terça-feira, 30 de abril de 2013

Preparativos para a Conferência Nacional de Educação. Rumo ao Sistema Nacional de educação.

Na terça-feira passada (23.04.2013) fui à Assembleia Legislativa do Estado do Paraná, participar de uma Audiência Pública, que tinha por finalidade abrir os trabalhos para as conferências municipais e inter municipais de educação, aqui no Paraná. A grande Conferência Nacional, deverá ocorrer em fevereiro de 2014. O processo no Paraná deverá envolver mais de 40.000 pessoas. A bela iniciativa foi do Deputado prof. Lemos. Estiveram presentes ao evento o deputado federal Ângelo Vanhoni, o prof. Francisco das Chagas Fernandes, coordenador do Fórum Nacional de Educação, o Prof. Carlos Augusto Abicalil, articulador do Governo junto ao Senado, a profa. Andréa Caldas, do setor de educação da UFPR. e coordenadora do Fórum Estadual de Educação, junto com representantes de um sem número de entidades, que se fizeram presente.
A mesa que presidiu a audiência pública que lançou no Paraná as Conferências Municipais de Educação.

Vou destacar aqui algumas falas. O deputado Ângelo Vanhoni, que foi o relator do Plano Nacional de Educação na Câmara, onde ele foi aprovado, teceu um panorama sobre o mesmo. Ele se encontra agora no Senado Federal, praticamente, em compasso de espera. Isso é grave. Se houver modificações tudo voltará a estaca zero. Vejam bem, este plano abrange o período de 2011 a 2020. Como dá para ver, estamos sem plano e assim poderemos ficar por mais um bom tempo. No ano que vem, o clima de eleições dificultará tudo. Vanhoni também levantou a questão dos royalties. Estopim puro. Ao final do ano passado os deputados aprovaram, simultaneamente, os 10% do PIB para a educação, mas aprovaram também, a não exclusividade dos royalties do pré-sal para a educação. Isto é profundamente contraditório.O Plano está estruturado em torno de dez objetivos, a serem alcançados com o estabelecimento de 20 metas. É material de fácil localização. O Google acha tudo!

Eu, particularmente, achei preocupante, quando o Plano foi aprovado pela Câmara, com o índice de 10% do PIB. Foi muito fácil. O governo falava em 7%, Vanhoni puxava para 8,5 e, de repente, quando se tentava um consenso em torno de 8%, foram aprovados os dez. Minha leitura, tomara que eu esteja enganado. Vamos ver isto num outro momento, em outras esferas. Royalties sobre petróleo é potencial de incêndio. A sua distribuição envolve pacto federativo. Todos estamos vendo as dificuldades. Brigas e mais brigas.
Francisco das Chagas Fernandes, do MEC e presidente do Fórum Nacional de Educação.

Da fala do professor Francisco das Chagas Fernandes vou destacar duas coisas. A primeira, de fundamental importância, é a de que o Brasil seja efetivamente governado por instituições e não por vontade de governos. Isso só é alcançado por definição de políticas públicas, em nível de Estado e não de governo.Por isso a importância da definição legal para o estabelecimento do Plano Nacional de Educação, que deverá levar em conta as aspirações da sociedade, auscultada através da Conferência Nacional de Educação, com delegados escolhidos a partir das conferências municipais e estaduais. Tudo isso terá como objetivo maior a construção de um Sistema Nacional de Educação. Ufa! Pela primeira vez em nossa história. A segunda parte de sua fala foi em torno dos sete eixos, que servem de referência para a discussão nas conferências municipais e estaduais. Estes eixos também são facilmente, encontrados no Google e, eles giram em torno dos temas tradicionais da educação, como a qualidade, o financiamento, a gestão, a valorização dos profissionais. Chamo a atenção, no entanto, para algo bastante novo: o eixo dois. Ele reza assim: Educação e Diversidade: Justiça Social, Inclusão e Direitos Humanos. Imaginem o vespeiro, em tempos de Felicianos.
Carlos Augusto Abicalil. Precisamos de uma lei de responsabilidade educacional.

