sexta-feira, 13 de setembro de 2024

Guerra e paz. O grande livro da paz. Leon Tolstói. Os quatro volumes.

Guerra e paz, de Leon Tolstói é seguramente uma das maiores obras da literatura universal. Na apresentação do livro, da edição da L&PM Pocket, Ivan Pinheiro Machado o apresenta como "o grande livro da paz". O seu tema são as guerras napoleônicas que assolaram a Europa pelo longo período de 1803 a 1815. Foi possivelmente a mais sangrenta das guerras. Elas tiveram o seu fim, com a intervenção do "general inverno" do qual os soldados franceses foram vítimas. As consequências foram enormes e imensuráveis. A sua descrição só poderia caber a um dos maiores gênios da literatura universal, Leon Tolstói.


Guerra e paz. Leon Tolstói. Capa do primeiro volume. L&PM. 2017.

Como li e resenhei os quatro volumes da obra e publiquei os posts, à medida que lia os livros, os publico agora, agrupados em único post. A versão da obra que eu li é da L&PM Pocket, em reimpressão de 2017. A primeira impressão ocorrera no ano de 2007. A tradução é de João Gaspar Simões. A grande obra ocupa 1481 páginas, em letrinhas à altura de um livro em edição de bolso. Os li em tempo de reclusão absoluta, em função da pandemia do COVID-19. Vamos a eles. O primeiro volume:

http://www.blogdopedroeloi.com.br/2020/06/guerra-e-paz-leon-tolstoi-volume-i.html

O segundo volume. Nele há uma preciosidade sobre a ociosidade no exército, que não pude deixar de destacar:

http://www.blogdopedroeloi.com.br/2020/07/guerra-e-paz-leon-tolstoi-volume-ii.html

O terceiro volume, com a famosa batalha de Borodino:

http://www.blogdopedroeloi.com.br/2020/07/guerra-e-paz-leon-tolstoi-volume-iii.html

E o quarto e último volume, com um belo apêndice do próprio autor:

http://www.blogdopedroeloi.com.br/2020/07/guerra-e-paz-volume-iv-leon-tolstoi.html

Cumpre ainda dizer, que Leon Tolstói se ocupou com a escrita dessa obra entre os anos de 1865 a 1869. 

quinta-feira, 12 de setembro de 2024

Textos de literatura - Aulas de filosofia. A Categoria TRABALHO em A CAVERNA de José Saramago.

Sempre defendi que a categoria Trabalho é a principal categoria com a qual a filosofia trabalha. O trabalho é a linha divisória entre o mundo humano e o mundo animal. Em compensação, é também o humano, o único ser que tem a necessidade do trabalho para sobreviver. No mundo animal essa sobrevivência se dá de forma natural, na relação com a natureza. Já entre os humanos é necessária a intervenção nessa natureza. É a essa intervenção, para assegurar a sobrevivência, que chamamos de trabalho. Nessa relação, uma das características é a utilização de meios, de instrumentos, de extensões da mão, coisa que os animais, se o fazem, o fazem de forma absolutamente rudimentar. O trabalho, ao mesmo tempo que assegura a sobrevivência, também confere ao homem a alegria da criação, o chamado trabalho criativo.

A caverna. José Saramago. Companhia das Letras. 2000.

O trabalho é por excelência um trabalho criativo, um trabalho artesanal. Ele envolve o ser humano em sua totalidade, especialmente pela soma da mente e da mão. A mente que emite ordens para as mãos executarem as mais diferentes atividades. Mas o mundo capitalista se apropriou do trabalho e o transformou em mercadoria, voltada à produção, sendo ele próprio uma mercadoria. Em vez de trabalho artesanal e criativo ele é transformado em trabalho mecânico e repetitivo. A sua força de trabalho se transformou em mão de obra, simbolizando que apenas as mãos trabalham. Uns são pagos para conceber, para criar, enquanto aos outros é reservada a tarefa de trabalhar. Houve a separação da criação. O trabalho já não é mais práxis, e sim trabalho alienado, trabalho que a outro pertence e que também se apropria de seu resultado. 

Mas o objetivo deste post é mostrar essa transformação no mundo do trabalho e na estruturação da sociedade no livro A caverna, de José Saramago. Cipriano Algor é o principal personagem desse romance. Ele é oleiro, produz cerâmica, louças e outros utensílios domésticos. Como surgiram artefatos mais baratos, com outras matérias primas mais baratas e submetidas a produção mecânica e repetitiva, em série, Cipriano Algor, junto com a sua filha Marta, precisam se reinventar. precisam por a mente, a mão e os dedos a funcionar, para, a partir da produção de bonecos, garantirem o seu sustento. O texto de Saramago é uma das grandes definições para definir o trabalho como práxis, trabalho criativo e instrumento de realização humana. Vejamos:

"... Porém, quando Marta colocou diante de si a folha de papel com que ia principiar a última série de ilustrações, reuniu rapidamente as cópias iniciais e saiu para a olaria. A filha ainda teve tempo de lhe dizer, Não se irrite se não lhe sair bem à primeira. Horas atrás de horas, durante o resto desse dia e parte do dia seguinte, até a hora em que teria de ir buscar Marçal ao Centro, o oleiro fez, desfez e refez bonecos com figura de enfermeiras e de mandarins, de bobos e de assírios, de esquimós e de palhaços, quase irreconhecíveis nas primeiras tentativas, mas logo ganhando forma e sentido à medida que os dedos começaram a interpretar por sua própria conta e de acordo com suas próprias leis as instruções que lhes chegavam da cabeça. Na verdade, são poucos os que sabem da existência de um pequeno cérebro em cada um dos dedos da mão, algures entre a falange, a falanginha e a falangeta. Aquele outro órgão a que chamamos cérebro, esse com que viemos ao mundo, esse que transportamos dentro do crânio e que nos transporta a nós para que o transportemos a ele, nunca conseguiu produzir senão intenções vagas, gerais, difusas, e sobretudo pouco variadas, acerca do que as mãos e os dedos deverão fazer. Por exemplo, se ao cérebro da cabeça lhe ocorreu a ideia de uma pintura, ou música, ou escultura, ou literatura, ou boneco de barro, o que ele faz é manifestar o desejo e ficar depois à espera, a ver o que acontece. Só porque despachou uma ordem às mãos e aos dedos, crê, ou finge crer, que isso era tudo quanto se necessitava para que o trabalho, após umas quantas operações executadas pelas extremidades dos braços, aparece feito. Nunca teve a curiosidade de se perguntar por que razão o resultado final dessa manipulação, sempre complexa até nas suas mais simples expressões, se assemelha tão pouco ao que havia imaginado antes de dar instrução às mãos. Note-se que, ao nascermos, os dedos ainda não têm cérebros., vão-nos formando pouco a pouco com o passar  do tempo e o auxílio do que os olhos veem.

O auxílio dos olhos é importante, tanto quanto o auxílio dos olhos é importante, tanto quanto o auxílio daquilo que por eles é visto. Por isso o que os dedos sempre souberam fazer de melhor foi precisamente revelar o oculto. O que no cérebro possa ser percebido como conhecimento infuso, mágico ou sobrenatural, mágico e infuso, foram os dedos e os seus pequenos cérebros que lho ensinaram. Para que o cérebro da cabeça soubesse o que era a pedra, foi preciso primeiro que os dedos a tocassem, lhe sentissem a aspereza, o peso e a densidade, foi preciso que se ferissem nela. Só muito tempo depois o cérebro compreendeu que daquele pedaço de rocha se poderia fazer uma coisa a que chamaria faca e uma coisa a que chamaram ídolo. O cérebro da cabeça andou toda a vida atrasado em relação às mãos, e mesmo nestes tempos, quando nos parece que passou à frente delas, ainda são os dedos que têm de lhe explicar as investigações do tacto, o estremecimento da epiderme ao tocar o barro, a dilaceração aguda do cinzel, a mordedura do ácido na chapa, a vibração subtil de uma folha de papel estendida, a orografia das texturas, o entramado das fibras, o abecedário em relevo do mundo. E as cores. Manda a verdade que se diga que o cérebro é muito menos entendido em cores do que crê. É certo que consegue ver mais ou menos claramente visto o que os olhos lhe mostram, mas as mais das vezes sofre do que poderíamos designar por problemas de orientação sempre que chega a hora de converter em conhecimento o que viu. Graças à inconsciente segurança com que a duração da vida acabou por dotá-lo, pronuncia sem hesitar os nomes das cores a que chama de elementares e complementárias, mas imediatamente se perde, perplexo, duvidoso, quando tenta formar palavras que possam servir de rótulos ou dísticos explicativos de algo que toca o inefável, de algo que roça o indizível, aquela cor ainda de todo não nascida que, com o assentimento, a cumplicidade, e não raro a surpresa dos próprios olhos, as mãos e os dedos vão criando e que provavelmente nunca chegará a receber o justo nome.

Ou talvez já o tenha, mas  esse só as mãos o conhecem, porque compuseram a tinta como se estivessem a decompor as partes constituintes de uma nota de música, porque se sujaram na sua cor e guardaram a mancha no interior profundo da derme, porque só com esse saber invisível dos dedos se poderá alguma vez pintar a infinita tela dos sonhos. Fiado do que os olhos julgaram ter visto, o cérebro da cabeça afirma que, segundo a luz e as sombras, o vento e a calma, a humidade e a secura, a praia é branca, ou amarela, ou dourada, ou cinzenta, ou roxa, ou qualquer coisa entre isto e aquilo, mas depois vêm os dedos e, com um movimento de recolha, como se estivessem a ceifar uma seara, levantam do chão todas as cores que há no mundo. O que parecia único era plural, o que é plural sê-lo-á ainda mais. Não é menos verdade, contudo, que na fulguração exaltada de um só tom, ou na sua musical modulação, estão presentes e vivos todos os outros, tanto os das cores que já tem nome como os das que ainda o esperam, do mesmo modo que uma extensão de aparência lisa poderá estar cobrindo, ao mesmo tempo que os manifesta, os rastos de todo o vivido e acontecido na história do mundo. Toda a arqueologia de materiais é uma arqueologia humana. O que este barro esconde e mostra é o trânsito do ser no tempo e a sua passagem pelos espaços, os sinais dos dedos, as raspaduras das unhas, as cinzas e os tições das fogueiras apagadas, os ossos próprios e alheios, os caminhos que eternamente se bifurcam e se vão distanciando e perdendo uns dos outros. Este grão que aflora à superfície é uma memória, esta depressão a marca que ficou de um corpo deitado. O cérebro perguntou e pediu, a mão respondeu e fez. Marta disse-o de outra maneira. Já lhe apanhou o jeito". Páginas 82-84.

Deixo ainda a resenha do livro A caverna.

http://www.blogdopedroeloi.com.br/2024/09/a-caverna-jose-saramago.html


sábado, 7 de setembro de 2024

A CAVERNA. José Saramago.

Na releitura das obras de Saramago, chegou a vez de A caverna, o seu livro do ano de 2000. Depois dessa releitura, não tenho dúvidas em afirmar que este é o melhor de seus livros, excetuando os dos temas religiosos. Ao menos é essa a minha escolha. É, e não podia deixar de ser - pelo título que ostenta, um livro de filosofia, mas também de psicologia, de sociologia, de compreensão dos valores humanos e de humanidade. Um livro de profunda sensibilidade, mas também de angustiantes preocupações com o futuro da humanidade. O novo século que está por se iniciar, certamente não trará perspectivas animadoras. O livro é também uma bela história de amor. Uma nova vida está a começar, quando tudo apontava para o seu fim. E o amor recria um milhão de motivos para a continuidade do viver, e viver com alegria e felicidade. Foi o que eu vi de essencial neste livro.

