neste quesito, Noel poderia não ser um bom exemplo: moleque com mil travessuras, relapso com suas obrigações escolares, muito namorador e plural no número de namoradas, boêmio e nada abstêmio e extremamente fiel à vida boêmia. Enfim, uma vida bem vivida e bem bebida. Tudo o inverso das virtudes cristãs. Mas, então qual seria a motivação de São Pedro para instigar Noel a escrever?
No botequim do céu, entre uma e outra água de coco, planejando o livro de memórias. Uma das ilustrações de Gustavo Duarte.

Certamente que São Pedro fora acometido de um acesso de generosidade para com a humanidade e, mais precisamente, para com o povo e a cultura brasileira. Queria que Noel Rosa contasse a sua vida, no que ela tinha de melhor, a sua ligação com a música. E esta ligação passa pelo seu nascimento na Vila Isabel, um bairro todo ligado à música, pelo seu nascimento numa família que amava a música, pelos inúmeros amigos do bairro e, especialmente, pela absoluta falta de preconceitos na escolha das amizades. Assim, embora branco, entrou em contato com muitos negros dos morros da redondeza e fez uma autêntica revolução na cultura musical brasileira, incorporando elementos e instrumentos africanos e dando status a um novo gênero musical. Confirmou assim uma máxima de que no Brasil tudo tende a se misturar. São Pedro estava, assim, absolutamente correto. Valeria muito a pena que Noel relatasse as suas memórias. São Pedro, no entanto, permaneceria vigilante para que nada que atentasse contra a moral e os bons costumes fosse ali escrito.
A casa de Cartola, na Mangueira, era a segunda casa de Noel.

Noel Rosa nasceu no Rio de Janeiro no dia 10 de dezembro de 1910. Na véspera ocorrera a revolta da Chibata. Nasceu na Vila Isabel, num parto difícil. O fórceps quebrou o maxilar direito, lhe deformando o queixo. A medicina seria o seu destino, pela vontade familiar. Era a profissão do avô e de outros parentes. Nunca foi um aluno exemplar, embora estudando no rigoroso ginásio dos beneditinos, junto ao mosteiro de São Bento. Chegou a ingressar no curso de medicina. A alegria na família fora enorme. Mas a decepção foi maior, quando ao final do primeiro semestre, tudo abandonou. Tudo abandonou, para seguir exclusivamente a música. Mas também isso, por culpa da família. Senão vejamos.

Em sua casa, nas tardes de domingo tinha sarau. Tinha piano, bandolim, violino e violão, tocados por membros da família. As avós, o tio Eduardo, ele e o irmão Hélio formavam a plateia. Chopin e Liszt eram os clássicos mais tocados que perdiam, no entanto, para Chiquinha Gonzaga e Ernesto Nazareth. O pai cantava as canções de Catulo da Paixão Cearense. O pai também o ensinou a tirar os primeiros sons do violão, instrumento do qual nunca mais se separou. Aos 18 anos já era professor de violão e passou a ser convidado permanente para saraus e serenatas.
Olha aí a turma com quem ele andava. Da coleção Folha - Raízes da Música popular Brasileira.


O envolvimento maior com a música  veio com o grupo Os Tangarás, do qual faziam parte ninguém menos do que Almirante e Braguinha. Daí para frente só sucesso. Deixo dois títulos dos capítulos que mostram os êxitos musicais: Um brinde a Orestes e Lamartine - Os cantores do rádio. São Pedro vai permitindo que Noel conte de seus amigos e parceiros e também de seus intérpretes. Depois envereda pelo perigoso campo dos amores. Das primeiras namoradas, as ameaças da polícia para o casamento com Lindaura e a grande paixão por Ceci, a menina do Cabaré do Apollo, que nunca o abandonou, embora a tenha perdido para - imaginem para quem? Para Mário Lago.  Nestas horas, certamente, São Pedro estava cochilando.

Quando já era profundamente querido e respeitado por todos, começam os problemas. O pai perde o emprego, é internado em sanatório e se suicida. Enquanto isso ele, Noel, recebe o diagnóstico de tuberculose, uma espécie de condenação à morte, ainda mais para um boêmio, com toda a ausência de disciplina que isso acarreta. Noel consegue até uma recuperação, mas quando todas as portas do sucesso estavam abertas, as do rádio, do teatro e do cinema, prematuramente a tuberculose o vitima. Era o dia 4 de maio de 1937. Mas, uma rádio, já tinha anunciado a sua morte na véspera e houve até manchete de jornal desmentindo a morte. Uma vida breve. Não precisou de muito tempo para deixar um grande legado.
Ilustração do seu casamento com Lindaura, meio na marra.


