quinta-feira, 26 de dezembro de 2024

Sibila conduz Eneias ao mundo das sombras. 2. Aos Campos Elísios. O prêmio dos bons.

Como este post é o segundo da visita de Eneias ao mundo das sombras, deixo inicialmente o post da primeira viagem. A viagem ao tártaro.

http://www.blogdopedroeloi.com.br/2024/12/sibila-conduz-eneias-ao-mundo-das.html

Retomo aqui o momento em que Eneias, já no mundo das sombras e guiado por Sibila, chega ao local da bifurcação do caminho: "Aqui há uma bifurcação: o caminho à direita vai dar às muralhas do grande Plutão e aos Campos Elísios, mas o da esquerda conduz ao horrível Tártaro, onde são punidos os maus". Vejamos agora o mundo dos Campos Elísios:

A Eneida. Virgílio.

"Ali é maior a claridade do sol e mais bonito o brilho das estrelas - astros todos próprios do lugar e diferentes dos da terra - e ali as almas afortunadas têm o rosto iluminado de alegria, divertindo-se nos jogos, nas danças ou com versos poéticos. Ali estava Orfeu, o sacerdote trácio, com suas vestes compridas, afinando nas harmoniosas cordas da cítara sete diferentes tons, ora fazendo-as soar com os dedos, ora com a palheta de marfim. Também lá viram os antigos pais da dinastia troiana, Teucro e Dárdano, fundadores da raça. De longe Eneias admira-lhes os carros de guerra, as armas reluzentes e os cavalos soltos que pastavam por toda a parte, tudo sob a forma de sombras. Tão forte era o gosto dos antigos por aquelas coisas que até ali as tinham levado. Através da floresta, serpenteia o Erídano, que, vindo do mundo superior, ali faz pequeno percurso, para em seguida subir de novo na direção do mar.

Pouco adiante, chegaram a um riacho murmurejante que deslizava entre loureiros fragrantes. Outras sombras ali estavam. Eram as dos homens muito virtuosos e a quem muito amavam os deuses; os que tinham perecido defendendo a pátria; os que tinham dedicado sua vida terrena à procura da verdade - sacerdotes, filósofos e poetas  cujos cânticos haviam inspirado pensamentos nobres nos corações dos homens; e também aqueles que haviam conquistado a estima do povo por seu altruísmo. Todos eles, de fita branca amarrada à cabeça, reuniram-se em torno dos viajantes, quando lhes perguntou  a Sibila:

- Onde podemos encontrar Anquises? Por causa dele viemos e atravessamos o Érebo. 

Uma das sombras, a mais destacada entre as outras, pertencentes ao poeta Museu, assim falou:

- Nenhum de nós aqui tem morada fixa. Habitamos os bosques espessos, os leitos das ribeiras e os prados frescos dos rios. Mas vós, se a vossa vontade assim o quer, subi a esse cabeço e logo vos porei no caminho certo.

 Então seguiram o poeta, que se adiantou e apontou-lhes a encosta arborizada. Desceram e encontraram Anquises lá embaixo, no vale. Ali o ancião olhava pensativamente as almas que estavam por nascer. Ao ver o filho, estendeu-lhe os braços e com os olhos em lágrimas exclamou:

- Ó filho querido, por fim vieste. É verdadeiro o grande amor que tens por teu pai e só ele te poderia trazer incólume através de perigos tão grandes. É-me permitido assim ver teu rosto, ó filho, e ouvir e fazer ouvir palavras conhecidas. Na verdade, contei dia a dia, hora a hora, o tempo que levarias para aqui chegar. Dize-me, agora, por que terras e mares andaste no teu caminho árduo! Que grandes perigos e dificuldades enfrentastes? Quanto temi pela tua estada em Cartago!

- Ó pai, foi tua imagem, aparecendo-me muitas vezes em sonhos, que me obrigou a vir aqui. A armada troiana está segura no mar Tirreno. Permite, permite, ó pai, que eu aperte a tua mão direita e que não te afastes do meu abraço.

A recordar tantas coisas, as lágrimas enchiam-lhe o rosto. Tentou três vezes abraçar a sombra do pai, mas a imagem fugidia lhe escapava das mãos, qual leves ventos, à semelhança do que acontecia nos sonhos. Nesse momento, Eneias viu, num vale, bosque isolado, cujas árvores murmuravam à brisa, diante do qual, na pradaria, corria o rio Letes. As margens do curso dágua agitava-se multidão de sombras, indo e vindo, atarefadíssimas como abelhas num campo cheio de flores. Todo o local ressoava com o azáfama, e Eneias, sem saber o que era aquilo, olhava espantado para o grande ajuntamento. Eis que disse Anquises:

- Esses são espíritos, filho, destinados a subir novamente à terra para serem reencarnados. Bebem a água do Letes e assim fazendo esquecem totalmente sua vida anterior. São almas que algum dia habitarão os corpos de teus netos. Chamei-te aqui para mostrar-te estas coisas, a fim de que então continues a caminho da Itália, com maior vigor, para lançares lá as raízes de nova raça.

- Ó pai, devo crer que daqui sairão as almas outra vez para a luz, e dar vida nova aos corpos humanos? E por que tanto desejam eles voltar a respirar o ar da terra?

- Na verdade eu te direi, ó filho, o segredo desses mistérios divinos, pois o véu que cobre os olhos de todos os mortais foi agora retirado da minha vista. Em primeiro lugar, saiba que o céu e a terra, os mares e a lua, o sol, as estrelas brilhantes são todos sustentados por grande espírito flamejante, grande mente onisciente, de onde provém todas as coisas vivas - as raças dos homens, os animais das florestas, as criaturas aladas e todas as formas estranhas que habitam as águas dos oceanos. Cada forma mortal toma dentro de si uma porção maior ou menor desse espírito universal, embora grande parte de seu fogo divino esteja sufocado e tolhido pelo cárcere da carne. É dessas centelhas inestinguíveis que emana todo o temor e desejo, todo o sofrimento e alegria, todo o amor e esperança. Quando vem a morte e o espírito é libertado da prisão corpórea, alguns dos defeitos que manchavam a forma terrena ainda se apegam a ele, em razão de sua longa permanência na terra, e os carrega para o Mundo das Sombras. Esses espíritos que vês amontoados às margens do Letes já sofreram punição e as manchas de culpa lhe foram levadas pelas torrentes espumantes ou queimadas pelos fogos purificadores. Depois disso, então, vieram por estes Campos Elísios e aqui estão morando até que a última mancha seja totalmente apagada, nada restando senão o espírito imaculado. Não se passarão menos de mil anos, antes que um espírito, inocente agora de qualquer pecado, esteja pronto para ser reencarnado. Então, a chamado divino, as almas purificadas vêm para as margens do Letes e, bebendo de suas águas, perdem toda a lembrança de sua vida anterior na terra e retornam à luz superior.

Acabando de falar, Anquises levou Eneias para o meio do grande ajuntamento fantasmagórico. Juntamente com Sibila subiram a um outeiro de onde pudessem melhor ver e conhecer os que ali se reuniam.

- Vem - disse Anquises - e mostrar-te-ei, dentro do que posso, algo das glórias que daqui em diante acompanharão a descendência dardânia, que netos terás na Itália, que almas ilustres hão de herdar teu nome. Vem e te revelarei os teus destinos. Aquele jovem que se encosta numa lança inofensiva, o primeiro da linha que se prepara para respirar os ares do Céu, é teu filho, Eneias, o mais moço de todos que te dará Lavínia, tua esposa, em idade avançada. Seu nome será Sílvio e ele, misturando seu sangue ao que corre nas veias italianas, fundará nova dinastia. Aquele próximo a ele é o espírito de Procas, que será um dos maiores heróis da nação troiana e um dos primeiros daquela descendência e sentar-se no trono da nação que erguerás, meu filho. Logo em seguida, estão as almas de Cápis, Numitor e Sílvio Eneias, que te fará reviver o nome, também notável pela piedade e pelo valor nas armas. Os dois primeiros fundarão as cidades de Nomento Gábios e de Fidena, respectivamente, e muitas outras serão também erigidas em campos que agora nem nome tem. A suma sacerdotisa Ília dará à luz um filho, Rômulo, cujo pai será o deus da guerra, Marte. Como este, o filho usará capacete com duas plumas e a ele Marte destinou grandes feitos guerreiros na terra. Reinará sobre a ínclita Roma, cidade de varões ilustres e cujas torres se elevarão de sete colinas dentro dos muros protetores. Sob seus auspícios a nação romana estenderá pelas terras seu poder e igualará seu merecimento ao próprio Olimpo. Volta agora teus olhos para mais adiante e vê César, chamado Júlio, segundo teu próprio filho Iulo - agora chamado Ascânio - e lá Augusto César, filho de Júlio, que trará a Idade do Ouro a Lácio. Governará seu povo com mão bondosa, procurará a paz abençoada e fará leis que levarão a justiça até o mais humilde de seus súditos. Seus domínios se estenderão por toda a África e Ásia, até as terras bárbaras do norte, que também se curvarão a seu jugo. Nem mesmo Hércules jamais reinou sobre tão grande extensão de terras.

E Anquises apontou muitos outros que no devido tempo subiriam à terra e tomariam parte em importantes acontecimentos.

- Ali estão os reis Tarquínios e Bruto vingador, e Paulo Emílio, que destruirá Argos, e Micenas de Agamenão, vencendo Perseu da Macedônia, assim vingando seus antepassados de Troia e os templos de Minerva profanados. O grande Catão, a geração dos Gracos e os dois Cipiões, flagelos da guerra da Líbia. Outros povos terão sem dúvida melhores escultores, melhores advogados, melhores astrônomos e melhores matemáticos, mas ao povo romano caberá a tarefa de impor as leis, governar os povos, propor as condições de paz, poupar os submissos e subjugar os soberbos. Vês que vem entrando Cláudio Marcelo, armado de ricos despojos. Será o maior de todos os heróis, sustentando a república romana, destruindo os cartagineses e subjugando o rebelde gaulês.

Assim iam Eneias, Anquises e a Sibila percorrendo a região e vendo todas aquelas coisas. O coração de Eneias rejubilava-se e seu ânimo exaltava-se ao sentir o destino glorioso que os deuses tinham reservado à sua descendência. Anquises instruía-o sobre o caráter e modos dos povos do Lácio, para onde logo iria. Disse-lhe das guerras que iria enfrentar, dos trabalhos por que passaria e da maneira que melhor se poderia sair das dificuldades.

Há dois portões que dão saída ao Mundo das Sombras. Um é escuro e feito de chifre e é por este que os espíritos sobem ao mundo superior para se reencarnarem. O outro é de branco brilhante, de marfim polido, mas é falso. Apenas os sonhos enviados pelas almas e os visitantes do Inferno a atravessam. Anquises levou seu filho e a Sibila pela porta de marfim e dali passaram rapidamente à terra.

Indo direto à frota, Eneias fez-se ao mar e, navegando para o norte, ao longo da costa italiana, lançou ferros num plácido ancoradouro" (Páginas 158 a 163).

