sexta-feira, 30 de agosto de 2024

CAIM. José Saramago.

Nas minhas releituras de Saramago, me havia proposto a fazê-lo pela ordem de sua escrita. Não cumpri com essa minha intenção, depois de ler O Evangelho segundo Jesus Cristo. Optei por ficar com o tema da religião, com Caim, o seu acerto de contas com o antigo ou o primeiro testamento. Este livro é do ano de 2009. No meu entendimento ele é ainda mais ácido, em sua crítica, do que o Evangelho. A leitura desses dois livros é de fundamental importância para quem quiser minimente lançar um olhar sobre os pilares de nossa civilização, a dita civilização ocidental e cristã, ou judaico-cristã, fora das pregações religiosas.
Caim. José Saramago. Companhia das Letras. 2009.

A leitura de Caim implica num bom conhecimento bíblico, no caso, do Antigo Testamento, dos fatos ali narrados. Como sou de formação católica e não cheguei até o curso de teologia, eu os conheço apenas por ouvir falar e outras fontes, sempre religiosas. Se excetuam alguns fatos em que a curiosidade me levou à leitura. Trago comigo uma edição da Bíblia, da editora Ave Maria, que comprei em meados da década de 1960, numa livraria das irmãs paulinas, no centro de Porto Alegre. Uma edição do ano de 1964, 5ª edição. A mantenho como fonte para consultas.

Esse acerto de contas com o Antigo Testamento tem como personagem central Caim, aquele que matou o seu irmão Abel. Na visão de Saramago Caim não era tão mau, como e quanto sempre é pintado. Abel, diríamos numa linguagem dos tempos atuais, lhe praticava bullyng. Lhe tirava sarro pelo fato de Deus não aceitar os seus sacrifícios, ao contrário dos seus, motivo para auto exaltações E como as interrogações sempre incomodam, Saramago lança uma bem implicante. Quais seriam as razões para que Deus aceitasse apenas os sacrifícios de Abel. Questões de preferência, de ciúmes? Se o personagem é Caim, a intenção do livro é bem maior do que o personagem. A intenção de Saramago é, certamente,  a grande interrogação sobre os motivos da criação dos homens. O Deus Criador (tudo minúsculo em Saramago) parece ser alguém sempre mal humorado ou mesmo do mal, sim, mais do mal do que mal humorado.

Começa com os castigos impostos a Adão e Eva, pelo pecado cometido, ainda no paraíso. Qual mesmo? O da curiosidade. Comeram o fruto da árvore do conhecimento. Seriam iguais a Deus, ideia para Ele insuportável. E vejam o tamanho do castigo, além de desproporcional. "A partir de agora acabou-se-lhes a boa vida, tu, eva, não só sofrerás todos os incômodos da gravidez, incluindo os enjoos, como parirás com dores, e não obstante sentirás atracção pelo teu homem, e ele mandará em ti, Pobre eva, começas mal triste destino vai ser o teu, disse eva. Devias tê-lo pensado antes, e quanto à tua pessoa, adão, a terra ficou amaldiçoada por tua causa, e será com grande sacrifício que dela conseguirás tirar alimento durante toda a tua vida, só produzirá espinhos e cardos, e tu terás de comer a erva que cresce no campo, só à custa de muitas bagas de suor conseguirás arranjar o necessário para comer, até que um dia te venhas a transformar de novo em terra"...

Pelo visto, Deus não economizou nos castigos, a começar pelo fim da boa vida no paraíso. Para a mulher mais: dor e incômodos da gravidez e do parto; repetição dessa dor pelo desejo e a submissão ao homem e, para Adão o tripalium, ou o trabalho como castigo. Vejam os fundamentos da tal da cultura ocidental. Ela começou com uma mácula original, da qual todos nós somos herdeiros. Logo após, lhes vem a briga entre os filhos Caim e Abel.  Deus não tem comiseração por Caim. Lhe deixa uma marca na testa e o obriga a peregrinar errante pela terra, em troca da vida. 

Para Saramago já havia outros homens habitando a terra. A partir desse momento, o das peregrinações de Caim, encontraremos o que já anunciamos, o fio condutor da narrativa: Aí estará o encontro com Lilith, com quem estabelecerá uma "festa dos corpos"; as histórias de Abraão e o sacrifício de Isaac (Só que será Caim a segurar a mão de Abraão); a torre de Babel e o desentendimento entre os homens e a insuportável ideia para Deus de que os homens o alcançassem e o temor de suas inteligências; a destruição de Sodoma e Gomorra, onde nem dez inocentes seriam encontrados (nem mesmo as crianças); a fúria de Moisés e de Josué no episódio do bezerro de ouro e na guerra com os madianitas e a partilha dos despojos (Deus será invocado como o Senhor dos exércitos e das guerras); a destruição de Jericó; o pacto entre Deus e o Diabo sobre o teste de fidelidade de Job (Ah se Kierkegaard pudesse ter lido esse livro!); por fim, o seu projeto de arrependimento da criação dos homens e a sua destruição pelo dilúvio. Mas esse episódio merece uma atenção especial

A humanidade teria um recomeço. Tudo e todos seriam destruídos, menos os de interior da arca. Entre eles também estava Caim. Seria uma nova criação da humanidade. Ela teria um novo pai, uma nova família. Um modelo de família (Seria como as apregoadas hoje em dia?). Noé, seus filhos e filhas encarnariam os valores dessa nova constelação familiar. Meio ou muito complicado. Embriaguez, promiscuidade, o comportamento da mulher, do próprio Noé.... Mas como diz o padre Amaro, aquele do crime, no romance de Eça de Queiroz, - a moral existe para ser pregada e não para ser praticada... - Um belo recomeço de tudo! Os dois últimos capítulos, os de número 12 e 13, pertencem necessariamente ao rol das páginas mais irônicas e sarcásticas da literatura universal.