Quando Noel tenta por o ponto final em suas memórias São Pedro lhe conta do ocorrido após a sua morte. Noel ficou muito satisfeito em saber do ocorrido, pois imaginava que com a morte tudo acabara. É uma das partes mais belas do livro. São Pedro lhe conta que no ano de sua morte foi proclamado o Estado Novo e houve todos os controles do Estado sobre a música popular e a vida boêmia da Lapa fora controlada. Mas nos anos 1950 você ressuscitou. Você nunca foi tão ouvido. Aracy de Almeida lhe deu muita fama. Gravou um álbum triplo com as tuas músicas e fez um show na boate Vogue. E a Lapa voltou para a boemia. Até o povo chique canta: Três apitos - Com que roupa? - Conversa de botequim - Palpite infeliz - Último desejo e, por aí vai...

Nos anos 1960, conta São Pedro, apareceu um compositor que ficou muito famoso e que se se inspirou muito em seu samba. Os críticos chegaram a chamá-lo de um novo Noel Rosa. Chico Buarque de Holanda. Uma música sua até te cita: Rita: "...Uma imagem de São Francisco e um disco de Noel.
Uma ideia genial. Partituras das principais músicas de Noel. Um trabalho de Maria Clara Barbosa.

Aí segue uma preciosidade do livro. As partituras com novos arranjos, mostrando como Noel seria tocado hoje. São em torno de cinquenta páginas com as partituras, estas trabalhadas por Maria Clara Barbosa. Uma bela forma de homenagear e perpetuar a memória de um dos fundadores da verdadeira Música Popular Brasileira. Como já falei, o livro é belamente ilustrado por Gustavo Duarte. Memórias Póstumas  de Noel Rosa é um lançamento do mês de outubro da Companhia das Letrinhas. Ótimo para presente de natal, especialmente se você tiver um filho, neto ou amigo voltado para a música. Um belo tributo a cultura musical brasileira. Um excelente panorama cultural dos anos 1930. Também um belo livro para ser usado em sala de aula.



segunda-feira, 8 de dezembro de 2014

O Estrangeiro. Albert Camus.

Quais são os possíveis motivos para iniciar a leitura de um livro? São os mais variados possíveis. Eu terminara de ler Pastoral Americana, um denso livro de Philip Roth, de 509 páginas, em edição de bolso. Queria ler algo menor, não em qualidade, mas em tamanho. Fui à minha coleção - Os Imortais da Literatura Universal. Escolhi um bem fininho e com letra bem grande. Me assustei. Eu pegara Albert Camus, simplesmente um Nobel de literatura, do ano de 1957, o primeiro escritor nascido na África contemplado com este prêmio. O título do livro - O Estrangeiro.
Da coleção Os Imortais da Literatura Universal, O Estrangeiro - de Albert Camus.

Não sou muito familiarizado com o escritor. O conhecia mais pela filosofia do que pela literatura. Lembro ter assistido  A Peste, sem entender muita coisa e tenho em casa, inacabado em sua leitura - O homem revoltado. Hoje eu não leio um livro sem, minimamente, situar e datar o escritor e a sua obra. O Estrangeiro foi escrito em 1942, portanto em plena Segunda Guerra. Albert Camus é francês, nascido na Argélia, em 1913 e morto na França, em um acidente de carro, ou assassinato, em 1960. A Argélia se tornaria independente em 1962. As marcas da guerra estão profundamente presentes em sua vida. Já em 1914 fica órfão de pai, vitimado na Primeira Guerra. Na Segunda, combateu na Resistência francesa.

Li o livro num tiro só. Uma história muito simples. Ao final soltei uma exclamação. Que absurdo! E eu não estava errado. Mostrar o absurdo é o essencial da literatura de Camus. Eram os tempos do auge do existencialismo. Aliás, Camus fora grande amigo de Jean Paul Sartre. Mas qual era, afinal de contas, o enorme absurdo que estava contido em O Estrangeiro. A condenação à morte de Meursault, aparentemente um pacato e inofensivo cidadão francês e rigoroso cumpridor de suas obrigações, residente em Argel.
Capa interna de - O estrangeiro. O absurdo e a desproporção.

Meursault recebe a notícia do falecimento de sua mãe, que ele havia internado num asilo, por falta de condições para o seu cuidado. Ele comparece ao velório e ao funeral, a oitenta quilômetros de Argel, sem aparentar grandes emoções e nem mesmo, ao certo,  saber a idade dela. Após o enterro volta imediatamente a Argel e, ainda, aproveita o sábado e o domingo para uma praia e ir ao cinema com Maria. A vida voltara ao seu normal. Raimundo, um vizinho seu, se metera numa confusão com um árabe por causa de mulher.
Num outro fim de semana fora novamente à praia, com Maria, Raimundo e outros amigos. Cruzam com o árabe, que fere Raimundo. Depois dos cuidados necessários, os amigos voltam novamente à praia e, mais uma vez, cruzam com o árabe, armado de uma navalha. Meursault o mata com um tiro. Para se certificar de sua morte, outros tiros são disparados. Esta é a primeira parte do livro, narrada em oitenta páginas e seis capítulos. Na segunda parte são mais cinco capítulos e umas sessenta páginas. É o seu julgamento e condenação.
Albert Camus. Prêmio Nobel de literatura em 1957.

