sexta-feira, 31 de janeiro de 2014

Rio Azul. Natureza, cultura e economia. Um artista único.

Uma das regiões do Paraná que eu menos conheço é a região do centro para o sul, ou a sua região sudeste. Tive a oportunidade de conhecer um pouco desta região agora, quando recebi um convite do núcleo de Irati, da APP-Sindicato, para participar das suas atividades de planejamento para o ano de 2014. Estas atividades se realizaram na pousada Vila Vitória, na cidade de Rio Azul. As atividades se realizaram, primeiramente com os dirigentes do núcleo, envolvendo em torno de 20 pessoas e numa segunda etapa, com os dirigentes sindicais municipais, das diversas cidades da região, envolvendo em torno de 40 pessoas. A minha participação foi no sentido de trabalharmos a conjuntura da realidade brasileira, sob a ótica da classe trabalhadora, obviamente. Comentarei estas atividades, num post específico.
Registro de uma das atividades junto às professoras e professores, em Rio Azul.

Meus hospedeiros foram as professoras Tatiana, moradora de Inácio Martins e presidente do núcleo sindical de Irati, e Manoela Carneiro, da cidade de Rio Azul. Fui muito bem tratado. Me acomodaram no melhor chalé da pousada (mordomia) e me proporcionaram um tour pelas atrações da cidade, em companhia da linda jovem Janaína, estudante de turismo no campus da UNICENTRO, de Irati. Tive os meus privilégios.

Em ninhas viagens sempre levo a curiosidade como companheira e, por isso mesmo, ao manifestar o desejo de conhecer um pouco da realidade regional e da cidade, ganhei até cicerone. Janaína me mostrou a capela do Senhor Bom Jesus, única, uma cachoeira junto a uma gruta, o Parque da Pedreira, com uma bela cachoeira, a maior atração natural da cidade, e uma visita a Framora, uma pequena agro-indústria de frutas vermelhas.

Rio Azul é um município de 14.093 habitantes, com renda per capita de R$ 12.000,55 e IDH de 0.738. A agro-pecuária se constitui na sua principal atividade econômica, com destaque todo especial para as lavouras de fumo. Milho e soja o acompanham. O fumo é uma lavoura que me reporta à minha infância. Meu pai fazia as contas, das dívidas a pagar no ano, e elas determinavam o tamanho da roça de fumo que plantaríamos. Era renda certa. Nós produzíamos fumo de corda. Lembro que era um trabalho que eu não gostava. Ele é meloso e grudento em todas as fases de seu trabalho. A economia é complementada com as atividades madeireiras e a agro-indústria.
A maior atração de Rio Azul. A pintura da capela do Senhor Bom Jesus, do artista nativo, Antônio Petrek.

Seguramente o cidadão mais ilustre de Rio Azul, ou que, ao menos deveria sê-lo, é o senhor Antônio Petrek, uma figura ímpar e única. Artista inigualável e, na qualidade de artista, uma pessoa engenhosa, de difícil trato. A solidão era a sua grande oficina de trabalho. Não gostava da presença de pessoas ao seu redor, nem para lhe levarem comida. Esta era deixada em lugares determinados, donde ele a recolhia. Dormia de dia para trabalhar de noite, quando ninguém o perturbaria. Na sua juventude conviveu com um pintor russo, que lhe deve ter ensinado as lições básicas de pintura. Deve ter superado o seu mestre. Transportou a pintura das pêssankas ucranianas para as paredes das igrejas. A fórmula de suas tintas era original, segredo que levou consigo. Misturava uma espécie de cal natural, com tintas, com leite fervido, com couro de boi. Cores únicas. Pintava centímetro por centímetro, excluindo apenas o piso. Assim que alguém se aproximava, imediatamente parava o trabalho.

Petrek nasceu em Rio Azul e viveu na região uma vida absolutamente solitária, até completar 81 anos, em 2011, ano de sua morte, no asilo de velhinhos de sua cidade natal. Pintou várias igrejas na região. Em Rio Azul, sua grande obra é a capela do Senhor Bom Jesus, à qual  dedicou cinco anos de trabalho. Os quadros destacam o final da vida de Cristo e uma via sacra. Todas as paredes foram revestidas de pintura.Viveu da pintura, sem nunca ter cobrado um centavo sequer. Duas eram as suas exigências. Alimento e solidão. A RPC (Rede Globo de Curitiba) lhe dedicou um programa Meu Paraná. Vale a pena conferir. Regina Pegoraro, proprietária da pousada Vila Vitória também produziu um vídeo com o nome de  O Dom de Deus.

A visita à agro-indústria Framora também foi muito interessante.Fomos recebidos pelos proprietários, o senhor Guilherme e a sua esposa, Da. Maria. Amabilidades em pessoa. Em menos de cinco minutos já fomos agraciados com um saboroso suco de amora. O senhor Guilherme contou toda a história da sua vida, venturas e desventuras. De uma grande frustração de safra foi para a cultura das frutas vermelhas, amora moranguinho e framboesa. A frustração da safra foi de batata, de uma semente, que em vez de germinar, simplesmente apodreceu. E lá se foram os tratores e outros pertences. Os filhos tiveram que vir para Curitiba. A ideia foi fazer algo diferente. A sua agro-indústria vai bem. Os filhos já estão de volta. Moram na propriedade que é um mimo, bem cuidada. Trabalham com frigorificação e assim nada se perde.
Produtos da terra, da agro-indústria de frutas vermelhas Framora, framboesa, amora e moranguinho.

Polpas, geleias, licores e frutas conservadas in natura são os produtos comercializados. As frutas in natura são o carro chefe e são consumidas como ornamento de bolos e pratos. É um mercado que não conhece crise. A felicidade do casal está desenhada em seus semblantes. As plantas são cultivadas do lado da casa. Observar o seu ciclo de produção, do plantio ao desenvolvimento da brotação, da floração, da maturação e da colheita lhes dá uma satisfação enorme. E o dinheirinho da comercialização não faz mal a ninguém. De um lugar desses dá dó de ir embora. Trouxe geleia e licor, o licor vai para a minha coleção de licores e cachaças.

Foto da Pousada Vila Vitória.

Por último, quero falar da Pousada Vila Vitória. Da pousada em si, não. Ela é simples e aconchegante em um ambiente muito agradável. É formada por chalés. Se não quero falar da pousada, quero falar do senhor Marco e da dona Regina, o casal proprietário. Marco tem descendência espanhola e, se não é um anarquista, herdou muito de seu espírito. Seria a teoria política perfeita, se fosse exequível. O seu espírito libertário é contagiante. Dona Regina exerce forte liderança comunitária, está onipresente. Desde as atividades comerciais, de benemerência, até as culturais. Percebeu a importância de Antônio Petrek, como ícone histórico e cultural e produziu um vídeo documentário sobre a sua vida e obra, O dom de Deus. A pousada é um ótimo local para você fazer um tour pela região.

Em suma, passei três dias maravilhosos em Rio Azul. Modestamente, creio que dei uma pequena contribuição para a formação continuada dos professores, no espírito da frase de abertura do meu blog e ampliei horizontes, conhecendo pessoas e estabelecendo relações humanas, simplesmente enriquecedoras. Vidas simples, no complexo das relações humanas. Trabalho gratificante que me dá a certeza do valor do meu atual trabalho, que é o da administração de tempo livre. A todos registro os meus agradecimentos.


Tolstói - A Biografia. Rosamund Bartlett.

No ano de 1968, nas disciplinas pedagógicas da minha licenciatura em filosofia, eu tive que fazer um trabalho sobre as ideias pedagógicas de Liev Nikoláievitch Tolstói (1828- 1910). Lembro que me deu bastante trabalho. Encontrei o material necessário na Biblioteca Pública de Porto Alegre. Encontrei literatura para a realização do trabalho apenas em francês, mas isto não era problema. Relembrando isso, me parece que desaprendi muita coisa ao longo da minha vida. Guardo este trabalho, em meus arquivos, até hoje. Num outro momento, querendo saber dos grandes romances que envolvem as mulheres, li Anna Karênina possivelmente o seu melhor romance.
Tolstói, a Biografia - Rosamund Bartlett (8525054852)
Capa do livro de Rosamund Bartlett, Tolstói. A biografia.

Agora, recebendo e-mail da Travessa, vejo o livro Tolstói - A Biografia, de Rosamund Bartlett em oferta, com 50% de desconto e frete grátis. Como adoro biografias, não tive dúvidas. Comprei e ainda o tirei da fila de espera de minhas leituras, passando-o para o primeiro lugar. Li as suas mais de 600 páginas de um fôlego só. Como sempre, aprendi muito. Contextualizei toda a história russa da segunda metade do século XIX e a primeira década do XX e ainda fiz uma maravilhosa e inédita incursão no mundo da igreja ortodoxa e as suas relações com o poder russo, nos tempos dos tzares. É difícil imaginar uma personalidade mais complexa do que a de Tolstói. Quero contar alguma coisa do que eu li, mas me encontro em dificuldades. Vou começar com uma exortação sua, que talvez represente uma síntese de seu pensamento, mais ou menos definitivo.

Uma das imagens características de Tolstói. Seria o monge de Iasnaia Poliana?

"Vocês sabem que aquilo que vocês pregam sobre a criação do mundo, sobre a inspiração divina da Bíblia e sobre tantas outras coisas não é verdade. Como é que então têm a coragem de pregar esses ensinamentos às criancinhas e aos adultos ignorantes que procuram vocês em busca de esclarecimento? [...] Sejam vocês quem forem - papas, cardeais, bispos, arcebispos, superintendentes, sacerdotes ou pastores - pensem nisso. Se vocês pertencem ao clero (que em nossos dias é infelizmente numeroso, e cujas fileiras não cessam de engrossar), que sabem claramente o quanto os ensinamentos da Igreja são obsoletos, irracionais e imorais, mas que, mesmo sem de fato acreditar neles, continuam a pregá-los por motivos pessoais (seu salário de sacerdotes e bispos), não se consolem com a suposição de que suas atividades se justificam por qualquer tipo de utilidade para as massas, que ainda não compreendem o que vocês compreendem" (488).