Como este espaço é limitado, faço apenas um destaque da fala do prof. Abicalil, mas isto não é pouco e diz tudo. Ele diferenciou os anos 90, de domínio de FHC, do PSDB, - dos primeiros dez anos, do dois mil, anos de domínio de Lula, do PT. Os anos 90 foram anos do Estado para dentro, voltado para si mesmo, enquanto que, os primeiros anos do dois mil foram anos para fora, da abertura do Estado para o Estado/ Nação.Os anos FHC foram marcados pela lei de responsabilidade fiscal e pela DRU, que permitia retirar dinheiro da saúde e da educação, para deixá-lo à mercê do Estado. Os tempos do PSDB apontavam para o mercado, para a competição, para os vencedores, esquecendo que, num processo de competição a maioria perde, a maioria é excluída. Destes, o Estado se ausentou e a isto passaram a chamar de responsabilidade e gestão eficaz. Os anos Lula apontaram na direção do Estado/Nação. O guarda chuva protetor do Estado, amparou os excluídos do mercado para promover cidadania. Os gastos do Estado foram enormemente ampliados e foram aplicadas políticas afirmativas para reparar erros históricos. A DRU foi extinta e a verbas para a educação já atingiram 6% do PIB e a direção aponta para os 10%. Crescimento econômico com  justiça social pela distribuição de renda é a grande marca do anos do PT.

Abicalil ainda apontou para o perigo do aumento das verbas para a educação. O mercado educacional está de olho nestas verbas. Enquanto a lei de responsabilidade fiscal não permite contratar gente, convênios e terceirizações podem acontecer sempre. Os conteúdos curriculares, quais mercadorias, são vendidos pelos chamados sistemas estruturados, pelos quais o professor perde a práxis em seu trabalho, virando mero aplicador de aulas e de provas, muitas provas em avaliações, que comparam o incomparável, que tem como principal objetivo lançar culpas individuais pelos maus resultados obtidos.
 A professora Marilza, de Umuarama, registrou a minha presença na audiência pública.

Estamos diante de um momento ímpar na política brasileira, em que estamos todos, especialmente os educadores, convocados para a participação. Estamos convocados para a ágora, para construir instituições e, desta maneira fortalecer a democracia brasileira. Mais do que nunca, os projetos políticos estão em disputa. Na exata medida em que os setores populares avançam, o conservadorismo recrudesce. O movimento do capital é um só, em sua lógica perversa de acumulação. Encerro com a mesma frase de  alerta de ontem, de Paul Singer: "O neoliberalismo é umbilicalmente contrário ao estado de bem-estar, porque seus valores individualistas são incompatíveis com a própria noção de direitos sociais".

  

segunda-feira, 29 de abril de 2013

Reflexões em torno do Primeiro de Maio.

O primeiro de maio foi consagrado como o dia do trabalhador, no  primeiro de maio de 1889, pela Segunda Internacional, um movimento de cúpula da organização internacional da classe trabalhadora. A Segunda Internacional  foi organizada após a dissolução da Primeira, pelo próprio Marx, em virtude de divergências insuperáveis entre os marxistas e os anarquistas. Da Segunda, os anarquistas já estavam excluídos. A Organização da Segunda Internacional ainda existe. Brizola sempre foi o grande representante brasileiro e o seu símbolo é a rosa, que está gravada no escudo do Partido Democrático Trabalhista, o PDT. A grande marca da Segunda Internacional foi o abandono gradativo da ortodoxia marxiana e uma aproximação com as doutrinas da Social Democracia.
Um dos mais valiosos presentes que ganhei em minha vida. São cartões postais comemorativos ao primeiro de maio. Ganhei esta obra de arte de trabalhadores alemães, quando com eles fiz cursos, em 1995.

Pois bem. O que levou a adoção da data do Primeiro de maio como o dia comemorativo do trabalhador, foram os incidentes ocorridos na cidade de Chicago, em 1886. As más condições de trabalho levaram os trabalhadores dos Estados Unidos à decretação de uma greve geral, no primeiro de  maio daquele ano. No dia 3 houve fortes movimentos de rua, que voltaram a ocorrer no dia 4. Nos confrontos do dia 4 morreram sete soldados, com a explosão de uma bomba. O revide policial deixou doze trabalhadores mortos e dezenas de feridos. Os líderes do movimento dos trabalhadores, após ritos sumários de julgamento, foram condenados. Cinco à forca e dois à prisão perpétua. Dos cinco condenados à morte, um se suicidou na prisão. Depois de executada a pena, a inocência destes trabalhadores foi comprovada.