O vislumbrar dessa realidade e o conforto trazido pelo encontro com o seu pai e as profecias que ele lhe fez, deram ânimo suficiente para Eneias continuar a sua missão. Ainda restavam outros seis capítulos de dificuldades para superar, pois estamos apenas no sexto capítulo, de um total de doze. Segue ainda a resenha de A Eneida. http://www.blogdopedroeloi.com.br/2024/12/a-eneida-virgilio-19-c-o-grande-livro.html


segunda-feira, 23 de dezembro de 2024

Sibila conduz Eneias ao mundo das sombras. 1. Ao Tártaro. A punição dos maus.

A Eneida é o poema da cidade de Roma. Ele foi escrito no ano 19 a. C. por Virgílio. O herói do poema é Eneias, sobrevivente da Guerra de Troia. Ele é filho de Anquises e da deusa Vênus. Após a Guerra de Troia, vencida pelos gregos, com o recurso de um traiçoeiro estratagema, Eneias recebe dos deuses a missão maior de fundar, para os sobreviventes troianos, uma nova cidade e um novo reino. Os deuses haviam reservado para os troianos um destino maior. Eneias, não sem dificuldades, cumpre o seu glorioso destino, lançando-se aos mares.

A Eneida. Virgílio.

Antes de cumprir sua missão, Eneias empreende uma viagem ao mundo das sombras, ao mundo dos mortos. Será guiado por Sibila, que possuía dons divinatórios. Eneias quer ter um encontro com Anquises, seu pai, para dele receber conselhos e, ao visitar o mundo dos mortos, ver as qualidades humanas que foram premiadas e as que foram punidas. Ele quer fundar a cidade e o império que praticassem as boas qualidades e em que as más fossem evitadas. Os valores seriam assim revestidos de uma força sobrenatural. Esta visita ao mundo dos mortos está inserida no sexto capítulo do poema, sem dúvida, o grande cerne dessa obra monumental.

Já no mundo dos ínferos, depois de muitas admoestações de Sibila, sua guia, ela o alerta: " - Ó Eneias, a tarde vai avançando e estamos a chorar. Aqui há uma bifurcação: o caminho à direita vai dar às muralhas do grande Plutão e aos Campos Elísios, mas o da esquerda conduz ao horrível Tártaro, onde são punidos os maus". E, diante do inferno, já ouvindo gritos e terríveis gemidos, Eneias assim se dirige à profetiza que o acompanha:

" - Dize-me, ó profetiza, de que espécie de crimes são culpados aqueles e a que penas foram condenados? Por que tão grande gemer se eleva?" E segue uma viva descrição de horrores.

" - Ó rei ilustre dos troianos, a nenhum mortal piedoso é permitida a entrada naquela porta, mas quando Prosérpina me colocou como guardiã dos bosques de Averno, ela mesma me ensinou os castigos dos deuses e tudo mostrou-me. Rodamonte de Creta governa essas paragens más, ouve os condenados e as culpas, castiga as fraudes, obriga sob tortura a confessar os pecados contra os mortais - pecados deixados sem confissão até a hora da morte, alegrando-se seus detentores com uma falta vã. Imediatamente Tisífone, vingadora, armada de azorrague, olhos cruéis acendidos de alegria ao levantar e baixar o chicote, açoita os culpados. Na outra mão agita suas hórridas serpentes e lança suas Fúrias irmãs, tão selvagens quanto ela mesma.

Abriram-se as portas da morada infernal e a Sibila gritou a Eneias:

- Vês Tisífone sentada em guarda permanente ao portão? Lá dentro, naquele vestíbulo, tem assento uma hidra cruel, mais cruel que as cem Fúrias, com suas cinquenta bocas negras. Mais adiante está o Tártaro propriamente dito, abismo escancarado que alcança com sua profundidade duas vezes a altura do Olimpo à terra. Naquele poço de dor e tristeza, os filhos de Tita, os primeiros filhos da antiga Terra, foram lançados pelo raio relampejante de Júpiter e lá agora se revolvem em agonia. Lá também estão os enormes folhos gêmeos de Alódio, que tentaram com as mãos rasgar o céu e arrancar o onipotente Júpiter de seu trono dourado. Também vi Slamoneu, condenado por tentar imitar os sons do Olimpo e os raios de Júpiter. Galopando arrogantemente seu carro de quatro cavalos pela Grécia, agitava um archote flamejante e batia os bronzes - pobre imitação dos barulhos do Olimpo - exigindo divindade para si mesmo. Louco! Julgou poder imitar  com o bronze e o tropel dos cavalos o trovão e o raio! No entanto, o Todo-Poderoso lançou-lhe seu raio por entre as nuvens espessas - não archotes ou nós de pinheiro soltando fumaça negra, desta vez - arremessando o ímpio às profundezas do Inferno, entre imenso turbilhão de chamas. Também lá estava Títio, filho da Terra, mãe de todas as coisas. Seu corpo se estende por muitos hectares e um abutre cruel come-lhe eternamente, com o bico adunco, o fígado, abrindo-lhe dia e noite o peito cujas fibras renascem para que o castigo se prolongue sempre e sempre. E também Ixião e Piritoo, sobre os quais se alteia sobranceiro um penhasco gigantesco, sempre a ponto de desabar-lhes em cima. A sua vista está disposto suntuoso banquete preparado com magnificência real, mas ao lado senta-se uma Fúria, que, a cada movimento dos dois para alcançar as iguarias, ergue-se brandindo um archote e soltando trovões pela boca. Ali estavam encarcerados os muitos que haviam matado pai e irmão, ou feito grande mal a um vizinho, ou que amontoaram riquezas sem fim, nada repartindo com suas famílias - e eram os em maior número -, ou então era um traidor que vendera sua pátria ao inimigo, alguém que roubara a noiva ou forçara sua filha a casar contra a vontade. Todos são culpados de crimes horrendos e não me indagues que castigos lhes foram inventados pelos deuses. Uns são condenados a levar grande pedra ao cimo da encosta. Ao chegarem próximo ao topo, ela lhes escapa das mãos e rola de novo para baixo e eles de novo têm de buscá-la, assim fazendo eternamente. Outros giram sem cessar, membros atados aos raios de uma roda. Entre eles está Flégias, que com outros companheiros infiéis ateou fogo ao templo de Apolo em Delfos, profanando o santuário sagrado. Ele chama incessantemente, em altas vozes, da escuridão: "Tende cuidado. Aprendei a justiça e não ofendais os deuses". Mas por que te relato todas as histórias desses pobres miseráveis? Devemos apressar-nos, pois já vejo adiante as paredes e os portões no interior dos quais devemos depositar nossas oferendas.

Então, dirigindo-se naquela direção, Eneias borrifou o corpo com água fresca e colocou o ramo dourado no limiar dos portões. Portanto, tendo levado à deusa o presente desejado, chegaram eles aos campos alegres, aos vergéis frescos, às árvores deliciosas e às habitações abençoadas que são os Campos Elísios" (Páginas 154-158).

Na literatura, não são muitas as incursões ao mundo dos mortos. Mil anos antes de Virgílio, já Homero imaginara viagem semelhante. E no século XIV, teremos aquela que certamente é a mais famosa de todas, a de Dante Alighieri, à qual Virgílio serviu de inspiração e guia. Segue uma resenha de A Eneida.

http://www.blogdopedroeloi.com.br/2024/12/a-eneida-virgilio-19-c-o-grande-livro.html


quinta-feira, 19 de dezembro de 2024

A ENEIDA. Virgílio. 19 a. C.. O grande livro de Roma.

O livro - A Eneida -, do poeta latino Virgílio, é um velho conhecido meu. Na década de 1960 eu frequentava o seminário, na cidade de Gravataí (RS). Recebíamos uma formação clássica. Isso incluía, entre outras obras, a sua leitura em latim e escandindo seus versos. Isso exigia muito esforço e disciplina. Até hoje guardo na memória um de seus versos, logo do início do famoso poema, em que é relatada a Guerra de Troia. Timeo danaos et dona ferentes. Uma referência ao famoso cavalo de Troia.

A Eneida. Virgílio.

Depois o li, mais sistematicamente, por várias razões. Trabalhei A divina comédia, em que Dante, ao visitar o inferno, toma Virgílio como seu guia e, precisei lê-lo. Também fui professor no curso de Publicidade da Universidade Positivo e mais uma vez precisei lê-lo, pois se trata de uma obra que tornou públicos (publicizou) os feitos do povo de Troia, do qual Eneias é notável descendente e que, após a famosa guerra, terá a missão de fundar Roma e o mais consagrado império da antiguidade. E mais recentemente recebi como incumbência a escrita de um texto sobre valores perenes e, mais uma vez, recorri à beleza e à força desse grandioso livro. A obra tem a ver com o sentimento romano de patriotismo. Um conceito tão profanado nesse Brasil dos tempos mais recentes de nossa história. Patriotismo remete à ancestralidade e valores. Eneias irá buscá-los numa ida ao outro mundo. Isso merecerá dois posts especiais.

Bem, aí já entramos no teor da obra. E, antes de mais nada, quero aqui registrar a importância desse conceito de patriotismo, um conjunto de valores comuns a um povo, que Eneias, depois de receber a missão de fundar uma nova cidade e um novo reino, foi buscar no mundo dos mortos, junto a seu pai Anquises. Esses valores comuns é que deveriam nortear o bem viver em comum na cidade que ira fundar. Assim conferiu a esses valores o tom do sobrenatural. Nesse mundo dos ínferos, guiado por Sibila, encontra o tártaro e o elísio (o inferno e o paraíso cristãos). Exatamente por ter feito essa viagem ao mundo dos mortos é que Dante escolheu Virgílio como guia na sua incursão pelo inferno, onde estão as pessoas que tiveram uma vida nada exemplar, vida que deveria ser evitada.

Vamos então a uma visão mais sistemática da obra. Para isso, recorro primeiramente à introdução da edição do livro que eu li. Ela é de autoria de Matos Peixoto, que é também o editor da obra (Rio de Janeiro, 1964). Matos Peixoto fala da obra e de seu autor.

Quanto a obra, ele nos fala que ela apareceu praticamente mil anos depois da Ilíada, de Homero. Ela começa com a narrativa do fim da Guerra de Troia, vencida por ato de traiçoeira astúcia dos gregos, a do cavalo de Troia. Eneias será o herói de Virgílio. Ele é filho de Anquises e da deusa Vênus. Será ele que recebe a missão da fundação de uma nova cidade e de um novo reino. Roma e o Império Romano. Vejamos a narrativa da nota de introdução: "Poder-se-ia dizer que A Eneida é o poema de Roma, porque, através de sua admirável estrutura poética, canta a história épica da fundação da cidade e o advento da raça latina, consolidada depois de luta demorada e cruenta, da união de Eneias e de Lavínia". Vejamos mais um parágrafo:

"E tal drama de amor (Eneias e Dido, a rainha de Cartago) entrosa-se com a obcecada perseguição da deusa Juno, cujo ódio aos troianos, não só porque patrocinara a guerra junto aos gregos como porque não perdoava Páris, que dera a Helena a prevalência da beleza, jamais deu tréguas a Eneias e levou-o à terrível guerra com os habitantes da Itália, que, afinal, dominou. Dentro dessa luta terrível, refulge a imagem da lealdade e da amizade, nas lágrimas de Eneias por seu amigo e companheiro sacrificado e que culmina no episódio final, quando o troiano, entre a piedade que lhe inspira a súplica de Turno, inimigo vencido, e a lembrança do companheiro Palante (Palas), opta por esta e mergulha a espada na garganta de seu matador"  (Páginas 9-10). Após essa morte do inimigo se consolida o casamento do troiano Eneias com a latina Lavínia e se dará a origem de Roma e do povo romano.