A caverna. José Saramago. Companhia das Letras. 2000.

O livro tem também uma peculiaridade única e insuperável. Não creio que haja paralelo que permita comparações, na relação que o ser humano estabelece com o mundo animal, com o cachorro em particular. O Achado. O cão assim foi chamado por ter aparecido na vida de Cipriano Algor, de sua filha Marta e do genro Marçal Gacho, o núcleo familiar do romance. Foram eles que acharam o cão a quem tanto se afeiçoaram. Achado se transformou em um dos motivos a mais para que o viver efetivamente continuasse a valer a pena. Mas há também Isaura Estudiosa, ou Isaura Madruga, como Cipriano Algor a preferiu chamar.

A construção do romance é belíssima e, não hesito em afirmar, que Saramago, ao escrevê-lo, o fez com grande e ímpar entusiasmo. Por óbvio, o tema Caverna nos remete a Platão. Além de óbvio, isso também está explícito na epígrafe, também repetida na contracapa: "Que estranha cena descreves e que estranhos prisioneiros. São iguais a nós". Platão. República. Livro VII. É nesse livro que Platão relata a famosa Alegoria da caverna, na qual as sombras do real, projetadas ao fundo da caverna são vistas como a realidade e que, portanto, para se conhecer a realidade é preciso sair da caverna. Sair do mundo de sombras, de aparências. Em A caverna de Saramago também há uma caverna. Ela está localizada num Centro, um local em que estão localizadas todas as atividades de uma cidade moderna. Será desse "Centro" que, primeiramente fugirá Cipriano Algor e logo a seguir Marçal e Marta.

Mas vamos aos personagens. Cipriano Algor tem, nas imediações da cidade, uma olaria. A partir do barro produzem, de forma artesanal, louças e outros utensílios domésticos. A olaria está passando para a terceira geração. Nela trabalham Cipriano e a sua filha Marta. Esta é casada com Marçal Gacho que trabalha como guarda provisório no famoso Centro. Ele está à espera de ser promovido a guarda residente. Cipriano é viúvo, já há quatro anos. Cipriano é um dos fornecedores do Centro, com contrato de exclusividade. Só pode vender as suas mercadorias para o Centro e, não mais poderá atender aos seus antigos clientes. Um dia, na rotina de descarregar suas mercadorias, só lhe querem a metade, para logo a seguir lhe desencomendarem todo o fornecimento. E mais, lhe dão um curto prazo para retirar as suas mercadorias, encalhadas nas prateleiras. Outras peças deveriam ocupar o seu lugar. Agora são de plástico e outras matérias primas mais práticas. Metamorfoses no mundo do trabalho. O que Cipriano e Marta irão fazer, não é um problema do Centro.

Marta troca ideias com Cipriano. E... se produzíssemos, em vez de louças, bonecos. Cipriano irá ter com o chefe de compras. A ideia não lhe desagradou. Fez uma encomenda inicial de 300 exemplares. Cipriano e Marta não cabem em si de felicidade. Mas não foi fácil, foi necessária uma reinvenção. O trabalho seria muito diferente. A essa altura do romance, Saramago nos dá uma aula sobre a principal categoria da filosofia, que é o trabalho. A mente a as mãos, a habilidade dos dedos, os conhecimentos técnicos, a modelagem, o cozimento do barro, o manuseio das tintas, tudo isso precisa ser trabalhado (Isso será tema de um post especial). O chefe de compras alertara a Cipriano, que faria uma grande pesquisa entre os consumidores para ver sobre a aceitação, ou não, de seus novos produtos, frutos de tão árduo trabalho, trabalho criativo. Dias de aflição e muita angústia.

Estes só não foram maiores, porque a tão aguardada promoção de Marçal a guarda residente finalmente saíra. Se nada desse certo, Cipriano iria morar como a filha e o genro no tal do Centro. Mas, havia um problema. O pai e a mãe de Marçal queriam o mesmo e, por isso o atormentavam insistentemente, enquanto Cipriano, ao contrário, resistia à ideia. Em meio a esses acontecimentos, Cipriano encontrou-se com Isaura Estudiosa, ou a Isaura Madruga. Ela era viúva. Cipriano lhe promete e lhe leva um cântaro. Mas, isso não era tudo. Marta, para profundo incômodo do pai, constantemente trazia o tema à baila. Também é desse tempo o aparecimento do cão, o Achado. Repito, - são das mais belas reflexões que se possa encontrar na literatura - das relações de profunda amizade e compreensão entre o ser humano e o animal, no caso, o cão. Quanta sensibilidade! Quanto entendimento de sentimentos mútuos! Seria o Achado um dos motivos pelos quais Cipriano não queria ir morar no Centro? Lá os animais não eram tolerados.

Já quase ao final do livro, os três irão morar ao Centro. Cipriano faz as suas investigações. Marçal ganhara uma missão especial. Trabalharia em turnos especiais e seria dispensado da farda. - Sem farda, não há guarda, há, isso sim, espionagem - observa o perspicaz sogro. A guarda especial era no local chamado de caverna. O seu turno era de madrugada. Cipriano, após alguns dias, irá visitá-lo, invocado com o que lá se passava. O que viu foi o suficiente  para abandonar imediatamente o Centro, mesmo sem saber que destino tomar. Alguns dias depois, o casal, que estava à espera do primeiro filho, segue o seu caminho. Enquanto houver vida, haverá futuro e haverá esperança. Já é muito saber o que não se quer!

Cenas lindas ocorrem ao final. Cipriano na sua volta, passa pela casa de Isaura, a quem havia confiado o Achado. Lá não está ela, nem ele. Então toca-se para a sua casa. La encontra os dois. Achado fugira, já no primeiro dia. Voltara para a casa de Cipriano, esperando pela sua volta. Cenas de comovente sensibilidade e felicidade descrevem esse encontro, não mais dado a separações. Dias depois, já junto com a filha e o genro, deliberam que esse mundo não lhes serve e vão em busca - não sabem exatamente do que, - mas sabendo muito bem em que mundo não mais querem viver. Enquanto isso, Saramago anuncia a mais nova atração do centro, na frase que encerra o seu romance: BREVEMENTE, ABERTURA AO PÚBLICO DA CAVERNA DE PLATÃO, ATRAÇÃO EXCLUSIVA, ÚNICA NO MUNDO, COMPRE JÁ A SUA ENTRADA. 

Para não ficar apenas nas impressões da minha leitura deixo o relato de Benedito Nunes que encontramos nas orelhas do livro:

"O que singulariza a ficção de José Saramago é o ajustamento da narrativa romanesca a uma parábola. Neste novo romance a parábola já começa nos desiguais papéis dos personagens, o oleiro e o guarda, estampados nos seus próprios nomes. Algor o do primeiro, significando o frio prenunciador da agitação febril, e Gacho o do segundo, significando o lugar do pescoço que suporta a canga. A agitação do oleiro vem de seu desconforto moral: quando a louça que fabrica é rejeitada pelas instâncias decisórias superiores de um mega Centro econômico que atua como a "mão da Providência", Algor oferece-lhe bonecos de barro, representando diferentes tipos de gente que as mesmas instâncias lhe encomendam em grandes quantidades. A anulação do trabalho manual ou artesanal pela tecnologia tal poderia ser o resumo desse aspecto destrutivo do capitalismo em seu acme, convertido pelo romance numa parábola social, a que o romancista contrapõe, em sutil paródia, o mito dos que creem nas sombras. Mas quando o oleiro, o guarda e sua mulher ganham o mundo luminoso e real da estrada na companhia do amável cão Achado, em sua humana animalidade à altura da cachorra Baleia de Graciliano Ramos, do cavalo Colomer de Tolstoi e do cãozinho Karenin de Milan Kundera, a parábola social é contestada pelo mito, muito embora venha a ser este, como verá o leitor, neutralizado e reapresentado, em seu puro valor cênico, pela sociedade de espetáculos (ou de massa), que se funda no poder da tecnologia".

Para os leitores deixo também a alegoria da caverna, a de Platão, que serviu de mote para Saramago.

http://www.blogdopedroeloi.com.br/2014/04/a-alegoria-da-caverna-republica-de.html

E ainda, a resenha de Ensaio sobre a cegueira, o livro anteriormente resenhado.

http://www.blogdopedroeloi.com.br/2024/09/ensaio-sobre-cegueira-jose-saramago.html

quarta-feira, 4 de setembro de 2024

ENSAIO SOBRE A CEGUEIRA. José Saramago.

Continuo firme na minha releitura das obras de José Saramago. O livro da vez foi Ensaio sobre a cegueira. Retomei a ordem cronológica, interrompida com a leitura dos temas religiosos. Depois de ler o Evangelho segundo Jesus Cristo (1991), emendei com Caim (2009). Sobre o Ensaio é importante notar, que ele é do ano de 1995. Por que é Importante? Na resposta possivelmente encontraremos um dos motivos que inspiraram o autor para a escrita do livro. A proximidade de um fim de século. Uma data já fora justificativa para O ano da morte de Ricardo Reis. Esta ocorreu no ano de 1936. Qual dos temas teria uma abordagem mais interessante? A ascensão do nazi-fascismo, o entre guerras e o início de uma nova, ou um final de um século, um século curto, na expressão de Hobsbawm, e extremamente violento, sangrento e tenebroso e a perspectiva de um novo, sob um outro olhar.

Ensaio sobre a cegueira. José Saramago. Companhia das Letras. 2004. 28ª reimpressão.

Vamos imaginar o que teria se passado no imaginário de José Saramago para escrever sobre o tema da cegueira. Seria esta uma abordagem fácil ou difícil de se fazer? Creio que a imagem do final de século nos ajuda a entender o que se passava na mente do ilustre pensador e escritor. Um bom momento para fazer um balanço da nossa civilização. Uma balanço, não em retrospectiva, mas em perspectiva. A ideia de um progresso continuava a animar o povo ou nuvens sombrias e carregadas pairavam no ar, prestes a se precipitar. A esperança ainda fazia parte da caixa de Pandora, ou ela continha apenas males?

A epígrafe do livro também nos dá um bom indicativo das pretensões de Saramago com o seu Ensaio: "Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara". Livro dos Conselhos. O livro é da literatura portuguesa. Uma visão dialética e progressiva do fenômeno do olhar: olhar, ver e reparar. Não um olhar meramente mecânico, mas sim, e sempre, um olhar reflexivo. Um olhar que tem a sua origem ou raiz na profundidade do cérebro. Um olhar construído a partir de valores éticos. É por isso mesmo que o livro está inscrito entre os livros de ética.

Tudo começa num sinaleiro de esquina. Ao abrir-se para o verde, um carro não avança e atrapalha o tráfego. O motorista repentinamente ficara cego. Recebeu ajudas: teve o carro retirado do trânsito e foi levado para casa. Por óbvio, foi consultar um oftalmologista. Para irem ao consultório, não mais encontraram o carro no lugar deixado. O bom samaritano, o da caridade de tê-lo levado para casa, na verdade era um ladrão. O oftalmologista não encontrou causas no caso da cegueira de seu paciente. O aparelho da visão não sofrera nenhum tipo de lesão. Embora a situação ser gravíssima, menos mal, a cegueira não é doença de contágio. Mas, como logo veremos nas páginas seguintes, muitos cegos se encontravam num antigo manicômio, internados compulsoriamente. Já estavam ali, o primeiro cego e a sua mulher, o ladrão do carro, o médico que o atendera, sua mulher e a secretária do consultório, um menino estrábico e um cliente idoso com uma venda nos olhos, além de uma prostituta. Apenas a mulher do médico continuava a enxergar. Mais cegos continuavam a chegar e, logo todos os pavilhões estavam lotados.