Ao final, um duro embate entre Deus e Caim; "Então a nova humanidade que eu tinha anunciado. Houve uma, não haverá outra e ninguém dará pela falta, Caim és, e malvado, infame matador do teu próprio irmão, Não tão malvado e infame quanto tu, lembra-te das crianças de sodoma. Houve um grande silêncio. depois caim disse, Agora já podes matar-me, Não posso, palavra de Deus não volta atrás, morrerás da tua natural morte na terra abandonada e as aves de rapina virão devorar-te a carne, Sim, depois de tu primeiro me haveres devorado o espírito. A resposta de deus não chegou a ser ouvida, também a fala seguinte de caim se perdeu, o mais natural é que tenham argumentado um contra o outro uma vez e muitas, a única coisa que se sabe de ciência certa é que continuaram a discutir e que a discutir estão ainda. A história acabou, não haverá nada mais que contar". Para a contar, Saramago precisou apenas de 172 páginas.

A verdadeira raiva e ódio de Caim não era de Abel, o seu irmão, mas de  deus, uma vez que este não aceitara os seus sacrifícios. Mas este seu intento não se concretizou. Se isso fosse possível, aí sim poderíamos ter tido uma outra civilização. Deixo ainda as orelhas do livro:

"Se, em O Evangelho segundo Jesus Cristo, José Saramago nos deu sua visão do Novo Testamento, neste Caim ele volta aos primeiros livros da Bíblia, do Éden ao dilúvio, imprimindo ao Antigo Testamento a música e o humor refinado que marcam sua obra. Num itinerário heterodoxo, Saramago percorre cidades decadentes e estábulos, palácios de tiranos e campos de batalha, conforme o leitor acompanha uma guerra secular, e de certo modo involuntária, entre criador e criatura.

Para atravessar esse caminho árido, um deus às turras com a própria administração colocará Caim, assassino do irmão Abel e primogênito de Adão e Eva, num altivo jegue, e caberá à dupla encontrar o rumo entre as armadilhas do tempo que insistem em atraí-los. A Caim, que leva a marca do senhor na testa e portanto está protegido das iniquidades do homem, resta aceitar o destino amargo e compactuar com o criador, a quem não reserva o melhor dos julgamentos. Tal como o diabo de O evangelho, o deus que o leitor encontra aqui não é o habitual dos sermões: ao reinventar o Antigo Testamento, Saramago recria também seus principais protagonistas, dando a eles uma roupagem ao mesmo tempo complexa e irônica, cujo tom de farsa da narrativa só faz por acentuar.

A volta ao tema religioso serve, também, para destacar o que há de moderno e surpreendente na prosa de Saramago: aqui a capacidade de tornar nova uma história que conhecemos de cabo a rabo, revelando com mordacidade o que se esconde nas frestas dessas antigas lendas. Munido de ferina veia humorística, Saramago descreve uma estranha guerra entre o homem e o senhor. mais que isso, investiga a fundo as possibilidades narrativas da Bíblia, demonstrando novamente que, ao recontar o mito e confrontar a tradição, o bom autor volta à superfície com uma história tão atual e relevante quanto se pode ser".

Deixo também a outra obra de Saramago sobre o tema religioso. O Evangelho segundo Jesus Cristo.





sexta-feira, 23 de agosto de 2024

O Evangelho segundo Jesus Cristo. José Saramago.

Na continuidade de minhas releituras de José Saramago chegou a vez daquele que eu considero como o seu mais importante livro. O Evangelho segundo Jesus Cristo. Seria uma autobiografia? Talvez sim, pois, Saramago procura penetrar no âmago da subjetividade de Jesus e expor todas as dúvidas e angústias que o "Filho do Homem" sentiu e sofreu, sem entender direito qual a missão que lhe fora reservada por seu Pai. Seu Pai, não o carpinteiro José, mas sim, o próprio Deus. Tema de difícil e delicada abordagem, fundamento maior da cultura ocidental. O livro é do ano de 1991. O seu título de Nobel da Literatura é do ano de 1998. O título também poderia ser, sem dúvida, O Evangelho segundo José Saramago.

O Evangelho segundo Jesus Cristo. Companhia das Letras. 1999. 21ª reimpressão.