O livro, de 301 páginas, está divido em doze capítulos, devidamente intitulados. A saber: 1. A queda de Troia (a narrativa de sua parte final e a partida de Eneias no intento de cumprir com a sua missão). 2. Os troianos partem (Eneias reúne o que sobrara de seu povo e se lança ao mar. No mar passa a enfrentar os perigos que lhe são preparados por Juno). 3. Eneias chega a Cartago (É recebido com toda a boa hospitalidade e recebe ajudas de sua boa rainha). 4. Eneias e Dido (Dido, a rainha de Cartago, cai de amores por Eneias, que, no entanto, seguirá seu destino para cumprir sua missão. Dido não suporta as dores do amor não correspondido e se suicida). 5. Os jogos fúnebres (a celebração dos funerais do primeiro ano da morte do pai Anquises. As privações pelas quais tem que passar os guerreiros valentes, bons servidores da pátria).

6. Eneias no mundo das sombras (Eneias, acompanhado de Sibila, visita o mundo dos mortos. Lá, junto a seu pai Anquises, visita o mundo dos elísios e o tártaro. Ali encontra  a recompensa dos virtuosos e o castigo dos maus. Buscou assim os princípios do bem viver em comum, do conviver. Sem dúvida, o capítulo fundante do livro. Em outros posts, darei a visão que Eneias teve desses dois mundos). 7. Os troianos desembarcam na Itália (Chegam a foz do rio Tibre e são bem recebidos, mas Juno trama contra. A esposa do rei e Turno, seu filho, se lançam contra Eneias). 8. Eneias em apuros (As alianças de Turno, contra Eneias). 9. Os troianos são cercados (Tudo indica que Turno derrotará Eneias). 10. A assembleia dos Deuses (Júpiter pede que, tanto Juno, quanto Vênus, parem de interferir na guerra, mas novos exércitos são organizados e as lutas continuam). 11. O rei Latino pede a paz (Turno não a aceita e as lutas continuam). 11. O combate final (Um duelo entre Turno e Eneias. Eneias vence e casa-se com Lavínia). Sua missão está cumprida.

Com toda certeza, uma das mais importantes obras da literatura universal. Os fundamentos do patriotismo e da cultura clássica. E, apenas para lembrar: patriotismo não tem nada a ver com o se enrolar numa bandeira ou vestir a camiseta da seleção do país. Patriotismo tem a ver com pátria, eu até preferiria mátria (Pater - mater), um pai, ou mãe comum a um povo, assim como o foi Anquises, para Roma. E... valores do conviver.


terça-feira, 17 de dezembro de 2024

O emblemático ano de 1968. Chicago. Um manifesto de reivindicações.

O livro do jornalismo literário O super-homem vai ao supermercado, de Norman Mailer pode até ser considerado um super-livro. Ele tem um subtítulo bem ilustrativo: De Kennedy ao cerco de Chicago, reportagens clássicas sobre convenções presidenciais nos Estados Unidos. Quanto ao título, eu explico: O super-homem é uma referência ao líder John Kennedy, candidato dos democratas (aos 43), escolhido na convenção de Los Angeles (1960) e o supermercado é a própria convenção da escolha dos candidatos. Elas sofreram grandes transformações, tornando-se verdadeiros supermercados. Creio não precisar definir o que são os supermercados.

O super-homem vai ao supermercado. De Kennedy ao cerco de Chicago, reportagens clássicas sobre convenções presidenciais nos Estados Unidos. Norman Mailer. Companhia das Letras. 2006.

O livro é uma coletânea de reportagens e é por isso que Chicago aparece apenas no subtítulo, mas que bem poderia figurar como o título principal. Creio que a maioria dos meus leitores tem uma dimensão do que foi e o que representou o ano de 1968. Em Paris, estudantes e operários se uniram e o poder foi ameaçado. O poder também sofreu grandes ameaças nos Estados Unidos. A guerra do Vietnã abalou profundamente todas as estruturas de poder nesse império, imperialista, se me permitirem a repetição, pleonasmo, não é assim que chama? E no Brasil foram abolidas, em nome do combate ao comunismo, todas as instituições democráticas, permitindo-se até a tortura, o maior dos suplícios. Era preciso manter a ordem. Tempos da Ideologia da Segurança Nacional.

Bem, o objetivo deste post é dar uma ideia das rebeliões, especialmente dos setores jovens da sociedade e que provocaram tão violentas repressões. O mundo estava em transformação. Depois do ano de 1968, seguramente o mundo não seria mais o mesmo. Este desejo de transformações está contido em um manifesto que foi lançado na cidade de Chicago, durante a convenção do Partido Democrata. Como eu já fiz a resenha do livro, eu a apresento. Ela vai falar sobre essa convenção. 

http://www.blogdopedroeloi.com.br/2024/12/o-super-homem-vai-ao-supermercado.html

Agora, o manifesto, datado de 25 de agosto: 

YIPPIE!  - LINCOLN PARK - VOTE PORCO EM 68 - MOTEL GRATIS - "VENHA DORMIR COM A GENTE". - REVOLUÇÃO POR UMA SOCIEDADE LIVRE: YIPPIE! POR A. YIPPIE.

1. Fim imediato da guerra do Vietnã [...].

2. Liberdade imediata para Huey Newton, dos Panteras Negras, e todos os outros negros. Adoção do conceito de controle comunitário nas áreas de gueto [...].

3. Legalização da maconha e de todas as outras drogas psicodélicas [...].

4. Um sistema de prisões baseado no conceito de reabilitação, e não na ideia de castigo.

5. [...] abolição de todas as leis relativas a crimes sem vítimas. Ou seja, manutenção apenas das leis que dizem respeito a crimes em que haja uma parte atingida contra a vontade, i, é, assassinato, estupro, agressão.

6. Desarmamento total de todas as pessoas, a começar pela polícia. O que inclui não apenas as armas de fogo, mas outros artefatos brutais tais como gás lacrimogênio, spray de pimenta, aguilhões elétricos, cassetetes curtos e compridos e assemelhados.

7. Abolição do Dinheiro, Abolição de pagamento por habitação, meios de informação, transporte, comida, educação, roupas, assistência médica e banheiros públicos.

8. Uma sociedade que promova e vise ativamente o conceito de "pleno emprego". Uma sociedade em que as pessoas se vejam livres do aborrecimento do trabalho. Adoção do conceito "Que as máquinas façam tudo".

9. [...] eliminação da poluição de nosso ar e de nossa água.

10. [...] incentivos para a descentralização de nossas cidades superpovoadas [...] estímulo à vida rural.

11. [...] informações gratuitas sobre o controle de natalidade [...] abortos quando desejados.

12. Reestruturação do sistema educacional, dando ao estudante o poder de determinar o rumo de seus estudos e permitindo sua participação no planejamento geral de ensino [...].

13. Uso aberto e gratuito dos meios  de comunicação [...] a TV a cabo como método de aumentar a seleção de canais disponíveis para o espectador.

14. Fim de toda censura. Estamos fartos de uma sociedade que não hesita em mostrar as pessoas cometendo violências, mas se recusa a mostrar um casal trepando.

15. Acreditamos que as pessoas deviam trepar o tempo todo, a qualquer momento, com quem quisessem, Isto não é um programa de reivindicação, mas um simples reconhecimento da realidade à nossa volta.

16. [...] um sistema nacional de referendo conduzido através da televisão ou de um sistema de votação por telefone [...] descentralização do poder e da autoridade com a formação de muitos e variados grupos tribais. Grupos em que as pessoas existam num estado de confiança básica, livres para escolher sua tribo.

17. Um programa que estimule e promova as artes.  No entanto, achamos que se a Sociedade Livre que imaginamos pudesse ser atingida por nossa luta, todos nós poderíamos concretizar a criatividade que temos em nós. Num sentido muito concreto, teríamos uma sociedade em que todo homem seria um artista.

[...] Porcos políticos, seus dias estão contados. Somos a Segunda Revolução Americana. E venceremos. Yippie!  Mas vamos ao Lincoln Park naquela tarde de domingo. Páginas 323-325.

Apenas lembrando, a manifestação foi proibida e duramente reprimida. E, um personagem desse período: http://www.blogdopedroeloi.com.br/2014/10/malcolm-x-uma-vida-de-reivindicacoes.html


sexta-feira, 13 de dezembro de 2024

O Super-homem vai ao supermercado. Norman Mailer.

Ao fazer uma revista em minha biblioteca de livros ainda não lidos, deparei com o interessante título O super-homem vai ao supermercado. O subtítulo esclarece o tema: De Kennedy ao cerco de Chicago, reportagens clássicas sobre convenções presidenciais nos Estados Unidos. O autor é o famoso jornalista Norman Mailer. A edição brasileira data do ano de 2006, que foi também o ano em que adquiri esta obra. O subtítulo também nos fornece o tempo do livro. Kennedy recebeu a sua indicação presidencial pelo Partido Democrata em 1960 e o cerco de Chicago ocorreu no terrível e temível ano de 1968.

O super-homem vai ao supermercado. Norman Mailer. Tradução: José Geraldo Couto e Sérgio Flaksman.

O livro é uma coletânea de artigos do jornalista-escritor, de suas coberturas das convenções partidárias do Partido Democrata, de 1960, do Partido Republicanos de 1964 e a dos dois partidos, em 1968.  A convenção dos democratas de 1960 ocorreu na cidade de Los Angeles, a dos republicanos, de 1964, em São Francisco. Já convenção dos republicanos, em 1968 ocorreu em Miami, enquanto a dos democratas, em Chicago, onde ocorreu o famoso cerco à cidade. O título do livro é uma referência à primeira convenção descrita, a de Los Angeles. O super-homem é uma referência a John Kennedy, enquanto a convenção se transformara num verdadeiro supermercado. Kennedy chegara à convenção com apenas 43 anos de idade.

O livro brasileiro é editado pela Companhia das Letras. Junto a indicação existe um pequeno detalhe que merece uma observação: jornalismo literário. Este novo jornalismo tem a marca do aprofundamento das análises da cobertura e é nisso que está a beleza e a grandiosidade desse livro. Nele encontramos a descrição da cidade, o perfil dos convencionais, dos candidatos, a análise de discursos, a conjuntura em que são pronunciados esses discursos, quer de ordem nacional, quanto da internacional, as revelações dos bastidores, os comportamentos e comprometimentos das pessoas, as traições, as explosões de ódio e, sobretudo, os ambientes festivos.