As consequências da cegueira começam a se manifestar. Ainda existia um governo para cuidar da epidemia para que não se transformasse em pandemia. Evitava contatos, providenciava alimentação e distribuía os cegos pelos diversos pavilhões. Os primeiros cegos ocupavam o primeiro. A mulher do médico logo tomou a dianteira nas decisões. O que fariam com o ladrão do carro entre eles? Nos outros pavilhões, em um deles, juntaram-se as pessoas do mal. Apoderaram-se das caixas de comida e passaram a vendê-la aos demais. Primeiro por dinheiro e joias e depois, inimaginável, em troca das próprias mulheres. O que fazer?! E uma conclusão óbvia. A cegueira não melhorara os homens. A perversidade estava neles incrustada. Sujeiras e fedores se transformaram no novo habitat de todos. Pássaros passaram a ser os agentes sanitários. Já não havia mais governo que ditasse ou cuidasse da ordem. Tudo estaria ao deus dará.

Quando o caos se completara os cegos tratam da volta para casa. A sorte favoreceu o grupo da mulher do médico. A primeira providência a ser tomada era a de encontrar comida. A encontraram num porão de supermercado. As antigas residências foram todas visitadas, algumas ocupadas. Um cão, o das lágrimas, numa espécie de antecipação de o Achado, de A caverna, se associa ao grupo. O senso de propriedade ditava que não era justo, mas.... Instalam-se na casa do médico. A situação não se alivia. Uma chuva e alguma reserva de água lhes permite amainar a sede, tomar um banho e lavar as roupas. A comida se tornava cada dia mais escassa e quando a encontravam ela provocava vômitos. O caos diário indicava que a situação, dia após dia, piorava. O fim do mundo estava próximo. Os pregadores não cansavam de o anunciar. Entre as pregações também princípios de moralidade e de livre mercado eram anunciados. Sinais dos tempos.

Um prenúncio do final do romance é o momento em que todos começam a readquirir a visão. Muita troca de abraços e afetos. Mas o caos persistia. Para sobreviverem, muita organização seria necessária e a organização necessita de cooperação e participação. A organização é essencialmente coletiva. Organização coletiva era sinônimo de esperança e possibilidade de futuro. Ninguém seria capaz de sobreviver mantendo-se na autossuficiência e do espírito individualista e egoísta. Aliás, não teriam sido estes os princípios que os levaram à cegueira? E passadas mais de duas décadas do novo século, como vemos e enxergamos a situação do mundo? Devo dizer que as doutrinas políticas e econômicas em voga, pregadas quase em uníssono, nos levam ao aprofundamento da cegueira das desigualdades, da convivência harmoniosa, da miséria, da fome, da destruição ambiental e das guerras. Isso tudo sem falar da cegueira provocada pela expansão das chamadas redes sociais. Lembrando, esta cegueira, a do Ensaio, é uma cegueira branca.

Na contracapa do livro temos recomendação para a sua leitura e reflexões posteriores: "Cada leitor viverá uma experiência imaginativa única. Num ponto onde se cruzam literatura e sabedoria. José Saramago nos obriga a parar, fechar os olhos e ver.  Recuperar a lucidez, resgatar o afeto: essas são as tarefas do escritor e de cada leitor, face a pressão dos tempos e ao que se perdeu - 'uma coisa que não tem nome, essa coisa é o que somos'". Com certeza, um livro que deve ser lido junto ao imaginário e ao simbólico profundamente ativos.

E, como um antigo de professor de filosofia, não poderia terminar sem citar e recomendar o documentário Janela da alma, de João Jardim e Walter Carvalho. Sempre o utilizei em minhas aulas, com um impacto extraordinário. O que é a construção de um olhar, a construção de uma visão de mundo. O olhar, o ver e o reparar brotam da profundidade da dimensão do humano e da convivência harmoniosa. Caso contrário, o caos e o inferno da cegueira, a cegueira branca, a cegueira deste Ensaio.

Deixo ainda com vocês as duas resenhas anteriores dos livros de Saramago, os dos temas religiosos. O Evangelho segundo Jesus Cristo.

http://www.blogdopedroeloi.com.br/2024/08/o-evangelho-segundo-jesus-cristo-jose.html

E Caim, o seu acerto como Antigo testamento.

http://www.blogdopedroeloi.com.br/2024/08/caim-jose-saramago.html

sexta-feira, 30 de agosto de 2024

CAIM. José Saramago.

Nas minhas releituras de Saramago, me havia proposto a fazê-lo pela ordem de sua escrita. Não cumpri com essa minha intenção, depois de ler O Evangelho segundo Jesus Cristo. Optei por ficar com o tema da religião, com Caim, o seu acerto de contas com o antigo ou o primeiro testamento. Este livro é do ano de 2009. No meu entendimento ele é ainda mais ácido, em sua crítica, do que o Evangelho. A leitura desses dois livros é de fundamental importância para quem quiser minimente lançar um olhar sobre os pilares de nossa civilização, a dita civilização ocidental e cristã, ou judaico-cristã, fora das pregações religiosas.
Caim. José Saramago. Companhia das Letras. 2009.

A leitura de Caim implica num bom conhecimento bíblico, no caso, do Antigo Testamento, dos fatos ali narrados. Como sou de formação católica e não cheguei até o curso de teologia, eu os conheço apenas por ouvir falar e outras fontes, sempre religiosas. Se excetuam alguns fatos em que a curiosidade me levou à leitura. Trago comigo uma edição da Bíblia, da editora Ave Maria, que comprei em meados da década de 1960, numa livraria das irmãs paulinas, no centro de Porto Alegre. Uma edição do ano de 1964, 5ª edição. A mantenho como fonte para consultas.

Esse acerto de contas com o Antigo Testamento tem como personagem central Caim, aquele que matou o seu irmão Abel. Na visão de Saramago Caim não era tão mau, como e quanto sempre é pintado. Abel, diríamos numa linguagem dos tempos atuais, lhe praticava bullyng. Lhe tirava sarro pelo fato de Deus não aceitar os seus sacrifícios, ao contrário dos seus, motivo para auto exaltações E como as interrogações sempre incomodam, Saramago lança uma bem implicante. Quais seriam as razões para que Deus aceitasse apenas os sacrifícios de Abel. Questões de preferência, de ciúmes? Se o personagem é Caim, a intenção do livro é bem maior do que o personagem. A intenção de Saramago é, certamente,  a grande interrogação sobre os motivos da criação dos homens. O Deus Criador (tudo minúsculo em Saramago) parece ser alguém sempre mal humorado ou mesmo do mal, sim, mais do mal do que mal humorado.

Começa com os castigos impostos a Adão e Eva, pelo pecado cometido, ainda no paraíso. Qual mesmo? O da curiosidade. Comeram o fruto da árvore do conhecimento. Seriam iguais a Deus, ideia para Ele insuportável. E vejam o tamanho do castigo, além de desproporcional. "A partir de agora acabou-se-lhes a boa vida, tu, eva, não só sofrerás todos os incômodos da gravidez, incluindo os enjoos, como parirás com dores, e não obstante sentirás atracção pelo teu homem, e ele mandará em ti, Pobre eva, começas mal triste destino vai ser o teu, disse eva. Devias tê-lo pensado antes, e quanto à tua pessoa, adão, a terra ficou amaldiçoada por tua causa, e será com grande sacrifício que dela conseguirás tirar alimento durante toda a tua vida, só produzirá espinhos e cardos, e tu terás de comer a erva que cresce no campo, só à custa de muitas bagas de suor conseguirás arranjar o necessário para comer, até que um dia te venhas a transformar de novo em terra"...

Pelo visto, Deus não economizou nos castigos, a começar pelo fim da boa vida no paraíso. Para a mulher mais: dor e incômodos da gravidez e do parto; repetição dessa dor pelo desejo e a submissão ao homem e, para Adão o tripalium, ou o trabalho como castigo. Vejam os fundamentos da tal da cultura ocidental. Ela começou com uma mácula original, da qual todos nós somos herdeiros. Logo após, lhes vem a briga entre os filhos Caim e Abel.  Deus não tem comiseração por Caim. Lhe deixa uma marca na testa e o obriga a peregrinar errante pela terra, em troca da vida. 

Para Saramago já havia outros homens habitando a terra. A partir desse momento, o das peregrinações de Caim, encontraremos o que já anunciamos, o fio condutor da narrativa: Aí estará o encontro com Lilith, com quem estabelecerá uma "festa dos corpos"; as histórias de Abraão e o sacrifício de Isaac (Só que será Caim a segurar a mão de Abraão); a torre de Babel e o desentendimento entre os homens e a insuportável ideia para Deus de que os homens o alcançassem e o temor de suas inteligências; a destruição de Sodoma e Gomorra, onde nem dez inocentes seriam encontrados (nem mesmo as crianças); a fúria de Moisés e de Josué no episódio do bezerro de ouro e na guerra com os madianitas e a partilha dos despojos (Deus será invocado como o Senhor dos exércitos e das guerras); a destruição de Jericó; o pacto entre Deus e o Diabo sobre o teste de fidelidade de Job (Ah se Kierkegaard pudesse ter lido esse livro!); por fim, o seu projeto de arrependimento da criação dos homens e a sua destruição pelo dilúvio. Mas esse episódio merece uma atenção especial

A humanidade teria um recomeço. Tudo e todos seriam destruídos, menos os de interior da arca. Entre eles também estava Caim. Seria uma nova criação da humanidade. Ela teria um novo pai, uma nova família. Um modelo de família (Seria como as apregoadas hoje em dia?). Noé, seus filhos e filhas encarnariam os valores dessa nova constelação familiar. Meio ou muito complicado. Embriaguez, promiscuidade, o comportamento da mulher, do próprio Noé.... Mas como diz o padre Amaro, aquele do crime, no romance de Eça de Queiroz, - a moral existe para ser pregada e não para ser praticada... - Um belo recomeço de tudo! Os dois últimos capítulos, os de número 12 e 13, pertencem necessariamente ao rol das páginas mais irônicas e sarcásticas da literatura universal.

Ao final, um duro embate entre Deus e Caim; "Então a nova humanidade que eu tinha anunciado. Houve uma, não haverá outra e ninguém dará pela falta, Caim és, e malvado, infame matador do teu próprio irmão, Não tão malvado e infame quanto tu, lembra-te das crianças de sodoma. Houve um grande silêncio. depois caim disse, Agora já podes matar-me, Não posso, palavra de Deus não volta atrás, morrerás da tua natural morte na terra abandonada e as aves de rapina virão devorar-te a carne, Sim, depois de tu primeiro me haveres devorado o espírito. A resposta de deus não chegou a ser ouvida, também a fala seguinte de caim se perdeu, o mais natural é que tenham argumentado um contra o outro uma vez e muitas, a única coisa que se sabe de ciência certa é que continuaram a discutir e que a discutir estão ainda. A história acabou, não haverá nada mais que contar". Para a contar, Saramago precisou apenas de 172 páginas.