Depois da prisão começam as instruções do seu processo. Ganha um advogado de defesa. Todos lhe são muito amáveis, até o dia do julgamento. Meursault permanece muito tranquilo em todo o processo, achando tudo absolutamente normal, até que começa o seu julgamento. Nunca reclamara de nada. O procurador era muito severo. Lhe perguntou mais sobre a morte da mãe do que sobre o assassinato do árabe e ele ficou perturbado sem saber direito qual fora o seu crime. Teria sido o assassinato ou os seus sentimentos, ou melhor, a falta deles? Por fim lhe comunicam a sentença: "o presidente disse-me de um modo muito estranho que me cortariam a cabeça numa praça pública em nome do povo francês". Foi aí que eu exclamei: Mas que absurdo. Que enorme desproporção. Que enorme injustiça. Um cidadão tão pacato.

O próprio Camus me ajudou a compreender melhor a sua obra. Ele próprio a comentou nos seguintes termos: "Não seria errado ler O Estrangeiro como a história de um homem que, sem nenhuma atitude heroica, aceita morrer pela verdade. Meursault para mim não é um perdido, mas um homem pobre e nu, apaixonado pelo sol que não faz sombra. Longe de ser privado de toda sensibilidade, uma paixão profunda, porque tenaz, o anima - a paixão do absoluto e da verdade".
Albert Camus - um pensador existencialista. Seria a existência um absurdo?


Não vou parar por aí na leitura de Camus. O primeiro livro seu que irei retomar será O Homem Revoltado. Também A Peste figura na minha lista. Albert Camus sofreu profundas influências de escritores como Dostoiévski e Kafka. Sobre a sua morte por acidente ou assassinato..., os amigos stalinistas...


quinta-feira, 4 de dezembro de 2014

Pastoral Americana. Philip Roth.

"Uma moratória de comidas esquisitas, comportamentos esquisitos e exclusividade religiosa, uma moratória da nostalgia de três mil anos dos judeus, uma moratória de Cristo, da cruz e da crucificação para os cristãos, quando todo mundo em Nova Jersey e em toda parte se mostrar mais passivo no tocante às próprias irracionalidades do que no resto do ano. Uma moratória para todas as mágoas e ressentimentos, e não apenas dos Dwyer e dos Levov, mas para todo mundo na América que desconfie de todos os outros. É a pastoral americana por excelência, e dura vinte e quatro horas".
A edição de bolso, que eu li de Pastoral Americana. Não gosto muito mas só achei esta edição.


Essa frase nos dá boas pistas para entendermos o longo romance de Philip Roth - Pastoral Americana. O livro foi escrito em 1997 e faz uma retrospectiva ao mundo do pós Segunda Guerra, para se concentrar essencialmente nos anos de 1967 e 1968, anos que abalaram profundamente os alicerces das instituições e dos valores da chamada cultura ocidental, cristã e capitalista. O livro lhe valeu o prêmio Pulitzer. O livro está dividido em três partes e tem nove capítulos.

Na frase acima estão os sobrenomes dos dois personagens centrais do livro. Levov e Dwyer. Mais precisamente de Mary Dawn Dwyer e de Seymur Levov. Estes personagens se casaram e tiveram a filha Merry Levov, a outra personagem do livro. O cenário mais uma vez será Newark, o cenário comum aos romances de Philip Roth. É uma cidade dominantemente de origem judaica.
Philip Roth, sempre irreverente e iconoclasta. Valores de outros tempos que já se foram.


Os Levov são judeus suecos e Seymour era mais conhecido como o Sueco, do que pelo próprio nome. A família se dedicava à indústria do couro para depois centrar todos os negócios na confecção de luvas, um produto de grande aceitação no mercado daquele tempo. O Sueco se tornou muito conhecido em seu tempo de estudante pela sua condição de atleta. Se destacou em todos os esportes que ele praticava. Teve enormes chances de seguir carreira. Preferiu ficar com o pai. Os negócios renderam muito dinheiro. Usufruíram de muita prosperidade.

Dawn era irlandesa. É praticamente desnecessário dizer que, sendo irlandesa, era católica. Seus pais eram católicos praticantes. A fama de Dawn lhe veio da beleza. Participou de diversos concursos, chegando a ser Miss Nova Jersey e participar do concurso de Miss América. Dawn e o Sueco passaram a namorar e se casaram. O Sueco cuidou da fábrica de luvas e Dawn cuidava da pequena fazenda que tinham. Tiveram Merry, uma menina, aparentemente, absolutamente normal, fora uma gagueira da qual todos a ajudavam a se livrar. Seymour tinha um irmão, Jerry, que também entrou na história.

