quarta-feira, 21 de agosto de 2024

O ano da morte de Ricardo Reis. José Saramago.

Nas minhas releituras de José Saramago, chegou a vez de O ano da morte de Ricardo Reis. Conforme uma pequena anotação ao final da última página, a de 428, terminei esta primeira leitura no dia 7 de agosto de 2010. Por uma incrível quase coincidência de datas, ao menos quanto ao dia e ao mês, terminei a releitura em oito de agosto de 2024. Este livro teve a sua publicação no ano de 1984, depois de Levantando do chão (1980) e Memorial do convento (1982).

O ano da morte de Ricardo Reis. José Saramago. Companhia das Letras.

Creio que não posso fazer esta resenha sem antes falar um pouco de Fernando Pessoa, o grande e notável poeta português (1888- 1935). Em seus escritos ele inventou o artifício de usar heterônimos, creio que mais por brincadeira do que de se esconder sob o nome de outros. A sugestão de ter sido por brincadeira me veio porque li, que ele usou desse expediente, desde a infância. Deixo aqui, os quatro heterônimos que aparecem com maior frequência: Alberto Caeiro, Álvaro de Campos, Bernardo Soares e Ricardo Reis. Ao todo, contei mais de trinta. Pronto. Está dada a primeira pista para a leitura do livro O ano da morte de Ricardo Reis.

Numa rápida busca no Google encontrei a razão para os diferentes nomes: as diferentes temáticas. Assim, para Ricardo Reis, uma criação do ano de 1913, estavam reservados os temas que falavam de paganismo, de enfermidades e de amores idealizados. Conforme o próprio livro de Saramago, ele nascera na cidade do Porto em 1887, estudara com os jesuítas e era formado em medicina. Ainda vi que, politicamente ele era defensor da monarquia e das tradições. Hoje diríamos, ser ele da direita, um conservador. Isso ajuda a explicar as suas posições, ao longo dos acontecimentos do ano de 1936, que é o ano de sua morte, um ano após a morte de Fernando Pessoa. Em 1917, após conflitos em Portugal, ele viera ao Brasil, onde, sem grandes envolvimentos políticos ou sociais, exerceu a medicina até o ano de seu retorno a Portugal, o ano de 1936.

1936. Que ano! Que ano tenebroso. O romance nos dá uma pista de que a sua volta para Portugal se deu por causa da Intentona Comunista de 1935 no Brasil, embora ele não tivesse nenhum envolvimento ou motivo especial para essa sua volta. O real motivo, ao certo, tudo indica, nem mesmo ele o sabia, pois nem mesmo sabia se ficaria em Portugal, se voltaria ao Brasil e se ficasse em Portugal, o que haveria de fazer, a que ofício se dedicar. Tanto assim, que fica hospedado no Hotel Bragança, em completa ociosidade por cerca de três meses. Opa!, já entramos no enredo.

Mas, voltando ao ano de 1936, vamos dar uma rápida olhada na conjuntura europeia desse ano. Portugal, Espanha, Alemanha, Itália e França. Tempo de Luta de Classes e de autoritarismos. Tempos de Salazar, da Guerra Civil Espanhola. Tempos de Mussolini e de Hitler. E um médico absolutamente indiferente e alheio aos acontecimentos, mas a quem os fatos começam a incomodar e trazer desconforto. No Hotel Bragança, uma única perturbação. Ou melhor, uma intimação para comparecer à polícia política, para lhe tomar informações. Uma invasão de privacidade, no seu entendimento. A espionagem paira no ar e ela lhe faz mal, muito mal. Ele deveria ser um cidadão acima de qualquer suspeita. Sua vida era absolutamente pacata, resumindo-se aos personagens do hotel.