A verdadeira raiva e ódio de Caim não era de Abel, o seu irmão, mas de  deus, uma vez que este não aceitara os seus sacrifícios. Mas este seu intento não se concretizou. Se isso fosse possível, aí sim poderíamos ter tido uma outra civilização. Deixo ainda as orelhas do livro:

"Se, em O Evangelho segundo Jesus Cristo, José Saramago nos deu sua visão do Novo Testamento, neste Caim ele volta aos primeiros livros da Bíblia, do Éden ao dilúvio, imprimindo ao Antigo Testamento a música e o humor refinado que marcam sua obra. Num itinerário heterodoxo, Saramago percorre cidades decadentes e estábulos, palácios de tiranos e campos de batalha, conforme o leitor acompanha uma guerra secular, e de certo modo involuntária, entre criador e criatura.

Para atravessar esse caminho árido, um deus às turras com a própria administração colocará Caim, assassino do irmão Abel e primogênito de Adão e Eva, num altivo jegue, e caberá à dupla encontrar o rumo entre as armadilhas do tempo que insistem em atraí-los. A Caim, que leva a marca do senhor na testa e portanto está protegido das iniquidades do homem, resta aceitar o destino amargo e compactuar com o criador, a quem não reserva o melhor dos julgamentos. Tal como o diabo de O evangelho, o deus que o leitor encontra aqui não é o habitual dos sermões: ao reinventar o Antigo Testamento, Saramago recria também seus principais protagonistas, dando a eles uma roupagem ao mesmo tempo complexa e irônica, cujo tom de farsa da narrativa só faz por acentuar.

A volta ao tema religioso serve, também, para destacar o que há de moderno e surpreendente na prosa de Saramago: aqui a capacidade de tornar nova uma história que conhecemos de cabo a rabo, revelando com mordacidade o que se esconde nas frestas dessas antigas lendas. Munido de ferina veia humorística, Saramago descreve uma estranha guerra entre o homem e o senhor. mais que isso, investiga a fundo as possibilidades narrativas da Bíblia, demonstrando novamente que, ao recontar o mito e confrontar a tradição, o bom autor volta à superfície com uma história tão atual e relevante quanto se pode ser".

Deixo também a outra obra de Saramago sobre o tema religioso. O Evangelho segundo Jesus Cristo.





sexta-feira, 23 de agosto de 2024

O Evangelho segundo Jesus Cristo. José Saramago.

Na continuidade de minhas releituras de José Saramago chegou a vez daquele que eu considero como o seu mais importante livro. O Evangelho segundo Jesus Cristo. Seria uma autobiografia? Talvez sim, pois, Saramago procura penetrar no âmago da subjetividade de Jesus e expor todas as dúvidas e angústias que o "Filho do Homem" sentiu e sofreu, sem entender direito qual a missão que lhe fora reservada por seu Pai. Seu Pai, não o carpinteiro José, mas sim, o próprio Deus. Tema de difícil e delicada abordagem, fundamento maior da cultura ocidental. O livro é do ano de 1991. O seu título de Nobel da Literatura é do ano de 1998. O título também poderia ser, sem dúvida, O Evangelho segundo José Saramago.

O Evangelho segundo Jesus Cristo. Companhia das Letras. 1999. 21ª reimpressão.

De uma questão tratada ao final do livro, tomo a razão de ser do mesmo. A cena envolve um diálogo de Jesus com os discípulos, também eles interessados em entender a missão de Jesus: "Que quer Deus, afinal, perguntou João. Quer uma assembleia maior do que aquela que tem, quer o mundo todo para si, Mas se Deus é senhor do universo, como pode o mundo não ser seu, e não desde ontem ou amanhã, mas desde sempre, perguntou Tomé, Isso não sei, disse Jesus,"... (p. 435). A dúvida ou as dúvidas de Jesus perpassam todo o livro e aponto, desde já, para o capítulo de número 22 (páginas 363 a 400), onde a questão é especificamente tratada. No meu modesto modo de ver, são estas páginas, seguramente das mais impactantes da literatura universal. Voltaremos à questão.

Para começar, uma questão de contextualização. No tempo de Jesus, a região habitada pelo povo hebreu estava sob a dominação do Império Romano, em aliança com os sacerdotes do Templo de Jerusalém, vivendo assim, sob uma dupla dominação. A libertação do povo era um desejo dominante entre os judeus e a aparição de "libertadores" desse jugo era bastante comum. Após a morte de Jesus, os discípulos continuaram a sua missão. A propagação, ou aquele "quer o mundo todo para si", teve grande impulso com Paulo, o chamado apóstolo dos gentios, isto é, do povo não judeu. Para explicar para esses novos adeptos da religião em expansão é que foram escritos os Evangelhos. Isso a partir dos anos 70 d.C., quando o centro dessa religião já tinha se transferido para Roma. Assim, essas versões já estavam um tanto distantes e não concomitantes aos fatos históricos. O Evangelho segundo Jesus Cristo, não foi escrito para os seguidores, mas para o mundo inteiro refletir sobre a doutrina que se transformou num dos pilares da civilização ocidental. Provocar reflexões, com certeza, foi o objetivo maior desse livro monumental.

No Evangelho segundo Jesus Cristo, chama muito a atenção o título com o qual Jesus sempre se apresentava, o "Filho do Homem", não de José, mas também dele. Um Jesus profundamente humano, que viveu todos os dramas humanos, com as suas doçuras e agruras, alternando momentos de intensa alegria e satisfação com os de profundas e imensas dores e tristezas. Momentos de obediência à religião herdada, com momentos de corajosa rebeldia, a tal ponto de, já aos 12 - 13 anos de idade, abandonar a sua mãe, já viúva, pois José morrera crucificado sob o jugo romano, quando fora acudir um vizinho seu. O motivo de sua rebeldia é uma das reflexões condutoras desse seu Evangelho. Trata-se da ordem de Herodes de mandar matar todas as crianças nascidas em Belém e que tivessem menos de três anos. Eram em torno de 25, essas crianças.

Acontece que José, estando no Templo, ouviu dos soldados que esta ordem de execução fora dada aos soldados romanos. Qual foi então a sua atitude? Ele tratou de salvar o seu filho, apenas o seu, ao não comunicar a ordem de execução aos demais pais da cidade de Belém. O Jesus menino, na ocasião foi salvo por haver nascido numa gruta, fora do âmbito urbano. De uma forma ou de outra, Jesus ficou sabendo desse episódio. Todas as noites tinha sonhos horríveis. Acordava com profundos sentimentos de culpa. Isso o leva a querer reconstituir o seu passado, abandonando a casa de sua mãe e de seus irmãos. Irá discutir com os escribas do Templo, viver no pastoreio de ovelhas sob o comando de Pastor (o demônio - observem o detalhe), visitar o local de nascimento e conversar com a escrava Zelomi, que ajudara a sua mãe no seu parto. Em suas andanças, a culpa será a sua mais fiel companheira.

Na volta para casa, após quatro anos, tem os seus pés em chagas e pede ajuda em uma casa em Magdala, já nas proximidades de Nazaré. Lá é atendido por Maria, a Maria de Magdala, prostitua de profissão. São, mais uma vez, na minha modesta opinião, das páginas mais cheias de beleza, amor e ternura da literatura universal, as que ali são descritas. Após ter cuidado dessas feridas, lhe foram abertas as feridas do amor, da paixão e da saudade. Após breve visita à mãe e aos irmãos, que não reconhecem a missão, da qual Jesus já tinha alguma noção, se retira definitivamente de sua casa e volta para Maria de Magdala. Esta, que já abandonara a sua profissão, será a companheira de todas as horas de Jesus. 

Por óbvio, não vou fazer uma síntese, passo a passo, do livro. O que eu quero é exaltar os trechos que me foram os mais significativos. Por isso volto ao já enunciado capítulo 22. Mas, antes ainda, quero salientar a beleza das conhecidas cenas da multiplicação dos pães e peixes, da transformação da água em vinho, nas bodas de Caná e do sermão das bem-aventuranças. Nesse capítulo, o de número 22, Deus explicita a missão que destinou a Jesus, qual seja, um reino de glórias em troca de sua vida, por uma horrível e ignominiosa morte. Um reino futuro, porém.

Nesse capítulo Saramago nomeia os custos dessa vontade de Deus, em não mais querer ser o Deus de apenas um povo, mas de ser o Deus de todos os povos, o Deus universal. Em perspectiva, Saramago enuncia o sacrifício de tantos santos mártires, das Cruzadas, da Inquisição, vidas em isolamento, jejuns e autoflagelação. Jesus até ousa a pergunta se os deuses dos outros povos aceitariam tudo isso de forma passiva e pacífica. Nesse capítulo Saramago reúne Deus, o Pastor (lembram - o demônio, com quem Jesus trabalhara) e o próprio Jesus. São quarentas dias de encontro em uma barca. Numa cena de muita força o demônio procura uma reconciliação com Deus, prometendo renunciar ao seu ministério, se Deus também renunciasse ao seu projeto de extensão de sua religião, pacto ao qual Deus se recusa a aceitar. Destaquei um pequeno trecho: 

"Não me aceitas, não me perdoas. Não te aceito, não te perdoo, quero-te como és, e, se possível, ainda pior do que és agora, Porquê, Porque este Bem que eu sou não existiria sem esse Mal que tu és, um Bem que tivesse de existir sem ti seria inconcebível, a um tal ponto que nem eu posso imaginá-lo, enfim, se tu acabas, eu acabo, para que eu seja o Bem, é necessário que tu continues a ser o Mal, se o Diabo não vive como Diabo, Deus não vive como Deus, a morte de um seria a morte do outro, É a tua última palavra. A primeira e a última, a primeira porque foi a primeira vez que a disse, a última porque a não repetirei" (páginas 392-393). Não lembra Nietzsche e O nascimento da tragédia?

Talvez seja por isso que nas orelhas do livro, ele é apresentado como escrito com "socrática agudeza e voltaireana ironia". Vejamos o contexto: "... Na que é de justiça reconhecer a melhor prosa de ficção da língua portuguesa de nossos dias, José Saramago nos conta mais uma vez a mesma história que vem sendo contada há tantos séculos. A mesma? Sim, se tiver em vista tão só os personagens e os sucessos da fábula. Não, se se atentar para a nova carnadura de que aqui se revestem. Interessado menos na onipotência do divino que na frágil mas tenaz resistência do humano, a arte magistral de Saramago excele no dar corpo às preliminares e à culminância do drama da Paixão, presentificando-lhe as cores, cheiros, sons, movimentos, esmiuçando-lhe as ambiguidades e implicações em busca de significados recônditos por sob os ostensivos. Leiam-se, a título de exemplo de presentificação, as páginas de bravura que pintam os sacrifícios de sempre no Templo de Jerusalém. E onde melhor exemplo de esmiuçamento crítico que as páginas de socrática agudeza e voltaireana ironia acerca do debate travado entre Deus e o Diabo na barca perdida em meio ao nevoeiro de quarenta dias?

Mas é bom ver que nessa agudeza não há soberba de espírito, nem há desencanto do mundo nessa ironia: há lucidez e compreensão do humano, demasiadamente humano. O cognome de Filho do Homem que o Messias se dava adquire uma plenitude de sentido que o leitor não terá dificuldade em compreender se atentar para o que acontece aqui com o carpinteiro José, para o pedido de Cristo faz a Judas pouco antes de ser crucificado, e para as últimas palavras que diz de olhos voltados para o céu. Compreendido isso, será mais fácil entender por que este evangelho tem o título que tem".