A principal reivindicação trabalhista da época era a redução da jornada de trabalho, de treze horas diárias para 8 horas. Vendo esta reivindicação com os olhares de hoje, até imaginamos que isto não fosse possível. A organização dos trabalhadores crescera enormemente na segunda metade do século XIX, em função de dois motivos primordiais: o sofrimento imposto aos trabalhadores, pelos proprietários do capital e o avanço na compreensão deste sofrimento a eles imposto, com as análises teóricas sobre o funcionamento do capital e as conclamações revolucionárias de Karl Marx. "Proletarier aller Länder Vereinigt Euch! Eis a famosa frase final do maior manifesto revolucionário do mundo, de todos os tempos.

Festejos de maio - Leipzig - 1914. Vejam a referência às oito horas diárias de trabalho. 8-STUNDENTAG.

Os fatos ocorridos em Chicago nos mostram que o primeiro de maio é realmente um dia de comemoração, ou melhor de celebração, de homenagem, de culto e reconhecimento pela luta. Mas também de comemoração festiva, pois, a luta regada a sangue, germinou e frutificou. Em 1919, após os horrores da Primeira Guerra, uma guerra entre os potentados do Capital, por uma disposição do Tratado de Versalhes, concluído em 1919,  foi criada a Organização Internacional do Trabalho. Esta, ainda no ano de 1919, em outubro, realiza a primeira Conferência Anual da Organização do Trabalho, com a presença de quatro membros de cada país participante: dois representando o governo, um o capital e outro o trabalho. Os países membros se comprometiam a acatar as deliberações da Conferência. Houve a deliberação de seis convenções nesta Primeira Conferência e a primeira destas convenções foi a de "limitar as horas de trabalho na indústria a oito por dia e 48 por semana".

As outras cinco Convenções trataram do desemprego, da proteção à maternidade, do trabalho noturno das mulheres, da idade mínima para o trabalho e do trabalho noturno dos jovens. Estava inaugurada uma era de legislação trabalhista e de avanços nos chamados direitos sociais, possíveis em função dos direitos civis e políticos, já conquistados anteriormente. A Convenção foi ratificada por 52 países e os primeiros a ratificá-la foram a Grécia, a Índia, Myanmar (a então Birmânia), a Romênia e a Bulgária.
Possivelmente um dos primeiros cartões para o primeiro de maio. Viena 1890.

Não vou aqui entrar nos méritos do socialismo real, se seria ou não, a prometida ditadura do proletariado. E se foi, teria valido a pena, num balanço entre conquistas e os meios para se chegar a eles. Os avanços são geralmente reconhecidos, especialmente, em termos de emprego pleno, avanços na educação e saúde. Mas a perspectiva que se coloca no horizonte, é a do socialismo com democracia. Nos países capitalistas, as reformas patrocinadas pela social democracia tiveram a adesão de muitas organizações de trabalhadores e o exemplo maior é a adesão que a Segunda Internacional lhe deu. Dois nomes principais estão ligados à social democracia: John Maynard Keynes  e William Beveridge. A social democracia, no entanto, não alterou a lógica e os mecanismos de funcionamento do capital.

No Brasil, que tem em suas elites, as elites mais perversas do mundo (Vejam o trato com a abolição), as questões ligadas ao trabalho, e as demais questões sociais, sempre foram tratadas como questões policiais (República Velha - Ditadura militar). Apenas no governo Vargas, e olhem a ironia da história, em plena ditadura do Estado Novo se fixam as leis trabalhistas. A maior conquista brasileira está ligada à Consolidação das Leis Trabalhistas, que reuniu em uma só lei, as leis esparsas que já existiam. Vargas ficou consagrado, em função disto, como o Pai dos Pobres. Nem a ditadura militar ousou mexer com os direitos consagrados na CLT.

Um dos livros mais notáveis que eu tenho é o História da Cidadania, livro organizado por Jaime e Carla Bassanezi Pinski, da Contexto. Na parte referente aos Direitos Sociais, está a parte mais preciosa do livro. Um texto de Paul Singer, sobre "A Cidadania para todos". Este texto de 70 páginas, que sempre estava incluído em minhas aulas de Teoria Política, é uma das mais fabulosas sínteses sobre a evolução dos direitos sociais que eu já vi. É um olhar que começa com a industrialização na Inglaterra e que termina com um alerta preocupante, sobre o retrocesso no avanço destes direitos, a partir dos anos 80, iniciados com a falecida Tatcher, na Inglaterra e seguidos mundialmente com Reagan e Kohl e, que no Brasil, encontraram o seu auge, nos dois governos de Fernando Henrique Cardoso, que proclamava arrogantemente, que a sua missão maior, era acabar no país, com a memória de Vargas. A referência era relativa a flexibilização das leis trabalhistas, contidas na CLT. A palavra flexibilização é uma invenção semântica neoliberal tucana, que na verdade significava a extinção.
Neste livro está contida "A cidadania para todos", escrito por Paul Singer. É importante não esquecer a sua advertência sobre a incompatibilidade entre o neoliberalismo e os direitos sociais.