Por outro lado, vou mostrar o pensamento de uma seguidora sua, que em seu diário, assim descreve o que significa ser uma seguidora do pensamento de Tolstói, 50 anos após a sua morte e com toda a oficialização de seu pensamento pelo regime do chamado socialismo real soviético. É uma professora que assim escreve:

"Hoje se completam cinquenta anos da morte de L. N. Tolstói, meu querido pai e professor para a vida. Ele ajudou-me a purificar os ensinamentos de Jesus Cristo das superstições que lhes foram sendo acrescentadas ao longo dos séculos. Ele ajudou-me a encontrar amigos queridos, uma família espiritual que, se não tem laços de sangue, é melhor, mais forte e mais genuína. Graças a Tolstói, eu me mudei da cidade para o campo, para viver em meio aos que lavram a terra, e ao mesmo tempo comecei a praticar o trabalho braçal na horta e no jardim, o que aprendi a amar. Tolstói ajudou-me a encontrar a verdadeira bondade na vida. Ele mostrou-me as falhas e defeitos que dividem as pessoas, e por vezes chegam até mesmo a destruir a vida humana. O grande e ainda subestimado Tolstói!" (551)

O livro Ana Karênina, de Leão Tolstói. Da coleção Os Imortais da Literatura Universal, nº 20. 749 páginas de letrinhas. Da Abril Cultural. Publicação de 1971.

Entender Tolstói não é uma tarefa fácil. A pergunta a se fazer seria certamente esta, qual Tolstói? O Tolstói de que fase? Conta-se que cada fase de sua vida durava sete anos. A cada sete anos ele se reformulava e refazia todo o seu modo de pensar. Em sua vida, encontramos também, profundos poços de contradições. Por nascimento pertenceu a alta nobreza russa, proprietária de terras. Conviveu com o latifúndio sem sentir, no início de sua vida, a grave situação social de seu país. Quase dispersou toda a fortuna que herdara no vício do jogo. Sem explicações e, assim de repente, parou de jogar. Casou-se e impôs duras regras a Sônia, sua esposa. Creio que foram felizes e infelizes. ter filhos era tanto uma obsessão sua, quanto uma imposição. Era absolutamente contra a contracepção. Era filho todo ano.

Não vou falar do romancista. Seus romances Guerra e Paz e Anna Karênina, são inquestionáveis e figuram em todas as listas como entre os melhores do mundo. Intercalava a sua vida de escritor com as diferentes obsessões em sua vida. Assim largou a literatura para se dedicar à educação. Estudou os sistemas educacionais e métodos pedagógicos em voga e passou a criar o próprio método, que aplicou em suas escolas. As ideias libertárias foram amadurecendo e são a grande marca de seu pensamento educacional. O seu ideal libertador vai amadurecendo contra as outras formas de dominação que oprimiam o povo russo. Foi tomando para si a dor dos camponeses. Lutou para libertar o povo da dominação religiosa. A igreja ortodoxa russa, aliada fiel do tzarismo tornou-se o próximo alvo de suas lutas. Podemos dizer que já era um anarquista, um livre pensador ou um pensador libertário. Evidentemente que entrou em conflito com todo mundo. Com a esposa, com os filhos e com o regime. Na mesma medida ganha discípulos. É um precursor das doutrinas pacifistas e da não violência do século XX.

Guerra e Paz, edição da LPM - Pocket, em três volumes.

Terminou fugindo de casa, numa aventura de final trágico. Morreu aos 82 anos de idade, em 1910, com o regime tzarista já em plena decadência. Para isso ele muito contribuíra. Rosamund Bartlett compara Tolstói com Roussou, de quem herdou muitas influências. Melhor, Bartlett estabelece a relação de que assim como Rousseau esteve para a Revolução Francesa, Tolstói esteve para as Revoluções Russas de 1917. Os Bolcheviques tentaram se apropriar de sua doutrina. Lênin foi o mais compreensivo, embora visse em seu pensamento todo o idealismo, bem como, condenava o seu pacifismo. O socialismo real conviveu com o Tolstói dos romances, mas expurgaram todo o seu pensamento educacional e especialmente o religioso e, por falar em religião, uma última notinha interessante, Tolstói foi excomungado pela igreja ortodoxa em 1901.

Biografia das mais ricas sobre um personagem tão complexo. Vale muito a sua leitura para conhecer o grande escritor, o grande formador de opinião e de uma grande legião de seguidores pelo mundo inteiro. Se tivesse que defini-lo, em seu pensamento, ao final de sua vida, com uma única palavra, prontamente eu responderia: foi um anarquista.




segunda-feira, 27 de janeiro de 2014

Grande Sertão: Veredas. João Guimarães Rosa.

"Mas, por fim, eu tomei coragem, e tudo perguntei:
'O senhor acha que a minha alma eu vendi, pactário?!'
Então ele sorriu, o pronto sincero, e me vale respondeu:
'Tem cisma não. Pensa para diante. Comprar ou vender, às vezes, são as ações que são as quase iguais...'
E me cerro, aqui, mire e veja. Isto não é o de um relatar passagens de sua vida, em toda admiração. Conto o que fui e vi, no levantar do dia. Auroras.
Cerro. O senhor vê. Contei tudo. Agora estou aqui, quase barranqueiro. Para a velhice vou, com ordem e trabalho. Sei de mim? Cumpro. O rio de São Francisco - que de tão grande se comparece - parece um pau grosso, em pé, enorme... Amável o senhor me ouviu, minha ideia confirmou: que o diabo não existe. Pois não? O senhor é um homem soberano, circunspecto. Amigos somos. Nonada. O diabo não há! É o que eu digo, se for... Existe é homem humano. Travessia".

Eis o romance, eis a história e acima de tudo, eis um jeito de contar. 608 páginas, da Nova Fronteira.

Assim termina a história contada por João Guimarães Rosa em Grande Sertão: Veredas. Se você percebeu a existência de mistério neste final do livro e, se você se propuser a lê-lo, prepare-se. Este mistério perpassa a obra inteira. É uma história de jagunços e uma história de amor. Não é uma grande história, grande, muito grande, é o modo de contar, único. Não há nada igual, nada que se compare. Riobaldo conta a história diretamente para você. Além do dito, tem que prestar atenção no não dito, naquilo que vai além. Naquilo que transcende.

Vamos primeiro ao título do livro Grande Sertão: Veredas. Vamos ao Aurélio ver primeiro o significado de sertão:1."Região agreste, distante das povoações ou de terras cultivadas, 2. Terreno coberto de mato, longe do litoral, 3.Interior pouco povoado". O significado se repete. O longe, o despovoado é o sertão das Minas Gerais. Agora vamos ver veredas: 1."Caminho estreito, senda, 2. Atalho, 3. Rumo, caminho, direção". Agora vamos juntar Grande Sertão: Veredas. O sertão é viver. No sertão existem muitos caminhos. No sertão existem muitos labirintos. O sertão é a vida e a vida é travessia. Travessia é viver e...viver é muito perigoso. Deus e o diabo. O bem e o mal. O amor e o ódio. A ternura e a vingança.

Quem conta a história é Riobaldo, Rio... de travessia. Ele se embrenha no sertão, nos introduz nos principais temas, e se encontra com o grupo de Joca Ramiro, ao qual ele passa a integrar. Antes encontrara Zé Bebelo, mas é contra ele que passam a lutar. O julgamento de Zé Bebelo é um dos primeiros momentos em que a narrativa ganha um sabor maior. As leis do sertão. Ele vai embora para Goiás, para só voltar após a morte de Joca Ramiro. Neste meio se dá o encontro ente Riobaldo e Diadorim e um grande amor acontece. Um amor impossível de se manifestar, mas incomparável em sentimento e em grandeza. Joca Ramiro é jagunço vencedor.

Foto do grande escritor. Maneira única de escrever. O seu tema é o sertão, a travessia.

A história avança com a traição dentro do grupo. Joca é morto pelo personagem do mal, Hermógenes. Para vingar-se dele, faria pacto com o diabo, mas o diabo não seria o próprio Hermógenes? Toda a narrativa vai agora no encalço de Hermógenes e seu bando. Zé Bebelo, após a morte de Ramiro, também está de volta. Ele será o chefe. Riobaldo desconfia e assume ele a chefia. Riobaldo é tatarana. Riobaldo é urutu branco. Riobaldo não conhece medo. Mas, viver é muito perigoso. Com Riobaldo no comando só resta o grande confronto final. Entre as histórias de Riobaldo está o seu casamento com Otacília, a Penélope distante, para a ciumeira de Diadorin. Ficam um longo tempo no sertão, pois sertão é o mundo, um retrato do mundo, uma tensão com o mundo.

O embate final demora a vir, será no Tamanduá-tão. Sempre fugindo do perigo... para o perigoso e, Riobaldo, vendo o seu sorriso na boca de Diadorin. O tiroteio será feroz e no saldo final se contabiliza a morte de Hermógenes, mas também a de Diadorin. Este com valentia mata o Hermógenes, se vinga de seu pai. Joca Ramiro era o pai de Diadorin. Riobaldo está ferido e entra em delírio. Ao final de seu delírio, com a sua recuperação todas as verdades se revelam.