De uma questão tratada ao final do livro, tomo a razão de ser do mesmo. A cena envolve um diálogo de Jesus com os discípulos, também eles interessados em entender a missão de Jesus: "Que quer Deus, afinal, perguntou João. Quer uma assembleia maior do que aquela que tem, quer o mundo todo para si, Mas se Deus é senhor do universo, como pode o mundo não ser seu, e não desde ontem ou amanhã, mas desde sempre, perguntou Tomé, Isso não sei, disse Jesus,"... (p. 435). A dúvida ou as dúvidas de Jesus perpassam todo o livro e aponto, desde já, para o capítulo de número 22 (páginas 363 a 400), onde a questão é especificamente tratada. No meu modesto modo de ver, são estas páginas, seguramente das mais impactantes da literatura universal. Voltaremos à questão.

Para começar, uma questão de contextualização. No tempo de Jesus, a região habitada pelo povo hebreu estava sob a dominação do Império Romano, em aliança com os sacerdotes do Templo de Jerusalém, vivendo assim, sob uma dupla dominação. A libertação do povo era um desejo dominante entre os judeus e a aparição de "libertadores" desse jugo era bastante comum. Após a morte de Jesus, os discípulos continuaram a sua missão. A propagação, ou aquele "quer o mundo todo para si", teve grande impulso com Paulo, o chamado apóstolo dos gentios, isto é, do povo não judeu. Para explicar para esses novos adeptos da religião em expansão é que foram escritos os Evangelhos. Isso a partir dos anos 70 d.C., quando o centro dessa religião já tinha se transferido para Roma. Assim, essas versões já estavam um tanto distantes e não concomitantes aos fatos históricos. O Evangelho segundo Jesus Cristo, não foi escrito para os seguidores, mas para o mundo inteiro refletir sobre a doutrina que se transformou num dos pilares da civilização ocidental. Provocar reflexões, com certeza, foi o objetivo maior desse livro monumental.

No Evangelho segundo Jesus Cristo, chama muito a atenção o título com o qual Jesus sempre se apresentava, o "Filho do Homem", não de José, mas também dele. Um Jesus profundamente humano, que viveu todos os dramas humanos, com as suas doçuras e agruras, alternando momentos de intensa alegria e satisfação com os de profundas e imensas dores e tristezas. Momentos de obediência à religião herdada, com momentos de corajosa rebeldia, a tal ponto de, já aos 12 - 13 anos de idade, abandonar a sua mãe, já viúva, pois José morrera crucificado sob o jugo romano, quando fora acudir um vizinho seu. O motivo de sua rebeldia é uma das reflexões condutoras desse seu Evangelho. Trata-se da ordem de Herodes de mandar matar todas as crianças nascidas em Belém e que tivessem menos de três anos. Eram em torno de 25, essas crianças.

Acontece que José, estando no Templo, ouviu dos soldados que esta ordem de execução fora dada aos soldados romanos. Qual foi então a sua atitude? Ele tratou de salvar o seu filho, apenas o seu, ao não comunicar a ordem de execução aos demais pais da cidade de Belém. O Jesus menino, na ocasião foi salvo por haver nascido numa gruta, fora do âmbito urbano. De uma forma ou de outra, Jesus ficou sabendo desse episódio. Todas as noites tinha sonhos horríveis. Acordava com profundos sentimentos de culpa. Isso o leva a querer reconstituir o seu passado, abandonando a casa de sua mãe e de seus irmãos. Irá discutir com os escribas do Templo, viver no pastoreio de ovelhas sob o comando de Pastor (o demônio - observem o detalhe), visitar o local de nascimento e conversar com a escrava Zelomi, que ajudara a sua mãe no seu parto. Em suas andanças, a culpa será a sua mais fiel companheira.

Na volta para casa, após quatro anos, tem os seus pés em chagas e pede ajuda em uma casa em Magdala, já nas proximidades de Nazaré. Lá é atendido por Maria, a Maria de Magdala, prostitua de profissão. São, mais uma vez, na minha modesta opinião, das páginas mais cheias de beleza, amor e ternura da literatura universal, as que ali são descritas. Após ter cuidado dessas feridas, lhe foram abertas as feridas do amor, da paixão e da saudade. Após breve visita à mãe e aos irmãos, que não reconhecem a missão, da qual Jesus já tinha alguma noção, se retira definitivamente de sua casa e volta para Maria de Magdala. Esta, que já abandonara a sua profissão, será a companheira de todas as horas de Jesus. 

Por óbvio, não vou fazer uma síntese, passo a passo, do livro. O que eu quero é exaltar os trechos que me foram os mais significativos. Por isso volto ao já enunciado capítulo 22. Mas, antes ainda, quero salientar a beleza das conhecidas cenas da multiplicação dos pães e peixes, da transformação da água em vinho, nas bodas de Caná e do sermão das bem-aventuranças. Nesse capítulo, o de número 22, Deus explicita a missão que destinou a Jesus, qual seja, um reino de glórias em troca de sua vida, por uma horrível e ignominiosa morte. Um reino futuro, porém.