Com a leitura eu fiz uma verdadeira viagem às cidades de Los Angeles, de São Francisco, de Miami, ah Miami (a capital materialista do mundo)! e Chicago. Entrei em contato com as realidades regionais dos Estados Unidos e conheci mais de perto a raiz histórica de suas principais características, bem como os perfis psicológicos de seus protagonistas. E, acima de tudo, me deparei com a famosa década de 1960. Que década enigmática. Os super-homens e os supermercados. Tudo fluido.

A década de 1960. Como os Estados Unidos lidaram com as questões raciais, com a luta e a resistência em torno dos Direitos Civis, a brutalidade das marcas da escravidão, da segregação, da afirmação da superioridade europeia e branca, os WASP - White - Anglo - Saxon - Protestant, as disputas regionais entre o Leste e o Oeste e o Meio. Ah, as marcas do colonialismo, do racismo e do supremacismo! E um fantasma onipresente a rondar permanentemente, o fantasma do comunismo e a paranoia por ele provocada. Às favas, as liberdades! E o mal-estar ante esse processo civilizatório todo e as insatisfações do mundo jovem e a suas rebeliões. E as guerras, em particular a do Vietnã (São sempre os velhos que nos levam para a guerra; são sempre os jovens que tombam), as brigas pelo poder entre as máfias e o complexo industrial militar. Os Estados Unidos no divã. Os hippies, os yippies e os panteras negras. E a revolução dos costumes... O cerco de Chicago. 

O livro brasileiro tem um posfácio muito esclarecedor, tanto sobre o livro, quanto do escritor, assinado por Sérgio Dávila. Dele foi extraído a contracapa: "As convenções dos grandes partidos políticos norte-americanos nunca seriam vistas da mesma forma depois dos artigos que compõem este livro. Neles, Norman Mailer lança mão de toda a sua verve e todo o seu talento literário para expor as entranhas dos Estados Unidos numa década de profundas transformações.

As convenções democráticas e republicanas de 1960, 1964 e 1968 são perpassadas, aos olhos de Mailer, pelos grandes dilemas americanos da época: guerra ou paz, segregação ou integração racial, amor livre ou american way of life, Numa prosa densa, pontuada por alusões literárias e referências a fatos da cultura de massas, o autor examina de modo implacável os sonhos e traumas da América naquele momento crucial de sua história.

Subvertendo os limites entre a reportagem e a ficção, o escritor não hesita em colocar-se como personagem no próprio texto, ao lado de figuras como John F. Kennedy, Richard Nixon, Adlai Stevenson e Lyndon Johnson, retratados ao mesmo tempo com realismo crítico e sensibilidade literária".

Deixo aqui os resultados das eleições dos anos das convenções analisadas. Lembrando que em 1960, o Partido Republicano estava no poder, já há oito anos, com o presidente Dwight Eisenhower.

1960. Democratas: John Kennedy e Lyndon B. Johnson. 303 delegados. 34.220.984 votos - 49,7%.

           Republicanos: Richard Nixon e H. Loodge. 219 delegados. 34.108.157 votos - 49,6%.

1964. Democratas: Lyndon Johnson e H. Humphrey. 486 delegados. 43.127.040 votos - 61,4%.

           Republicanos: Barry Goldwater e W. Miller. 52 delegados. 27.175.754 votos - 38,5%.

1968. Democratas: Hubert Humphrey e E. Muskie. 191 delegados. 31.271.839 votos. 42,7%.

           Republicanos: Richard Nixon e Spiro Agnew. 301 delegados. 31.783.783 votos. 43,4%.

           Independente: George Wallace e Curtis Le May. 46 delegados. 9.901.118 votos 13,5%.

Em 1972, Nixon foi reeleito mas não terminou o seu mandato. Renunciou em função do escândalo de espionagem - Watergate (1974). Os democratas só voltariam à presidência em 1976, quando Jimmy Carter venceu Gerald Ford. A derrota democrata de 1968 teve muito a ver com as conturbações sociais do Cerco de Chicago, que tiveram como principal motivo a Guerra do Vietnã. A rebelião jovem. Se negavam ao recrutamento.

O escritor também mereceria uma especial atenção. Sua biografia também daria um belo e longo romance. Os jovens do cerco de Chicago merecerão um post especial.

Deixo também a resenha do livro biográfico de um dos mais famosos personagens desse período: Malcom X.

 http://www.blogdopedroeloi.com.br/2014/10/malcolm-x-uma-vida-de-reivindicacoes.html 

sexta-feira, 6 de dezembro de 2024

A RESISTÊNCIA. Ernesto Sábato. Cinco cartas.

Em 2008 eu comprei o livro A resistência, do escritor argentino Ernesto Sábato. A edição argentina foi lançada no ano de 2000 e a edição brasileira apenas em 2008. O livro está escrito sob a forma de cartas, cinco no total, e são um lancinante grito contra a avassaladora desumanização, que a sensibilidade do escritor constatou já na fase final de sua centenária existência (1911-2011). Vejam o seu estado de espírito, refletido já no primeiro parágrafo de sua primeira carta:

A resistência. Ernesto Sabato. Companhia das Letras. 2008. Tradução Sérgio Molina.

"Há certos dias em que acordo com uma esperança demencial, momentos em que sinto que as possibilidades de uma vida mais humana estão ao alcance de nossas mãos. Hoje é um desses dias.

E então me ponho a escrever quase às apalpadelas na madrugada, com urgência, como alguém que saísse para a rua pedindo ajuda diante de uma ameaça de incêndio, ou como um navio que, a ponto de afundar, mandasse um último e fervoroso sinal para um porto que sabe próximo mas ensurdecido pelo barulho da cidade e pela infinidade de letreiros que confundem o olhar".

Vejamos a apresentação do livro nas suas orelhas: "Ao se aproximar dos cem anos de idade, Ernesto Sábato concebeu este livro como uma espécie de mensagem na garrafa, destinada a encontrar outros seres tão perplexos quanto ele diante da desumanização do homem em nosso tempo.

Na forma de seis cartas ao leitor, o escritor passa em revista as transformações operadas nas últimas décadas no cotidiano, nos valores e na sensibilidade dos indivíduos e dos povos. A solidão nas grandes cidades; o medo da violência; a apatia e o isolamento suscitados por meios como a televisão, a internet e os telefones celulares; a destruição da natureza; a mercantilização da arte; as novas formas de opressão social - tudo isso é abordado com lúcido desespero por alguém que se recusa a aceitar passivamente a degradação da espécie humana.

O olhar de Sábato é isento de nostalgia, mas sua lucidez está solidamente ancorada na tradição humanista e no estudo crítico da história. Como defesa contra a barbárie ameaçadora, o escritor resgata velhos e infalíveis antídotos: o afeto interpessoal, o respeito à diferença, a solidariedade com aquele que sofre, o aperfeiçoamento pessoal por meio da arte e da liberdade de pensamento.

Nessas reflexões está presente, de modo explícito ou implícito, a múltipla formação de um intelectual permanentemente inquieto e inconformado. Cientista que questiona a frieza asséptica da ciência moderna, comunista e companheiro de viagem dos surrealistas na juventude, escritor outsider  que criou alguns dos romances mais perturbadores de nossa época, ativo militante contra a tortura em seu país e no mundo, Sabato plasma toda a sua existência nestas 'cartas' muito pessoais aos leitores".

As seis cartas, na verdade cinco, mais o epílogo, são mais ou menos temáticas. Elas tem os seguintes títulos: Primeira carta. O pequeno e o grande: os valores do espírito, a necessidade do diálogo e a sua atrofia pelo mundo virtual, a necessidade do silêncio ante as conversas aos gritos, a ida a feiras, a busca do outro, a vida de abertura para o outro como uma inclinação natural. E uma frase fantástica: "Com a idade que tenho hoje, posso dizer, dolorosamente, que toda vez que perdemos um encontro humano uma coisa se atrofiou em nós, ou se quebrou" (Página 19). 

Segunda carta. Os antigos valores: Os valores transcendentais e comunitários, não avaliáveis em dinheiro, as antigas festas comemorativas, o tempo utilitário e o "matar o tempo", a perda da vergonha, a corrupção que já não envergonha mais. E - uma frase: "Nas brincadeiras das crianças às vezes percebo os vestígios de rituais e valores que parecem perdidos para sempre, mas que tantas vezes reencontro em cidadezinhas remotas e inóspitas: a dignidade, o desinteresse, a grandeza diante da adversidade, as alegrias simples, a coragem física e a integridade moral" (Página 34).

Terceira carta. Entre o bem e o mal: reminiscências familiares e da infância, o contar de histórias, a convivência com os idosos e o deixar de lado quem já não produz, os alicerces de uma educação, a busca da verdadeira satisfação, os significados da arte. E a frase: "É urgente encararmos uma educação diferente, ensinarmos que vivemos numa terra da qual devemos cuidar, que dependemos da água, do ar, das árvores, dos pássaros e de todos os seres vivos, e que qualquer dano que causemos a este universo grandioso prejudicará a vida futura e pode destruí-la. Que coisa ótima poderia ser o ensino, se, em vez de despejar uma imensidão de informações que ninguém nunca conseguiu reter, fosse vinculado à luta das espécies, à necessidade urgente de preservar os mares e oceanos" (Páginas 55-6). E a fantástica ideia de que só o encontro humano é um luxo verdadeiro.

Quarta carta. Os valores comunitários: Não estamos assistindo apenas a uma crise do capitalismo, mas sim, a falência de toda a cultura ocidental. A globalização e a concentração de poder. Sobre a competição, a corrupção e o individualismo. E a notável frase: "Esta crise não é a crise do sistema capitalista, como muitos imaginam: é a crise de toda uma concepção de mundo e da vida baseada na idolatria da técnica e na exploração do homem. para acumular dinheiro, todos os meios foram válidos. Essa busca da riqueza  não foi levada adiante em benefício de todos, como país, como comunidade; não se trabalhou com um sentimento histórico e de fidelidade à terra. Não, infelizmente isto mais parece o atropelo que se segue a um terremoto, quando, em meio ao caos, cada um tenta saquear tudo o que pode. É inegável que esta sociedade cresceu tendo como meta a conquista, em que ter poder significa apropriar-se do alheio, e a exploração se estendeu a todas as regiões do mundo" (Página 71). E a memorável ideia de que "é na mulher que se encontra o desejo de proteger, absolutamente".

Quinta carta. A resistência: duas frases curtas: "Os homens encontram nas próprias crises a força para sua superação" (Página 90). E "O mundo nada pode contra um homem que canta na miséria" (Página 91).

Epílogo. A decisão e a morte: Dois parágrafos: "Assim como a vida dos homens, as culturas atravessam períodos fecundos em que as horas de dor e de alegria se alternam sob o mesmo céu; os povos seguem o curso da vida com um olhar legado por gerações e incorporam as mudanças a um sentido que os transcende.

Este não é um desses momentos. Pelo contrário, é um tempo angustiante e decisivo, como foi a passagem dos dias imperiais de Roma ao feudalismo, ou da Idade Média ao capitalismo. Mas eu ousaria dizer que é mais grave porque absoluto, pois está em jogo a própria vida do planeta". Página 99).

