quinta-feira, 11 de dezembro de 2014

Memórias Póstumas de NOEL ROSA. Luciana Sandroni.

Acho conveniente começar esta resenha com o título completo do livro e algumas informações complementares. Vamos ao título: Memórias Póstumas de Noel Rosa - Uma longa conversa entre Noel e São Pedro num botequim lá do céu. O livro tem três autorias: Luciana Sandroni é responsável pelo texto, Maria Clara Barbosa pelas partituras e Gustavo Duarte pelas ilustrações. O livro é lançamento do mês de outubro, da Companhia das Letrinhas e, assim, é dedicado a um público juvenil, sem fazer mal nenhum, se for lido por adultos, como foi o meu caso.
Lançamento da Companhia das Letrinhas. Memórias Póstumas de Noel Rosa.

Como o título duplamente sugere, Noel Rosa, lá do céu, estimulado por São Pedro, passa a escrever as suas memórias. São Pedro, ao mesmo tempo em que o estimula, também o reprime. Afinal de contas, como um líder religioso, São Pedro tem que se preocupar com as questões morais e, neste quesito, Noel poderia não ser um bom exemplo: moleque com mil travessuras, relapso com suas obrigações escolares, muito namorador e plural no número de namoradas, boêmio e nada abstêmio e extremamente fiel à vida boêmia. Enfim, uma vida bem vivida e bem bebida. Tudo o inverso das virtudes cristãs. Mas, então qual seria a motivação de São Pedro para instigar Noel a escrever?
No botequim do céu, entre uma e outra água de coco, planejando o livro de memórias. Uma das ilustrações de Gustavo Duarte.

Certamente que São Pedro fora acometido de um acesso de generosidade para com a humanidade e, mais precisamente, para com o povo e a cultura brasileira. Queria que Noel Rosa contasse a sua vida, no que ela tinha de melhor, a sua ligação com a música. E esta ligação passa pelo seu nascimento na Vila Isabel, um bairro todo ligado à música, pelo seu nascimento numa família que amava a música, pelos inúmeros amigos do bairro e, especialmente, pela absoluta falta de preconceitos na escolha das amizades. Assim, embora branco, entrou em contato com muitos negros dos morros da redondeza e fez uma autêntica revolução na cultura musical brasileira, incorporando elementos e instrumentos africanos e dando status a um novo gênero musical. Confirmou assim uma máxima de que no Brasil tudo tende a se misturar. São Pedro estava, assim, absolutamente correto. Valeria muito a pena que Noel relatasse as suas memórias. São Pedro, no entanto, permaneceria vigilante para que nada que atentasse contra a moral e os bons costumes fosse ali escrito.
A casa de Cartola, na Mangueira, era a segunda casa de Noel.

Noel Rosa nasceu no Rio de Janeiro no dia 10 de dezembro de 1910. Na véspera ocorrera a revolta da Chibata. Nasceu na Vila Isabel, num parto difícil. O fórceps quebrou o maxilar direito, lhe deformando o queixo. A medicina seria o seu destino, pela vontade familiar. Era a profissão do avô e de outros parentes. Nunca foi um aluno exemplar, embora estudando no rigoroso ginásio dos beneditinos, junto ao mosteiro de São Bento. Chegou a ingressar no curso de medicina. A alegria na família fora enorme. Mas a decepção foi maior, quando ao final do primeiro semestre, tudo abandonou. Tudo abandonou, para seguir exclusivamente a música. Mas também isso, por culpa da família. Senão vejamos.

Em sua casa, nas tardes de domingo tinha sarau. Tinha piano, bandolim, violino e violão, tocados por membros da família. As avós, o tio Eduardo, ele e o irmão Hélio formavam a plateia. Chopin e Liszt eram os clássicos mais tocados que perdiam, no entanto, para Chiquinha Gonzaga e Ernesto Nazareth. O pai cantava as canções de Catulo da Paixão Cearense. O pai também o ensinou a tirar os primeiros sons do violão, instrumento do qual nunca mais se separou. Aos 18 anos já era professor de violão e passou a ser convidado permanente para saraus e serenatas.
Olha aí a turma com quem ele andava. Da coleção Folha - Raízes da Música popular Brasileira.