Aos dezesseis anos Merry se torna terrorista. Ia seguidamente para Nova York, fato que preocupava muitos os pais. Seymour lhe pedia para ficar em casa, que tivesse as suas ideias mas que ficasse próxima dos pais e que se encontrasse com os amigos da cidade. "Traga a revolução para a sua casa", lhe dizia o pai. Isso foi o suficiente para que num determinado dia explodisse o mercadinho e o posto dos correios de Rimrock e sumisse. Eram os dias 16 e 17 de julho de 1967 que quase implodiram as instituições americanas. Junto com o mercadinho Merry cometeu também o seu primeiro assassinato, um médico da cidade que, no momento, se encontrava no mercadinho. Depois cometeu mais três. O pretexto para as rebeliões era a guerra contra o Vietnã.
A versão normal do livro, pela Companhia das Letras.

O livro segue contando as histórias dos principais personagens, sem grandes novidades. As atividades de Seymour, a transferência da atividade industrial dos Estados Unidos para Porto Rico e depois para o oriente, o irmão Jerry e o seu sucesso como cardiologista e os seus cinco divórcios e as preocupações de Seymour com a filha, que simplesmente sumira. Dela tem notícias através de uma suposta colega, que simplesmente o chantageia.  Seymour a reencontra como jainista, uma crença absurda.

Na parte final vem o desmonte de tudo, num capítulo intitulado Paraíso Perdido. Seymour e Dawn oferecem em sua casa um jantar para vários convidados. A partir daí os fatos se revelam. A fonoaudióloga de Merry a ocultou em seus primeiros dias depois do crime, o Sueco teve uma relação amorosa com esta mesma fonoaudióloga, Dawn tinha um amante, o arquiteto Dr. Orcutt. Tudo para o escândalo de Lou Levov, o pai de Seymour e avô de Merry. Ao saber dos escândalos, não resiste. Tem um ataque cardíaco fulminante.
 Pastoral Americana, outra edição do livro de Philip Roth. O aparentemente sólido era muito frágil.

Na investigação do rastro dos erros existe uma passagem que merece destaque. As perguntas de Lou para Dawn, quando ela pretendia se casar com Seymour. Todas as incompatibilidades estão aí postas. O casamento entre um judeu e uma católica. Estariam aí as causas do desacerto do casal, que aparentemente vivia tão bem? Ou as causas seriam mais profundas, atingindo a própria cultura americana? As famílias se encontravam pouco, a não ser no dia de Ação de Graças, o grande dia da moratória de todos os grandes conflitos.

Cabem a Márcia, uma professora crítica e contestadora, as palavras finais do livro:..."começou a rir e rir sem parar de todos eles diante da debilidade de toda aquela engenhoca, começou a rir e rir sem parar de todos eles, os pilares de uma sociedade que, para grande satisfação de Márcia, estava rapidamente indo por água abaixo - rindo e se deleitando, como algumas pessoas, historicamente, parecem sempre fazer, ao ver a que ponto a avassaladora desordem se havia espalhado, se deliciando imensamente com a vulnerabilidade, a fragilidade, o enfraquecimento de coisas supostamente sólidas. [...] E o que há de errado com a vida deles? O que, neste mundo, pode ser menos repreensível do que a vida dos Levov"? Outros tempos, outros valores. O enigmático ano de 1968 e seus antecedentes. Me lembrei muito da pergunta constantemente feita: Mas onde foi que eu errei? onde foi que nós erramos?



terça-feira, 2 de dezembro de 2014

Os Maias. Maria Adelaide Amaral e o seu trabalho.

A minissérie produzida pela TV Globo Os Maias - tem a duração de 940 minutos, divididos em quatro discos. Ao final do disco número dois temos dois extras muito interessantes e ilustrativos. As falas de Maria Adelaide Amaral, que fez a adaptação e da professora Beatriz Berrini, professora de literatura na PUC/SP e grande especialista em Eça de Queirós. Maria Adelaide conta da adaptação feita e a professora destaca a força dos personagens na obra do autor.
Maria Adelaide Amaral explicita a realização do seu trabalho.

Maria Adelaide Amaral é portuguesa e veio ao Brasil com doze anos de idade. Ao entrar em contato com a obra de Eça, ainda no colégio, afeiçoou-se ao escritor. Em viagens a Portugal, refez os caminhos de Eça, detendo-se no Douro, onde ele está enterrado. Rezando em seu túmulo, misticamente lhe pede permissão para trabalhar a sua obra. Percebeu sinais de consentimento e lhe prometeu absoluta fidelidade. Coisas da espiritualidade.