Nesse capítulo Saramago nomeia os custos dessa vontade de Deus, em não mais querer ser o Deus de apenas um povo, mas de ser o Deus de todos os povos, o Deus universal. Em perspectiva, Saramago enuncia o sacrifício de tantos santos mártires, das Cruzadas, da Inquisição, vidas em isolamento, jejuns e autoflagelação. Jesus até ousa a pergunta se os deuses dos outros povos aceitariam tudo isso de forma passiva e pacífica. Nesse capítulo Saramago reúne Deus, o Pastor (lembram - o demônio, com quem Jesus trabalhara) e o próprio Jesus. São quarentas dias de encontro em uma barca. Numa cena de muita força o demônio procura uma reconciliação com Deus, prometendo renunciar ao seu ministério, se Deus também renunciasse ao seu projeto de extensão de sua religião, pacto ao qual Deus se recusa a aceitar. Destaquei um pequeno trecho: 

"Não me aceitas, não me perdoas. Não te aceito, não te perdoo, quero-te como és, e, se possível, ainda pior do que és agora, Porquê, Porque este Bem que eu sou não existiria sem esse Mal que tu és, um Bem que tivesse de existir sem ti seria inconcebível, a um tal ponto que nem eu posso imaginá-lo, enfim, se tu acabas, eu acabo, para que eu seja o Bem, é necessário que tu continues a ser o Mal, se o Diabo não vive como Diabo, Deus não vive como Deus, a morte de um seria a morte do outro, É a tua última palavra. A primeira e a última, a primeira porque foi a primeira vez que a disse, a última porque a não repetirei" (páginas 392-393). Não lembra Nietzsche e O nascimento da tragédia?

Talvez seja por isso que nas orelhas do livro, ele é apresentado como escrito com "socrática agudeza e voltaireana ironia". Vejamos o contexto: "... Na que é de justiça reconhecer a melhor prosa de ficção da língua portuguesa de nossos dias, José Saramago nos conta mais uma vez a mesma história que vem sendo contada há tantos séculos. A mesma? Sim, se tiver em vista tão só os personagens e os sucessos da fábula. Não, se se atentar para a nova carnadura de que aqui se revestem. Interessado menos na onipotência do divino que na frágil mas tenaz resistência do humano, a arte magistral de Saramago excele no dar corpo às preliminares e à culminância do drama da Paixão, presentificando-lhe as cores, cheiros, sons, movimentos, esmiuçando-lhe as ambiguidades e implicações em busca de significados recônditos por sob os ostensivos. Leiam-se, a título de exemplo de presentificação, as páginas de bravura que pintam os sacrifícios de sempre no Templo de Jerusalém. E onde melhor exemplo de esmiuçamento crítico que as páginas de socrática agudeza e voltaireana ironia acerca do debate travado entre Deus e o Diabo na barca perdida em meio ao nevoeiro de quarenta dias?

Mas é bom ver que nessa agudeza não há soberba de espírito, nem há desencanto do mundo nessa ironia: há lucidez e compreensão do humano, demasiadamente humano. O cognome de Filho do Homem que o Messias se dava adquire uma plenitude de sentido que o leitor não terá dificuldade em compreender se atentar para o que acontece aqui com o carpinteiro José, para o pedido de Cristo faz a Judas pouco antes de ser crucificado, e para as últimas palavras que diz de olhos voltados para o céu. Compreendido isso, será mais fácil entender por que este evangelho tem o título que tem".

E..., a cena final, na qual as interrogações continuam: "Depois, foi morrendo no meio de um sonho, estava em Nazaré e ouvia o pai dizer-lhe, encolhendo os ombros e sorrindo também, Nem eu posso fazer-te todas as perguntas, nem tu podes dar-me todas as respostas. Ainda havia nele um resto de vida quando sentiu que uma esponja embebida em água e vinagre lhe roçava os lábios, e então, olhando para baixo, deu por um homem que se afastava com um balde e uma cana ao ombro. Já não chegou a ver, posta no chão, a tigela negra para onde o seu sangue gotejava". Lembrando que essa emblemática tigela negra está onipresente ao longo de todo o livro.

Deixo ainda a resenha de dois livros sobre o tema Jesus. De frei Betto, o Jesus militante

http://www.blogdopedroeloi.com.br/2024/07/jesus-militante-o-evangelho-e-projeto.html

E de Reza Aslan Zelota - a vida e a época de Jesus de Nazaré.

http://www.blogdopedroeloi.com.br/2024/07/zelota-vida-e-epoca-de-jesus-de-nazare.html


quarta-feira, 21 de agosto de 2024

O ano da morte de Ricardo Reis. José Saramago.

Nas minhas releituras de José Saramago, chegou a vez de O ano da morte de Ricardo Reis. Conforme uma pequena anotação ao final da última página, a de 428, terminei esta primeira leitura no dia 7 de agosto de 2010. Por uma incrível quase coincidência de datas, ao menos quanto ao dia e ao mês, terminei a releitura em oito de agosto de 2024. Este livro teve a sua publicação no ano de 1984, depois de Levantando do chão (1980) e Memorial do convento (1982).

O ano da morte de Ricardo Reis. José Saramago. Companhia das Letras.