"O neoliberalismo é umbilicalmente contrário ao estado de bem-estar, porque seus valores individualistas são incompatíveis com a própria noção de direitos sociais", nos alerta Paul Singer. No Brasil, felizmente, o neoliberalismo foi caminho abandonado, ao menos parcialmente, com os governos Lula e Dilma. A renda dos trabalhadores, modestamente, tem aumentado, políticas públicas de inclusão e reparação social são instituídas e, mostramos ao mundo, como se faz crescimento econômico com distribuição de renda e inclusão social.

Antes de terminar, um alerta se torna necessidade urgente. Projetos políticos continuam em disputa. Os países com ideais socialistas e da social democracia tem conseguido taxas de crescimento econômico e de diminuição do desemprego, alcançando inclusive, taxas consideradas de emprego pleno e que vivem em relativa tranquilidade social, sem dizer com isso, que vivemos no paraíso. Longe disso. Reformas mais profundas precisam ser feitas. Mas os países que ainda teimam em aplicar a doutrina neoliberal, como os países europeus, estes estão amargando taxas negativas de crescimento, taxas de desemprego rondando a casa dos 20% e com agitações de rua e de repressão policial aos trabalhadores, quase diárias.

Que no primeiro de maio não esqueçamos a convocação de Marx "Proletarier Aller Länder - Vereinigt Euch", que reverenciemos os nossos mártires e que, comemoremos as conquistas sim, mas acima de tudo nos lembrando de que existem projetos políticos em disputa e enxergando, com todas as evidências, que o projeto neoliberal, incorporado no Brasil pelo PSDB e partidos adjacentes, em nada condizem com o interesse dos trabalhadores. Ah sim, só para não esquecer. O dia do trabalho, o labor day, nos Estados Unidos é comemorado na primeira segunda feira do mês de setembro. Que vergonha! Querem apagar o primeiro de maio de sua história.


sexta-feira, 26 de abril de 2013

A Fábula-mito do Cuidado.

Na semana passada meu filho, o Alexis, fez uma cirurgia de hérnia de hiato, coisas do estômago, do esôfago e, mereceu alguns cuidados especiais. Aproveitei o momento para retomar o livro do Leonardo Boff, do qual já falei ontem, Saber Cuidar. Ética do humano - Compaixão pela terra.  Todo o livro é construído em cima desta maravilhosa fábula-mito do Cuidado. Usei muito esta fábula ao longo de minha vida de professor, durante as minhas aulas.
Saber cuidar. Neste livro encontramos a fábula-mito do Cuidado.

O livro tem na sua capa uma imagem do que seria o cuidado. Apresenta a terra, ou o globo terrestre, sendo segurado por duas mãos, remetendo para um dos subtítulos do livro: compaixão pela terra. Mas quero ficar com a primeira parte do subtítulo: ética do humano. Vamos misturar as coisas. O cuidado e a ética do humano. Se sempre incorporássemos o cuidado em nossas ações do cotidiano, precisaríamos falar da ética do humano ou da compaixão pela terra? Em aula, pedia para os alunos construírem outras imagens do cuidado e apareciam belíssimas criações.

Pois bem, a cirurgia transcorreu maravilhosamente bem, confirmando as maravilhas da técnica a serviço do humano. Mas mereceu alguns cuidados, no pós. Afinal, por dentro se mexeu em muitas coisas. Uma alimentação que foi gradativamente passando do líquido para o pastoso e, ao menos por enquanto, ainda está por aí. Ele já foi embora, mas os cuidados continuam. Mas refletindo sobre a palavra e exercitando o cuidado na prática, descobrimos os seus encantos. Igualdade entre os seres humanos e respeito nas relações  são derivativos fundamentais. A palavra igualdade é de uma radicalidade sem tamanho.As doutrinas morais se tornam até desnecessárias, quando incorporamos a prática do cuidado em nossas vidas.