Riobaldo casa-se com Otacília. Em casa de Ornelas, fazendeiro amigo, recebe a visita de seu Habão, já visto tantas vezes na história. Seu Habão lhe traz o testamento, deixado por seu padrinho, recentemente falecido, Selorico Mendes, que orgulhoso dos atos heroicos do sobrinho lhe deixava as suas duas melhores fazendas. Da matriz de Itacambira, do batistério se trouxe um papel, onde se lia, registrado assim, nos idos de 1800 e tantos...Maria Deodorina da Fé Bettancourt Marins - "que nasceu para o dever de guerrear e nunca ter medo, e mais para muito amar, sem gozo de amor...Reze o senhor por essa muinha alma. O senhor acha que a vida é tristonha?" Era Reinaldo, era Diadorin.

Além do sertão e de jagunços, uma grande história de amor, amor impossível. Riobaldo e Diadorin.

Depois as coisas vão se acertando. O amor por Otacília também brota imenso e no sertão vai vivendo com os seus perguntares e com os seus perigos. Zé Bebelo também aparece, mas esse quer é viver na cidade, e ganhar muito dinheiro. Riobaldo prefere o sertão, que o sertão é do tamanho do mundo. O Ser Tão. Depois seguem as conclusões pelas quais eu comecei e, também, termino "Amigos somos. Nonada.O diabo não há! É o que eu digo, se for... Existe é homem humano. Travessia". Humano, travessia...

Ao ler o livro tive muitas curiosidades. Para ajudar a situar. Guimarães Rosa nasceu em 1908, em Cordisburgo MG e morre no Rio de Janeiro, morte súbita, em 1967. Morre três dias após assumir a sua cadeira na Academia Brasileira de Letras. Em seu discurso de posse declarara que "a gente morre para provar que viveu". A sua indicação para o Nobel de literatura foi suspensa com o seu falecimento. Guimarães Rosa foi médico de formação, além de naturalista e botânico, o que o ajudou a escrever de forma tão peculiar sobre o sertão. Em sua infância, o pai lhe escrevia cartas, contando causos do sertão. Em sua homenagem foi criado o Parque Nacional Grande Sertão Veredas, em Formoso, Chapada Gaúcha, na divisa de Minas Gerais com a Bahia.. Deu vontade de conhecer. Passeios pelo São Francisco em Pirapora,  e a cachaça de Januária e, muito mais. Em Cordisburgo tem museu e leituras.

Para terminar, coisa de professor. Localizei aquela célebre frase que contrapõe o ensinar e o aprender. Ela está assim: "Pergunto coisas ao burití; e o que ele responde é: a coragem minha. Burití quer todo azul, e não se aparta de sua água - carece de espelho. Mestre não é quem sempre ensina, mas quem de repente aprende. Por que é que todos não se reúnem, para sofrer e vencer juntos, de uma vez? Isto está nas páginas 309-10, no livro da edição de 2006, da Nova Fronteira.

Nota. 10.03.2020. Paulo Freire, na sua prisão em Olinda em meados de 1964: "Caiu-lhe nas mãos o clássico Grande Sertão: veredas. Incomodado com a linguagem de Guimarães Rosa, desistiu do livro e comentou com Clodomir (Santos de Morais) sua dificuldade com o estilo, o palavreado, o tom regional do romance. Surpreso, o companheiro explicou as circunstâncias que levaram aquela região entre o rio São Francisco e Goiás a manter uma espécie de dialeto próprio, o mesmo falado até então por sua mãe e alguns parentes que moravam ali. 'Se você quiser, eu, com toda a satisfação, vou tratar de traduzi-lo', propôs Clodomir, disposto a fazer anotações sobre as expressões idiomáticas no próprio livro. Paulo aceitou de imediato".  Página 23 do livro: O educador - um perfil de Paulo Freire. Autêntica. São Paulo. 2019, de autoria de Sérgio Haddad.

  


quinta-feira, 23 de janeiro de 2014

O Lobo de Wall Street.

Foi só ver o primeiro filme da temporada dos indicados ao Oscar e já tenho o meu preferido, para a indicação de melhor filme. Trata-se de Wall Street, do diretor Martin Scorcese e tendo como ator no principal papel, Leonardo Di Caprio. São três horas de humor, de sátira e de ironia. Eu ia dizer, de humor e ironia inteligente, mas me contive, porque sem inteligência não faz nem humor, nem sátira.
O Lobo de Wall Street
Cartaz de O Lobo de Wall Street. Leonardo Di Caprio.

Wall Street é economia americana. É Bolsa de Valores. Já tinha visto o filme anterior sobre Wall Street, o dinheiro nunca dorme, de Oliver Stone e interpretado por Michael Douglas, que tem cena de suicídio e o uso extraordinário do quadro de Goya, de Cronos, numa imagem magnífica de Poder e tempo. Este Lobo de Wall Street é totalmente diferente. Não mostra a tensão da Bolsa de Valores. Mostra como as pessoas são enganadas ao comprarem ações. O desejo de ganhar dinheiro fácil, se tornar famoso e obter sucesso permeia todo o filme.

O filme é uma pesada crítica a toda a cultura americana, a todo o sistema capitalista e especialmente ao momento atual deste sistema, em seu estágio de capitalismo improdutivo, financeiro e parasitário e, poderíamos ainda dizer, virtual. Jordan Belfort, o protagonista do filme, num certo momento diz aos seus corretores que o único dinheiro real que circula na Bolsa é o dinheiro das comissões, que em alguns casos, chegam a 50%.  Outra lição importante de Jordan Belfort é a de que na Bolsa não existem amigos. Só assim você mantem a coragem de continuar fazendo o que você faz.

O Lobo de Wall Street (Foto: Divulgação)Cena do filme 'O Lobo de Wall Street' (Foto: Divulgação)


O O O O Oritmo das três horas do filme é avassalador. Inicia mostrando a Bolsa de Valores e as aulas sobre ela e o seu jogo, dadas pelo corretor professor, para Jordan Belfort. Quando este inicia os seus trabalhos como corretor, a Bolsa tem um momento de crise e o experto Jordan redireciona então os seus negócios para ações de pequenas empresas e de alto risco, vendidas para investidores incautos, porém crédulos, que são vítimas de corretores bem treinados. Acima de tudo são vítimas de sua desmedida ambição.

Cenas que me avivaram a memória são as que mostram o treino dos corretores na habilidade de vender. Me lembrei de muitas palestras em universidades, em que picaretas exímios se travestiam de motivadores e que, mediante boa remuneração, entregavam, de bandeja, todos os segredos do mundo do empreendedorismo, da liderança, do sucesso, da prosperidade e da felicidade, em um momento mágico. Alguns até eram apresentados como verdadeiros filósofos. Filósofos pregadores dos templos  e dos tempos neoliberais. Um vazio intelectual naquilo que deveria ser o templo do saber.

Jordan Belfort levava uma vida simples de vendedor. Era alimentado pelo desejo de enriquecer. Em vez de mercadorias passou a vender papéis. Nem sempre os compradores ganhavam. Escrúpulos e remorsos da consciência foram superados pelas alegrias dos ganhos fáceis. Sarcasticamente prega aos seus corretores que eles tem duas opções em suas vidas: Ou se tornam bons corretores ou então contentem-se com seus salários e empregos no Mc Donald's, com as suas compras efetuadas em lojas de departamentos e com os seus carros populares. São bofetadas violentas no sistema, que mal e mal permite esta segunda inserção na sociedade.
O que fazer com tanto dinheiro? Como transportá-lo?

O ritmo alucinante do filme e da vida de Jordan praticamente não permitem questionamentos de ordem moral. É negócio em cima de negócio e é trapaça em cima de trapaça. No mais é festa em cima de festa e festas com muita mulher e com todos os símbolos fluidos deste sistema, como iates, corrupção e contas bancárias na Suíça. As relações sólidas como o casamento, logo se desmancham. É um filme sem pudores, um filme do qual estão ausentes todos os princípios da moral. A felicidade, aparentemente é total. Alguns probleminhas acontecem, como casamento e filhos. O que existe em excesso são os remédios para aliviar. Cocaína e drogas sintéticas, usadas em todas as circunstâncias e quantidades ilimitadas, no limite do humano.

Para todos aqueles que imaginam que a corrupção é algo limitado ao mundo da política e dos políticos, encontram neste filme uma aula maravilhosa de como este sistema, o do capitalismo em seu estágio financeiro e parasitário, funciona. É ele todo um sistema amoral, totalmente destituído de princípios e valores ou então, e melhor, tudo passa a ser subordinado ao valor do dinheiro, inclusive os valores da política e da justiça e acima de tudo, da ética. 

Nunca tive aula de cinema e por isso pouco entendo da parte técnica. Mas a crítica recebeu muito bem este filme. Uma aula de cinema, vi em um comentário. Particularmente me impressionou a velocidade e a vitalidade do filme. Você não percebe o tempo passar. Tive curiosidade de ver a idade de Scorcese. 71 anos. É a experiência e a vitalidade de um velho mestre, que continua jovem, para ainda, muitas e maravilhosas lições Outra parte elogiadíssima pela crítica é trilha sonora. Ela é simplesmente fantástica, lindamente percebida.

O filme tem cinco indicações ao Oscar. Indicações substanciosas. Melhor filme. Melhor diretor (Martin Scorcese). Melhor ator (Leonardo Di Caprio). Melhor ator coadjuvante (Jonah Hill) e melhor roteiro adaptado ( Terence Winter). O original é a autobiografia de Jordan Belfort. Vale a pena conferir este livro, pela crítica à cultura americana, crítica esta, que talvez o prive do OSCAR de melhor filme. A minha torcida vai toda para ele, embora isso signifique muito pouco.

segunda-feira, 20 de janeiro de 2014

A Colônia Cecília. O seu inspirador. Franco Cenni.