Creio que não posso fazer esta resenha sem antes falar um pouco de Fernando Pessoa, o grande e notável poeta português (1888- 1935). Em seus escritos ele inventou o artifício de usar heterônimos, creio que mais por brincadeira do que de se esconder sob o nome de outros. A sugestão de ter sido por brincadeira me veio porque li, que ele usou desse expediente, desde a infância. Deixo aqui, os quatro heterônimos que aparecem com maior frequência: Alberto Caeiro, Álvaro de Campos, Bernardo Soares e Ricardo Reis. Ao todo, contei mais de trinta. Pronto. Está dada a primeira pista para a leitura do livro O ano da morte de Ricardo Reis.

Numa rápida busca no Google encontrei a razão para os diferentes nomes: as diferentes temáticas. Assim, para Ricardo Reis, uma criação do ano de 1913, estavam reservados os temas que falavam de paganismo, de enfermidades e de amores idealizados. Conforme o próprio livro de Saramago, ele nascera na cidade do Porto em 1887, estudara com os jesuítas e era formado em medicina. Ainda vi que, politicamente ele era defensor da monarquia e das tradições. Hoje diríamos, ser ele da direita, um conservador. Isso ajuda a explicar as suas posições, ao longo dos acontecimentos do ano de 1936, que é o ano de sua morte, um ano após a morte de Fernando Pessoa. Em 1917, após conflitos em Portugal, ele viera ao Brasil, onde, sem grandes envolvimentos políticos ou sociais, exerceu a medicina até o ano de seu retorno a Portugal, o ano de 1936.

1936. Que ano! Que ano tenebroso. O romance nos dá uma pista de que a sua volta para Portugal se deu por causa da Intentona Comunista de 1935 no Brasil, embora ele não tivesse nenhum envolvimento ou motivo especial para essa sua volta. O real motivo, ao certo, tudo indica, nem mesmo ele o sabia, pois nem mesmo sabia se ficaria em Portugal, se voltaria ao Brasil e se ficasse em Portugal, o que haveria de fazer, a que ofício se dedicar. Tanto assim, que fica hospedado no Hotel Bragança, em completa ociosidade por cerca de três meses. Opa!, já entramos no enredo.

Mas, voltando ao ano de 1936, vamos dar uma rápida olhada na conjuntura europeia desse ano. Portugal, Espanha, Alemanha, Itália e França. Tempo de Luta de Classes e de autoritarismos. Tempos de Salazar, da Guerra Civil Espanhola. Tempos de Mussolini e de Hitler. E um médico absolutamente indiferente e alheio aos acontecimentos, mas a quem os fatos começam a incomodar e trazer desconforto. No Hotel Bragança, uma única perturbação. Ou melhor, uma intimação para comparecer à polícia política, para lhe tomar informações. Uma invasão de privacidade, no seu entendimento. A espionagem paira no ar e ela lhe faz mal, muito mal. Ele deveria ser um cidadão acima de qualquer suspeita. Sua vida era absolutamente pacata, resumindo-se aos personagens do hotel.

Ali é um bom hóspede, de boas posses e boas gorjetas e de fino trato, muito educado para com todos. Dois personagem afloram: Lídia, a camareira e Marcenda, uma bela e rica menina de Coimbra, com um defeito na mão esquerda, motivo que a traz a Lisboa, junto com o seu pai, já viúvo. Este virá por outro motivo. E..., sim, Fernando Pessoa. Este o visita constantemente. Ele tinha o consentimento de, por um ano, voltar para encontrar-se com as pessoas. Inúmeros diálogos e muita ironia. Bom, creio que temos assunto, mais do que suficiente. Tem ainda uma visita a Fátima, sem milagres à vista.

A parte final do livro se ocupa da situação portuguesa sob Salazar e dos acontecimentos que levaram à Guerra Civil Espanhola, após o golpe militar de Franco, a se digladiar com as forças da República Popular. O irmão de Lídia, a camareira, é da marinha portuguesa e irá participar de uma rebelião, que logo será contida. O romance não tem conclusões, nem de histórias começadas, nem de defesa de ideologias. Mas o que não falta são elementos trazidos para a reflexão, além de um clima de mal-estar que se reflete no semblante dos personagens. E uma notável frase em epígrafe, melhor, duas: "Sábio é o que se contenta com o espetáculo do mundo", de Ricardo Reis e "Escolher modos de não agir foi sempre a attenção e o escrúpulo da minha vida". Esta, de Bernardo Soares. Seria uma síntese do médico Ricardo Reis, em sua volta a Lisboa, a Portugal e a Europa violentamente conturbada.

Nas orelhas do livro temos um belo texto assinado por Leila Perrone-Moisés: "Fernando Pessoa morreu em 1935. Seus alter egos ou heterônimos não morreram todos na mesma data. Alberto Caeiro já havia falecido há vinte anos; Álvaro de Campos e Ricardo Reis continuavam vivos em 35, já que seu criador não os havia 'matado'. A obviedade dessa sobrevivência escapou a todos que choraram e choram a morte total de Pessoa. A todos, não. José Saramago deu pela coisa e foi ver o que teria acontecido com um dos sobreviventes.