E..., a cena final, na qual as interrogações continuam: "Depois, foi morrendo no meio de um sonho, estava em Nazaré e ouvia o pai dizer-lhe, encolhendo os ombros e sorrindo também, Nem eu posso fazer-te todas as perguntas, nem tu podes dar-me todas as respostas. Ainda havia nele um resto de vida quando sentiu que uma esponja embebida em água e vinagre lhe roçava os lábios, e então, olhando para baixo, deu por um homem que se afastava com um balde e uma cana ao ombro. Já não chegou a ver, posta no chão, a tigela negra para onde o seu sangue gotejava". Lembrando que essa emblemática tigela negra está onipresente ao longo de todo o livro.

Deixo ainda a resenha de dois livros sobre o tema Jesus. De frei Betto, o Jesus militante

http://www.blogdopedroeloi.com.br/2024/07/jesus-militante-o-evangelho-e-projeto.html

E de Reza Aslan Zelota - a vida e a época de Jesus de Nazaré.

http://www.blogdopedroeloi.com.br/2024/07/zelota-vida-e-epoca-de-jesus-de-nazare.html


quarta-feira, 21 de agosto de 2024

O ano da morte de Ricardo Reis. José Saramago.

Nas minhas releituras de José Saramago, chegou a vez de O ano da morte de Ricardo Reis. Conforme uma pequena anotação ao final da última página, a de 428, terminei esta primeira leitura no dia 7 de agosto de 2010. Por uma incrível quase coincidência de datas, ao menos quanto ao dia e ao mês, terminei a releitura em oito de agosto de 2024. Este livro teve a sua publicação no ano de 1984, depois de Levantando do chão (1980) e Memorial do convento (1982).

O ano da morte de Ricardo Reis. José Saramago. Companhia das Letras.

Creio que não posso fazer esta resenha sem antes falar um pouco de Fernando Pessoa, o grande e notável poeta português (1888- 1935). Em seus escritos ele inventou o artifício de usar heterônimos, creio que mais por brincadeira do que de se esconder sob o nome de outros. A sugestão de ter sido por brincadeira me veio porque li, que ele usou desse expediente, desde a infância. Deixo aqui, os quatro heterônimos que aparecem com maior frequência: Alberto Caeiro, Álvaro de Campos, Bernardo Soares e Ricardo Reis. Ao todo, contei mais de trinta. Pronto. Está dada a primeira pista para a leitura do livro O ano da morte de Ricardo Reis.

Numa rápida busca no Google encontrei a razão para os diferentes nomes: as diferentes temáticas. Assim, para Ricardo Reis, uma criação do ano de 1913, estavam reservados os temas que falavam de paganismo, de enfermidades e de amores idealizados. Conforme o próprio livro de Saramago, ele nascera na cidade do Porto em 1887, estudara com os jesuítas e era formado em medicina. Ainda vi que, politicamente ele era defensor da monarquia e das tradições. Hoje diríamos, ser ele da direita, um conservador. Isso ajuda a explicar as suas posições, ao longo dos acontecimentos do ano de 1936, que é o ano de sua morte, um ano após a morte de Fernando Pessoa. Em 1917, após conflitos em Portugal, ele viera ao Brasil, onde, sem grandes envolvimentos políticos ou sociais, exerceu a medicina até o ano de seu retorno a Portugal, o ano de 1936.

1936. Que ano! Que ano tenebroso. O romance nos dá uma pista de que a sua volta para Portugal se deu por causa da Intentona Comunista de 1935 no Brasil, embora ele não tivesse nenhum envolvimento ou motivo especial para essa sua volta. O real motivo, ao certo, tudo indica, nem mesmo ele o sabia, pois nem mesmo sabia se ficaria em Portugal, se voltaria ao Brasil e se ficasse em Portugal, o que haveria de fazer, a que ofício se dedicar. Tanto assim, que fica hospedado no Hotel Bragança, em completa ociosidade por cerca de três meses. Opa!, já entramos no enredo.

Mas, voltando ao ano de 1936, vamos dar uma rápida olhada na conjuntura europeia desse ano. Portugal, Espanha, Alemanha, Itália e França. Tempo de Luta de Classes e de autoritarismos. Tempos de Salazar, da Guerra Civil Espanhola. Tempos de Mussolini e de Hitler. E um médico absolutamente indiferente e alheio aos acontecimentos, mas a quem os fatos começam a incomodar e trazer desconforto. No Hotel Bragança, uma única perturbação. Ou melhor, uma intimação para comparecer à polícia política, para lhe tomar informações. Uma invasão de privacidade, no seu entendimento. A espionagem paira no ar e ela lhe faz mal, muito mal. Ele deveria ser um cidadão acima de qualquer suspeita. Sua vida era absolutamente pacata, resumindo-se aos personagens do hotel.

Ali é um bom hóspede, de boas posses e boas gorjetas e de fino trato, muito educado para com todos. Dois personagem afloram: Lídia, a camareira e Marcenda, uma bela e rica menina de Coimbra, com um defeito na mão esquerda, motivo que a traz a Lisboa, junto com o seu pai, já viúvo. Este virá por outro motivo. E..., sim, Fernando Pessoa. Este o visita constantemente. Ele tinha o consentimento de, por um ano, voltar para encontrar-se com as pessoas. Inúmeros diálogos e muita ironia. Bom, creio que temos assunto, mais do que suficiente. Tem ainda uma visita a Fátima, sem milagres à vista.

A parte final do livro se ocupa da situação portuguesa sob Salazar e dos acontecimentos que levaram à Guerra Civil Espanhola, após o golpe militar de Franco, a se digladiar com as forças da República Popular. O irmão de Lídia, a camareira, é da marinha portuguesa e irá participar de uma rebelião, que logo será contida. O romance não tem conclusões, nem de histórias começadas, nem de defesa de ideologias. Mas o que não falta são elementos trazidos para a reflexão, além de um clima de mal-estar que se reflete no semblante dos personagens. E uma notável frase em epígrafe, melhor, duas: "Sábio é o que se contenta com o espetáculo do mundo", de Ricardo Reis e "Escolher modos de não agir foi sempre a attenção e o escrúpulo da minha vida". Esta, de Bernardo Soares. Seria uma síntese do médico Ricardo Reis, em sua volta a Lisboa, a Portugal e a Europa violentamente conturbada.

Nas orelhas do livro temos um belo texto assinado por Leila Perrone-Moisés: "Fernando Pessoa morreu em 1935. Seus alter egos ou heterônimos não morreram todos na mesma data. Alberto Caeiro já havia falecido há vinte anos; Álvaro de Campos e Ricardo Reis continuavam vivos em 35, já que seu criador não os havia 'matado'. A obviedade dessa sobrevivência escapou a todos que choraram e choram a morte total de Pessoa. A todos, não. José Saramago deu pela coisa e foi ver o que teria acontecido com um dos sobreviventes.

Que foi que ele descobriu? Descobriu que, um mês depois da morte de Pessoa, Reis que estava auto-exilado no Rio de Janeiro, regressou a Lisboa. Viveu ali todo o ano de 1936, ano crucial para a política portuguesa e europeia; instalação da ditadura salazarista, prenúncios da Guerra Civil espanhola, ascensão de Hitler e Mussolini. Adepto de uma filosofia céptica, baseada na renúncia à ação e no aperfeiçoamento interior do indivíduo. Reis percebe então que não é fácil permanecer alheio ao mundo. No terreno individual, o Destino lhe prega algumas peças. Quanto ao 'espetáculo do mundo', este se apresenta demasiadamente inquietante para que ele possa contemplá-lo com indiferença. Paralisado na inação, atormentado com o que lhe acontece e acontece ao mundo, o médico-poeta vive esses meses em abatimento e solidão. E, para complicar as coisas, o fantasma de Fernando Pessoa vem procurá-lo, para travar com ele instigantes conversas.

O romance de Saramago, prende o leitor da primeira à última linha, quer esse leitor seja ou não um 'pessoano'. Porque é uma obra com qualidades próprias. Baseado numa minuciosa pesquisa histórica, o texto de Saramago é uma reconstituição de época extraordinariamente viva, sem nenhum ranço de erudição documental.

Mais do que um simples jogo literário, que por si só já seria fascinante, a criação prosseguida da ficção heteronímica resulta aqui numa reflexão sobre a identidade portuguesa e, segundo o autor, numa 'contribuição para o diagnóstico da doença nacional'. Como verdadeiro artista que é, Saramago abstém-se, porém, de julgamentos explícitos, de prognósticos ou lições. O tema delicado da 'alienação' política de Pessoa é por ele tratado com dedos leves e certeiros.

Essa é uma obra à altura de Ricardo Reis. E, conhecendo-se essa altura, poucos seriam capazes de a enfrentar sem vertigem". E eu acrescentaria: uma obra para leitores.

Deixo ainda a resenha anterior, a do livro Memorial do convento, de 1982.

http://www.blogdopedroeloi.com.br/2024/08/memorial-do-convento-jose-saramago.html

 

sexta-feira, 9 de agosto de 2024

Memorial do Convento. José Saramago.

Continuo a saga da releitura de José Saramago. Em 30 de julho de 2010, como apontado ao final do livro, eu terminava a leitura de Memorial do convento, o seu livro publicado no ano de 1982. Hoje, dia 3 de agosto de 2024, terminei a releitura. O impacto continua o mesmo como o da primeira leitura. Trata-se, a exemplo de Levantando do chão, de uma viagem por Portugal. Se por Levantando do chão conhecemos os latifúndios e os sofrimentos por eles provocados aos trabalhadores na região de Évora, com o Memorial do convento vamos ter um encontro com trabalhadores, milhares de trabalhadores, livres e forçados, todos empenhados na monstruosa e medonha construção.

Memorial do convento. José Saramago. Bertrand Brasil. 2010.

Nos meus anos de seminário eu cantava no coral. Além do hino do Vaticano, me lembro que cantávamos os sinos de Mafra, em que as vozes imitavam os badalos. Já nos primeiros ensaios, vim saber que em Mafra (SC.) não havia sinos famosos. Fui descobri-los em Portugal e, pelo livro de Saramago, fiquei sabendo serem eles mais de cem. O convento foi do tempo em que Portugal podia sustentar essa verdadeira loucura. O ouro, o comércio de escravos e das especiarias, ou dito de forma mais simples, as colônias tudo pagariam. Coube ao arquiteto alemão João Frederico João Ludovice o seu desenho, mas que na execução foi muito aumentado. De 80 monges residentes quis o rei, 300. Isso para demovê-lo da ideia da reprodução da basílica de São Pedro, a de Roma, em Lisboa. 

A construção do convento tem a sua origem no cumprimento de uma promessa de D. João V (1689 - 1750 e rei a partir de 1706, até o fim de sua vida). Ele era casado com a princesa austríaca D. Maria Ana. Em troca da fertilidade dela (Do homem jamais se duvidava), o convento seria erguido ad maiorem Dei gloriam. Ao nascer a infanta Maria Bárbara, as obras iniciaram. Isso era no ano de 1717. A inauguração festiva, nos conta, tanto Saramago como a Wikipédia, ocorreu em 22 de outubro de 1730, levando mais dez anos ainda, para as obras estarem concluídas.

Mas não é apenas isso. Também há o padre Bartolomeu Lourenço, de Gusmão, depois de doutorado concluído em Coimbra. Era brasileiro esse padre Voador, pois voar era o seu intento. Também há Baltasar Mateus, o Sete-Sóis, maneta por motivo de guerra com os espanhóis. E há ainda Blimunda, que para complementar o Sete-Sóis, de Sete-Luas passou a ser chamada. E há a inquisição e as grandes solenidades do Santo Ofício, que já levara a mãe de Blimanda e também já andava no encalço do padre Voador, pois voar era contra a vontade de Deus, senão a Dele, ao menos a de seus representantes. Estes três celebraram um pacto, o de construir, sob segredo, a engenhoca voadora. E, de fato voaram. Isso é o que nos conta Saramago. Sobrevoaram a cidade de Mafra. para cujo povo, fora o Espírito Santo que baixara.