O livro, muito para além das cartas, é uma poesia anunciadora e benfazeja. Termino com a visão que Sabato tem da criança: "Toda a criança é um artista que canta, dança, pinta, conta histórias e constrói castelos". Página 78.

domingo, 1 de dezembro de 2024

O ÚLTIMO LEITOR. Ricardo Piglia.

Retomando livros para a releitura deparei com O último leitor, livro do escritor argentino Ricardo Piglia. Seu livro é datado 2006 e eu o adquiri, por indicação de alguém, certamente do círculo de leituras informal que mantínhamos na sala de professores do curso de Publicidade e Propaganda da Universidade Positivo. Era comum trocarmos informações sobre o que estávamos lendo e assim nos enriquecíamos coletivamente. Este livro se destina para leitores, leitores não amadores, mas para leitores extremamente atentos, leitores - como se cada um fosse realmente o último leitor.

O último leitor. Ricardo Piglia. Companhia das Letras. 2006.

O livro se constitui de ensaios do escritor, em que ele narra experiências suas com a leitura, nos deixando assim experiências muito ricas de sua visão sobre obras, entre as mais importantes da literatura universal. Na contracapa do livro, há dicas sobre leitores que, segundo critérios do escritor, poderiam ser considerados como esses últimos leitores. Vejamos:

"Escritor máximo, Borges dizia orgulhar-se sobretudo dos livros que lera; Cervantes, auto-retratado nos primeiros capítulos do Quixote, lia tudo, até os papéis jogados pela rua; Anna Kariênina aproveitou a viagem de trem de Moscou a Petersburgo para ler comodamente 'um romance inglês', ao passo que Che Guevara fez uma pausa na guerrilha boliviana para subir numa árvore e ler em paz. Personagens assim, reais e imaginários, povoam as páginas de O último leitor, de Ricardo Piglia. Na sequência dos ensaios brilhantes de Formas breves, o escritor argentino agora se interessa pela figura do leitor que vai atrás do sentido da própria vida nas páginas de um livro - não o leitor casual e distraído criado pela cultura de massas, mas o 'último leitor', aquele leitor essencial que personifica a própria literatura".

O livro de Piglia é formado por Prólogo e epílogo e seis ensaios, ocupando um total de 186 páginas. Os capítulos tem os seguintes títulos: 1. O que é um leitor (aquele que efetivamente busca sentido e interpreta o lido); 2. Uma narrativa sobre Kafka (suas cartas para Felice Bauer); 3. Leitores imaginários (as origens dos romances policiais modernos); 4. Ernesto Guevara, rastros de leitura (a leitura e as transformações provocadas. Suas sete vidas: o viajante, o escritor, o médico, o aventureiro, o testemunha, o crítico social e o guerrilheiro), 5. O lampião de Anna Kariênina (as mulheres como protagonistas: Anna, Madame Bovary, Molly Bloom), 6. De que é feito o Ulisses (metempsicose e carregar uma batata no bolso).

Pelo visto, podem constatar a riqueza dos ensaios. Uma vagarosa caminhada pela literatura, com paradas em seus momentos mais marcantes. Com certeza, passei a compreender melhor as dúvidas de Hamlet, a conhecer melhor Gramsci e Trotski, as raízes do romance policial e os seus componentes, os sonhos provocados pelas leituras e a façanha de querer vivenciá-las, e a entender bem a relação e a soma entre a leitura e as vivências que provocaram as transformações de vida no Che e por aí vai. A dificuldade principal na leitura foi a de não conhecer todas as obras analisadas, especialmente as ligadas aos romances policiais.

Vejamos a frase final de seu epílogo, onde relata a experiência da escrita desse livro: "Claro que este livro não pretende ser exaustivo. Não reconstrói todas as cenas possíveis de leitura; digamos que acompanha uma série privada; é um percurso arbitrário por algumas maneiras de ler que estão em minha lembrança. Minha própria vida de leitor está presente, e por isso este livro talvez seja o mais pessoal e mais íntimo dos que já escrevi".

O livro termina com indicações bibliográficas, com um esclarecimento do editor: "Este livro é feito de muitos livros. Nesta lista indicamos algumas edições brasileiras das obras citadas mais longamente". Vou dar aqui, apenas os autores. São eles: Edgar Allan Poe, Walter Benjamin, Jorge Luís Borges, Elias Canetti, Miguel de Cervantes, Raymond Chandler, Júlio Cortazar, Daniel Defoe, Isaac Deutscher, Fiodor Dostoévski, T.S. Eliot, Gustave Flaubert, Ernesto Che Guevara, José Fernandez, Homero, James Joyce, Franz Kafka, Karl Marx, Herman Melville, Marcel Proust, Jean Jacques Rousseau, Domingo Faustino Sarmiento, William Shakespeare, Liev Tolstói.

Chama a atenção a capa do livro. No capítulo 4, consta que Che Guevara, na Bolívia, já em seus dias finais, sobe a uma árvore para aí encontrar a solidão e o isolamento necessário para ser um bom "último leitor". Na capa é mostrada a foto que retrata essa situação. A foto é do Centro de Estudios Che Guevara y Aleida March. A edição é da Companhia das Letras, 2006. A tradução é de Heloisa Jahn.

quarta-feira, 27 de novembro de 2024

Juventude sem Deus. 1938. Ödön von Horváth. Prefácio. Uma contextualização.

Este post tem por objetivo apresentar o prefácio da edição brasileira do livro Juventude sem Deus, do escritor croata (Na época a Croácia pertencia ao Império austro-húngaro), Ödön von Horváth. A sua publicação original data do ano de 1938. O livro apresenta os dramas de consciência de um jovem professor alemão diante da imposição de valores apregoados pelo Terceiro Reich e os valores humanos dos quais ele era portador. Apesar dos êxitos imediatos do livro, ele, na época, não teve uma tradução para a língua portuguesa. O livro tem agora, em 2024 a sua primeira publicação no Brasil. As razões para isso parecem óbvias: a virulência com que os ideais fascistas estão ressurgindo. Deixo a resenha do livro:

http://www.blogdopedroeloi.com.br/2024/11/juventude-sem-deus-odon-von-horwath-1938.html

O prefácio da edição brasileira, escrito pela professora Michele Gialdroni, graduada em literatura alemã e com especial foco na literatura do entre guerras, é algo precioso. Uma contextualização da época, fato que nos permite estabelecer paralelos. 

Juventude sem Deus. Ödön von Horwáth. Todavia. 2024. Tradução: Sérgio Tellaroli.

A professora retrata o jovem dramaturgo aos 36 anos, agora radicado na Alemanha nazista. É bem sucedido em sua carreira mas sofre os seus próprios dramas de consciência. O regime não permite o exercício da liberdade em expressar a sua arte e também sente que não tem mais público que aprecie as suas manifestações. Radicaliza em não condescender com o sistema. Os seus próprios dramas, vividos entre a adesão e o manifestar seus conflitos interiores, seus dramas de consciência o levaram ao livro Juventude sem Deus. Sobre o livro, assim se expressa a um amigo afirmando que "a grande novidade da obra era esta: ter dado voz ao ser humano fascista, ou melhor, se corrige, 'ao ser humano na época do fascismo"'(página 10). Aderir ao sistema seria ajudar a criar monstros. 

Qual seria então a missão do professor diante dessa realidade? A mesma que o escritor dá à sua literatura: "O sofrimento do narrador, o professor, que, embora movido por uma incontestável moralidade e por sentimentos de solidariedade humana, não consegue tomar posição, não consegue mudar, é também o sofrimento de Horváth. Quando o professor conseguir sair do isolamento de sua condição de espectador, será outro vivisseccionador da realidade a morrer: o estudante insuspeito, aquele com olhos de peixe, o garoto que, como o próprio professor, quer ver a realidade até o momento derradeiro, que transforma a curiosidade e o desejo de conhecimento em desprezo e sadismo. Essa dicotomia entre realidade e verdade é bem presente nas obras  de Horváth. Os fanáticos do realismo são os carrascos, os algozes, aqueles que afirmam que nada pode ser feito, porque as coisas são como são" (páginas 10-11). Semear a utopia. Um não ao conformismo.

O Juventude sem Deus começa altamente provocativo. Já no primeiro capítulo, sob o título Os negros, encontramos o professor a corrigir redações. O aluno N escrevera: "Todos os negros são traiçoeiros, covardes e vagabundos". "Generalização absurda" corrige o professor. Foi o suficiente para lhe causar problemas. Mas ele se afirma diante dessa realidade. A sua consciência triunfa sobre a adesão.

A prefaciadora em sua análise da obra vê no livro um manifesto contra todas as sociedade "liberticidas e militarizadas" que tiveram ampla adesão "pelo oportunismo das velhas gerações de diretores de escola, grandes industriais e pequenos comerciantes, mas também o entusiasmo das novas gerações"(página 11). E num passo magnífico ela apresenta as denúncias contra uma escola autoritária, que aparecem na literatura, já antes das grandes guerras. Me permitam uma transcrição um pouco mais longa. São indicações preciosas e necessárias:

"Na literatura alemã das primeiras décadas do século XX, iniciando-se com O anjo azul, de Heinrich Mann, de 1905, o professor tinha sido representado por antonomásia - pensemos também no oprimente convento de Maulbronn em Unterm Rad  [Debaixo de rodas], de Hermann Hesse, ou no claustrofóbico colégio militar de O jovem Törless, de Robert Musil, ambos publicados em 1906" (Páginas 11-12). E agora as reflexões e as decisões a serem tomadas 

"Aquele que era o opressor, o representante do sistema que deve educar  seus alunos à obediência, torna-se agora nas mãos de Horváth, com todas as incertezas, o alter ego do escritor (e figura de identificação do leitor), que se depara com uma geração de jovens cegados pela fúria coletivista. Uma sociedade que exclui definitivamente aqueles que não são considerados parte integrante do corpo compacto da nação, por nascimento, por escolha, às vezes por necessidade. Ou seja, não só judeus, negros e ciganos, não só comunistas e sindicalistas, mas também pessoas com deficiência e doentes, também os míseros trabalhadores que em Juventude sem Deus vivem nos velhos casebres acinzentados do povoado, os moleques inconformados que se escondem nos bosques e roubam para sobreviver. Enfim, uma sociedade que não tolera os professores que se rebelam contra o regime e têm de escolher a via do exílio para poder viver uma vida digna, para redimir-se das maldades justo ali onde mais cruelmente foram cometidas, no contexto colonial" (Página 12).

Depois a prefaciadora se detém em dados mais pessoais da biografia do escritor, um permanente exilado em seus países de origem. Teve uma morte prematura trágica, quando tencionava vir morar na Califórnia, para se aproximar de Hollywood. Do trágico acidente que ceifara a sua vida (a queda do galho de uma árvore em um temporal, na proximidade dos Champs Élysée) sobraram duas estrofes de um poema seu:

"E as pessoas dirão // Em longínquos dias azuis // Quando finalmente se distinguirá // O falso do verdadeiro // Que aquilo que é falso ruirá // Embora hoje reine // E o verdadeiro triunfará // Embora hoje deva morrer" (Página 15).