Que foi que ele descobriu? Descobriu que, um mês depois da morte de Pessoa, Reis que estava auto-exilado no Rio de Janeiro, regressou a Lisboa. Viveu ali todo o ano de 1936, ano crucial para a política portuguesa e europeia; instalação da ditadura salazarista, prenúncios da Guerra Civil espanhola, ascensão de Hitler e Mussolini. Adepto de uma filosofia céptica, baseada na renúncia à ação e no aperfeiçoamento interior do indivíduo. Reis percebe então que não é fácil permanecer alheio ao mundo. No terreno individual, o Destino lhe prega algumas peças. Quanto ao 'espetáculo do mundo', este se apresenta demasiadamente inquietante para que ele possa contemplá-lo com indiferença. Paralisado na inação, atormentado com o que lhe acontece e acontece ao mundo, o médico-poeta vive esses meses em abatimento e solidão. E, para complicar as coisas, o fantasma de Fernando Pessoa vem procurá-lo, para travar com ele instigantes conversas.

O romance de Saramago, prende o leitor da primeira à última linha, quer esse leitor seja ou não um 'pessoano'. Porque é uma obra com qualidades próprias. Baseado numa minuciosa pesquisa histórica, o texto de Saramago é uma reconstituição de época extraordinariamente viva, sem nenhum ranço de erudição documental.

Mais do que um simples jogo literário, que por si só já seria fascinante, a criação prosseguida da ficção heteronímica resulta aqui numa reflexão sobre a identidade portuguesa e, segundo o autor, numa 'contribuição para o diagnóstico da doença nacional'. Como verdadeiro artista que é, Saramago abstém-se, porém, de julgamentos explícitos, de prognósticos ou lições. O tema delicado da 'alienação' política de Pessoa é por ele tratado com dedos leves e certeiros.

Essa é uma obra à altura de Ricardo Reis. E, conhecendo-se essa altura, poucos seriam capazes de a enfrentar sem vertigem". E eu acrescentaria: uma obra para leitores.

Deixo ainda a resenha anterior, a do livro Memorial do convento, de 1982.

http://www.blogdopedroeloi.com.br/2024/08/memorial-do-convento-jose-saramago.html

 

sexta-feira, 9 de agosto de 2024

Memorial do Convento. José Saramago.

Continuo a saga da releitura de José Saramago. Em 30 de julho de 2010, como apontado ao final do livro, eu terminava a leitura de Memorial do convento, o seu livro publicado no ano de 1982. Hoje, dia 3 de agosto de 2024, terminei a releitura. O impacto continua o mesmo como o da primeira leitura. Trata-se, a exemplo de Levantando do chão, de uma viagem por Portugal. Se por Levantando do chão conhecemos os latifúndios e os sofrimentos por eles provocados aos trabalhadores na região de Évora, com o Memorial do convento vamos ter um encontro com trabalhadores, milhares de trabalhadores, livres e forçados, todos empenhados na monstruosa e medonha construção.

Memorial do convento. José Saramago. Bertrand Brasil. 2010.

Nos meus anos de seminário eu cantava no coral. Além do hino do Vaticano, me lembro que cantávamos os sinos de Mafra, em que as vozes imitavam os badalos. Já nos primeiros ensaios, vim saber que em Mafra (SC.) não havia sinos famosos. Fui descobri-los em Portugal e, pelo livro de Saramago, fiquei sabendo serem eles mais de cem. O convento foi do tempo em que Portugal podia sustentar essa verdadeira loucura. O ouro, o comércio de escravos e das especiarias, ou dito de forma mais simples, as colônias tudo pagariam. Coube ao arquiteto alemão João Frederico João Ludovice o seu desenho, mas que na execução foi muito aumentado. De 80 monges residentes quis o rei, 300. Isso para demovê-lo da ideia da reprodução da basílica de São Pedro, a de Roma, em Lisboa. 

A construção do convento tem a sua origem no cumprimento de uma promessa de D. João V (1689 - 1750 e rei a partir de 1706, até o fim de sua vida). Ele era casado com a princesa austríaca D. Maria Ana. Em troca da fertilidade dela (Do homem jamais se duvidava), o convento seria erguido ad maiorem Dei gloriam. Ao nascer a infanta Maria Bárbara, as obras iniciaram. Isso era no ano de 1717. A inauguração festiva, nos conta, tanto Saramago como a Wikipédia, ocorreu em 22 de outubro de 1730, levando mais dez anos ainda, para as obras estarem concluídas.

Mas não é apenas isso. Também há o padre Bartolomeu Lourenço, de Gusmão, depois de doutorado concluído em Coimbra. Era brasileiro esse padre Voador, pois voar era o seu intento. Também há Baltasar Mateus, o Sete-Sóis, maneta por motivo de guerra com os espanhóis. E há ainda Blimunda, que para complementar o Sete-Sóis, de Sete-Luas passou a ser chamada. E há a inquisição e as grandes solenidades do Santo Ofício, que já levara a mãe de Blimanda e também já andava no encalço do padre Voador, pois voar era contra a vontade de Deus, senão a Dele, ao menos a de seus representantes. Estes três celebraram um pacto, o de construir, sob segredo, a engenhoca voadora. E, de fato voaram. Isso é o que nos conta Saramago. Sobrevoaram a cidade de Mafra. para cujo povo, fora o Espírito Santo que baixara.