A fuga do padre de seus inquisidores se deu por via aérea, da qual os três se saíram bem. O padre sumiu, para mais tarde reaparecer em Toledo, na Espanha. O casal mantém o segredo, do qual apenas um músico italiano compartilhava. Sete-Sóis cuida da manutenção da engenhoca, que um dia voa junto com ele e simplesmente desaparecem - para nove anos de peregrinação de Blimunda, atrás da jeringonça e do marido. Muitos fatos se sucedem nesses anos, até que finalmente, num Auto de Fé, em Lisboa, encontrar Sete-Sóis ardendo em fogueira. E, lá se foram 25 capítulos, ao longo de 347 páginas, de muita história, ironia e diversão. 

Na contracapa uma síntese: "Era uma vez um rei que fez promessa de levantar um convento em Mafra.

Era uma vez a gente que construiu esse convento.

Era uma vez um soldado maneta e uma mulher que tinha poderes.

Era uma vez um padre que queria voar e morreu doido.

Era uma vez".

Na orelha da contracapa encontramos outra síntese, na parte final do texto de José J. Veiga: "A pretexto de escrever um livro sobre a história da construção de um convento em Mafra no século XVIII, Saramago inventou uma história outra, na qual entram outras famílias inesquecíveis, a dos Sete-Sóis e a das Sete-Luas, e mais o padre Bartolomeu de Gusmão com sua passarola e o compositor Scarlatti com seu órgão e sua música, e mais reis e rainhas e princesas, e mais uma pedra descomunal que precisa ser transportada a longa distância, e o que acontece durante o transporte. Que pretende Saramago com seus livros poderosos? Para mim, isto: fazer o que fez Homero antes dele, isto é, escrever histórias aparentemente reais mas inventadas com tanta competência que depois de lidas passam a ser reais e a fazer parte da longa e sofrida experiência humana".

Para nós cabem apenas os prazeres da sua leitura e releitura, como a que acabo de fazer. Saramago é Nobel de Literatura do ano de 1998.

Deixo ainda ainda a resenha de Levantando do chão:

http://www.blogdopedroeloi.com.br/2024/08/levantando-do-chao-jose-saramago.html. E como um dos temas do livro é a inquisição na Península Ibérica, vai aqui também a resenha de um memorável livro sobre ela.

http://www.blogdopedroeloi.com.br/2024/07/inquisicao-o-reinado-do-medo-toby-green.html

 

domingo, 4 de agosto de 2024

Levantando do chão. José Saramago.

O meu propósito da vez. Reler as principais obras de José Saramago. Com uma peculiaridade. Pela ordem de escrita. Assim o primeiro livro da lista foi Levantando do chão, uma publicação do ano de 1980. A primeira leitura da obra, eu a terminei em 03.09.2010 e hoje, 29.07.2024 terminei a releitura. Me lembro perfeitamente que na primeira leitura essas obras iniciais do Nobel me impressionaram profundamente, a tal ponto de praticamente ler a sua obra por completo.

Levantando do chão. José Saramago. Bertrand Brasil. 2009.

Em meio a releitura eu fiz uma breve interrupção para, em minha chácara em Campo Magro, plantar um pequeno pomar. Algo em torno de 50 mudas de árvores frutíferas, cítricas em sua maioria. Fiz tudo com muito cuidado. Devo dizer que não fiz tudo sozinho. Contei com ajudas. Fizemos alinhamentos, amanhamos a terra, abrimos covas, as enchemos com terra preta até pela metade, depois as completamos com adubo (bosta de ovelha), fui ao CEASA comprar as mudas e, finalmente, o plantio. Ainda não terminei. Enquanto isso eu pensava no significado de Levantando do chão. Por favor, não pensem mal de mim. Eu explico.

Eu não possuo nenhum latifúndio, apenas disponho de uma pequena chácara que, por sinal, tem uma placa, anunciando que se trata do Jardim de Epicuro. Sim, o meu particular Jardim de Epicuro. Agora sim posso dizer que o grande tema de Levantando do chão é o latifúndio, que no dizer do escritor é mal não menor do que o mal das guerras e dos Leviatãs dos mares. Delimitando um pouco, o livro trata do latifúndio em Portugal, ao longo do século XX, na monarquia, na república e na ditadura do regime de Salazar. Termina com a Revolução, aquela dos Cravos, de 25 de abril de 1974. Também há uma regionalização do espaço do latifúndio: O Alentejo, Évora mais particularmente. Sendo ainda mais preciso, uma pequena vila do interior: Monte Lavre.

Uma rápida consulta ao Google nos diz o que segue, sobre a questão agrária após a Revolução: "A Revolução dos Cravos marcou o início de uma nova era para Portugal, caracterizada pela realização de transformações profundas como as nacionalizações; as ocupações de terras, a reforma agrária, a formação de cooperativas e grandes unidades coletivas agrícolas; o controle e a gestão de empresas pelos trabalhadores". Creio ser esta uma bela ilustração. É a este despertar que o escritor quer simbolizar com o seu Levantando do chão.

O romance inicia com uma monumental frase em epígrafe. Ela é do escritor romântico, Almeida Garrett: "E eu pergunto aos economistas políticos, aos moralistas, se já calcularam o número de indivíduos que é forçoso condenar à miséria, ao trabalho desproporcionado, à desmoralização, à infância, à ignorância crapulosa, à desgraça invencível, à penúria absoluta, para produzir um rico". As perguntas, os questionamentos sempre incomodam. Bem, assim está iniciado o romance. O latifúndio em Portugal ao longo do século XX. Mas ele começou bem antes.

Ele começou quando em Portugal chegaram os Dagobertos, os Albertos, os Humbertos e outros Bertos. De olhos bem azuis. Para eles, a propriedade privada da terra estava inscrita nas leis de Deus. Ao menos era isso o que dizia o padre Agamedes, sempre a conciliar em favor da ordem estabelecida, em troca de promessas no distante e incerto outro mundo, o mundo do além. Assim já era antes de 1910, sob o império da monarquia e assim o seria com a república, que de pública tinha apenas a promessa. E assim como no Brasil, conseguiu ser igual ou ainda pior que a monarquia. E tudo piorou sob a ditadura de Salazar, tão violenta como o foram os tempos da inquisição, que se dizia santa. Contra as reivindicações dos trabalhadores, o padre Agamedes invocava a Santíssima Trindade da ordem estabelecida: A Igreja, o latifúndio e o Estado, sendo este representado pela guarda, sempre bem armada.

Do outro lado, temos a saga da família Mau-Tempo, em tempos de intempérie. Começou com Domingos, o desencontrado. Continuou com João e a filha Gracinda, esta casada com Manuel Espada. Com Manuel e os companheiros, entre eles um mártir, as prisões e as torturas se tornaram parte do cotidiano. Mas os camaradas não se entregavam e muito menos entregavam os companheiros camaradas. Das profundezas dos abismos buscavam forças e como do chão viam subirem as forças da vida, do alimento que lhes faltava, também eles encontravam forças e celebravam, em alegrias não dimensionadas as pequenas vitórias: De 22 escudos passaram para 33, a idade de Cristo. E de 33 foram para 40. E já não mais trabalhavam de sol a sol, mas apenas (apenas) 8 horas diárias. E os Bertos reclamavam: sobrava tempo para maquinações e vadiagem. E os guardas se tornavam cada vez mais incansáveis na caça aos temíveis comunistas, os comedores de criancinhas, os inimigos da civilização. João e Gracinda, pai e filha, tinham os olhos muito azuis, uma marca dos Bertos, que além do latifúndio, também se arrogavam outras propriedades.

Além da crítica social, da denúncia das inconcebíveis injustiças da fome e da fadiga, da doença e da conformidade como eternas companheiras, há a presença da esperança, sempre no imaginário e no horizonte e juntos se fortalecem, se erguem do chão com a força da linguagem, bem deles e distante das prédicas de padre Agamedes. Esta linguagem que tão bem entenderam lhes deu a necessária força para, a exemplo das forças de vida que se levantam do chão, para também eles se erguerem e viverem os novos tempos de transformação, acima de tudo brotada da consciência de sujeitos, que não mais se submeteriam às forças da sujeição. E... lembrando Paulo Freire e a sua Pedagogia do oprimido.

Da orelha do livro tomo um parágrafo para efeito de síntese: "O livro é a narrativa da vida de uma família de trabalhadores rurais (os Mau-Tempo) da região do Alentejo, no sul de Portugal, em cujos limites se passou o romance, desde o começo do século até logo após o 25 de abril. Trata-se de uma denúncia vigorosa da exploração, do desemprego e da miséria e, ao mesmo tempo, da tomada de consciência política por parte do trabalhador rural: o aprendizado da luta pelo direito ao trabalho, pelas oito horas de jornada e pela posse útil da terra".

E na contracapa, o próprio Saramago fala de sua obra: "Um escritor é um homem como os outros: sonha. E o meu sonho foi o de poder dizer deste livro, quando o terminasse: 'Isto é o Alentejo.'

Dos sonhos, porém, acordamos todos, e agora eis-me não diante do sonho realizado, mas da concreta e possível forma do sonho. Por isso me limitarei a escrever: 'Isto é um livro sobre o Alentejo. 'Um livro, um simples romance, gente, conflitos, alguns amores, muitos sacrifícios e grandes fomes, as vitórias e os desastres, as aprendizagens da transformação, e mortes.

É portanto um livro que quis aproximar-se da vida, e essa seria a sua mais merecida explicação. leva como título e nome, para procurar e ser procurado, estas palavras sem nenhuma glória -  Levantando do chão.

Do chão sabemos que se levantam as searas e as árvores, levantam-se os animais que correm os campos ou voam por cima deles, levantam-se os homens e as suas esperanças. Também do chão pode levantar-se um livro, como uma espiga de trigo ou uma flor brava. Ou uma ave. Ou uma bandeira. Enfim, cá estou outra vez a sonhar. Como os homens a quem me dirijo".

E, como já disse ao reler O tempo e o vento, de Érico Veríssimo, também o digo agora, o quanto é bom reler os nossos grandes escritores. Obras que fazem sonhar, que dão forças para o levantar do chão e nos fazer permanecer - bem alto erguidos.


terça-feira, 30 de julho de 2024

JESUS MILITANTE. O Evangelho e projeto político do REINO DE DEUS. Frei Betto.

Conheço o frei Betto de longo tempo. Desde a formação de quadros políticos em Cajamar (S.P.). Tenho por ele profunda admiração. Inclusive li o Livro da vida, de Santa Tereza D'Ávila, livro ao qual, ele dizia para nós, sempre recorria em momentos de dúvida, de angústias existenciais ao longo de sua vida. Há um ano, mais ou menos comprei o seu Jesus militante - Evangelho e projeto político do REINO DE DEUS. Não o li de imediato. Deixei-o numa lista de espera.

Jesus militante. Frei Betto. Vozes. Petrópolis. 2022.