Maria Adelaide se dedicava ao teatro mas sempre esteve muito atenta a televisão. Observava a televisão britânica. Vivia fascinada com os seriados produzidos pela BBC e lamentava não haver condições para semelhantes produções no Brasil. A questão no entanto, permanecia. Aí ela fala da realização da obra. O livro Os Maias ficou aberto ao lado de seu computador o tempo inteiro. Mas fez mais. Procurou incorporar Eça de Queirós por inteiro na minissérie. Estudou toda a obra do autor, trabalhou a sua correspondência e por esse caminho, as suas concepções filosóficas e políticas. Colocou Eça de Queirós por inteiro na minissérie. Os personagens coadjuvantes foram os portadores deste ir além. Me ajudou muito na compreensão. Tudo se tornou mais explícito.
D. Afonso, junto com o neto Carlos Eduardo e a neta Maria Eduarda, que ele julgava falecida, formam o grande trio da obra e lhe conferem o caráter trágico.

Maria Adelaide afirma que este foi um trabalho necessário. Uma minissérie, segundo os padrões da Globo, exige 44 capítulos e a obra daria uns 24. Como considerava indecoroso espichar a obra, incorporou o autor por inteiro. Ficou maravilhoso. Evidentemente que também ousou. A dramaturgia exige cenas de impacto. O real se torna mais real, o trágico se torna mais trágico e o romântico se torna mais romântico. Além disso foi reunido um elenco de primeira grandeza.

Maria Adelaide considera esta sua adaptação uma obra maior da televisão mundial e que se sente muito feliz com o trabalho realizado. E acima de tudo, se considera absolvida por Eça de Queirós, por fidelidade a ele, ao seu pensamento e à sua obra. Estudo, dedicação, competência técnica e creio que, acima de tudo, uma grande paixão se constituíram nos fatores responsáveis pelo êxito deste mais do que ousado projeto.
Beatriz Berrini fala de Eça de Queirós e de sua obra. Destaca personagens e cenas com muita propriedade.


Num outro extra, mais uma fala esclarecedora. A da professora de literatura portuguesa e brasileira da PUC/SP. e especialista na obra de Eça - Beatriz Berrini. Ela apresenta a obra de Eça como uma tragédia clássica grega e explicita o que isso significa e como está presente no livro e na minissérie. Fala da amizade, destacando a amizade entre Carlos Eduardo e João da Ega, nascida em Coimbra e que os acompanhou uma vida inteira. Mas mostra uma amizade superior, a existente entre o único neto e o único avô, que se amam e se respeitam profundamente.

Fala de Mefistófeles, do personagem de Goethe, muito popular na época. Ega se veste de Mefistófeles, sem ser ou incorporar, na realidade, o demônio, por ser um personagem cheio de virtudes e qualidades extraordinárias. Fala ainda da força extraordinária e avassaladora da paixão, nos amores trágicos de Pedro e Maria Monforte e de Carlos Eduardo e Maria Eduarda.  Caracteriza ainda as duas grandes personagens femininas, Maria Monforte e Maria Eduarda. É a divinização da mulher na obra de Eça. Maria Adelaide Amaral e a professora Beatriz Berrini trabalharam em regime de cumplicidade na adaptação da obra.
Carlos Eduardo e Maria Eduarda. A paixão e a tragédia.  São Maias.

A professora Beatriz destaca ainda em sua fala as cenas que ela considera como sendo as mais impactantes. Vale muito a pena conferir. Ainda, um último dado. A Rede Globo estabeleceu, para a realização deste trabalho uma parceria com a Sociedade Independente de Comunicação, de Portugal. Em suma, um grande trabalho e um resultado magnífico. Bom para presentear com qualidade.



sexta-feira, 28 de novembro de 2014

Os Maias. Eça de Queirós. A minissérie.

Não quero aqui levantar grandes polêmicas sobre a adaptação de livros para o cinema ou para a televisão. Também, ao comentar a minissérie Os Maias, produzida pela TV Globo, não quero deixar passar a questão em branco. Tomo a referência de Jorge Amado, possivelmente o autor brasileiro que mais obras adaptadas teve. Ele fala sobre isso em seu maravilhoso Navegação de Cabotagem, e com um certo tom de nostalgia, de um certo desconforto. Vejamos algumas considerações suas. A primeira referência é sobre o ato de escrever, como um ato de artesanato:
Jorge Amado fala sobre a adaptação de obras literárias para a TV e para o cinema.

"Quando inicio um livro, somos apenas eu, a máquina de escrever, o papel em branco". Aí já entra o lamento: "Esse caráter artesanal desaparece quando o romance é adaptado: cinema, rádio, televisão são o oposto do artesanato, são indústria e comércio, o produto a ser oferecido, a ser visto ou ouvido (e não lido) deve corresponder às exigências do mercado". De produto artesanal vira o produto de uma verdadeira multidão e continua, ainda em tom de lamento: "O autor do romance sente-se agredido a cada instante, de repente não mais reconhece sua obra".