A fuga do padre de seus inquisidores se deu por via aérea, da qual os três se saíram bem. O padre sumiu, para mais tarde reaparecer em Toledo, na Espanha. O casal mantém o segredo, do qual apenas um músico italiano compartilhava. Sete-Sóis cuida da manutenção da engenhoca, que um dia voa junto com ele e simplesmente desaparecem - para nove anos de peregrinação de Blimunda, atrás da jeringonça e do marido. Muitos fatos se sucedem nesses anos, até que finalmente, num Auto de Fé, em Lisboa, encontrar Sete-Sóis ardendo em fogueira. E, lá se foram 25 capítulos, ao longo de 347 páginas, de muita história, ironia e diversão. 

Na contracapa uma síntese: "Era uma vez um rei que fez promessa de levantar um convento em Mafra.

Era uma vez a gente que construiu esse convento.

Era uma vez um soldado maneta e uma mulher que tinha poderes.

Era uma vez um padre que queria voar e morreu doido.

Era uma vez".

Na orelha da contracapa encontramos outra síntese, na parte final do texto de José J. Veiga: "A pretexto de escrever um livro sobre a história da construção de um convento em Mafra no século XVIII, Saramago inventou uma história outra, na qual entram outras famílias inesquecíveis, a dos Sete-Sóis e a das Sete-Luas, e mais o padre Bartolomeu de Gusmão com sua passarola e o compositor Scarlatti com seu órgão e sua música, e mais reis e rainhas e princesas, e mais uma pedra descomunal que precisa ser transportada a longa distância, e o que acontece durante o transporte. Que pretende Saramago com seus livros poderosos? Para mim, isto: fazer o que fez Homero antes dele, isto é, escrever histórias aparentemente reais mas inventadas com tanta competência que depois de lidas passam a ser reais e a fazer parte da longa e sofrida experiência humana".

Para nós cabem apenas os prazeres da sua leitura e releitura, como a que acabo de fazer. Saramago é Nobel de Literatura do ano de 1998.

Deixo ainda ainda a resenha de Levantando do chão:

http://www.blogdopedroeloi.com.br/2024/08/levantando-do-chao-jose-saramago.html. E como um dos temas do livro é a inquisição na Península Ibérica, vai aqui também a resenha de um memorável livro sobre ela.

http://www.blogdopedroeloi.com.br/2024/07/inquisicao-o-reinado-do-medo-toby-green.html

 

domingo, 4 de agosto de 2024

Levantando do chão. José Saramago.

O meu propósito da vez. Reler as principais obras de José Saramago. Com uma peculiaridade. Pela ordem de escrita. Assim o primeiro livro da lista foi Levantando do chão, uma publicação do ano de 1980. A primeira leitura da obra, eu a terminei em 03.09.2010 e hoje, 29.07.2024 terminei a releitura. Me lembro perfeitamente que na primeira leitura essas obras iniciais do Nobel me impressionaram profundamente, a tal ponto de praticamente ler a sua obra por completo.

Levantando do chão. José Saramago. Bertrand Brasil. 2009.

Em meio a releitura eu fiz uma breve interrupção para, em minha chácara em Campo Magro, plantar um pequeno pomar. Algo em torno de 50 mudas de árvores frutíferas, cítricas em sua maioria. Fiz tudo com muito cuidado. Devo dizer que não fiz tudo sozinho. Contei com ajudas. Fizemos alinhamentos, amanhamos a terra, abrimos covas, as enchemos com terra preta até pela metade, depois as completamos com adubo (bosta de ovelha), fui ao CEASA comprar as mudas e, finalmente, o plantio. Ainda não terminei. Enquanto isso eu pensava no significado de Levantando do chão. Por favor, não pensem mal de mim. Eu explico.

Eu não possuo nenhum latifúndio, apenas disponho de uma pequena chácara que, por sinal, tem uma placa, anunciando que se trata do Jardim de Epicuro. Sim, o meu particular Jardim de Epicuro. Agora sim posso dizer que o grande tema de Levantando do chão é o latifúndio, que no dizer do escritor é mal não menor do que o mal das guerras e dos Leviatãs dos mares. Delimitando um pouco, o livro trata do latifúndio em Portugal, ao longo do século XX, na monarquia, na república e na ditadura do regime de Salazar. Termina com a Revolução, aquela dos Cravos, de 25 de abril de 1974. Também há uma regionalização do espaço do latifúndio: O Alentejo, Évora mais particularmente. Sendo ainda mais preciso, uma pequena vila do interior: Monte Lavre.

Uma rápida consulta ao Google nos diz o que segue, sobre a questão agrária após a Revolução: "A Revolução dos Cravos marcou o início de uma nova era para Portugal, caracterizada pela realização de transformações profundas como as nacionalizações; as ocupações de terras, a reforma agrária, a formação de cooperativas e grandes unidades coletivas agrícolas; o controle e a gestão de empresas pelos trabalhadores". Creio ser esta uma bela ilustração. É a este despertar que o escritor quer simbolizar com o seu Levantando do chão.