Na semana passada terminei de ler Zelota - a vida e a época de Jesus de Nazaré, de Reza Aslan. Aslan é historiador e com o seu livro nos pretende mostrar o Jesus histórico, o Jesus que viveu na Palestina, sob o duplo domínio do Império Romano e dos Sacerdotes do Templo de Jerusalém. O livro, numa indicação de seu conteúdo, tem uma epígrafe bem ilustrativa: "Não pense que eu vim trazer paz sobre a terra. Eu não vim trazer paz, mas a espada". Ele fala muito do projeto do Reino de Deus. Creio que já perceberam porque eu emendei a leitura de Zelota, com o livro de frei Betto. Não precisa nem abrir o livro para encontrar a resposta. Basta ver o título e o sub título. Jesus militante - Evangelho e projeto político do REINO DE DEUS. 

Na contracapa de Jesus militante encontramos a síntese do teor e da finalidade do livro: "Frei Betto escreveu este livro àqueles que se queixam de não compreender os evangelhos e não entender o caráter militante da missão de Jesus. Daí a escolha do Evangelho de Marcos, o primeiro dos quatro, e a base dos relatos de Mateus e Lucas.

Jesus não veio fundar o cristianismo ou a Igreja. Veio nos propor um novo projeto político, condensado na expressão REINO DE DEUS - uma sociedade apoiada em dois pilares: nas relações pessoais, o amor; nas sociais a partilha dos bens da Terra e dos frutos do trabalho humano". Nas orelhas encontramos mais: 

"Escrevi Jesus militante a partir de minhas convicções sobre a missão do Filho do Homem. Os evangelhos sempre me intrigaram. Não são relatos históricos. Foram escritos para animar a fé das primeiras comunidades cristãs. Mas se baseiam em fatos reais. Embora contenham 'adaptações' de episódios do Primeiro Testamento.

A vida de Jesus foi marcada pelo conflito. Seus pais Maria e José - sofreram perseguição do Rei Herodes e se viram obrigados a se exilar no Egito. Seu primo e precursor, João Batista, morreu assassinado por ordem do governador da Galileia, Herodes Antipas. Jesus rompeu com o poder religioso do Templo de Jerusalém. Foi um dissidente. Criticou o Império Romano por ocupar a Palestina. Considerado subversivo, o prenderam, torturaram, submeteram ao julgamento de dois poderes políticos e o condenaram à morte na cruz. Ousou, dentro do reino de César, anunciar um novo projeto civilizatório: o Reino de Deus.

Escolhi o Evangelho de Marcos por ser o relato mais próximo do Jesus histórico. E o que melhor descreve o Jesus humano. Em anos de pesquisas, convenci-me de que Jesus não veio fundar uma religião (o cristianismo) nem uma Igreja (a cristã). Veio resgatar o projeto original de Deus para toda a humanidade, fundado no amor e na partilha. E o fez a partir do que, séculos depois, inspiraria a pedagogia libertadora de Paulo Freire: o protagonismo dos pobres e oprimidos.

A atuação militante de Jesus ecoou como uma boa-nova. Suscitou Comunidades Eclesiais de Base por toda a orla do Mediterrâneo. E, três séculos depois, pôs abaixo o Império Romano.

A institucionalização do movimento de Jesus em uma Igreja vinculada ao poder e apegada a seu vasto e rico patrimônio arrefeceu o impacto da militância de Jesus. Fora da massa, o fermento perdeu parte de sua força revitalizadora.

Ora, não é nos sacrários, que Jesus quer ser preferencialmente encontrado. E sim naqueles que, como Ele, são marginalizados, excluídos, injuriados e injustamente condenados. São eles os artífices do projeto libertador condensado na expressão Reino de Deus.

Espero que este livro suscite nos leitores e nas leitoras a mesma esperança e o mesmo vigor do Jesus militante". Algumas coisas para sublinhar: O Jesus como uma figura histórica; o duplo domínio sobre os judeus, pelo Império Romano, em aliança com os sacerdotes do Templo; o Templo como uma forte organização econômica; os constantes conflitos e tentativas de libertação dos judeus do jugo romano; e o projeto do reino de Deus, com libertação do jugo da dominação, seja de quem for. E os dois fundamentos: o amor nas relações pessoais e nas sociais a partilha dos bens originários do trabalho, para o estabelecimento de uma sociedade justa e de igualdade. Frei Betto destaca também a emancipação feminina do jugo patriarcal para o estabelecimento do Reino. 

Como já foi enunciado, a base para apresentar o Jesus militante é o Evangelho de Marcos, escrito em Roma, por volta do ano 70 d.C. Nesse tempo o Templo foi destruído pelo Império, para conter uma rebelião popular. E como diz frei Betto, a finalidade da escrita era para animar a fé das comunidades cristãs que estavam se formando entre os gentios. Foi o primeiro Evangelho escrito, sendo assim o mais próximo do tempo de Jesus.

Jesus militante ao seguir o relato de Marcos, de 16 capítulos, tem ele também os mesmos16, como verifiquei na Bíblia que tenho aqui em casa, da Editora Ave Maria, que adquiri, ainda nos meus tempos de seminário. Ao todo são 201 páginas. O livro também ajuda a compreender o porquê de nem todos os cristãos aceitarem essa mensagem do Reino. Ela serve para as mais diversas interpretações, como destaca o frei, na Introdução:

"Ninguém é mais controverso na história humana do que Jesus de Nazaré. nele se apoiam os fundamentalistas cristãos dos EUA, que defendem a índole imperialista da Casa Branca, e os militantes das Comunidades Eclesiais de Base da América Latina, de cuja prática brotou a Teologia da Libertação. Jesus é evocado por pastores neopentecostais que atribuem ao diabo mais poder do que a Deus, e por sacerdotes católicos que, em nome dele, condenam o capitalismo como intrinsecamente injusto". Ao longo do Livro, Betto também relata momentos de sua militância política e as condenações que sofreu em consequência.

Apresento também a resenha do livro de Reza Aslan, sobre o Jesus histórico que ele nos apresenta em Zelota. Ressalto porém a diferença entre os dois livros. Jesus militante nos é apresentado por uma pessoa religiosa e Zelota, por um historiador. Segue a resenha:

  http://www.blogdopedroeloi.com.br/2024/07/zelota-vida-e-epoca-de-jesus-de-nazare.html

terça-feira, 16 de julho de 2024

ZELOTA. A vida e a época de Jesus de Nazaré. Reza Aslan.

Há muito eu ouvia falar do livro Zelota - A vida e a época de Jesus de Nazaré, do historiador iraniano, radicado nos Estados Unidos. Quem mais dele me falava era o meu amigo Valdemar Reinert, um estudioso apaixonado pela tema da religião. Agora foi o livro da vez. O li de um só fôlego. Embora eu tenha toda uma vida de formação religiosa, adquirida nos seminários de Bom Princípio, Gravataí e Viamão, todos no Rio Grande do Sul, pude constatar o quão pouco realmente sabemos sobre a figura histórica de Jesus e da implantação do cristianismo, seguramente uma religião que pretendeu ser universal. Será que era esse mesmo, o projeto de Jesus de Nazaré? 

Zelota - A vida e a época de Jesus de Nazaré. Reza Aslan. Zahar. 2013. 9ª reimpressão. Tradução: Marlene Suano.

Antes de entrar na questão da análise do livro, apresento as orelhas: "Uma biografia fascinante e provocadora que desafia nossa compreensão do homem Jesus de Nazaré e de sua época.

Dois mil anos atrás, um pregador judeu atravessou a Galileia realizando milagres e reunindo seguidores para estabelecer o que chamou de 'Reino de Deus'. Assim, lançou um movimento revolucionário tão ameaçador à ordem estabelecida que foi capturado, torturado e executado como um criminoso de Estado. Seu nome era Jesus de Nazaré. Poucas décadas após sua morte, seus seguidores o chamariam de 'o filho de Deus'.

Com uma prosa envolvente, baseada em pesquisa meticulosa, o escritor e especialista em religião Reza Aslan mergulha na turbulenta época em que Jesus viveu, reconstruindo com maestria a Palestina do século I em busca do Jesus histórico. Ao fazê-lo, encontra um rebelde carismático que desafiava as autoridades de Roma e a alta hierarquia religiosa judaica - um dos chamados zelotas, nacionalistas radicais que consideravam dever de todo judeu combater a ocupação romana.

Comparando o Jesus dos Evangelhos com o das fontes históricas, Aslan descreve um homem cheio de convicções, paixão e contradição; e aborda as razões porque a igreja cristã preferiu promover a imagem de Jesus como um mestre espiritual pacífico em vez de revolucionário politicamente conscientizado que ele foi.

Em uma narrativa de tirar o fôlego, Zelota oferece uma nova perspectiva sobre aquela que talvez seja a história mais extraordinária da humanidade, e afirma a natureza radical e transformadora da vida e da missão de Jesus de Nazaré".

Instigante? Intrigante? Ao longo de toda a minha formação religiosa eu sempre recebi tudo pronto. Religião é uma questão de fé e, na dúvida entre a fé e a razão, agostinianamente sempre ficávamos com a fé. Assim éramos preparados para exercer a função de manter viva essa fé, no caso, a sua versão católica. A verdade nos foi revelada. A Bíblia é a palavra de Deus e Jesus é o próprio filho de Deus. Tudo envolto em mistérios. Os mistérios da fé. O livro de Aslan nos traz a história, nos traz a construção de uma narrativa, nos traz as contradições encontradas na própria Bíblia e no confronto com as fontes históricas.

Em suma, se em poucas linhas eu tivesse que sintetizar o livro eu faria o seguinte esforço: Jesus, nascido em Nazaré, era um judeu e abraçava uma versão de uma parte de seu povo, os zelotas. Os zelotas pregavam o "Reino de Deus", livres do jugo romano, mantido em uma aliança com os sacerdotes do Templo. Jesus os afrontou e foi condenado e executado ao modo romano (a crucificação). Jesus teve discípulos. Uns, sediados em Jerusalém, seguiam Tiago, o irmão de Jesus. Seguiam a Torá. Outros se helenizaram, ocupando as principais cidades do Mediterrâneo. Estavam dispostos a aceitar flexibilizações à lei judaica e eram comandados por Paulo. Com a morte de Tiago, Roma ganhou ascendência sobre Jerusalém como sede do cristianismo. Ali Tiago já havia instalado Pedro como o chefe de seu grupo. Paulo chega depois e procura tornar o cristianismo adaptável aos gentios (aos não judeus). Paulo transforma a religião, retirando dela o caráter revolucionário e de justiça social que os zelotas lhe tinham imprimido e cola em Cristo o seu caráter divino e conciliador. Com a destruição de Jerusalém (ano 70 d. C.) Roma se torna o centro do cristianismo e este se afirma com Constantino e o Concílio de Niceia. Este estabeleceu a ortodoxia da natureza divina de Jesus e transformou o cristianismo em religião de Estado. Paulo triunfou?

Essas polêmicas entre os seguidores de Tiago e Paulo nos foram muito bem ocultados. No epílogo, o autor nos lembra que o cristianismo para se afirmar, além de Niceia, também definiu no ano de 398 d.C., em Hippo Regus (atual Argélia) os 27 livros que comporiam o Novo Testamento. Mais da metade são livros de Paulo ou dele falam (p.233).

Creio que ainda precisamos definir quem eram os zelotas. Vamos ao autor: "Muitos judeus na Palestina do século I se esforçaram para viver uma vida de zelo, cada um à sua própria maneira. Mas houve alguns que, a fim de preservar os seus ideais zelosos, estavam dispostos a recorrer a atos extremos de violência se necessário, não apenas contra os romanos e as massas não circuncidadas, mas contra os compatriotas judeus, aqueles que ousaram se submeter a Roma. Eles foram chamados de zelotas" (p. 65).