Seria de perguntar. Mas por que, então, o autor permite as adaptações? Jorge responde de pronto: "Sou um escritor que vive exclusivamente de direitos autorais [...]. Não tenho outra fonte de renda". Mas arremata, voltando ao tom de desconforto, recomendando ao autor "nunca acompanhar os trabalhos de adaptação e nem mesmo vê-los, isso para não se aborrecer". São palavras de Jorge Amado e que merecem muita consideração. E..., olha que Jorge Amado, normalmente, tem a sua obra muito bem adaptada.
O magnífico livro de Eça de Queirós. Os Maias - Episódios da Vida Romântica. Eça introduz o realismo em Portugal.
Li Os Maias de Eça de Queirós. Já tinha lido A Relíquia. Não tenho formação literária e nem fui estimulado à leitura em meus anos de formação. Apenas hoje me considero um leitor. Não sei porque, mas a leitura do livro me despertou um enorme desejo de ver a minissérie. Comprei o box com quatro discos, com 940 minutos de duração. Confesso... poucas vezes fiz um aquisição tão boa. Os recursos do ver, olhar e ouvir, somados aos da dramaturgia, da música e da reconstituição de época, produziram um espetáculo maravilhoso.  Uma obra profundamente romântica de um escritor que pertenceu ao realismo. Aliás o livro tinha um subtítulo: Episódios da vida romântica.
A adaptação de Os Maias, para a televisão. Uma obra prima segundo Maria Adelaide Amaral.

Houve a deformação da obra do autor? Ele se reconheceria em sua obra? Certamente se surpreenderia em algumas cenas, mas creio que, ao final, aplaudiria calorosamente o espetáculo e, nele se reconheceria. Maria Adelaide Amaral fez a adaptação e, ao final do segundo disco fala do seu trabalho. Ela estudou toda a obra do autor, sua literatura, sua correspondência, suas ideias políticas e a sua vida. Incorporou tudo na minissérie, com muita criação e imaginação. Farei um post a parte.

No post sobre o livro escrevi que a ironia que está escancarada em A Relíquia, é sutil, em Os Maias. No caso da minissérie a dramaturgia reforçou as características dos personagens. E os personagens, todos escolhidos para uma grande representação. D. Afonso da Maia (Walmor Chagas), a primeira geração Maia, é um liberal, anti religioso, mas acima de tudo, um profundo conservador dos valores da família e dos princípios da aristocracia. Por eles morrerá e, obviamente, também pela idade. Norteia a sua vida pela ciência, mas também crê em superstições e premonições. Uma atuação soberba.
Uma cena memorável. O único avô e o único neto se separam. Carlos Eduardo irá a Coimbra buscar a sua formação na ciência, na medicina.


Pedro da Maia (Leonardo Vieira), da segunda geração, e Maria Monforte (Simone Spoladore) estão muito bem. Maria Monforte é de uma beleza estonteante, que quebra todo e qualquer princípio da piedosa formação de Pedro, saído à imagem da mãe e do padre, não de D. Afonso e, portanto, fraco e, assim, a fortuna não o contemplará. Escolhe a morte aos sofrimentos da vida. Maria Monforte, (Marília Pera) terá uma volta na minissérie, o que não acontece no romance. Ela, em estado terminal, procura acertar a vida da filha, desvelando a sua condição de mãe, tanto de Maria Eduarda, quanto de Carlos Eduardo. Manuel Monforte (Stênio Garcia) será o pai de Maria Monforte. Ele é rico mas não aristocrata. Fora comerciante de escravos. Para a sociedade portuguesa, Maria será sempre a negreira.
Maria Monforte, a negreira. Não havia espaço para ela na aristocrática sociedade portuguesa. Mas será ela que dará a alegria do neto Carlos Eduardo para D. Afonso.

Carlos Eduardo (Fábio Assunção), a terceira geração descrita, e Maria Eduarda (Ana Paula Arósio) formam o par romântico. D. Afonso, já viúvo, cuida pessoalmente da formação do neto, que lhe é trazido por Pedro. Depois da tragédia, o Ramalhete é fechado e o avô com o neto se recolherão no Douro, em Santa Olávia. Longe dos padres, Carlos Eduardo terá um preceptor inglês. O neto recompõe o sentido da vida para o avô. Pela formação inglesa e a sua inclinação científica, Carlos irá para Coimbra, não para o curso de Direito, mas para o de medicina. O avô o estimula para viver as alegrias da juventude. A ausência da moral religiosa o livrará das culpas. É em Coimbra que encontrará João da Ega, o amigo de todas as horas e de sempre. Já em Lisboa, o destino unirá Carlos Eduardo a Maria Eduarda. Vivem uma bela paixão até se descobrirem irmãos. O romântico e o trágico fazem parte da mesma história.  Só restará a amargura do sofrimento e da separação.
Carlos Eduardo e Maria Eduarda são Maias. Formam o casal romântico e trágico da obra.
João da Ega (Selton Mello) é o anarquista satânico. Mefistófeles lhe inspira a forma de viver. Teve a sorte de uma mãe rica, o que lhe permitiu a eterna condição de estudante e de escritor sem obra. Arrasa as tradições, a moral e os bons costumes. É o personagem mais alegre e fantástico, já no livro. Imagina então, este personagem com os recursos da dramaturgia. No livro será sempre o portador das tragédias do destino. Isso lhe será poupado na minissérie. Maria Monforte cumprirá este papel. João da Ega contrasta maravilhosamente com Tomás Alencar (Osmar Prado), o grande poeta romântico e presença constante na vida cultural de Lisboa.