O romance inicia com uma monumental frase em epígrafe. Ela é do escritor romântico, Almeida Garrett: "E eu pergunto aos economistas políticos, aos moralistas, se já calcularam o número de indivíduos que é forçoso condenar à miséria, ao trabalho desproporcionado, à desmoralização, à infância, à ignorância crapulosa, à desgraça invencível, à penúria absoluta, para produzir um rico". As perguntas, os questionamentos sempre incomodam. Bem, assim está iniciado o romance. O latifúndio em Portugal ao longo do século XX. Mas ele começou bem antes.

Ele começou quando em Portugal chegaram os Dagobertos, os Albertos, os Humbertos e outros Bertos. De olhos bem azuis. Para eles, a propriedade privada da terra estava inscrita nas leis de Deus. Ao menos era isso o que dizia o padre Agamedes, sempre a conciliar em favor da ordem estabelecida, em troca de promessas no distante e incerto outro mundo, o mundo do além. Assim já era antes de 1910, sob o império da monarquia e assim o seria com a república, que de pública tinha apenas a promessa. E assim como no Brasil, conseguiu ser igual ou ainda pior que a monarquia. E tudo piorou sob a ditadura de Salazar, tão violenta como o foram os tempos da inquisição, que se dizia santa. Contra as reivindicações dos trabalhadores, o padre Agamedes invocava a Santíssima Trindade da ordem estabelecida: A Igreja, o latifúndio e o Estado, sendo este representado pela guarda, sempre bem armada.

Do outro lado, temos a saga da família Mau-Tempo, em tempos de intempérie. Começou com Domingos, o desencontrado. Continuou com João e a filha Gracinda, esta casada com Manuel Espada. Com Manuel e os companheiros, entre eles um mártir, as prisões e as torturas se tornaram parte do cotidiano. Mas os camaradas não se entregavam e muito menos entregavam os companheiros camaradas. Das profundezas dos abismos buscavam forças e como do chão viam subirem as forças da vida, do alimento que lhes faltava, também eles encontravam forças e celebravam, em alegrias não dimensionadas as pequenas vitórias: De 22 escudos passaram para 33, a idade de Cristo. E de 33 foram para 40. E já não mais trabalhavam de sol a sol, mas apenas (apenas) 8 horas diárias. E os Bertos reclamavam: sobrava tempo para maquinações e vadiagem. E os guardas se tornavam cada vez mais incansáveis na caça aos temíveis comunistas, os comedores de criancinhas, os inimigos da civilização. João e Gracinda, pai e filha, tinham os olhos muito azuis, uma marca dos Bertos, que além do latifúndio, também se arrogavam outras propriedades.

Além da crítica social, da denúncia das inconcebíveis injustiças da fome e da fadiga, da doença e da conformidade como eternas companheiras, há a presença da esperança, sempre no imaginário e no horizonte e juntos se fortalecem, se erguem do chão com a força da linguagem, bem deles e distante das prédicas de padre Agamedes. Esta linguagem que tão bem entenderam lhes deu a necessária força para, a exemplo das forças de vida que se levantam do chão, para também eles se erguerem e viverem os novos tempos de transformação, acima de tudo brotada da consciência de sujeitos, que não mais se submeteriam às forças da sujeição. E... lembrando Paulo Freire e a sua Pedagogia do oprimido.

Da orelha do livro tomo um parágrafo para efeito de síntese: "O livro é a narrativa da vida de uma família de trabalhadores rurais (os Mau-Tempo) da região do Alentejo, no sul de Portugal, em cujos limites se passou o romance, desde o começo do século até logo após o 25 de abril. Trata-se de uma denúncia vigorosa da exploração, do desemprego e da miséria e, ao mesmo tempo, da tomada de consciência política por parte do trabalhador rural: o aprendizado da luta pelo direito ao trabalho, pelas oito horas de jornada e pela posse útil da terra".

E na contracapa, o próprio Saramago fala de sua obra: "Um escritor é um homem como os outros: sonha. E o meu sonho foi o de poder dizer deste livro, quando o terminasse: 'Isto é o Alentejo.'

Dos sonhos, porém, acordamos todos, e agora eis-me não diante do sonho realizado, mas da concreta e possível forma do sonho. Por isso me limitarei a escrever: 'Isto é um livro sobre o Alentejo. 'Um livro, um simples romance, gente, conflitos, alguns amores, muitos sacrifícios e grandes fomes, as vitórias e os desastres, as aprendizagens da transformação, e mortes.

É portanto um livro que quis aproximar-se da vida, e essa seria a sua mais merecida explicação. leva como título e nome, para procurar e ser procurado, estas palavras sem nenhuma glória -  Levantando do chão.

Do chão sabemos que se levantam as searas e as árvores, levantam-se os animais que correm os campos ou voam por cima deles, levantam-se os homens e as suas esperanças. Também do chão pode levantar-se um livro, como uma espiga de trigo ou uma flor brava. Ou uma ave. Ou uma bandeira. Enfim, cá estou outra vez a sonhar. Como os homens a quem me dirijo".

E, como já disse ao reler O tempo e o vento, de Érico Veríssimo, também o digo agora, o quanto é bom reler os nossos grandes escritores. Obras que fazem sonhar, que dão forças para o levantar do chão e nos fazer permanecer - bem alto erguidos.