Mas vamos a história. É o mito da criação. Sua base é romana, com inspiração grega. Leonardo Boff nos dá uma tradução livre para o português. Vejamos:
Leonardo nos conta a fábula-mito da criação do homem.

"Certo dia, ao atravessar um rio, Cuidado viu um pedaço de barro. Logo teve uma ideia inspirada. Tomou um pouco do barro e começou a dar-lhe forma. Enquanto contemplava o que havia feito, apareceu Júpiter.

Cuidado pediu-lhe que soprasse espírito nele. O que Júpiter fez de bom grado.

Quando, porém, Cuidado quis dar nome à criatura que havia moldado, Júpiter o proibiu. Exigiu que fosse imposto o seu nome.

Enquanto Júpiter e o Cuidado discutiam, surgiu, de repente, a Terra. Quis também ela conferir o seu nome à criatura, pois fora feita de barro, material do corpo da Terra. Originou-se então uma discussão generalizada.

De comum acordo pediram a Saturno que funcionasse como árbitro. Este tomou a seguinte decisão que pareceu justa:

Você, Júpiter, deu-lhe o espírito; receberá, pois, de volta este espírito por ocasião da morte dessa criatura.

Você, Terra, deu-lhe o corpo; receberá, portanto, também de volta o seu corpo quando essa criatura morrer.

Mas como você, Cuidado, foi quem, por primeiro moldou a criatura, ficará sob seus cuidados enquanto ela viver.

E uma vez que entre vocês há acalora discussão acerca do nome, decido eu: esta criatura será chamada Homem, isto é, feita de húmus, que significa terra fértil".
Que o Cuidado faça florescer entre nós o gosto pelo belo e que nos desperte para a sensibilidade do humano.


Bela reflexão para a  nossa vida. Quanto cuidado devemos ter com ela, na nossa formação, na nossa lapidação e  na construção da nossa areté, . Precisa dizer mais! E que ao longo de nossas vidas possamos dar e receber muitos cuidados para que, neste húmus, ou campo fértil que somos, as sementes do humano germinem com todo esplendor, e que seus frutos sejam visíveis, pelos laços da boa convivência entre nós. Um muito bom dia e que nas nossas relações tenhamos um espaço todo especial para o Cuidado.

quinta-feira, 25 de abril de 2013

Bom Dia! Bom Dia. Em torno do seu significado.

Uma das piores coisas que pode acontecer na vida de uma pessoa é permitir que a rotina tome conta, que os atos do cotidiano se normalizem e passem a ser puramente mecânicos e repetitivos. Quanto mais revestidos de significado forem esses atos, pior será o seu impacto, quando eles se transformarem em atos meramente mecânicos e repetitivos. Algo meio instintivo, próprio da esfera dos animais. Uma das piores coisas que eu ouvi na minha vida foi ouvir de um professor, que ele dava aulas, esperando o mês passar para receber o seu salário. Dos atos repetitivos e mecânicos está ausente o sentido, o significado e a paixão.  Isso retira da vida os seus temperos.

Um dos atos mais rotineiros em nossas vidas é cumprimentar as pessoas, dando-lhes um bom dia. Dizem até que em Curitiba este hábito não é tão generalizado. Já percebi isto fazendo caminhadas em Guaratuba, ao longo da qual você recebe muitos bons dias. Também tive um colega de trabalho, na Universidade Positivo, que sempre dava o bom dia acrescido de um muito. O seu cumprimento sempre era - muito bom dia. Que bom!. Mas como damos e como recebemos  o simples ato de dar ou de receber um bom dia?

Um dos livros que eu tenho e que eu trato com muito cuidado, cuidado uma das palavras mais maravilhosas que temos, é o livro de Leonardo Boff, Saber cuidar - Ética do Humano - Compaixão pela terra. Na capa, duas mãos sustentam o globo terrestre. Muitas vezes, em sala de aula, solicitei que os alunos criassem outras imagens para a palavra cuidado. Geralmente a imagem preferida era a de uma mãe com uma criança no colo. Como a vida seria mais significativa se levássemos em maior consideração esta simples palavra chamada cuidado.
O maravilhoso livro de Leonardo Boff. Saber cuidar - Ética do Humano - Compaixão pela terra, da Vozes.