Ideias libertárias sempre são sedutoras e fascinantes. Uma das mais belas e fortes doutrinas libertárias foi a dos anarquistas. Tenho duas indicações para fazer a respeito. História das Ideias e Movimentos Anarquistas, vol. 1. A ideia e História das Ideias e Movimentos Anarquistas, vol. 2. O movimento. Ambos são de autoria de George Woodcock e editados pela L&PM Pocket.

Lendo o livro de Franco Cenni, Italianos no Brasil "Andiamo in 'Merica" encontro uma coisa fabulosa, que é um encontro com Giovanni Rossi, um anarquista italiano. Rossi é simplesmente o idealizador da Colônia Cecília, uma experiência que não deu muito certo, realizada aqui no Paraná, nas proximidades da cidade de Palmeira. Rossi era um botânico que pensou em transferir experiências das plantas para os humanos. Em 1900 Rossi homenageava a cidade de Blumenau, por ocasião dos festejos de sua fundação. Vejam o encanto da poesia:
Livro de Franco Cenni Italianos no Brasil. A presença das ideias anarquistas de Giovanni Rossi.

"Se o teu verão é ardente e chuvoso, o teu inverno é tépido como uma primavera da Itália. Tão doce que a videira, apenas perdida as folha, os brotos já repontam, túrgidos, como mamilos de púbere precoce, desejosa de amor. Os teus montes são majestosos com seu esqueleto de granito e seu manto soberbo de florestas virgens, perenemente toucadas com todos as inimagináveis tonalidades do verde. os teus vales são férteis, banhados pelos afluentes do largo e pitoresco Itajaí, que te beija, e ao mesmo tempo te ameaça, e algumas vezes te invade, amigo infiel e caprichoso, ó gentil cidade de Blumenau! (...) Os teus bosques são ainda preciosos tesouros pelas madeiras que escondem, pelo húmus que acumulam,pelas fontes que conservam. tenha piedade delas a bárbara foice do colono..." E termina com um toque bem ao estilo e ao conceito doutrinário que professa. Faz, simultaneamente, a denúncia e o anúncio:

"Mas as tuas flores mais belas e mais gentis, ó Blumenau, não são as orquídeas de tuas florestas; são as moças dos teus lares, que todas as flores vencem em beleza, na doce primavera da vida; são os recém-nascidos nos teus berços, são as crianças de tuas escolas que, sobre as ruínas da nossa civilização decrépita e mentirosa, ainda verão, um dia, talvez, esplendor o futuro".

Rossi nascera em Pisa em 1860. Aqueles eram os tempos em que os conservadores olham com desdém os pensadores que abalavam o mundo (Nietzsche, Marx, Bakunin, Engels) mas os temiam. Cenni assim descreve os tempos do visionário: "O socialismo era ainda uma vasta nebulosa, e anarquia apenas sinônimo de atentados e desordens, quando ao contrário, deveria significar somente falta de governo, 'interregno em que com os Trinta Tiranos se passou um ano sem arcontes'". E, Cenni anuncia o sonho visionário: "Negação da autoridade, também,  que poderia processar-se sem violências, assim como se deu na Colônia Cecília, situada entre Palmeira e Santa Bárbara, em terras do Paraná".  

Cenni passa então a narrar as tratativas de D. Pedro II, casado com Tereza Cristina, do reino das Duas Sicílias, a fundação da colônia. Vejam a descrição: "Foi assim que um monarca estendeu a mão à anarquia... Uma anarquia, repetimos absolutamente pacífica que em 1890 despejaria da proa do vapor Città di Roma, em terras brasileiras, alguns homens e uma única mulher (intelectuais, operários e camponeses). Havia entre eles um ladrão regenerado que viria a ser o mais hábil e o mais voluntarioso trabalhador do grupo. Depois de uma breve sesta em Ponta Grossa, dirigira-se para as terras da colônia experimental, incultas e desertas, onde operaram um comprido carretão, à beira de um córrego. Aquele era o cenário natural em que o homem deveria voltar à sua vida primitiva, não fazendo nada que não fosse por ele expressamente desejado, esquecendo preconceitos e abatendo todas as barreiras típicas de uma civilização rançosa que ainda pretendia apoiar-se em sanções a fim de exigir deveres. O necessário para uma existência frugal, não mais, deveria ser tirado do amanho da terra, enquanto o resto seria descanso, estudo, amor... Trabalho livre, vida livre, amor livre"...

Mas os vícios "do velho" falaram mais alto e impediram o aflorar do novo: "Mas não se pode construir novos mundos com o concurso de homens velhos, roídos por taras milenárias que fazem aflorar, na primeira ocasião, incompreensões profundas". Logo após veio a proclamação da República e com ela o fim do sonho que já estava fazendo água.

Outra indicação de leitura sobre a Colônia Cecília podemos encontrar em Zélia Gattai, a grande memorialista, no Città di Roma, o navio que trouxe para o Brasil, entre outros, os anarquistas que viriam realizar o sonho da fundação da colônia anarquista. Neste navio vieram, com destinos diversos, os nonnos de Zélia. Os Gattai viriam para a colônia:  http://www.blogdopedroeloi.com.br/2013/03/citta-di-roma-zelia-gattai_7.html

quarta-feira, 15 de janeiro de 2014

A Fundação da Sociedade Palestra Itália. Contada por Franco Cenni em Italianos no Brasil. 1914.

Em outro post, comentando o livro de Franco Cenni, Italianos no Brasil, "Andiamo in 'Merica", comentei que o livro é um monumento para quem tem curiosidade. Um mundo inteiro é atingido pela abrangência deste livro. Como estamos no ano de 2014, ano da comemoração do centenário da Sociedade Esportiva Palmeiras, dou aqui a descrição de como o historiador viu a fundação da Sociedade Palestra Itália. A inserção se encontra no capítulo VIII Passaporto Rosso, em que o autor fala do surgimento das diferentes instituições italianas no Brasil, começando pelas instituições de benemerência até chegar às instituições esportivas. Na abertura lemos o seguinte:
Um livro para satisfazer mil curiosidades. Os Italianos no Brasil, de Franco Cenni.

"No terreno das sociedades esportivas, as iniciativas italianas não foram muito numerosas, mas em compensação das mais importantes, pois algumas grandes agremiações, em particular paulistas, têm sua origem em sociedades fundadas por italianos que logo haviam aberto suas portas a quantos se interessassem pelo mesmo esporte". Pág. 300.  A seguir, conta do surgimento das sociedades ligadas ao remo. Vejam:

"A prática do remo em São Paulo foi introduzida pelo Clube Esperia, Hoje (o livro foi originalmente publicado em 1960) Associação Desportiva Floresta". Depois conta sobre a primeira partida de futebol realizada em São Paulo em 14 de abril de 1895, por iniciativa do inglês Charles Miller, que um ano antes desembarca no Brasil com duas bolas, dois uniformes, uma bomba e um enfiador, além de grande entusiasmo pelo esporte bretão. Ao chegar ao campo de jogo, o primeiro trabalho dos participantes da partida foi enxotar os animais que ali estavam pastando. Em seguida se alinharam os quadros do The Team do Gás, integrado por empregados daquela companhia e The S.P. Railway Team constituído de funcionários dessa empresa. Venceu por 4x2 o quadro do S.P.R., e pouco depois o futebol era oficialmente incorporado às atividades do clube inglês São Paulo Athletic. Mais tarde, outro quadro se formava entre os alunos do Mackenzie College, e aquele esporte começou a atrair as atenções populares. As várzeas povoaram-se de jogadores e começou-se a realizar encontros internacionais com times ingleses, uruguaios, argentinos e até sul-africanos". Pág. 301-2. A partir desta introdução sobre o futebol, dando as origens deste esporte no Brasil, o autor centra a sua narrativa na criação da Sociedade Palestra Itália. Vejamos:

O símbolo da então Sociedade Palestra Itália.

"Foi em 1914 que apareceram os primeiros jogadores provenientes da Itália, a esquadra do Torino F. B. C., que no campo do Parque Antártica, então pertencente ao S. C. Germânia, ganhou uma seleção formado (sic) por jogadores da Liga Paulista de Foot-Ball. Pode-se afirmar com segurança que essas e outras vitórias conquistadas pelos jogadores grenás do Torino despertaram o entusiasmo da numerosa coletividade italiana por um esporte que muitos italianos já praticavam com sucesso em clubes locais. A ideia de fundar uma sociedade de nome italiano e com jogadores italianos, ao lado das outras sociedades de caráter patriótico, assistencial ou cultural, tomou vulto. Num primeiro tempo pensou-se em criar uma seção de futebol no Clube Esperia, que contava, além de uma ótima sede, com terrenos apropriados, mas, não sendo possível chegar a um acordo, certo dia (pela história: 13 de agosto de 1914), Vicente Ragognetti enviava ao Fanfulla, (o jornal dos italianos no Brasil) uma carta em que pedia hospitalidade para expor o desejo de conhecidos jogadores de futebol italianos de fundar um clube de peninsulares ao lado dos já existentes, sociedades alemãs, inglesas, portuguesas e nacionais. Cinco dias depois, o mesmo jornal publicava um comunicado da formação de uma sociedade, que se chamaria Palestra Itália e que, além de um time de futebol formado exclusivamente por italianos, contaria também com uma seção de filodramática e recreativa. Na noite de 1º de setembro, no salão Alhambra da praça Marechal Deodoro, 37 pessoas, em sua maioria estudantes e comerciários, se reuniam sob a presidência de Ezequiel Simoni para concretizar o grande sonho. A primeira diretoria foi assim constituída: presidente: Ezequiel Simoni; vice-presidente: Luigi E. Marzo; secretário: Luigi Cervo; vice-secretário: Antônio Aulicino; revisores de contas: Guido Gianetti, Orestes Giangrandi e Armando Rebucci. A estreia dos palestrinos foi contra o S.C. Savoia, de Sorocaba, e constituiu a primeira de uma série de grandes vitórias. O craque alviverde que sacudiu as redes com o primeiro pênalti foi certo Bianco, que se tornou imortal pelo clube". Pelo visto, o sangue italiano do autor, já o fez tomar partido. A narrativa continua:
Palmeiras: símbolo de hoje e de ontem.