Darei ainda destaque a quatro outros personagens. A Joaquim Castro Gomes (Paulo Betti), o marido da bela Maria Eduarda. Marido não. Ele a mantém a soldo. As desventuras da infeliz vida de Maria Eduarda. Outra personagem fabulosa é Maria Gomes (Eva Vilma), uma espécie de amiga e confidente de D. Afonso. Pelo lado da safadeza e canalhice merece destaque o Dâmaso Salcede (Otávio Müller), fofoqueiro inconsequente e maldoso e Palma Cavalão (Antônio Colloni), jornalista venal, já naquela época.
O maravilhoso poeta romântico, Tomás de Alencar. Terá disputas literárias contundentes com João da Ega. São os grandes personagens cômicos e de certa forma anunciantes da tragédia.

Em suma, uma complementação extraordinária. Os recursos da dramaturgia abrilhantaram a obra. As características dos personagens e seus credos foram reforçados e creio que, também a interação entre Maria Adelaide Amaral e o diretor Luiz Fernando Carvalho foi um trabalho artesanal, feito com muito cuidado. Conseguiram transformar uma obra prima em outra obra prima, da qual Luís Fernando Veríssimo disse que "tudo contribuiu para o clima exato do começo ao fim". Foram 940 minutos de entretenimento, muito prazerosos e de muita aprendizagem. Gostaria de voltar a ser professor, mas não em escola de aulas cronometradas e obrigatórias para aproveitar todos esses ricos e maravilhosos recursos didáticos. Volto aos Maias com Maria Adelaide Amaral e alguns extras da minissérie.



quinta-feira, 27 de novembro de 2014

Os Maias. Eça de Queirós. O livro.

Sempre é bom ler clássicos. Deve existir uma razão muito forte para eles sobreviverem ao tempo. Eles tem o que dizer. Terminei de ler Os Maias, de Eça de Queirós. Já tinha lido A Relíquia. Na verdade, foi este livro que me levou ao Os Maias. A qualidade que mais gostei deste escritor é, sem sombra de dúvida, a sua ironia, forte e escancarada em A Relíquia e bem mais sutil em Os Maias. Para situar e datar o livro, ele foi escrito em 1888 e o autor pertence à escola do realismo. Um retrato da segunda metade do século XIX. A edição brasileira, da Ateliê Editorial, tem 486 páginas. O livro está dividido em 18 capítulos, sendo que os primeiros e os últimos são os mais andantes e os mais reveladores.
Edição brasileira de Os maias. Reimpressão de 2012. Da Ateliê Editorial.

Das últimas páginas destaco algumas frases, ditas pelos dois grandes protagonistas da obra, Calos da Maia e João da Ega. Depois de todas as desventuras do destino, Ega assim se dirige a Carlos, o grande amigo: " - Falhamos a vida, menino"! Ao que Carlos responde: " - Creio que sim... Mas todo o mundo mais ou menos a falha. Isto é, falha-se sempre na realidade aquela vida que se planeou com a imaginação. Diz-se: 'vou ser assim, porque a beleza está em ser assim'. E nunca se é assim, é-se invariavelmente assado...." Mais adiante os dois continuam:

"... Ega não se admirava. Só ali no Ramalhete ele vivera realmente daquilo que dá sabor e relevo à vida - a paixão. Muitas outras coisas dão valor à vida... Isso é uma velha ideia de romântico, meu Ega! - E que somos nós? - exclamou Ega. - Que temos nós sido desde o colégio, desde o exame de latim? Românticos: isto é, indivíduos inferiores que se governam na vida pelo sentimento e não pela razão... Mas Carlos queria realmente saber se, no fundo, eram mais felizes esses que se dirigiam só pela razão, não se desviando nunca dela, torturando-se para se manter na sua linha inflexível, secos, hirtos, lógicos, sem emoção até ao fim... [...] - Resumo: não vale a pena viver..." Mais adiante arrematam:

" - Que raiva ter esquecido o paiozinho!  Enfim, acabou-se. Ao menos assentamos a teoria definitiva da existência. Com efeito, não vale a pena fazer um esforço, correr com ânsia para coisa alguma... Ega, ao lado, ajuntava, ofegante, atirando as pernas magras: - Nem para o amor, nem para a glória, nem para o dinheiro, nem para o poder...". É bom dar uma conferida. Em que ano mesmo, o livro foi escrito? Em 1888. A segunda metade do século XIX. Certamente isso ajuda a entender muita coisa.
Eça de Queirós. Em Os Maias, três gerações da família são descritas. Junto com elas, também toda a sociedade portuguesa da época.