A frase em epígrafe reflete esse espírito zelota: Não pense que eu vim trazer paz sobre a terra. Eu não vim trazer paz, mas a espada (Mateus 10:34). O livro, de 303 páginas, contém um mapa da Palestina do século I, do Templo de Jerusalém, de nota do autor, introdução, cronologia, o corpo do livro dividido em três partes, epílogo, notas e referências. Vou me ater às três partes. Cada uma delas tem um prólogo. Ao todo são quinze capítulos. Vamos ás partes e e aos respectivos capítulos:

Parte I: Prólogo: Um tipo diferente de sacrifício (uma descrição do Templo, sua estrutura e os sacrifícios); 1. Um buraco no canto (Jerusalém para o Império Romano); 2. Rei dos judeus (o domínio romano e a busca da libertação); 3. Vós sabeis de onde venho (Jesus de Nazaré - Belém - fuga para o Egito?); 4. A quarta filosofia (Nazaré - carpinteiro - Séforis - família e a filosofia dos zelotas); 5 Onde está sua frota para varrer os mares romanos? (Pilatos e Caifás - As rebeliões - os sicários - o Zelo); 6. Ano Um (O povo de Deus e a sua destruição (70 d.C), o arrefecer das lutas do Povo de Deus).

Parte II. Prólogo: Zele por sua casa (a vida pública, entrada em Jerusalém, o Templo - um covil de ladrões, os tributos, a prisão e a execução).7. A voz clamando no deserto (João Batista e o anúncio do reino, o batizado de Jesus); 8. Segui-me (A Palestina sob o Império Romano, 12 tribos, doze apóstolos, Caifás, o maior inimigo, os milagres e a fama). 9. Pelo dedo de Deus (um exorcista em Cafarnaum, o dedo de Deus que cura). 10. Que venha a nós o teu Reino (Um convite para todos, o Pai nosso, os zelotas e não princípios éticos abstratos, não ao domínio romano). 11. Quem vós dizeis que sou? (Tu és o Messias? "Eu o sou".  De zelota a celestial e divino). 12. Nenhum rei senão César (A prisão, Caifás e Pilatos, a condenação por Pilatos, a morte romana pela crucificação).

Parte III. Prólogo: Deus feito carne (A ressurreição. Estevão, o primeiro mártir. O homem-Deus. Saulo-Paulo. A reinterpretação helenística. De zelota a um deus romantizado. Tiago X Paulo. A abertura para um Deus global). 13. Se Cristo não foi ressuscitado (Duas correntes: a de Jerusalém - Tiago, Pedro e João e a helênica - Paulo. A grande transformação; de religião nacional para uma religião global. Paulo e a conversão dos gentios). 14. Não sou eu um apóstolo? (De Saulo a Paulo. De judeu a helenista. Os confrontos entre Tiago e Paulo. Pedro e Paulo em Roma). 15. O Justo (Tiago. Oposições com Paulo. A fé e as obras. Depois do ano 70 d.C., - de Jerusalém a Roma. A partir dos séculos III e IV, o domínio de Paulo. Do Jesus Zelota a Jesus de Nazaré). 

Epílogo: Deus verdadeiro de Deus verdadeiro (325 d.C. - O Concílio de Niceia. Constantino, o primeiro imperador cristão. A ortodoxia em torno da natureza de Deus. A construção do Novo Testamento - Hippo Regius - 398 d.C. - O triunfo de Paulo). Deixo ainda o último parágrafo do historiador:

"Dois mil anos depois, o Cristo da criação de Paulo totalmente subjugou o Jesus da história. A memória do zelota revolucionário que atravessou a Galileia reunindo um exército de discípulos com o objetivo de estabelecer o Reino de Deus na terra, o pregador magnético que provocou a autoridade do sacerdócio do Templo em Jerusalém, o nacionalista judeu radical que desafiou a ocupação romana e perdeu, ficou quase completamente perdida para a história. Isso é uma pena. Porque a única coisa que qualquer estudo abrangente sobre o Jesus histórico deveria ter esperança de revelar é que Jesus de Nazaré, Jesus, o homem, é tão atraente, carismático e louvável como Jesus, o Cristo. Ele é, em suma, alguém em que vale a pena acreditar" (p. 233). Um caminho aberto para um cristianismo conservador.

O próximo desafio será a leitura de Jesus militante - Evangelho e projeto político do Reino de Deus, de Frei Betto, que, como já verifiquei na bibliografia, não inclui Zelota na sua relação. 

domingo, 14 de julho de 2024

INQUISIÇÃO - O reinado do medo. Toby Green.

Há muito que eu desejava ler algo mais substancial sobre o tema da Inquisição. Numa propaganda das redes sociais, me deparei com um título: Inquisição - O reinado do medo, de Toby Green. Conferi na Estante Virtual e encontrei um exemplar disponível no Sebo Kapricho II, aqui de Curitiba. Fui lá. O exemplar, inclusive estava mais barato do que o enunciado. Por óbvio, não reclamei. Com certeza, adquiri um belo e valioso livro. 
Inquisição - o reinado do terror. Toby Green. Objetiva. 2011. Tradução: Cristina Cavalcanti.

Na contracapa, um enunciado aterrador. A Inquisição foi e continua sendo inspiração. Ela insiste em permanecer, embora sob diferentes formas, sempre tenebrosas: "Inquisição: O reinado do medo conta uma história vasta que, embora conhecida, é também surpreendente e estranha O terror inquisitorial na Ibéria e nas suas colônias é um assunto familiar, mas bem menos exploradas são a propagação desse terror aos quatro cantos do mundo e sucessivas mudanças de alvo de acordo com o teor dos tempos, prenunciando o totalitarismo moderno".

Nesse sentido, fascismo, nazismo, os regimes de Franco e de Salazar são todos herdeiros da nefasta Inquisição. Como também o regime de Pinochet no Chile e as ditaduras militares da América Latina, inspiradas na Ideologia da Segurança Nacional. Todos esses movimentos têm nela a sua mais remota inspiração. Assim também o racismo e o MCarthismo se inspiraram em seus horrores. Também o permanente autoritarismo que paira sobre o Brasil, num eterno espírito golpista. Inimigos, se não os há, uma fértil imaginação sempre os poderá inventar e reinventar, criar e cultivar. Na Inquisição, as vítimas foram os convertidos (cristãos novos), os luteranos, os mouros, os cristãos velhos. Afinal, todos, com ou sem culpa. Culpa do que? Motivos sempre foram encontrados, mesmo que os autores os ignorassem. Eles os confessavam, nunca no entanto, espontaneamente. Sempre sob tortura.

O livro é longo e denso. Possui glossário, cronologia e prólogo, seguidos por 14 capítulos, um sem fim de notas e uma rica bibliografia. São 463 páginas. Os capítulos têm títulos bastante ilustrativos. Eu os apresento, junto com alguma explicitação a mais: 1. O fim da tolerância: O medo como uma forma de vida na Espanha, em meio a sua grande e rica fusão cultural. Torquemada. 2. O fogo se espalha: Portugal é atingido, havendo conversões em massa. 3. Justiça torturada: A tortura: aperfeiçoamento dos métodos e o prazer sádico dos torturadores. 4. Fuga: a expansão para as colônias. Os indígenas e a escravidão; protestantes e piratas ingleses. 5. O inimigo interno: um conceito de inimigo. Fugas - sempre por culpa, nunca por medo. A Espanha e as crises com a Holanda. Os seguidores de Erasmo.

6. O terror envolve o mundo: México e Peru. Os protestantes ingleses, a comunidade judaica de Amsterdã. 7. A ameaça muçulmana: os mouros como alvo: Granada e Valência; as permanentes desconfianças. 8. Pureza a qualquer custo: poderia haver pureza em tamanha fusão racial e cultural?   As exigências para a ocupação de cargos; as burlas. A pureza racial como fonte de racismo. 9. Todos os aspectos da vida: Uma sociedade de espionagem. Nunca foi apenas uma instituição religiosa. O medo e a estagnação da criatividade. 10. A administração do medo: O monopólio da punição e do perdão. Os abusos de poder e a corrupção financeira e sexual. Sequestro de bens. Seu poder de autodestruição. A expulsão dos mouros, a crise econômica espanhola com a destruição de seus alicerces.

11. A ameaça do conhecimento: A imposição do silêncio aos eruditos; atraso e declínio como consequência. Montaigne, sua ascendência judaica; seus familiares de Saragoça; o início da filosofia do ceticismo. A inquisição e a oposição a uma visão científica de mundo. O livro - sempre o maior inimigo. "A verdadeira importância da Inquisição não reside tanto nas horríveis solenidades dos autos de fé nem nos casos de algumas vítimas célebres, e sim na influência silenciosa que sua obra incessante e secreta exerceu entre as massas e nas limitações que impôs ao intelecto espanhol" (p. 300). O declínio e a paralisação econômica e intelectual. A cultura, sempre a maior vítima. Creio que perceberam a importância e a beleza desse capítulo. 12. A sociedade neurótica: a ação das beatas, as noivas de Cristo. Os padres confessores ou acossadores; as praticas sadomasoquistas. Os exorcismos. O início do desmoronamento. 13. Paranoia: A França - um dos berços do iluminismo e os franco maçons; os novos alvos. Portugal sob Pombal. Pombal e os jesuítas. A luta travada contra o iluminismo. 14. O fracasso do medo e o medo do fracasso: A Revolução Francesa e as guerras napoleônicas. A liberdade de imprensa. O fim da Inquisição na Espanha e em Portugal.

Creio que perceberam que a Inquisição na península Ibérica é um fenômeno dos séculos XV, XVI e XVII, que conheceu sua decadência com a ascensão das ideias do ceticismo e do iluminismo. Foi uma das mais tenebrosas instituições e representou a soma do poder político e religioso, de consequências desastrosas e infinitas, ainda não extirpadas de todo em nossos tempos. Somos todos herdeiros da Inquisição. Deixo ainda os dois parágrafos finais do livro:

"Pobre Península Ibérica! Portugal e Espanha, antigas sedes dos maiores impérios do mundo, estavam arruinados. Havia divisões por toda parte. A Inquisição tentara produzir uma ideologia unificada e perseguiu as ameaças quando e onde as encontrou, mas só conseguiu presidir o declínio imperial. Não se pode dizer que a perseguição ao inimigo tenha contribuído para a prosperidade ou para melhorar a vida do povo. Ela resultou em repressão e frustração. Da frustração brotou a raiva, e dela o rancor mútuo.

O cenário para uma amargura crescente estava montado. Com o tempo, as divisões produziriam o terrível conflito da Guerra Civil Espanhola e o antagonismo entre conservadores e liberais que antecedeu o regime de Salazar, em Portugal. O inimigo nunca desapareceu. A Inquisição ajudou a persegui-lo, mas, como consequência, a divisão que se produziu ficou mais larga do que um oceano. A paranoia em Portugal e na Espanha transformou a prosperidade em decadência. Foram a intolerância da sociedade imperial e a perseguição às ameaças ilusórias que carregaram seu próprio império pelos arroios melancólicos do esquecimento" (p. 388).

Devo ainda dizer que o autor é inglês, nascido em Londres, no ano de 1974. É filósofo, formado em Cambridge. Vive na Inglaterra. Inquisição - o reinado do medo é também um belo livro de história e que te proporciona uma viagem, não tão agradável pelas principais cidades da península.

E um pouco sobre os judeus e a inquisição no Brasil, nesse belo livro do Lira Neto.