Uma bela oportunidade para profundas e reflexões e atitudes a tomar frente a nova onda autoritária, fascista que nos assola. E, para aprofundar as reflexões sobre um fascismo latente e iminente, vejamos algumas constatações de Humberto Eco, uma radiografia:

http://www.blogdopedroeloi.com.br/2019/03/fascismo-eterno-umberto-eco.html

E a terrível e marcante frase: "Aderir ao sistema seria ajudar a criar monstros". Também estamos permanentemente diante de escolhas.

sexta-feira, 22 de novembro de 2024

JUVENTUDE SEM DEUS. Ödön von Horwáth. 1938.

Antes de mais nada, devo dizer que o romance Juventude sem Deus, do croata (então Império Austro-Húngaro) Ödön von Horwáth (1901-1938), reflete os dramas de consciência de um professor alemão, diante da ascensão do regime nazifascista na Alemanha de então. Sob este regime, o professor perde completamente a autonomia em sala de aula e passa a ser uma engrenagem da máquina publicitária na transmissão dos valores pregados pelo sistema. É a chamada "Guerra Total" em que todos os instrumentos culturais são colocados a serviço do regime. Ao professor caberia a adaptação, ou a resistência. Um horror!

Juventude sem Deus. Ödön von Horwath. Todavia 2024. Tradução: Sérgio Tellaroli.

Horwáth é um jovem escritor, também envolvido com teatro e cinema, morto precocemente em Paris, nas proximidades da Champs-Élysées, atingido pelo galho de uma árvore, caído numa tempestade. Ele encontrou enormes dificuldades em viver livremente na conturbada Europa desse período. Sendo filho de diplomatas, acompanhou os pais por vários países, encontrando dificuldades de se estabelecer em todos eles. A sua morte ocorreu quando, em Paris, estava negociando os direitos autorais de Juventude sem Deus para o cinema.  Mas vamos ao livro.

Juventude sem Deus, por óbvio, não pode ser publicado na Alemanha, sob o Terceiro Reich. Foi então publicado na Holanda em 1938 e imediatamente foi traduzido para várias línguas. Mas não para o português. Assim o livro ficou praticamente desconhecido no Brasil. O personagem do romance é um professor e o tema é a relação desse professor com os valores que a escola deveria transmitir aos alunos, como engrenagem da máquina publicitária formadora de consciências sob o domínio do Reich. Como esses valores se contrapõem aos seus, eles geram os dramas de consciência. Mas, vamos a orelha do livro para uma contextualização:

"Todos os negros são traiçoeiros, covardes e vagabundos." Ao ler essa frase na redação de um aluno, o professor reage: "Os negros também são seres humanos." É esse o ponto de partida desta pequena joia da literatura em língua alemã, escrita em 1937, em plena vigência do Terceiro Reich.

O livro acompanha a crise de consciência desse professor, em meio ao ambiente sufocante do regime racista e colonialista imposto pelo governo de Hitler. A atitude do professor em defesa dos negros soa revoltante para a casta que apoia o regime: burocratas acomodados, como o diretor da escola, ou industriais e comerciantes, como os pais de alguns alunos. Sem falar nos próprios adolescentes, entusiasmados com o patriotismo que a política oficial lhes impinge e cegos para a desumanização a que são submetidos diariamente (O mal se banaliza).

Mais adiante, o professor vai com a turma para um acampamento destinado à realização de treinos militares. E ali se envolve num episódio trágico que lhe custará o emprego, já em risco depois que ousara confrontar as afirmações racistas de seu aluno.

A "Guerra total", o rádio e o cinema como instrumentos de propaganda, os livros proibidos, a moralidade pública, a educação para a guerra e a 'regeneração' da juventude - todos esses elementos mobilizados na obra reconstroem o clima político do nacional-socialismo, cristalizado na impotência de um protagonista em crise e numa linguagem de simplicidade desconcertante.

Proibido na Alemanha, Juventude sem Deus foi publicado na Holanda, em 1938, ano da morte precoce do autor - Horwáth morreu após a queda de um galho em sua cabeça, em Paris, em plena ascensão como escritor e dramaturgo.

Recebido com entusiasmo por Hermann Hesse, Thomas Mann e Joseph Roth, admirado por Natalia Ginsburg e Peter Handke, adaptado para o teatro e o cinema, Juventude sem Deus é um clássico ainda pouco conhecido no Brasil - e sua publicação se torna mais premente numa época em que os fascismos insistem em mostrar que não morreram".

Este último parágrafo nos leva à atualidade do livro. Nos leva a uma análise do quadro educacional do Brasil, neste momento tão delicado da vida nacional. A serpente do fascismo está mais do que visível em seu ovo. E este ovo está sendo cuidadosamente chocado. Os controles sobre a escola praticamente não tem precedentes (até o macarthismo foi fichinha), especialmente após o golpe de 2016. Temos os movimentos do Escola sem Partido, do Novo Ensino Médio (escola dual), da censura a livros (O avesso da pele, de Jeferson Tenório), do reforçar dos elementos de vigilância sobre os professores, da militarização e privatização das escolas, da negação da diversidade cultural e da uniformização dos conteúdos, dos controles desses conteúdos pela avaliação padronizada e pelo massivo uso de plataformas de aulas prontas, sem a autoria (donde deriva autoridade) do professor e, acima de tudo, pela sua desvalorização como um profissional, reduzindo-o a um burocrata que meramente aplica aulas. E ai dele se não o fizer! Os meios de controle hoje estão muito mais sofisticados, praticamente ocorrem em tempo real.

Daí a atualidade do livro e a premência de sua publicação, mesmo que, mais de oitenta anos após a sua publicação original. A história se repete, agora como farsa. Além desse drama de consciência do professor, o romance também possui um valor literário extraordinário, especialmente pela sua força narrativa e linguagem envolvente e precisa. Tudo é narrado em pequenos capítulos de duas a três páginas (44 no total, abrangendo 173 paginas).

Um suspense acompanha a narrativa, especialmente após o acampamento para a realização de treinamentos militares. Vejam bem, treinamentos militares. Creio que a militarização de nossas escolas ainda não chegou a tanto. E, algo fantástico e maravilhoso. A dialética (A denúncia precede o anúncio - nos lembra Paulo Freire). Alguns alunos, motivados pelo exemplo do professor e inconformados com os valores desumanizadores, formam um clube de leituras onde se examina, não o real, pregado pelo sistema, mas o como este real deveria ser, para não ser o elemento desumanizador da sociedade. Também vale muito o precioso prefácio de contextualização da época, escrito pela professora Michele Gialdroni, especialista em literatura alemã e com foco voltado para o período entre guerras. Este prefácio merecerá um post especial. A tradução é de Sérgio Tellaroli e a editora é a Todavia. A publicação é do ano de 2024.

E ainda, um ponto alto do livro a destacar: A ligação existente entre o colonialismo e o racismo. A justificativa da existência de colônias necessariamente leva ao racismo. É uma cultura superior dominando uma inferior. Daí a hierarquia das raças e a ideologia que justifica o colonialismo. Levar o progresso aos continentes, povos e raças atrasados. Observem a linguagem. Para este tema é fundamental o livro de Frantz Fanon, Os condenados da terra. Deixo a resenha:

http://www.blogdopedroeloi.com.br/2023/03/os-condenados-da-terra-frantz-fanon.html



quarta-feira, 20 de novembro de 2024

Simpósio do Barreado. Dante Mendonça.

Domingo 10 de novembro de 2024. Recebi um agradável convite do meu amigo Valdemar para um almoço no Sarau do Oba. Além do almoço, cujo cardápio era um baião de dois, haveria um show de "Moda de viola", com Ana Decker e Júnior Bier. Como sempre estou disposto para festas, não titubiei e fui. O dia foi para muito além do imaginado e do esperado. Comida boa, ambiente agradável e o show então, nem falar. Conseguem imaginar um show de vila caipira! E a Ana Decker e o Júnior, simplesmente maravilhosos.

Simpósio do Barreado. Dante Mendonça. Ed. Senac. 2023.

Ao final, ainda fomos brindados pelo anfitrião, o senhor Orlando, com um livro maravilhoso Simpósio do Barreado - Origens e receita do prato típico paranaense. A autoria é do jornalista, aquarelista e escritor Dante Mendonça. Na contracapa do livro estão os objetivos do tal do simpósio. - Afinal, o Barreado nasceu em Morretes, Antonina ou Paranaguá? Na antiga Grécia, durante um sympósion os convivas discutiam, comiam, bebiam e cantavam. No Simpósio do Barreado, especialistas se reuniram em Porto de Cima para um banquete na história do prato mais típico do Paraná.

O livro é uma grande obra de arte e uma peça de humor inigualável, além das aquarelas do autor. O livro também contém valiosos dados históricos das três cidades do litoral paranaense. A história do barreado tem os seus registros já a partir de 1820, quando Saint Hilaire, foi de Curitiba para o litoral e atendendo a pedido seu sobre a indicação de algum prato típico, lhe indicaram o barreado. A partir de então está viva a disputa sobre a origem e a receita ortodoxa do famoso prato. 

Para estabelecer a verdade, num sábado, dia 15 de agosto, dia de Na. Sa. da Guia, reuniu-se no Porto de Cima o tal do simpósio. O local era considerado neutro, uma vez que recebia as cargas vindas de Curitiba e se fazia o transbordo das cargas para os diferentes portos. O simpósio, na abertura, foi abrilhantado pela banda euterpina morretense, que, embora um vento venenoso vindo da Ilha das Cobras fizesse voar as partituras, o Guarani de Carlos Gomes foi magistralmente executado. A banda é o orgulho da cidade de Morretes.

Foram compostas a mesa que presidiu os trabalhos e a dos convidados ilustres. Entre eles estavam Jaime Lerner, o folclorista Luiz da Câmara Cascudo, o chef estadunidense Anthony Bourdain, o escritor Alexandre Dumas (autor de Memórias gastronômicas e Pequena história da culinária) e o naturalista Auguste de Saint-Hilaire. Mesa de muito respeito.

No simpósio, ao narrar a origem do prato, também são narradas as origens das cidades e apresentados usos e costumes dos povos fundadores e da população caiçara, já com vistas para a argumentação em defesa desta ou daquela cidade. Colonização portuguesa e espanhola e a chegada dos italianos em Alexandra. Entre as argumentações, os defensores das diferentes causas falavam do bom gosto originário das populações, dos maus hábitos alimentares dos adversários, do só comer peixes, outros apenas charque, dos bons restaurantes dos países originários. Alta erudição e muitas digressões, como o uso ou não do tomate, do qual resultou a horrível praga mundial do ketchup. O representante de Antonina faz uma bela referência às festas do entrudo e carnaval, ligando-os aos festejos da Capela, em louvor à virgem do Pilar. Morretes foi acusada de servir um barreado pouco ortodoxo, adaptado ao gosto dos turistas. Componentes e modos de preparo também mereceram longas discussões, especialmente o cuentro.