Com base neste livro farei dois posts, procurando ter muito cuidado ao fazê-los. Neles colocarei muito empenho, não os procurarei fazer de qualquer jeito, apenas para constar. Um, o de hoje, será sobre o significado de um simples bom dia. Qual é a mensagem que transmitimos à outra pessoa quando lhe damos este cumprimento. Um próximo post será sobre a própria palavra cuidado, ou sobre a fábula mito do cuidado.
Quanta luz há no caminho deste fabuloso homem, a quem foi imposto um silêncio obsequioso, para que não falasse da luz que emana de Zeus e de Júpiter.

Para manter a originalidade e a beleza do texto, o deixarei na íntegra. Vejamos então o significado de que se reveste o ato de desejar a alguém um bom dia:

"Júpiter é a divindade central da religião romana. É o deus criador do céu e da terra,dos deuses e dos seres humanos. Talvez a filologia da palavra Júpiter nos desvende a experiência que seu nome oculta. Por detrás da palavra Júpiter se esconde a partícula jou provinda do sânscrito dew que significa luz, brilho e claridade. Piter, presente em Júpiter é a fórmula antiga de pater, pai. Júpiter significa então o pai e o senhor da luz. Da raiz sânscrita dyew subjacente à língua grega, latina, germânica, céltica e lituana, proveio Deus e dia. Deus neste contexto remete a uma experiência de luz. A luz com seu brilho e calor constitui uma das experiências frontais da psique. Ela corporifica o sentido e a alegria de viver, de discernir na multidão o rosto da pessoa amada, de ver o esplendor da natureza e das estrelas, de identificar um caminho e de livrar-se da angústia da escuridão e da errância. Desejar um "bom-dia" a alguém significa, originariamente, desejar-lhe um bom deus e muita luz em seu caminho. Quem guarda hoje em dia ainda essa memória sagrada, presente numa expressão tão corriqueira como "bom-dia"?

E Leonardo continua falando sobre Júpiter: "Júpiter se manifestava na vivência religiosa dos romanos pelo resplendor do dia e também pelos raios, relâmpagos e trovões nas tempestades (Júpiter tonante). Foi neste contexto que Júpiter se sincretizou com Zeus, o deus maior do panteão grego, pois possuía a mesma significação. O nome Zeus deriva também do sânscrito dyew pitar ou também dyaus pitar significando o pai do céu luminoso e do dia ensolarado".
Apenas um reflexo da luz.

Bem, depois disso, o que nos resta a fazer? Desejar a todas e a todos "um bom deus e muita luz em seu caminho", ou simplesmente, um bom dia ou um muito bom dia!

quarta-feira, 24 de abril de 2013

"Há de nascer, de crescer e de se misturar". Viva o Povo Brasileiro.

"No amplo território do Pelourinho, homens e mulheres ensinam e estudam. Universidade vasta e vária, se estende e ramifica no Tabuão, nas portas do Carmo e em Santo Antônio Além-do-Carmo, na Baixa dos Sapateiros, nos mercados, no Maciel, na Lapinha, no largo da Sé, no Tororó, na Barroquinha, nas Sete Portas e no Rio Vermelho, em todas as partes onde homens e mulheres trabalham os metais e as madeiras, utilizam ervas e raízes, misturam ritmos, passos e sangue; na mistura criaram uma cor e um som, imagem nova, original". Assim começa o grande romance de Jorge Amado, o seu preferido. O livro é defesa de tese, o valor e a originalidade da miscigenação.
O povo e a cultura brasileira são frutos da mistura. Da mistura!

Esta defesa de tese, encontra na descrição da menina Rosa, um de seus mais lindos argumentos. Trata-se do encontro do já velho Pedro Archanjo com Rosa Alcântara Lavigne. Vejamos o argumento: "Os olhos gastos fitam a morena que o ampara. Beleza sua conhecida, íntima, familiar. Ah!, só pode ser a neta de Rosa! A doçura, o dengue, a ânsia, a sedução, a extrema formosura, ele a reconhece inteira:
- Você é a neta de Rosa? A filha de Miminha? - a voz infinitamente cansada porém alegre.
Como sabe? 
Tão igual e tão diferente, quantos sangues se misturaram para fazê-la assim perfeita? Os longos cabelos sedosos, a pele fina, os olhos azuis e o denso mistério do corpo esguio e abundante.
- Fui amigo de sua avó. Assisti ao casamento de sua mãe. Como é seu nome?
- Sou Rosa, como ela. Rosa Alcântara Lavigne.
- Estuda medicina?
- Estou no terceiro ano.
- Pensei que nunca fosse ver mulher tão bonita quanto sua avó. Rosa Alcântara Lavigne... - olhou a moça nos olhos azuis francos e curiosos, herança dos Lavigne. Ou dos Alcântara? Olhos azuis, pele morena:
- Rosa de Oxalá Alcântara Lavigne.
- De Oxalá? De quem o nome?
- De sua avó.
Rosa de Oxalá... Uma beleza, acho que vou adotar...".