"Muito embora contasse com uma sede condigna na rua Líbero Badaró, a sociedade precisava de um campo de jogo. Não havia muito dinheiro em caixa, pois a joia não passava de cinco mil réis e a mensalidade era de três. Assim mesmo, certo dia Vasco Stella Farinello apresentou-se aos senhores Zerenner e Bulow, fundadores e diretores da Companhia Antárctica Paulista, proprietária do enorme Parque Antarctica da Vila Pompeia, para os primeiros entendimentos a respeito da possível aquisição daquele terreno... 'Quinhentos contos de réis', foi a resposta.  Era bastante dinheiro, mas o entusiasmo não era certamente menor: Muitos palestrinos, cuja família já era bem numerosa, entraram com grande parte do dinheiro para garantir o pagamento da primeira prestação de 250 contos, fato que foi comemorado com uma das maiores chopadas de todos os tempos". Pronto. Eis a história do palestra Itália contada por um historiador, que certamente também era um palestrino. Cenni ainda conta da mudança do nome para Sociedade Esportiva Palmeiras:

"Por força das circunstâncias da Segunda Guerra Mundial, o nome da sociedade foi mudado para Palmeiras, mas por ocasião de sua visita ao Brasil o presidente Gronchi descobriu a targa que dava a seu majestoso estádio o nome tradicional do grêmio: Palestra Itália. Os 37 que o fundaram são hoje algumas dezenas de milhares em cujas veias corre, em grande parte, sangue italiano". Págs. 302-3. Longa vida ao glorioso Palmeiras.


terça-feira, 14 de janeiro de 2014

Italianos no Brasil. Franco Cenni. Dificuldades.

Muitas vezes temos uma visão muito romantizada em torno das imigrações que se fizeram no Brasil. Neste momento estou lendo sobre a imigração italiana, que a partir de 1875 se tornou massiva, inicialmente no Rio Grande do Sul e um pouco depois em São Paulo. Nos demais estados ela atingiu menor escala. Estou lendo Italianos no Brasil, de Franco Cenni, livro que teve a sua primeira edição em 1960. A que tenho em mãos é de 2003, da Edusp. Escolhi duas passagens para mostrar as dificuldades pelas quais eles passaram, ambas do Rio Grande do Sul. Vejamos a primeira, de 1925 e tirada de um discurso do eterno governador deste Estado, proferido na inauguração da Exposição Colonial Italiana de Porto Alegre, realizada naquele ano.
O belo livro Italianos no Brasil, de Franco Cenni. Edição EDUSP de 2003.

"Na partilha do solo riograndense, foi a colonização italiana a menos afortunada, porque encontrou já ocupadas as melhores terras de cultura. Reservou-lhe o destino a posse da região aspérrima das altitudes, ao norte do Estado e das colônias alemãs, onde uma natureza montuosa e selvática profundamente rochosa, cortada de vales apertados e de correntes impetuosas, habitada de silvícolas nômades, devia ser o majestoso cenário da raça forte dos nossos povoadores.

Distanciados dos centros urbanos e sem vias de comunicação francas e diretas, quase insulados no sertão bravio, tais foram os largos anos que atravessaram eles em luta pertinaz com a 'selva selvagem', desbravando a ferro e fogo a floresta, abrindo picadas, afugentando o gentio, perseguindo as feras. Durante esse penoso período, a produção era quase limitada às necessidades da subsistência, o comércio rudimentar e difícil, os transportes precários e morosos. Viviam as colônias esquecidas e desprotegidas dos governos da época"!
Borges de Medeiros, o governador do Rio Grande do Sul falando das dificuldades encontradas pelos imigrantes italianos.

A outra narrativa é mais dramática. Ela é relatada pelo jornalista Arquimedes Fortini, que recolheu o depoimento de um velho colono a um sacerdote. Isto ocorreu em 1950, por ocasião da comemoração dos 75 anos da imigração.

"De dia, trabalhávamos com muito medo de ser atacados pelos bugres quando procurávamos derrubar algum pedaço de mato para tirar lenha para o nosso consumo ou para armar algum galpão ou construir alguma cerca. À noite, alguns dos colonos eram destacados a montar guarda, a fim de dar alarma num caso de agressão. Porém, os bugres nunca nos molestaram e também nunca os vimos.
Uma típica casa de colonos italianos em Antônio Prado, a mais italiana das cidades brasileiras.

Ah!, se não fossem os pinhões não sei como teríamos sobrevivido, porque somente em princípios de 1877 começaram as primeiras colheitas de produtos essenciais à nossa alimentação. Quando, porém, veio a bendita safra, constatamos que ela era disputada por muitos pretendentes, entre os quais macacos, papagaios e outros animais e aves que em grande número investiam contra as plantações. Se nos prejudicavam, justiça devemos confessar que muitos deles, apanhados e mortos, mais de uma vez encheram nossas panelas, proporcionando-nos um caldo e uma carne mais do que saborosa. Quanto aos porcos, não nos contentávamos em afastá-los por meio de tiros de espingardas, disparadas ao cair da noite nos lugares das plantações onde desejávamos apanhá-los. Outro estratagema era o abrir buracos, cobertos de folhagem e, quando por ali passavam, neles caíam, havendo assim muita facilidade em apanhá-los; depois de mortos eram transportados para nossas casas. Uma outra praga era dos ratões, em quantidade incrível, roendo caixões, sapatos, trazendo, à noite, verdadeiro sobressalto aos que estavam dormindo. No Campo dos Bugres, a diretoria da Colonização auxiliou-nos numa empresa para sua exterminação, pagando quinhentos réis a quarta (oito quilos). Porém, depois de dois meses de trabalho, encontramos suas tocas, no meio de bambus e, com o emprego de venenos, terminamos com a terrível praga.
A tradição italiana no Campo dos Bugres, atual Caxias do Sul. Já houve tempos mais difíceis.

Sr. reverendo! faça ideia do trabalho tido para buscar qualquer artigo de primeira necessidade! Precisávamos caminhar um dia inteiro, enlamear-nos até os olhos para vencer uma distância que agora se faz comodamente em pouco tempo. Mais de um pobre colono precisou caminhar meio dia, com um saco de milho no ombro, para conduzi-lo ao local onde haveria um simulacro de moinho". Págs. 149-50. O Campo dos Bugres acima referido é a atual cidade de Caxias do Sul.


segunda-feira, 13 de janeiro de 2014

Italianos no Brasil. "Andiamo in 'Merica. Franco Cenni.,

Antônio Cândido indica e a Estante Virtual me põe em contato. Descobri o livro pelas indicações de Antônio Cândido. Dez livros para compreender o Brasil. Entre eles, sobre o tema da imigração italiana, está este livro Os Italianos no Brasil - "Andiamo in 'Merica", de Franco Cenni. Como a última edição do livro data de 2003, o jeito para comprá-lo é recorrer à Estante Virtual. O livro tem a edição da EDUSP. A primeira edição do livro é de 1960, quando Cenni ganhou o prêmio Itália, promovido em honra da visita do presidente italiano, Gionanni Gronchi, ao Brasil. Entre os jurados para a escolha do prêmio estava o próprio Antônio Cândido.
O livro de Franco Cenni, Italianos no Brasil. A primeira edição foi de 1960. Esta é de 2003, da EDUSP.

É difícil imaginar um livro com tamanha abrangência. Ele começa pela influência dos navegadores italianos nas viagens do descobrimento da América e do Brasil e termina com as últimas influências culturais italianas sobre o Brasil, nos anos 1950. Constitui-se de uma retrospectiva histórica, na primeira parte do livro, passando depois a um relato das influências italianas sobre a formação do povo brasileiro, nos mais amplos setores em que poderiam ter influenciado. O livro é, acima de tudo, um grande livro de história do Brasil, com força total para as contextualizações.

Como não tenho a intenção de fazer um resumo do livro, missão que seria absolutamente impossível e, como também é muito difícil fazer uma resenha, darei um passeio por seus capítulos, indicando os temas abordados, tendo como objetivo motivar para a leitura. São 14 capítulos espalhados pelas 535 páginas do livro.
Franco Cenni também era pintor. Óleo sobre tela de típica cena de colonos italianos.

No primeiro capítulo, intitulado Quando Havia Caravelas e Capitães de Ventura, o foco são os inúmeros navegadores italianos que navegaram a serviço dos descobrimentos. Merecem destaque Américo Vespúcio e os genoveses irmãos Adorno.

No segundo capítulo, intitulado No Tempo do Império, merecem destaque a influência italiana no primeiro florescimento cultural brasileiro nos campos da botânica, da medicina, na literatura e na imprensa. Outro destaque é dado ao casamento de D. Pedro II, com a princesa Tereza Cristina, do reino das duas Sicílias e a aproximação de Pedro II com a cultura italiana.

No terceiro capítulo, intitulado Carbonários de Além-mar, é narrado um belo capítulo da história do Rio Grande do Sul em seus tempos de Revolução Farroupilha e as influências que o movimento da Giovane Itália exerceu sobre os revolucionários farroupilhas. São contadas as epopeias de Tito Lívio Zambecari e de Garibaldi e o seu encontro com Anita. Grande destaque é dado aos barcos transportados por terra, ideia que Garibaldi tirou de suas leituras de Plutarco sobre as guerras do Império Romano.

No quarto capítulo, intitulado A Colonização italiana no Rio grande do Sul, merecem destaque as dificuldades de toda ordem encontradas pela colonização italiana, tardia com relação aos alemães, tanto pelas condições da natureza e da qualidade das terras. É mais um capítulo da história do Rio Grande do Sul.
Italianos no Rio Grande do Sul.

