sexta-feira, 17 de maio de 2024

Érico Veríssimo declara princípios básicos. Sociedade e política. Solo de clarineta. Vol. 2.

"Qual deve ser a posição do escritor diante dos problemas sociais, políticos e econômicos de sua época? Essa é a pergunta que continua no ar, sempre atual, e jamais respondida de modo a satisfazer a todos".

Érico Veríssimo responde a esta instigante pergunta em seu livro de memórias Solo de clarineta, volume 2. A resposta é clara e direta e sem subterfúgios ou rodeios. Questão de convicção e de vida militante em favor da democracia, dos direitos fundamentais básicos e da liberdade e contra todos os excessos e arbítrios de poder, seja de direita ou da esquerda. Publico este texto em reverência ao grande escritor e para que seja melhor compreendido entre seus milhares de leitores e também entre os iniciantes na pesquisa. O seu compromisso é "com o homem e a vida". O texto é belíssimo, de um humanismo profundo. Vejamos:


Solo de clarineta - memórias. Érico Veríssimo. Companhia das Letras.

"Para principiar, direi que só quem pode e deve decidir sobre o comportamento político do escritor é ele próprio. Se quiser permanecer alheio a todos esses problemas e inquietações na sua Torre de Marfim e puder viver sem remorsos nessa ausência do mundo, que o faça e tenha bom proveito. Rechaço a ideia de que o escritor deve estar necessariamente a serviço dum partido político, mas aceito a de que ele possa fazer isso, se assim entender. Fala-se muito em literatura engajada. Repito mais uma vez que, o engajamento dum escritor deve ser com o homem e a vida, no sentido mais amplo e profundo dessas duas palavras.

É muito comum ouvir-se ou ler-se que eu jamais me comprometo ou defino politicamente. Ridículo! Creio que durante estes quarenta últimos anos me tenho manifestado claramente sobre problemas e acontecimentos políticos e sociais de maneira que me parece coerente e inequívoca, sempre a favor da liberdade e dos direitos do homem e contra todas as formas de opressão - coisas que nem sempre poderia fazer se fosse obrigado a seguir obedientemente a linha sinuosa e muitas vezes autocontaditória dum partido político.

Não tenho gosto nem talento para a política ativa. Restrinjo-me a princípios de ordem geral. Claro, sei que se eu me aproximar do leito em que um doente agoniza e romper a berrar que amo a saúde e a vida e detesto a doença e a morte - esses protestos ruidosos em nada poderão ajudar o moribundo, que necessita, isso sim, dum medicamento ou de uma intervenção cirúrgica de urgência para salvar-lhe a vida. Parece-me, entretanto, que também é importante não cessar de proclamar a necessidade de curar o organismo enfermo sem mutilações inúteis.

Afinal, em que posição política me encontro? Considero-me dentro do campo do humanismo socialista, mas - note-se - voluntariamente e não como um prisioneiro.

Por que socialista? - hão de perguntar. Porque o extremismo da esquerda e o da direita não passam de faces da mesma moeda totalitária; e porque o centro é quase sempre o conformismo, a indiferença, o imobilismo.

Poderá também o leitor perguntar como pode um homem que tanto preza a liberdade inclinar-se para o socialismo... Ora, é um erro imaginar que socialismo e Liberdade são termos ou ideias que se contradizem. Basta ler o que se escreve  hoje na Polônia, na Tchecoslováquia e na Iugoslávia, em suma, é suficiente inteirar-se a gente do pensamento dos neomarxistas para compreender que Stálin e em certos casos até mesmo Lênin deturparam as teorias de Karl Marx. Como resultado dessa deturpação, na Rússia soviética stalinista criou-se uma nova classe de privilegiados, uma burocracia desumana e inumana, e um novo tipo de alienação de massas, tudo isso em nome da ditadura do proletariado e do futuro do socialismo no mundo.

A dialética marxista é inseparável de seu humanismo. Segundo Marx, uma sociedade não pode ser livre se todos os indivíduos que a compõem não forem também livres. Quando o autor d'O capital falava em 'prática socialista', referia-se especificamente à liberdade. E essa noção de liberdade não foi apenas o ponto de partida de suas ideias, mas também o seu objetivo mais alto.

Karl Marx escreveu também que a teoria não deve separar-se da prática, nem o conhecimento divorciar-se da ação, e que o sistema social não pode ficar alienado dos objetivos espirituais. Segundo ele, só podem existir homens independentes dentro dum sistema social e econômico cujas abundância e racionalidade tenham conseguido liquidar a 'pré-história' e inaugurar a era da 'história humana' que há de redundar no peno desenvolvimento da sociedade.