O livro Tenda dos milagres é todo ele defesa da miscigenação. Os embates se dão entre alguns professores puristas, das teorias da eugenia, da Faculdade de Medicina da Bahia ( a primeira do Brasil) e o bedel da mesma faculdade e ojoubá do candomblé, Pedro Archanjo. Os doutores são puristas, enquanto Pedro Archanjo é sincretista, defensor da síntese das misturas de pele e de culturas. O cenário dos embates remontam aos anos de 1930. Vamos colocar um pouco de história no meio. O livro tem um precioso posfácio. Coisa de um bom doutor em história. João José Reis é o seu nome. Ele identifica alguns personagens de Jorge Amado, tornando-os reais. Assim, os argumentos do Dr. Nilo Argolo são buscados em Nina Rodrigues, para quem mestiços fatalmente eram degenerados. Pedro Archanjo, por sua vez, é construído em cima de vários personagens, especialmente , em Manoel Querino, líder popular e autor de livros sobre a influência  negra nos costumes e alimentos da Bahia. Estes são também os escritos de Pedro Archanjo.
Na universidade Popular do Pelourinho, a Fundação Jorge Amado.

Também é personagem do livro o abade D. Timóteo Amoroso Anastácio, do Mosteiro de S. Bento, que fora invadido naqueles anos "de cotidiano melancólico e intranquilo". É uma referência à ditadura militar. O professor João José Reis, identifica no engenheiro Tadeu o brilhante estudante, que fazia provas de engenharia com versos de poesia. Coisa que é sabida de Marighella. Mas voltando ao abade D. Timóteo, este coloca nas mãos de Pedro Archanjo a obra de Franz Boas, que foi professor de Gilberto Freyre nos anos 1920 na Universidade de Colúmbia. E é este fato que eu quero destacar. Gilberto Freyre, o grande autor de Casa Grande e Senzala. O pernambucano, além de ter exercido influências sobre Jorge Amado, eles foram muito amigos, além de deputados constituintes, em bancadas diferentes, obviamente. Gilberto Freyre era um pensador profundamente conservador. Em Navegação de Cabotagem, Jorge conta como conseguiu aprovar na Constituição de 1946 a emenda da Liberdade religiosa, que ainda figura tal e qual, na atual Constituição de 1988. Como religião não faz parte das coisas de comunistas, jamais a sua bancada concordaria com a apresentação desta emenda. Jorge buscou apoio entre os conservadores e Gilberto Freyre teria comentado: "Como eu não tive esta ideia antes". É que Jorge era do meio. Ele sabia das perseguições policiais e da difamação da imprensa sobre o candomblé. E agiu inteligentemente e não obtusamente.

Mais uma palavrinha sobre Casa Grande e Senzala. Apesar das muitas teorias racistas da época, Freyre sustenta que não existem impedimentos de povos miscigenados se desenvolverem, teoria comum na época, fruto das teorias da eugenia. De uma maneira geral, na visão das elites, o Brasil era um país condenado ao subdesenvolvimento por causa da miscigenação de povos e de culturas, aqui havido. O Brasil assim não tinha futuro, pois o seu povo era um povo de condenados. Assim o Brasil seria um eterno país coadjuvante no desenvolvimento mundial. As elites se beneficiavam disto tirando proveito da situação e governavam atendendo os ditames de fora. Os nossos governantes se faziam cônsules dos interesses das potências mundiais. Se aliavam a estes potências e que se danasse o nosso povo. Os governos eram claramente contra os interesses do povo.
O livro que derrubou dois mitos: o geográfico e o racial. Por este livro não mais nos considerávamos inferiores. Livro fundamental para entender o Brasil.

A reversão desta mentalidade, que ainda é muito forte, não nos iludamos, muito se deve aos trabalhos de Gilberto Freyre. Jorge Amado, Darcy Ribeiro, e já antes, Sérgio Buarque de Holanda, Caio Prado Júnior e Celso Furtado empenharam o engenho de suas inteligências para remover preconceitos e afirmar bem alto o valor do povo brasileiro, mas que para afirmá-lo precisa transformar os seus governos e a ação de seu Estado em ações de construção de uma Nação. Jamais teorias de mercado, marcadas pela competição darão conta da construção da Nação Brasileira. Gilberto Freyre sofreu muitas críticas, muitas delas merecidas, mas é de uma grandeza incomparável. 