No quinto capítulo, intitulado Italianos nos Estados, são focados os estados do Paraná, de Santa Catarina, de Minas Gerais, Espírito Santo, Mato Grosso e nos estados do Norte. No Paraná ganha destaque a localidade de Alexandra, esta das margens da BR 277, já próxima a Paranaguá, na entrada para as praias.

No sexto capítulo, intitulado O Rei café e a Grande Imigração, o estado de São Paulo será o grande foco. É um dos capítulos centrais do livro e que recebe uma belíssima contextualização sobre a substituição da mão de obra escrava pela mão de obra do imigrante, que atingiu o seu auge entre os anos de 1886-88. A narrativa deste capítulo abrange, desde a experiência pioneira do senador Vergueiro, até o relato de mais de um milhão de imigrantes que chegam num período de 20 anos. Aí também encontramos a história do rei do café, o poderoso Geremia Lunardelli.

No sétimo capítulo, intitulado Evolução Industrial, o tema é óbvio. Neste capítulo se estabelece a relação entre a imigração italiana e a evolução industrial brasileira, no estado de São Paulo. A do Rio Grande do Sul já fora abordada no capítulo referente àquele Estado. Nomes como o de Crespi e Matarazzo afluem ao natural. Também as crises da economia cafeeira ganham destaque.

No oitavo capítulo, intitulado Passaporto Rosso, começa a análise das heranças italianas recebidas pela cultura brasileira. Salienta que todos os imigrantes vieram sob um denominador comum, que era a falta de dinheiro. Destaca depois o espírito criativo dos italianos e a fundação de suas agremiações, tanto de benemerência, quanto esportivas, culturais e educacionais. É contada a história do surgimento do Palmeiras, que contarei num post em separado.
Placa em Antônio Prado, anunciando a cidade mais italiana do Brasil.

No Nono capítulo, intitulado Agitadores de Ideias, o grande destaque é dado para o amor à liberdade, expressa pela liberdade de pensamento, especialmente o de sua expressão. Neste capítulo não poderiam faltar as ideias anarquistas que acalentaram a formação da Colônia Cecília. O sonho de seu idealizador, Giovanni Rossi, é magnificamente explicitado.

No décimo capítulo, intitulado Ciência e Cultura são expostas as influências italianas na constituição do Direito no Brasil, bem como na filosofia e na medicina. Livros e livreiros também são abordados. Giuseppe Bertaso, da editora Globo, de Porto Alegre, ganha uma referência especial. O livro não aborda mas é bom lembrar que Bertaso deu o primeiro emprego a Érico Veríssimo e lhe editou os seus livros.

No décimo primeiro capítulo, intitulado Arquitetura, começa narrando as influências dos jesuítas italianos na construção dos templos dos sete povos das missões, indo depois para o Rio de Janeiro e para São Paulo. Ganham destaque desde os construtores mestres de obra até os arquitetos. Entre as obras os destaques vão para o Museu do Ipiranga, para o Teatro Municipal de São Paulo e o edifício símbolo do progresso de São Paulo, o edifício Martinelli.

No décimo segundo capítulo, intitulado Teatro, Música, Pintura e Escultura, o destaque vai para a ópera italiana e para as companhias italianas que a trazem para cá. É relatada a inauguração dos Teatros Municipais, tanto o do Rio de Janeiro, em 1909 e o de São Paulo, em 1911. Na pintura Anita Malfatti e Cândido Portinari são lembrados.

Portinari. Os italianos na pintura. Os italianos e o café. A substituição da mão de obra escrava pela imigração.

No décimo terceiro capítulo, intitulado Contribuição Civilizadora, Científica e Cultural de Religiosos, o grande destaque vai para as ordena religiosas, com destaque para jesuítas, para os capuchinhos, para os Missionários de São Carlos e para os salesianos. Para quem interessar, aqui em Curitiba andou um padre, de nome Pietro Cobachini, responsável por pinturas em igrejas de diversos bairros. Antonil (ou Andreoni) e o seu livro Cultura e Opulência do Brasil por suas Drogas e Minas também ganha referência. O livro foi proibido logo após a sua publicação em 1711, para não despertar a cobiça dos europeus sobre as nossas drogas e minas. Também a descrição do local de uma futura cidade, feita por D. Bosco é destacada. A futura cidade será Brasília.

No décimo e quarto e último capítulo, intitulado Da Primeira Guerra Mundial até Nossos Dias, o destaque vai para as medidas restritivas impostas, tanto pelos países que recebem imigrantes, quanto pelos que cederam suas gentes para a emigração. Volta ainda para as mais recentes influências culturais e termina com uma belíssima exortação em favor da humanidade, que recentemente havia se perdido na xenofobia dos nacionalismos.

Um livro absolutamente recomendável. É uma viagem maravilhosa e que abre mil possibilidades para a satisfação de nossa curiosidade com relação ao povo italiano e as suas aventuras aqui no Brasil. De aperitivo deixo a frase final do Livro:

"...Porque inquestionavelmente latina é esta América em que, mesmo no crisol de tantas raças diferentes, italianos, portugueses e espanhois se identificam com os nacionais numa mesma tradição humanística, numa mesma religião, numa reação idêntica frente aos mesmos problemas, no desejo comum, que se constituiu numa das mais peculiares características do brasileiro, de fazer com que ninguém se sinta exilado nesta terra". 



quinta-feira, 9 de janeiro de 2014

Seara Vermelha. A voz dos beatos e a voz dos padres.

A história é movida pelas contradições. As contradições promovem uma luta interna na totalidade de uma realidade, na busca da superação. Jorge Amado, em seu romance Seara Vermelha confronta o sermão dos padres com a voz dos beatos, bem como as suas práticas. Na superação, ambas as vozes não teriam mais ouvintes quando a terra passasse a pertencer àqueles que nela trabalhassem, quando todos viveriam num mundo onde a justiça social imperasse. Na crença de Jorge, no ano de 1946 - ano em que escreveu o romance, isto se daria com a vitória das revoluções comunistas, mundo afora.
A contradição entre os sermões dos padres e os sermões dos beatos. Um tema trabalhado por Jorge Amado, em Seara vermelha. 

Vejam a diferença dos sermões dos padres e a pregação dos beatos, no caso, do beato Estêvão. Vejam também a diferença da recepção por parte dos sertanejos:

"Chamava-se Estêvão mas todos o tratavam de beato Estêvão., os peregrinos usavam a voz carinhosa de 'meu pai'. Curvavam a cabeça para receber sua bênção quando ele passava, a mão levantada, as palavras quase inaudíveis. Sua bênção era milagrosa, curava doenças, cicatrizava feridas, evitava pragas nas plantações, moléstias nos animais, expulsava os maus espíritos e fechava o corpo dos homens às mordidas das cobras venenosas e às balas assassinas.
Os beatos e a voz da esperança. Uma presença constante em meio a miséria brasileira.

Como duvidar do seu poder sobrenatural, da sua santidade, se as cobras, as mais temidas - a cascavel, o jararacuçu-cabeça-de-platona, a jararaca - saíam do caminho ao seu passo e o acompanhavam na estrada e se deixavam pegar por ele e compreendiam a língua embrulhada que ele falava? Como duvidar, se ele falava da fome dos homens, de todas as desgraças que se sucediam, se ele dizia que nenhum coronel, nenhum dos grandes fazendeiros se salvaria da ira de Deus, do castigo iminente?

Nenhuma palavra podia contra ele, nem mesmo a palava dos padres que se levantavam para condenar o beato. Os sertanejos sabiam que os padres não batizavam nem casavam de graça, viviam pelas fazendas mas hospedados nas casas-grandes, comendo fartamente na mesa dos coronéis, e seus sermões nada adiantavam sobre as terras tomadas, sobre os salários que não davam nem para pagar o armazém. Nos sermões dos padres, cheios de fogo do inferno, eles imprecavam era contra os amigados, os que tinham filhos por batizar, os que se punham nos animais por não ter mulher com quem dormir. O beato falava outra língua. nenhuma palavra contra as raparigas, contra os homens que tinham mulher sem receber a bênção do vigário, contra os que usavam éguas e jumentos. Clamava, em compensação, contra os pecados dos ricos, falava de como eles estavam matando os pobres de fome, e a eles, à sua usura e cobiça, atribuía a cólera de Deus que resolvera terminar com o mundo. Nunca parou para descansar numa casa-grande e as poucas vezes que se encontrou com algum coronel foi para lançar-lhe em rosto as mais violentas imprecações, para convidá-lo a entregar aos colonos espoliados as terras tomadas, para pagar o roubado nas contas do armazém aos seus trabalhadores. E mais de um fugira de sua presença, impressionado com a figura do velho se alteando no bordão, as barbas flutuando ao vento, aves canoras no seu ombro, cobras venenosas no seu rastro".

Junto com os beatos, os cangaceiros. Vozes em defesa do povo oprimido, produzidas pelo coronel e pelo latifúndio.

Cada um que tire suas conclusões mas, verdadeiros São Franciscos andaram pelas caatingas e por todos os sertões deste Brasil, coberto de injustiças.

quarta-feira, 8 de janeiro de 2014

A Caatinga. Seara Vermelha. Jorge Amado.

Este é Jorge Amado. Vejam a descrição que ele faz da caatinga nordestina. Este é o cenário percorrido por milhares de nordestinos no rumo ao paraíso inexistente em São Paulo. Só a saída do inferno nordestino, marcado pelo latifúndio e pelos coronéis, é que os tornava visionários de um paraíso. A natureza oferecia um cenário secundário, se formos levar em conta a capacidade que o ser humano tem para infernizar a vida de seus semelhantes. Somente os humanos são capazes de impor sofrimentos e torturas uns aos outros. Isto é absolutamente impossível no reino animal. Mas vamos ao relato.
Seara Vermelha. O grande drama dos retirantes nordestinos.