Em 18 capítulos estão contadas as histórias de três gerações dos Maias. A de Afonso, o avô, a de Pedro, que terá um relato muito breve, tão breve quanto o fora a sua infeliz vida e, a de Carlos, o neto adorado de Afonso. Se a passagem de Pedro é breve, as consequências de seus atos é que movem, em grande parte, toda a parte final da história. Pedro tivera um amor burguês, não nobre e aristocrático, portanto. Maria Monforte teve outros amores que levaram Pedro ao suicídio, deixando, porém, para Afonso o seu querido neto, Carlos. Soube-se vagamente que Carlos tivera uma irmã, falecida em Londres. Pedro era frágil. Fora educado pela mãe e pelo padre...

Carlos teve requinte em sua formação. Um preceptor inglês e nada de religião. Coimbra entrou em sua vida. Não o curso de direito, que seria a trajetória normal. Carlos optara pela medicina. Creio que dá para dizer que nunca a exerceu profissionalmente. Dinheiro nunca fora um problema para os Maias. Escola é lugar de formação de amizades. Em Coimbra Carlos encontrou o seu maior amigo, o amigo de toda uma vida. João da Ega, um personagem fabuloso e fantástico e de um humor extraordinário. Uma vida apimentada de amores. Os amores da juventude.

Tudo se desenvolvia num grande fausto. Em Santa Eulália, no Douro, uma espécie de refúgio. No Ramalhete, o palacete dos Maias em Lisboa, onde as delícias e o fado da vida aconteciam. Ali também ocorre a morte de Afonso, em parte pela idade, mas também com uma boa dose de armadilhas do destino e do desatino. Também existe a Toca, onde Carlos vive, tanto o seu grande amor, quanto a sua grande tragédia. Maria Eduarda.  Preocupações com trabalho e dinheiro, ao menos por parte dos Maias, nunca fizeram parte da vida destes felizes ou infelizes afortunados.
O autor junto com a sua obra. Eça de Queirós e Os Maias.


Muitas amizades, muitos jantares, muitas idas a Sintra. Muitos saraus literários, muita música e muito piano. Muitas queixas da vida cultural pobre de Lisboa. Sempre miravam Paris. A Europa acabava junto aos Pirineus. Muitas picuinhas e intrigas e até jornais da imprensa marrom, com tentativas de chantagens fenomenais também fazem parte da história. Ainda sobra para muita mesquinharia e covardia. Até um brasileiro, Castro Gomes, entra na história, com um papel, de certa forma, preponderante. Faz parte da trágica história de Maria Eduarda.

Todo o rico final do século XIX está presente, especialmente, nos debates dos jantares. Como viram nas frases  tomadas das últimas páginas do livro,o iluminismo e o racionalismo já está entremeado de pitadas de romantismo, nas discussões filosóficas, enquanto que o realismo e o naturalismo serve de cenário para os embates literários. Mas o que prevalece será a tragédia com os mistérios insondáveis, invariavelmente e implacavelmente impostos pelo destino e sempre presentes no Ramalhete.  Que Carlos e Maria Eduarda o digam e expliquem. Esta parte final fica como página em branco, no grande romance. Carlos...

A minha próxima tarefa, depois de ler, será a de ver Os Maias. A minissérie produzida pela Rede Globo, sob a direção de Maria Adelaide Amaral. Serão 940 minutos que, imagino eu, serão tão agradáveis, quanto as várias horas dedicadas a leitura do livro. Depois eu conto. Mas antes, deixo o registro do comentário de Luis Fernando Veríssimo.
A Rede Globo transformou Os Maias em uma minissérie. Minha próxima tarefa.

"[...] Durante todo o tempo em que assisti a "Os Maias" na televisão pensei no termo musical "andante majestoso",. Não que o andamento da ação fosse invariável e pesado. Pelo contrário, a câmera extraordinariamente móvel do Luiz Fernando Carvalho 'frequentou', mais do que retratou, a frívola Lisboa da época e todas as atmosferas do romance. Mas no fundo havia aquela progressão majestosa, desde a primeira cena, para o desenlace, a câmera andante nos levando como um lento tema trágico que repassa uma sinfonia. Nunca uma câmera de TV foi tão cúmplice e envolvente, nunca a TV foi tão romântica. Tudo contribui para o clima exato do começo ao fim, a começar pela adaptação habilíssima que Maria Adelaide Amaral fez dos "episódios da vida romântica do Eça, e incluindo as interpretações, todas perfeitas. Mas a estrela do espetáculo é o olhar do diretor Luiz Fernando Carvalho, que com "Os Maias" quase inaugura outra arte inédita".