Ali é um bom hóspede, de boas posses e boas gorjetas e de fino trato, muito educado para com todos. Dois personagem afloram: Lídia, a camareira e Marcenda, uma bela e rica menina de Coimbra, com um defeito na mão esquerda, motivo que a traz a Lisboa, junto com o seu pai, já viúvo. Este virá por outro motivo. E..., sim, Fernando Pessoa. Este o visita constantemente. Ele tinha o consentimento de, por um ano, voltar para encontrar-se com as pessoas. Inúmeros diálogos e muita ironia. Bom, creio que temos assunto, mais do que suficiente. Tem ainda uma visita a Fátima, sem milagres à vista.

A parte final do livro se ocupa da situação portuguesa sob Salazar e dos acontecimentos que levaram à Guerra Civil Espanhola, após o golpe militar de Franco, a se digladiar com as forças da República Popular. O irmão de Lídia, a camareira, é da marinha portuguesa e irá participar de uma rebelião, que logo será contida. O romance não tem conclusões, nem de histórias começadas, nem de defesa de ideologias. Mas o que não falta são elementos trazidos para a reflexão, além de um clima de mal-estar que se reflete no semblante dos personagens. E uma notável frase em epígrafe, melhor, duas: "Sábio é o que se contenta com o espetáculo do mundo", de Ricardo Reis e "Escolher modos de não agir foi sempre a attenção e o escrúpulo da minha vida". Esta, de Bernardo Soares. Seria uma síntese do médico Ricardo Reis, em sua volta a Lisboa, a Portugal e a Europa violentamente conturbada.

Nas orelhas do livro temos um belo texto assinado por Leila Perrone-Moisés: "Fernando Pessoa morreu em 1935. Seus alter egos ou heterônimos não morreram todos na mesma data. Alberto Caeiro já havia falecido há vinte anos; Álvaro de Campos e Ricardo Reis continuavam vivos em 35, já que seu criador não os havia 'matado'. A obviedade dessa sobrevivência escapou a todos que choraram e choram a morte total de Pessoa. A todos, não. José Saramago deu pela coisa e foi ver o que teria acontecido com um dos sobreviventes.

Que foi que ele descobriu? Descobriu que, um mês depois da morte de Pessoa, Reis que estava auto-exilado no Rio de Janeiro, regressou a Lisboa. Viveu ali todo o ano de 1936, ano crucial para a política portuguesa e europeia; instalação da ditadura salazarista, prenúncios da Guerra Civil espanhola, ascensão de Hitler e Mussolini. Adepto de uma filosofia céptica, baseada na renúncia à ação e no aperfeiçoamento interior do indivíduo. Reis percebe então que não é fácil permanecer alheio ao mundo. No terreno individual, o Destino lhe prega algumas peças. Quanto ao 'espetáculo do mundo', este se apresenta demasiadamente inquietante para que ele possa contemplá-lo com indiferença. Paralisado na inação, atormentado com o que lhe acontece e acontece ao mundo, o médico-poeta vive esses meses em abatimento e solidão. E, para complicar as coisas, o fantasma de Fernando Pessoa vem procurá-lo, para travar com ele instigantes conversas.

O romance de Saramago, prende o leitor da primeira à última linha, quer esse leitor seja ou não um 'pessoano'. Porque é uma obra com qualidades próprias. Baseado numa minuciosa pesquisa histórica, o texto de Saramago é uma reconstituição de época extraordinariamente viva, sem nenhum ranço de erudição documental.

Mais do que um simples jogo literário, que por si só já seria fascinante, a criação prosseguida da ficção heteronímica resulta aqui numa reflexão sobre a identidade portuguesa e, segundo o autor, numa 'contribuição para o diagnóstico da doença nacional'. Como verdadeiro artista que é, Saramago abstém-se, porém, de julgamentos explícitos, de prognósticos ou lições. O tema delicado da 'alienação' política de Pessoa é por ele tratado com dedos leves e certeiros.

Essa é uma obra à altura de Ricardo Reis. E, conhecendo-se essa altura, poucos seriam capazes de a enfrentar sem vertigem". E eu acrescentaria: uma obra para leitores.

Deixo ainda a resenha anterior, a do livro Memorial do convento, de 1982.

http://www.blogdopedroeloi.com.br/2024/08/memorial-do-convento-jose-saramago.html

 

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