A Caatinga.

"Agreste e inóspita estende-se a caatinga. Os arbustos ralos elevam-se por léguas e léguas no sertão seco e bravio, como um deserto de espinhos. Cobras e lagartos arrastam-se por entre as pedras, sob o sol escaldante do meio-dia. São lagartos enormes, parecem sobrados do princípio do mundo, parados, sem expressão nos olhos fixos, como se fossem esculturas primitivas. São as cobras mais venenosas, a cascavel, e a jararacuçu, a jararaca e a coral. Silvam ao bulir dos galhos, ao saltar dos lagartos, ao calor do sol. Os espinhos se cruzam na caatinga, é o intransponível deserto, o coração inviolável do Nordeste, a seca, o espinho e o veneno, a carência de tudo, do mais rudimentar caminho, de qualquer árvore de boa sombra e de sugosa fruta. Apenas as umburanas se levantam, de quando em quando, quebrando a monotonia dos arbustos com a sua presença amiga e acolhedora. No mais são as palmatórias, as favelas, os mandacarus, os columbis, as quixabas, os croás, os xiquexiques, as coroas-de-padre, em meio a cuja rispidez surge, como uma visão de toda beleza, a flor de uma orquídea. Um emaranhado de espinhos, impossível de transpor. Por léguas e léguas, através de todo o Nordeste, o deserto da caatinga. Impossível de varar, sem estradas, sem caminho, sem picadas, sem comida e sem água, sem sombra e sem regatos. A caatinga nordestina.

E através da caatinga, cortando-a de todos os lados, viaja uma inumerável multidão de camponeses. São homens jogados fora da terra pelo latifúndio e pela seca, expulsos de suas casas, sem trabalho nas fazendas, que descem em busca de São Paulo, Eldorado daquelas imaginações. Vêem de todas as partes do Nordeste na viagem dos espantos, cortam a caatinga abrindo passo pelos espinhos, vencendo as cobras traiçoeiras, vencendo a sede e a fome, os pés calçados nas alpargatas de couro, as mãos rasgadas, os rostos feridos, os corações em desespero. São milhares e milhares se sucedendo sem parar. É uma viagem que há muito começou e ninguém sabe quando vai terminar porque todos os anos os colonos que perderam a terra, os trabalhadores explorados, as vítimas da seca e dos coronéis juntam seus trapos, seus filhos e suas últimas forças e iniciam a jornada. E enquanto eles descem em busca de Juazeiro ou de Montes Claros, sobem os que voltam, desiludidos, de São Paulo, e é difícil, se não impossível, descobrir qual é a maior miséria, se a dos que partem ou a dos que voltam. É a fome e a doença, os cadáveres vão ficando pelo caminho, estrumando a terra da caatinga, e mais viçosos nascem os mandacarus, maiores os espinhos para rasgar novas carnes dos sertanejos fugidos. Famílias numerosas iniciam a viagem e quando atingem Pirapora a doença e a fome os reduziu a menos da metade. Ouvem-se, nessas cidades que bordejam a caatinga, as mais incríveis histórias, sabe-se das desgraças mais tremendas, aquelas que nenhum romance poderia conter sem parecer absurdo. É a viagem que jamais termina, recomeçada sempre por homens que se assemelham aos que os precederam como a água de um copo à água de outro copo. São os mesmos rostos de indefinida cor, os pés gigantescos, de dedos abertos, sobrando das alpargatas, o cabelo ralo, o corpo magro e resistente. As mesmas mulheres sem beleza nas faces cansadas. Enchendo o deserto da caatinga com suas vidas desesperadas, com seus ais de dor, seu passo abrindo picadas que logo se fecham em espinhos.

A caatinga que os retirantes tinham que atravessar.

Aqui, na caatinga, habitam os cangaceiros. Os soldados da vingança, os donos do sertão. Não têm paz nem descanso, não têm quartel nem bivaques, não têm lar nem transporte. Sua casa é seu quartel, sua cama e sua mesa são a caatinga, para eles bem-amada. Os soldados da polícia que os perseguem não se atrevem a penetrar por entre os arbustos de espinhos, os pés de xiquexiques e croás. Ao lado das serpentes e dos lagartos, vivem os cangaceiros na caatinga, e também eles, por vezes, liquidam no tiro de suas repetições os sertanejos que descem e que sobem na contínua migração.

E aqui surgem, no coração seco da caatinga, os beatos mais famosos, aqueles que arrastam multidões dramáticas no seu passo, enchendo o sertão de orações estranhas, de ritos supersticiosos, anunciando pela boca repleta de profecias o fim do mundo e do sofrimento dos camponeses. Na caatinga habitaram Lucas da Feira, Antônio Silvino, Corisco e Lampião, hoje habita Lucas Arvoredo com seus jagunços. Na caatinga surgiram Antônio Conselheiro e o beato Lourenço. Do mais distante do deserto surge agora, com as mesmas alucinadas palavras de profecia o beato Estêvão.
Os retirantes sempre vislumbravam um claro sol depois da interminável caatinga. A fantástica capacidade da esperança.

Só os imigrantes são os mesmos, os nomes podem mudar, mas são idênticos rostos, a mesma fome, o mesmo fatalismo, a mesma decisão no caminhar. Atravessando a caatinga, sobre as pedras, os espinhos, as cobras, os lagartos, para frente, indo para São Paulo onde dizem que existe terra de graça, e dinheiro farto, voltando de São Paulo onde não existe nem terra nem dinheiro.

Lá vão eles, são centenas, são milhares, na viagem de espantos. Durante meses atravessam a caatinga. Os cadáveres vão ficando pelos caminhos improvisados e nem mesmo eles modificam a paisagem desolada onde, ao sol causticante, dormem indiferentes lagartos. Água só lá embaixo, onde termina a miséria da caatinga e começa a miséria do rio São Francisco". Seara vermelha, págs. 53-55.

terça-feira, 7 de janeiro de 2014

Seara Vermelha. Jorge Amado.

Cai, orvalho do sangue do escravo,
Cai, orvalho na face do algoz.
Cresce, cresce, seara vermelha,
Cresce, cresce, vingança feroz..

Versos de Castro Alves, que formam uma das epígrafes do livro de Jorge Amado, A Seara vermelha. Esta epígrafe combina com o último parágrafo do livro, em que se lê: "E pela madrugada, quando as sombras ainda envolviam os campos úmidos de orvalho, e no ar se elevava aquele cheiro poderoso de terra, Nenem partiu para a caatinga pelo mesmo caminho seguido um dia por Jerônimo e sua família. Os brotos de dor e de revolta cresciam naquela seara vermelha de sangue e fome, era chegado o tempo da colheita".
Um dos mais vibrantes livros a abordarem o tema do retirante nordestino, junto com Vidas Secas e O Quinze.

Seara Vermelha foi escrito em 1946, em pleno mandato de Jorge Amado como deputado constituinte pelo Partido Comunista Brasileiro. O tempo de colheita se refere ao tempo que virá, o tempo em que a revolução comunista, já vitoriosa, extinguiria do sertão ou da seara vermelha de sangue e fome, a sua dor, causada neste mundo, por um universo de injustiças. Nenem caminha pelo sertão, cheio de esperanças, organizando as células do Partido Comunista, assim como Jerônimo e a sua família um dia caminharam no rumo da esperança, representada por São Paulo.

Este romance de Jorge é impressionante. Retrata a dura vida do sertão e das andanças sem fim do sertanejo em busca de uma melhor condição de vida, que nunca chega. Por isso o caminho é de ida e de volta. É sertanejo que busca São Paulo e é sertanejo que busca de volta a sua vida sofrida do sertão. Jerônimo e a sua família é a descrição das milhares de famílias sofridas que andam em permanente peregrinação. As grandes dores são representadas pelo deserto de espinhos da caatinga, pelo sol inclemente a castigá-los, as doenças causadas pela fome, a capacidade infinita da maldade humana, representada pelo coronel e as instituições por ele criadas, como o latifúndio, as leis e a polícia.
Bela capa da primeira edição de Seara Vermelha, lançado em 1946 pela Livraria Martins Editora.

Como analgésicos para esta dor, as únicas vozes e as únicas ações que se levantam contra esta ordem são: a voz dos beatos e a ação dos cangaceiros, os justiceiros e vingadores do sertão. Em Seara vermelha, o beato toma a forma do beato Estêvão, coadjuvado por Zefa, a lesa da família de Jerônimo. Sua voz junta multidões, anunciado a ira de Deus e o fim do mundo e pedindo penitências aos sertanejos, já que para os coronéis não havia salvação. Eram as injustiças por eles praticadas, abençoadas pelos padres e salvaguardadas pela lei, que provocavam a ira de Deus. Era a ação do cangaço que impunha um pouco de medo e assim impunha um pouco de limites aos inumanos coronéis. O cangaço não é representado por Lampião. Este fora de outra época. Agora é o destemido Lucas Arvoredo, que tem em  Zé Trevoada o seu valente escudeiro. Zé Trevoada é José, um dos filhos de Jerônimo.

A família de Jerônimo sai do sertão, após a venda da fazenda de seu Aureliano, que tinha Artur como capataz, que recebeu ordens para despachar todos os colonos. Jerônimo e Jucundina, mais a sua família começam as andanças pela caatinga, junto com a família de João Pedro, seu irmão. Acompanham ainda o jumento e marisca, a gatinha que Noca carregava no braço. Quando o grupo já estava reduzido, os mais fracos ficavam no caminho, até a marisca foi sacrificada, para matar a fome de mais um dia de andança. Já bem reduzido, o grupo chega a Juazeiro, na Bahia. As esperanças se renovam. A caatinga ficara para trás. Agora é só no navio. O destino é Pirapora. Lá seguiriam de trem, no trem da imigração. Este não precisavam nem pagar.