O simpósio teve três sessões ao longo do dia mas a decisão foi adiada para o dia seguinte. Nela, os jurados seriam isolados e comeriam dos três diferentes púcaros, estes, sem a identificação da cidade de origem. Rafael Greca coordenou estes trabalhos. Ernani Buchman foi nomeado o porta voz dos jurados e, depois de lavar as mãos  nas águas do Nhundiaquara, proferiu o veredito final:  "O Barreado nasceu com a fome e a vontade de comer, da cabeça e imaginação de algum índio carijó do litoral paranaense. Revogam-se disposições em contrário, e elegemos, como fórum do próximo Simpósio do Barreado, a Ilha do Mel".

Coube ao escritor Domingos Pellegrini escrever a orelha de capa, num belíssimo texto: "Este é, antes de tudo, um livro de amor e arte.

Pois só quem, como Dante Mendonça, ama a cozinha e a arte consegue reunir as duas tão amorosamente.

E só quem ama a História consegue transformá-la em história como aqui, casando também dimensão histórica e narrativa literária humana e envolvente.

É, por isso, um livro de quem e para quem sabe que mais humano que viver numa terra é viver a terra, conhecendo e amando sua gente, seus mestres e seus costumes.

Também é livro de arte nas aquarelas de Dante, que chegaram ao que mais pode almejar o artista, ter sua arte reconhecível à primeira vista, pois basta bater os olhos na sua lev1eza e expressividade para saber: é coisa do Dante.

Com tudo isso, este livro de arte e de amor à terra e sua história, sua gente e seu jeito de ser, consegue ainda ser também um gostoso livro de culinária! Que, além da autêntica receita do barreado, tem toda página como convite aberto para olhar e ver, pensar e rir, sentir e amar a vida, tornando este Simpósio do Barreado um livro muito vivo!"

A edição é de 2023, da Editora Senac. E o nosso domingo só terminou com a quase chegada da segunda feira! Maravilhoso.





quinta-feira, 14 de novembro de 2024

AINDA ESTOU AQUI. O filme.

Dia 11 de novembro fui ao Shopping Barigui, para assistir a uma das maravilhas do cinema mundial, Ainda estou aqui, filme dirigido por Walter Salles e tendo como protagonistas Fernanda Torres, Fernanda Montenegro e Selton Mello. O roteiro do filme é uma adaptação do livro de Marcelo Rubens Paiva, do mesmo nome, e que foi publicado no ano de 2015. A adaptação do roteiro ficou a cargo de Murilo Hauser e Heitor Lorega. O filme é sobre Eunice Paiva, uma mulher monumental. O filme teve  sua pré estreia no Festival de Veneza, onde foi aplaudido de pé, por dez minutos.

Cartaz de divulgação do filme Ainda estou aqui.

Vou situar brevemente e, em primeiro lugar, Marcelo Rubens Paiva, o autor do livro. Ele se tornou conhecido pelo seu Feliz Ano Velho, livro em que relata seu acidente, ocorrido na cidade de Campinas no ano de 1995 e que o deixou tetraplégico. O Ainda estou aqui, é o seu livro do ano de 2015 e que eu li no ano de 2017, depois de ganhá-lo de presente do meu filho Iuri. O livro tem o foco em seus pais Rubens e Eunice Paiva. O que esta família tem de singular? Vamos então aos seus personagens. Antes, deixo a resenha do livro.

http://www.blogdopedroeloi.com.br/2017/04/ainda-estou-aqui-marcelo-rubens-paiva.html

Rubens Paiva foi um deputado federal, eleito pelo PTB de São Paulo, no ano de 1962. Já em 1964 teve o seu mandato cassado pela recém instaurada ditadura militar. Então, depois de inúmeros percalços e, na condição de engenheiro, se estabelece na construção civil, no Rio de Janeiro. Já Eunice Paiva cursou Letras na aristocrática e conservadora Universidade Mackenzie, onde conviveu com pessoas do mundo das letras. Fixaram residência no Rio de Janeiro, no bairro do Leblon. Talvez um dado interessante precise ser mencionado. A família de Rubens Paiva tinha propriedades no Vale do Ribeira, onde ocorreram as guerrilhas de Lamarca. Isso lhe atraiu uma constante vigilância. No Leblon viviam a típica vida de classe média alta, com cinco filhos, quatro meninas e o caçula Marcelo Rubens.

Em janeiro de 1971 a família recebe uma correspondência vinda do Chile e, a partir dela, a família passa a viver o verdadeiro estado de terror de um regime cruel e assassino. Rubens é detido (preso, como mais tarde será provado) e torturado até a morte, mas será dado como desaparecido. Eunice também foi presa, por 12 intermináveis dias de tortura psicológica. Uma das filhas, então com apenas 15 anos também passou pela prisão. Aí já entramos na narrativa ou no roteiro do filme, e Eunice passa a ser a grande protagonista. Imaginem a situação!

Sem marido, sem rendas, cinco filhos para criar (isso a obriga a disponibilizar patrimônio) e com o nome da família enlameado, uma vez que a mídia, além de outras instituições, transformaram o golpe militar na "Revolução Redentora", que livrara o Brasil dos "facínoras comunistas". Eunice assume o comando! Muda-se para São Paulo, volta para a Mackenzie, agora no curso de Direito, e se torna uma conceituada e prestigiada advogada. Além dos cuidados com os filhos, ela assume duas grandes causas: desvendar a morte do marido e assumir a defesa das causas indígenas. (Junto com Manuela Carneiro da Cunha, autora do livro Índios no Brasil: história, direitos e cidadania, conseguiram que figurasse na Constituição de 1988, o seu artigo 231).

Com relação ao marido, em 1996 (sob FHC) consegue, pela Lei dos Desaparecidos, o seu Atestado de Óbito, sem, no entanto saber sobre o paradeiro do corpo. Mais tarde, com a instituição da Comissão Nacional da Verdade (Dilma Rousseff), foi confirmada a sua morte no Doi-Codi, órgão submetido ao exército, sob tortura, bem como a identificação dos assassinos torturadores. Estes, no entanto, nunca sofreram qualquer tipo de punição, conforme depoimento de Marcelo Rubens, ao jornalista Juca Kfouri, no TVT. A impunidade favorece a repetição dos fatos, triste constatação.

Aos 72 anos Eunice é acometida pelo mal de Alzheimer, que a consumirá ao longo de 14 anos. Ela veio a falecer em dezembro de 2018, aos 86 anos. A interpretação de Eunice foi confiada a duas atrizes de primeira grandeza e - nem poderia ser diferente. Fernanda Torres representa a Eunice, como chefe da família e da grande batalhadora, cabendo a Fernanda Montenegro, por sete ou oito minutos memoráveis, sem uma única palavra, representar os seus momentos finais. Interpretações dignas da vida de lutas de uma grande mulher. A atuação de Selton Mello é destacada por Marcelo Rubens, na mesma entrevista concedida a Juca Kfouri, como a expressão fiel do caráter bondoso, gentil e brincalhão de seu pai. 

E o momento do filme! Não poderia haver melhor e mais oportuno. Após o golpe de 2016, a instável democracia brasileira vive sob o estado de cio dos remanescentes facínoras desse período triste de nossa história. Passamos por um governo horroroso e pela tentativa de golpe do 8 de janeiro e agora, pelo movimento de concessão de anistia para os bandidos depredadores desse mesmo 8 de janeiro (Escrevo no dia 14 de novembro, dia posterior a um novo ato terrorista em Brasília, que provavelmente sepultou esse movimento pela anistia). Foi lançado num momento em que precisamos brigar pela democracia. Walter Salles, com este seu filme, usa do cinema para cultivar a memória nacional e, pelo recurso da arte, nos provoca o horror diante dos fatos que tanto nos envergonham. O filme representa um grande movimento em favor da democracia, do horror às ditaduras com as suas costumeiras torturas, e da permanente luta em favor de um mundo que não perca a sua dimensão de alegria (o sorriso nas fotos), da riqueza das relações e dos ideais de humanidade. 

Um filme, que no dizer de Juca Kfouri, deveria ser passado em praça pública. É um dever de cidadania e humanidade assistir e divulgar este filme. Ele ainda dará muito o que falar por ocasião das festas do Oscar. E - juntos devemos bradar em alto e bom som - Ainda estou aqui. Mesmo porque eles (os facínoras) também ainda estão. E - precisam ser combatidos.

quarta-feira, 13 de novembro de 2024

O Morro dos Ventos Uivantes. Emily Brontè. 1847.

Quando tomei em mãos O Morro dos Ventos Uivantes para a sua leitura, apareceu em meu facebook, uma resenha do livro e, em um comentário, alguém escreveu que, mal começara a sua leitura, já o largou após as primeiras páginas. Quando eu a comecei, logo me indaguei se não aconteceria o mesmo comigo. Eu explico. O livro é muito sombrio e isso ocorre já a partir das primeiras páginas. Senão vejamos o diálogo que se estabelece entre o sr. Lockwood, um locatário, com o sr. Heathcliff, o proprietário da locação. Depois de falar da beleza do local, se trava o seguinte diálogo:

O Morro dos Ventos Uivantes. Abril. 1971. Tradução: Oscar Mendes.

"- Sr. Heathcliff! -  disse eu. 

Respondeu com um aceno de cabeça. 

- Sou Lockwood, seu novo inquilino. Dei-me a honra de visitá-lo, logo depois que cheguei, para exprimir-lhe a esperança de não me ter tornado impertinente, ao insistir em ocupar Thrushcross Grange. Ouvi dizer ontem que o senhor tinha certas intenções...

- Thrushcross Grange - interrompeu ele, retraindo-se - é propriedade minha. Não permito que ninguém me aborreça quando posso a isso me opor... Entre! 

O "entre" foi dito de dentes cerrados e soava como se fosse um "vá para o diabo!" A própria porteira, sobre que se apoiava, não revelava nenhum movimento em acordo com o convite. Foi esta circunstância, creio, que me impeliu a aceitá-lo. Sentia-me interessado por um homem cuja reserva parecia mais exagerada do que a minha".

Essa péssima recepção é prenúncio do comportamento de Heathcliff, que, seguramente, eu apontaria como um dos mais sombrios personagens da literatura universal. Bem! Ao contrário do comentário lido, eu continuei persistente. E creio que esse diálogo inicial também nos dá a primeira abertura para situar o romance de Emily Brontè, datado de 1847. Nele aparece o sr. Heathcliff, o protagonista da obra. Aparece também o nome de uma das propriedades rurais, Thrushcross Grange, local dos acontecimentos, junto com a outra, que dá o nome ao romance O Morro dos Ventos Uivantes.

O Morro dos Ventos Uivantes, para continuar a apresentação do romance, pertence à família Earnshaw, composta pelo sr. e sra. Earnshaw e Hindley e Catarina, os filhos. Já a Thrushcross Grange pertence à família Linton, da qual são retirados como personagens os irmãos Edgar e Isabela. Da família Earnshaw surge outro personagem, Heathcliff, que, como já vimos, será o protagonista. Ele é trazido pelo patriarca da família, de uma viagem que ele fizera a Liverpool. Ele o recolheu na qualidade de um menino indigente, franzino, sujo e sobretudo faminto. Sua cor é um pouco mais escura, fato imediatamente percebido por todos. O senhor Earnshaw lhe dedica grandes afeições e atenções, logo sentidas por Hindley, que passa a hostilizá-lo. Já Catarina lhe lança olhares furtivos no começo, que logo a seguir, se tornaram afoitos. Tudo indica que nascera um grande amor! Será?