Não sou sociólogo nem historiador e muito menos economista, mas, com um pouco de intuição  e uma certa dose de senso comum, cheguei cedo à conclusão de que seria absurdo aceitar qualquer sistema político-econômico que exige o sacrifício do homem de hoje em benefício dos chamados 'interesses mais altos do amanhã'.

Segundo o socialismo marxista, o homem como homem não deve ser imolado em benefício da humanidade do futuro. (Tenho escrito repetidamente que o homem é um ser real, a humanidade uma entidade abstrata, e a 'humanidade do futuro' - acrescento - é uma dupla abstração).

Marx, em seus escritos de que o stalinismo preferiu não tomar conhecimento, pois isso não convinha ao seu 'realismo político' - disse que o homem será sempre o objetivo derradeiro da tendência para uma sociedade verdadeiramente humana, tanto na teoria como na prática. E é por isso que os pensadores a que me referi se rebelam contra o pragmatismo burocrático e tecnológico e contra todas as formas de desumanização e alienação do povo.

Outra afirmação curiosa desses escritores neomarxistas é a de que o socialismo não é o objetivo final de Marx, mas uma aproximação. O seu alvo supremo, repita-se, é uma sociedade em que a desumanização cesse e o trabalho do homem se emancipe por completo, fornecendo-lhe todas as condições necessárias à sua autoafirmação.

O sociólogo e filósofo iugoslavo Mihailo Markovic define o humanismo como 'uma filosofia que procura resolver todos os problemas na perspectiva do homem, e que abrange não apenas questões antropológicas, como a da natureza humana, a alienação, a liberdade, mas também ontológicas, epistemológicas e axiológicas'.

Em conversa com amigos muitas vezes lhes disse que, a meu ver, o que faltava à análise marxista da sociedade era uma psicologia. Li com grande satisfação um ensaio em que Erich Fromm levanta essa ideia com sua autoridade e habitual lucidez. Escreveu ele textualmente: 'A teoria de Marx necessita de uma psicologia do homem'.

Acrescenta que os marxistas se convenceram finalmente do fato de que o socialismo tem de também satisfazer à necessidade que a criatura tem dum sistema de orientação e devoção, e que portanto o socialismo tem de tentar responder a perguntas como 'Quem é o homem? Qual o sentido e objetivo de sua vida?'. Acentua Fromm a importância das normas éticas e de desenvolvimento espiritual que ultrapassem frases vazias como 'É bom tudo quanto possa servir à revolução, ao estado proletário, à evolução histórica, etc...etc...etc...'.

Afirmou Marx que a raiz do homem é o próprio homem. Erich Fromm insiste em que uma teoria cujo centro seja o homem não pode continuar como teoria  sem uma psicologia, sob pena de perder contato com a realidade humana.

No mesmo ensaio Fromm refere-se também a um problema que muito me preocupa, principalmente quando me encontro nos Estados Unidos: o do caráter do Homo consumens criado pelas sociedades altamente industrializadas. O objetivo do consumidor não é o de possuir coisas, mas o de consumir cada vez mais e mais, a fim de com isso compensar seu vácuo interior, sua passividade, sua solidão, seu tédio e sua ansiedade. E aí estão as empresas de publicidade, que dispõem de meios cada vez mais insidiosos e engenhosos para criar nas massas necessidades artificiais que acabam por escravizá-las.

Ora, no Brasil o fenômeno apenas começa a esboçar-se. O que me preocupa por ora não é o ainda reduzido número de nossos consumidores, mas sim os muitos milhões de consumidores que nos cumpre libertar da miséria, da fome, da doença e do analfabetismo.

Este não me parece o lugar apropriado, nem eu sou o homem indicado, para propor e desenvolver um programa político econômico para resolver os problemas cruciais do Brasil, nem eu tenho a pretensão de ser portador da fórmula mágica para a nossa salvação.

Achei, isso sim, que devia fazer aqui mais uma vez uma declaração de princípios, e repetir que, se por um lado acredito na necessidade de todos os escritores e artistas terem uma consciência política e social de que não cabe ao romancista apresentar soluções para as crises econômicas, políticas e sociais em que nos debatemos.

E, para encerrar este capítulo, quero transcrever as palavras do professor H. Marcuse, com as quais me encontro de perfeito acordo: 'A realidade humana é um sistema 'aberto'. Nenhuma teoria, seja marxista ou outra qualquer, pode 'impor-lhe' uma solução'". Páginas 262-266.

Toda a obra de Veríssimo debate estas questões, através de seus personagens que encarnam as diferentes posições. Creio também que no Solo de clarineta, vol. 1, quando Érico relata suas viagens por Portugal, na época salazarista, essas suas posições estão afirmadas com muita clareza. Deixo a resenha:


Deixo ainda as resenhas de Solo de clarineta - memórias. vol. 2, do qual foi retirado este texto:


e dos sete volumes de O tempo e o vento:


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