Em Pirapora precisam de um visto de saúde, dado pelo médico da imigração. Com ele, não haveria mais obstáculos para chegarem ao paraíso de São Paulo. Mas Jerônimo adoecera. O visto não lhe é negado. Entra em cena Marta, a filha de Jerônimo e Jucundina. As agruras do sertão não conseguiram roubar-lhe toda a beleza, logo percebida pelo médico. A chantagem acontece. Os vistos de saúde são liberados e os poucos que sobram seguem para São Paulo. Fica Marta, amaldiçoada por Jerônimo, e feito mulher dama. A desgraça ia se completando.
Cartaz do filme Seara Vermelha, lançado em 1964, baseado na obra de Jorge Amado.

O romance novamente se volta para o sertão. O beato Estevão recebe toda a atenção. A polícia recebe ordem para acabar com ele e seus seguidores. A voz do beato chicoteava a consciência dos coronéis. Não suportavam mais ouvi-la. Entre os policiais está Jão, o João, outro filho de Jerônimo. Jão não vê razão para cercar e matar o beato Estevão, mas polícia não precisa entender, tem que cumprir as ordens. O beato recebeu a ajuda de Lucas Arvoredo, que já contava em seu bando com José, o temível Zé Trevoada, o outro filho de Jerônimo. Os irmãos iriam se enfrentar em plena caatinga.

O romance se volta agora para Natal. Ali se encontra o cabo Juvêncio, o Nenen de Jerônimo e Jucundina. Era cabo do exército e soldado do Partido Comunista. Foi um dos líderes da Aliança Nacional Libertadora. Quase se tornou mártir da causa. Foi parar em Ilha Grande, de prisão em prisão. Era estimado por todos. Recebeu a visita de Jucundina e do sobrinho Tonho. Trocam-se as notícias e reanimam-se as esperanças. Só não tem notícias de Marta.

Juvêncio volta para o sertão, para acabar com os beatos e os cangaceiros e isto só aconteceria quando o Partido Comunista já estivesse no poder e a terra passasse a pertencer àqueles que nela trabalhavam. Um belo sonho, que a todos dava alento.

segunda-feira, 6 de janeiro de 2014

A Aculturação dos Alemães no Brasil. Emílio Willems.

Eu continuo seguindo na trilha aberta pelo Antônio Cândido. Desta vez quem me possibilitou segui-la foi a Estante Virtual, onde encontrei o livro. Antônio Cândido, na sua indicação de livros para compreender o Brasil, na parte que se refere à colonização alemã, indica o seguinte livro: A Aculturação dos Alemães no Brasil. O autor é Emílio Willems. A edição é da Companhia Editora Nacional. O prefácio da primeira edição deste livro nos indica que ele foi publicado originalmente em 1946. A segunda edição, que tenho em mãos, revisada e ampliada, data de 1980.
O livro de Emílio Willems, A aculturação dos alemães no Brasil. Um livro de muita pesquisa e erudição. Observem o detalhe de como se estudava o Brasil. Brasiliana - volume 250.

Emílio Willems nasceu na Alemanha em 1905, na cidade de Colônia, vindo ao Brasil em 1931. No Brasil estabeleceu-se no Paraná e dedicando-se ao magistério. Mudou-se para São Paulo em 1935 e passou a ser professor na Universidade de São Paulo, a partir de 1937. Com amplos conhecimentos de sociologia e de antropologia dedicou os seus estudos à aculturação de seus conterrâneos no Brasil. A partir dos anos 1950 passa a ser professor em diferentes universidades do mundo. O seu livro é um monumento de cultura e erudição e um modelo de pesquisa.

O livro se divide em duas partes. Uma primeira, que ele chama de parte geral, que se compõe de nove capítulos e, uma segunda, por ele denominada de parte especial, tem mais treze capítulos, sendo o último dedicado às conclusões gerais. Na primeira parte, os capítulos abordam os seguintes temas: Capítulo I. Assimilação e aculturação. É um capítulo árido em que são explicitados os conceitos sociológicos dessas palavras. É desnecessário dizer que estes conceitos fundamentam toda a análise do livro. Capítulo II. O êxodo dos alemães e os caracteres gerais de sua colonização no Brasil. Capítulo III. O peneiramento. Aqui ele examina especialmente os desajustes entre os imigrantes. Capítulo IV. Alguns aspectos ecológicos da colonização germânica. A competição pela ocupação do espaço e as brigas e desajustes que ocorrem são o tema deste capítulo. Capítulo V. A seleção. O tema é o processo adaptativo. capítulo VI. Isolamento e Contato. São analisados os conflitos decorrentes do processo adaptativo e a marginalidade cultural. Capítulo VII. Aculturação e "status". A luta pelo "status" e as mudanças decorrentes da aculturação são examinadas. Capítulo VIII. Aculturação ergológica e tecnológica. Neste capítulo são abordados os temas da alimentação, da habitação, da lavoura, da locomoção, entre outros. Capítulo IX. Caracteres gerais da sociedade e cultura teuto-brasileira. 189 páginas são consumidas por estes nove capítulos.
A cidade de Harmonia, no vale do rio Caí. Uma típica cidade de colonização alemã.

Na parte especial encontramos o seguinte: Capítulo X. A língua. Capítulo XI. A organização econômica. Capítulo XII. A escola. Capítulo XIII. Sexo e família. Capítulo XIV. A religião. Capítulo XV. A organização jurídica e política. Capítulo XVI. Literatura e imprensa. Capítulo XVII. A recreação. E o capítulo XVIII Conclusões. Creio que é fácil perceber a abrangência do livro. Só um homem muito erudito poderia produzi-lo. Ele sempre começa a análise pela Alemanha, como era a situação antes da migração, para então examinar as adaptações que houve por aqui. Esta segunda parte vai da página 193, até a 465.

É sabido que a Alemanha é um país de unificação tardia (1871) e que a imigração de povos de língua alemã começou em 1824. Sendo assim vieram ao Brasil diferentes povos que depois vieram a constituir a Alemanha. E é muito importante destacar que havia diferenças de todo o tipo nas diferentes regiões e, entre eles havia povos muito atrasados. O autor dá destaque especial aos pomeranos, neste quesito do atraso.

Um erro muito comum que cometemos quando falamos de imigração é ver os padrões alemães ou europeus de hoje e, a partir daí fazermos as transposições. Não é e nunca foi assim. De uma maneira geral os povos que compuseram a Alemanha eram muito atrasados. Muitos, inclusive, vieram analfabetos. Em termos de cidadania, nada sabiam. Eram súditos e não cidadãos. E aqui não encontraram facilidades. Vieram, ou para abrir áreas de colonização, ou para substituir o trabalho escravo, praticamente nas mesmas condições. Vejamos um trecho do livro: "A princípio, os imigrantes e seus descendentes caracterizavam-se pela sua atitude  passiva diante da política brasileira. Pequenos lavradores, trabalhadores rurais e artífices, nunca tinham ouvido coisa alguma de direitos políticos na sua velha pátria. O papel político desses imigrantes restringia-se ao de meros súditos a quem nunca se havia dado oportunidade de participar do poder".
Vista de Tupandi, outra cidade do vale do rio Caí, colonizada pelos alemães.

Outra passagem é significativa: "Para a grande maioria dos imigrantes alemães, a fixação na mata virgem significava, durante longos anos, a luta pela sobrevivência acompanhada de um desnivelamento cultural generalizado. Não sobrava tempo para outras atividades a não ser aquelas que se relacionassem com a satisfação das necessidades vitais". Desajustamentos em sua aculturação sempre estiveram presentes, com grande destaque para as bebidas alcoólicas. Também o período de emigração foi um período muito longo, o que dificulta fazer generalizações. Alemães em melhores condições vieram apenas a partir de 1848, depois das revoluções liberais, que grassaram por toda a Europa.

Algumas observações gerais podem ser feitas: A colonização se deu pela propriedade agrícola, sempre explorada pela mão de obra familiar. Enquanto esta era a organização econômica dominante, as colônias alemãs eram praticamente impermeáveis a influências externas. Grande destaque sempre foi dada ao processo de alfabetização. Para isso escolas comunais ou paroquiais foram criadas. Era difícil encontrar professores e estes passavam por enormes dificuldades. A religião permeava todas as ações. Eram divididos entre católicos e protestantes. Os católicos levaram algumas vantagens, especialmente antes da República. Os protestantes não tinham os documentos reconhecidos. As aculturações foram difíceis e as assimilações vieram bem mais tarde, com a industrialização e a urbanização.
A presença da cultura alemã em Harmonia, a cidade em que eu nasci.

Eu particularmente gostei muito do livro. Me senti descrito o tempo todo. Onde mais me encontrei foi no seguinte trecho: "Um dos maiores proprietários daquela zona  era José Inácio Teixeira, dono da fazenda Pareci que se estendia entre os rios Maratá e Caí, em ambas as margens do arroio São Salvador, até a região do planalto. Em 1854 começou a colonização dessas terras onde em 1862 já se contavam 80 famílias. É digno de nota que o povoamento da área do Caí se fazia como autocolonização. Quase todos os moradores eram filhos ou netos de imigrantes alemães". Eu explico. Eu nasci em Harmonia, no vale do rio Caí, em 1945 e, pelo que eu sei, os meus avós já eram nascidos no Brasil. Sobre as dificuldades de aculturação eu tenho a dizer que fui aprender português, apenas nos tempos de escola. Em casa a língua era o alemão.  Quanto a descrição dos hábitos, a descrição do autor corresponde com muita fidelidade ao que eu vivi.