O envolvimento maior com a música  veio com o grupo Os Tangarás, do qual faziam parte ninguém menos do que Almirante e Braguinha. Daí para frente só sucesso. Deixo dois títulos dos capítulos que mostram os êxitos musicais: Um brinde a Orestes e Lamartine - Os cantores do rádio. São Pedro vai permitindo que Noel conte de seus amigos e parceiros e também de seus intérpretes. Depois envereda pelo perigoso campo dos amores. Das primeiras namoradas, as ameaças da polícia para o casamento com Lindaura e a grande paixão por Ceci, a menina do Cabaré do Apollo, que nunca o abandonou, embora a tenha perdido para - imaginem para quem? Para Mário Lago.  Nestas horas, certamente, São Pedro estava cochilando.

Quando já era profundamente querido e respeitado por todos, começam os problemas. O pai perde o emprego, é internado em sanatório e se suicida. Enquanto isso ele, Noel, recebe o diagnóstico de tuberculose, uma espécie de condenação à morte, ainda mais para um boêmio, com toda a ausência de disciplina que isso acarreta. Noel consegue até uma recuperação, mas quando todas as portas do sucesso estavam abertas, as do rádio, do teatro e do cinema, prematuramente a tuberculose o vitima. Era o dia 4 de maio de 1937. Mas, uma rádio, já tinha anunciado a sua morte na véspera e houve até manchete de jornal desmentindo a morte. Uma vida breve. Não precisou de muito tempo para deixar um grande legado.
Ilustração do seu casamento com Lindaura, meio na marra.


Quando Noel tenta por o ponto final em suas memórias São Pedro lhe conta do ocorrido após a sua morte. Noel ficou muito satisfeito em saber do ocorrido, pois imaginava que com a morte tudo acabara. É uma das partes mais belas do livro. São Pedro lhe conta que no ano de sua morte foi proclamado o Estado Novo e houve todos os controles do Estado sobre a música popular e a vida boêmia da Lapa fora controlada. Mas nos anos 1950 você ressuscitou. Você nunca foi tão ouvido. Aracy de Almeida lhe deu muita fama. Gravou um álbum triplo com as tuas músicas e fez um show na boate Vogue. E a Lapa voltou para a boemia. Até o povo chique canta: Três apitos - Com que roupa? - Conversa de botequim - Palpite infeliz - Último desejo e, por aí vai...

Nos anos 1960, conta São Pedro, apareceu um compositor que ficou muito famoso e que se se inspirou muito em seu samba. Os críticos chegaram a chamá-lo de um novo Noel Rosa. Chico Buarque de Holanda. Uma música sua até te cita: Rita: "...Uma imagem de São Francisco e um disco de Noel.
Uma ideia genial. Partituras das principais músicas de Noel. Um trabalho de Maria Clara Barbosa.

Aí segue uma preciosidade do livro. As partituras com novos arranjos, mostrando como Noel seria tocado hoje. São em torno de cinquenta páginas com as partituras, estas trabalhadas por Maria Clara Barbosa. Uma bela forma de homenagear e perpetuar a memória de um dos fundadores da verdadeira Música Popular Brasileira. Como já falei, o livro é belamente ilustrado por Gustavo Duarte. Memórias Póstumas  de Noel Rosa é um lançamento do mês de outubro da Companhia das Letrinhas. Ótimo para presente de natal, especialmente se você tiver um filho, neto ou amigo voltado para a música. Um belo tributo a cultura musical brasileira. Um excelente panorama cultural dos anos 1930. Também um belo livro para ser usado em sala de aula.



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