Esses são os ingredientes em que o leitor precisa ter atenção para não se perder nos labirintos da história. A narradora dessa história será Nelly Dean, uma empregada, meio governanta, que trabalhara nas duas propriedades. Essa história sinistra é contada ao longo de 34 capítulos, no decorrer de 313 páginas. Ela a conta para o sr. Lockwood, o locatário. Ela tem como mote principal a vingança de Heathcliff, pelos maus tratos recebidos por Hindley e pela pouca atenção de Catarina. Como resultado, todas as relações estabelecidas entre eles se tornam diabolicamente envenenadas, fechando todas as possibilidades de humanidade e de um final feliz. Todos são enlouquecidos por um ódio infernal. Heatcliff dominará a todos. Será rico, poderoso e proprietário das duas herdades, adquiridas ou por dinheiro, ou por herança. Dá para sentir o enredo!

Como vimos, o romance, que é a única obra da escritora, apareceu no ano de 1847, ano ainda pertencente ao romantismo. Dez anos depois, Gustave Flaubert inaugurará o realismo com o seu Madame Bovary. A escritora viveu apenas por 30 anos. Nasceu no Reino Unido em 1818 e, também nele, veio a falecer em 1848, um ano após o lançamento de seu livro. 

A edição que eu li é da coleção Os Imortais da Literatura Universal (Abril, 1971) e, no livro de minibiografias que a acompanha, lemos o que segue sobre a obra: 

"... O enredo gira em torno de Heathcliff, um coração livre que se endurece por ter sido vítima de maldades. Abandonado pela jovem que ele ama, emprega toda a sua força para se vingar das pessoas que provocaram a separação. Num clima de ódio e revolta, Heathcliff vai aniquilando, um por um, todos aqueles que considera seus inimigos. Ninguém é poupado, nem o próprio algoz. Pela primeira vez na literatura romântica, as personagens não são rigidamente classificadas como boas ou más. Vícios e virtudes nelas se mesclam, como nas criaturas reais. Entre os protagonistas - Heathcliff e Cathy - existe um amor torturado, levando antes à destruição que à felicidade. As personagens mais próximas dos tipos virtuosos são fracas e suscitam pena. A autora se abstém de apresentar juízos morais e, pela maneira que descreve as figuras principais, percebe-se que sua simpatia se volta para os que sofrem. A intensidade das paixões, a densidade das sombras que pairam sobre as personagens, a violência do amor e do ódio constituem os elementos característicos do livro e entremostram a riqueza de sentimentos que Emily guardava dentro de si. O clima tenso da obra não impede, todavia, a presença de um lirismo estranho e comovente, em que as misérias e as paixões humanas são tratadas de maneira incisiva".

Creio que O Morro dos Ventos Uivantes é a mais sombria das obras que eu já li. Todas as pessoas estão profundamente contaminadas pelo ódio, interessadas em fazer mal às pessoas e provocar mal-estar. E, como conseguem!... E como as relações fazem mal, muitas se refugiam na solidão e no isolamento, fatores que não são estranhos à biografia da escritora. Agora, o que é de estranhar é a força com que ela  apresenta os personagens em sua complexidade psicológica. Em seus poucos anos de vida sempre fora uma leitora exímia, fato que expandiu enormemente a sua mente. Outro elemento extraordinário em sua obra é o panorama traçado da Inglaterra dos meados do século XIX, especialmente o de seu meio rural, interiorano. Grande obra! 

Quero destacar ainda um fato. Ele é narrado nas páginas finais da obra. Nele Heathcliff está à beira da morte e ainda não elaborara o seu testamento. Para quem deixar a sua herança? Vejamos:

"Quando amanhecer, mandarei buscar Green (o homem da lei) - disse ele. - Gostaria de esclarecer com ele algumas questões jurídicas, enquanto estou em condições de emprestar um pensamento a esses negócios e agir com calma. Não fiz ainda meu testamento e não consegui chegar a uma decisão, a respeito da maneira de dispor de meus bens. Gostaria de suprimi-los da face da terra." (páginas 308-309). Talvez isso tenha me tocado particularmente porque conheço pessoas inconformadas por terem que deixar seus a bens a pessoas que eles julgam não merecedoras dos mesmos. Que horror!


terça-feira, 5 de novembro de 2024

A condição humana (1933). André Malraux.

A minha próxima leitura seria um dos livros da coleção Os Imortais da Literatura Universal (Abril - 1972) que eu ainda não tivesse lido. Creio que ainda me sobra algo em torno de uma meia dúzia. Entre eles estava o livro de André Malraux (1901-1976), com o belo e provocativo título de A condição humana. Confesso que não é um livro de leitura fácil, pois se trata de um tema bem datado, como o é o da Revolução Chinesa de 1927. Na ocasião, ela implodiu dentro da aliança formada por nacionalistas e comunistas para combater os países europeus em busca de autonomia nacional. Essa implosão opôs os nacionalistas aos comunistas.

A condição humana. André Malraux. Abri. 1972. Tradução: Jorge de Sena

Os nacionalistas eram comandados por Chiang Kai-shek e os comunistas chineses, que obedeciam as ordens da Terceira Internacional, sob o comando da União Soviética. Os desentendimentos levaram ao golpe dos nacionalistas. A luta foi violenta e sangrenta e terminou com a vitimização dos comunistas e a implementação de uma ditadura por Chiang Kai-shek. Estes fatos ocorreram, como já vimos, no ano de 1927 e a narrativa de Malraux é de 1933. Este é o ano da publicação de seu mais importante livro. O local das rebeliões ocorre em Xangai e na cidade industrial de Hankow.

Para facilitar a leitura, passo alguns dos personagens que precisam ser atentamente observados para não se perder na narrativa. São eles: Tchen, um terrorista, sempre pronto a morrer pela causa; Katow, experiente revolucionário e um dos comandantes dos comunistas; Kyo e o seu pai Gisors, este um intelectual e professor de arte e aquele, junto com Katow, um dos chefes comunistas; Clappique, um divertido boêmio e traficante, especialmente de armas e de ópio; e mais Ferral, o representante de uma companhia francesa e os seus interesses econômicos.

A narrativa começa no dia 21 de março de 1927, meia-noite e meia, e se estende até meados de abril, quando os personagens diretamente envolvidos com a revolução já estão todos mortos. Essa narrativa ocupa seis capítulos e, um sétimo, se volta para Paris, já em julho, e para Kobe. Em Paris se encontra Ferral, negociando em nome da companhia e em Kobe, Gisors pai e May, sobreviventes aos acontecimentos. São 301 páginas com letras, quase de necessidade de lupa. É, com certeza, um romance de muita ação e profundamente entremeado de reflexões filosóficas sobre A condição humana: sentido da vida, valores éticos, perspectivas diante da morte, o abraçar e se dedicar cegamente a causas, obediência, lealdade, rebelião diante de injustiças e por aí vai.

Como se trata de um romance bem datado e com muitos dados históricos já distantes, eu recorro ao livro de mini biografias que acompanha a  coleção para, primeiramente, falar um pouco de Malraux, do seu gosto pelos temas do oriente, para onde viajou já em 1923, para observar de perto os acontecimentos que ali se desenvolveram e, em segundo, para dar a contextualização em que o livro foi escrito. Primeiro sobre a contextualização: 

"A maior parte do continente asiático achava-se então sob controle econômico e político de potências europeias. E em certos países começavam a tomar impulso os primeiros movimentos de revolta contra as metrópoles do Ocidente. Tal era o caso da China e da Indochina [...]. Revolucionários chineses de todas as tendências reuniram-se sob a bandeira do Kuomintang, partido nacionalista, dirigido por Chiang Kai-shek [...]. Em 1927, uma reviravolta nas alianças políticas leva a China a um banho de sangue: Chiang Kai-shek dá um golpe de Estado e inicia o massacre de seus ex-aliados, comunistas".

E, agora sobre o tema e as reflexões: "A tragédia profunda do homem encontraria novamente expressão política em A condição humana (1933).  O cenário é a China. O tema, a revolução fracassada de Xangai, à qual o escritor assistira em 1927. Por essa razão, nenhuma outra obra de Malraux é tão impregnada de realidade e vida.

Mais uma vez vem à tona a contradição insolúvel da revolução, levada a cabo simultaneamente pela burguesia nacionalista e pelos sindicatos comunistas. A fragilidade dessa aliança é ressentida, em toda a sua extensão, pelas personagens de Malraux, que, no entanto, obedecem às ordens da Internacional stalinista e caminham como bonecos até a morte. (Sobre essa Internacional, a terceira, segue o link: 

O drama dos revolucionários está no papel que representam: meras peças de um jogo político sobre o qual não possuem o direito de opinar. Apenas o fim importa. O homem não tem controle sobre o seu destino, não tem outra alternativa senão procurar realizar-se e encontrar a si mesmo dentro dos limites traçados pelos outros.

Assim, a personagem Kyo Gisors faz da revolução sua própria vida, e a ela cede corpo e alma. Tchen é um fanático, feito terrorista por um mecanismo de compensação, para lavar no sangue a sua própria humilhação e a das massas miseráveis. Hemmelrich é levado por sua impotência a participar da ação: para ele, o combate final aparece como uma porta aberta em direção à liberdade. E Ferral é o capitalista poderoso contra o qual virá chocar-se a revolução.

Seja qual for o campo em que combatem, as personagens são pessoas reais, descritas tal como o autor as conhecera na China. A coragem, mas também o medo, a revolta e a traição constituem sempre hipóteses possíveis para cada uma delas. Independentemente da capacidade e da fidelidade de um indivíduo, ele pode falhar e perder o caminho.

Não há nada mais elevado e ao mesmo tempo mais baixo que o homem, parece dizer Malraux em sua obra. Tudo se encontra em todos os homens: as grandezas e as misérias. Esse o sentido da 'condição humana'. Cada personagem se acha mergulhada na lama de sua condição: por mais que procure, não pode escapar a esse destino.

Verdadeiro centro da obra de Malraux, A condição humana nada mais é que uma etapa da busca apaixonada da liberdade, que parece constituir a razão de ser do escritor. Recebido com entusiasmo pelo público, aplaudido pela crítica e laureado com o Prêmio Goncourt, o livro projeta na cena literária internacional o nome de seu autor.

A França descobre, estupefata e ao mesmo tempo um tanto constrangida, um intelectual de 32 anos que pretende derrubar a ordem estabelecida. Durante alguns meses, Malraux é o herói festejado por toda a imprensa, da extrema-direita à extrema-esquerda. Independentemente das posições políticas, todos reconhecem seu prodigioso talento".

E, para situar historicamente. Em 1946 Mao Tsé-Tung inicia uma nova fase de combates e em 1949, na qualidade de vencedor, proclama a República Popular da China, sob o comando comunista. Chiang Kai-shek ainda fica no poder, mas em Taiwan. Coisas da geopolítica. Fundamental para se compreender a China de nossos dias.