Como são apaixonantes os temas relativos a construção do Brasil como uma Nação e ver que este processo está apenas no seu começo e é por isso que a participação política se constitui num dever ético, ainda mais, que esta nervura ética está se quebrando no cotidiano da política brasileira. Ontem fui na audiência pública, que marcou o início dos debates preparatórios da CONAE (eu falo disso em outro post) aqui no Paraná, numa iniciativa do deputado prof. Lemos. A CONAE tem um eixo de debate em cima desta questão, o eixo dois, que diz: Educação e diversidade: Justiça social e direitos humanos.  Jorge Amado é - apenas-  um dos pioneiros nestes debates.   

segunda-feira, 22 de abril de 2013

Jorge Amado. Tenda dos Milagres.

Em post anterior, escrevemos que na literatura de Jorge Amado existem duas fases bem distintas: Na primeira ele se dedica à literatura regional, onde o cacau será o tema central e a segunda, quando se dedica à miscigenação e ao sincretismo religioso e cultural. No Brasil nada existe que seja puro, tudo foi misturado e isto é maravilhoso. Creio que esta afirmação sintetiza o esforço literário de Jorge nesta segunda fase. E é desta fase, o seu maravilhoso Tenda dos milagres, que, segundo o próprio autor, é o seu livro preferido.
Tenda dos milagres. O livro preferido do autor. A tese do livro pode ser assim resumida: "É mestiça a face do povo brasileiro e é mestiça a sua cultura".

 O livro é uma proclamação, em alto tom, de louvores ao povo brasileiro, fruto da miscigenação, da mistura de cores, de fusões e incorporações culturais e tudo isto tendendo para o maravilhoso e para o belo. O livro é um ato de amor ao novo que surge, usando uma expressão de Darcy Ribeiro, da ninguemdade. Estes ninguéns surgem a partir das fusões entre os três povos que aqui se encontraram. E assim, depois de misturados, o português não é mais português, o negro não é mais negro e o índio não é mais índio, para serem uma realidade absolutamente nova: o povo brasileiro."É mestiça a face do povo brasileiro e é mestiça a sua cultura", afirma Pedro Archanjo, o personagem em torno do qual o livro é construído.

É sabido que os personagens literários são melhores que os personagens reais. É tarefa fácil melhorar as qualidades boas e atenuar as más, quando da construção de um personagem. Pedro Archanjo é um personagem maravilhoso, sedutor e apaixonante. Ele é uma síntese de muitos baianos maravilhosos que andam pelas nossas ruas e, no caso específico, pelas ruas do Pelourinho e pelas suas adjacências. Pedro Archanjo é, acima de tudo, humano. Um personagem tipicamente brasileiro. Ele não enriquece, como a cultura dominante apresenta os personagens vitoriosos, de sucesso. Ele simplesmente exerce um fascínio enorme em meio ao seu povo. Ele, acima de tudo, vive em coerência consigo mesmo e recebe a admiração de todos pelas suas qualidades, profundamente humanas. Alto astral, alta auto-estima.
Jorge finalizando o livro, em Salvador , em 1969.

Sobre Pedro Archanjo existem no livro, notas sobre ele, que são simplesmente espetaculares. São encontradas entre as páginas 159 e 163. São notas dadas por um amigo pesquisador, por uma agência de publicidade, por uma professora e por um aluno de escola pública. Elas tem origem nas comemorações que são feitas, em torno de seu centenário de nascimento. Em suma, Pedro Archanjo é filho de um cabo que morreu na guera do Paraguai e de uma Noêmia de tal, a sua mãe. O personagem se cria em torno do Pelourinho, junto com um amigo, riscador de milagres, na ladeira do Tabuão, 60, onde se situa a Tenda dos Milagres, a sede da Universidade Popular do Pelourinho. Pedro Archanjo foi ojoubá no candomblé e bedel na Faculdade de Medicina da Bahia.

Quem conhece Salvador, facilmente consegue reconstruir o cenário em que se passa a história: as ladeiras do Pelourinho e acima a Faculdade de Medicina e a catedral e, um pouco mais adiante, o elevador Lacerda, que une a cidade alta com a cidade baixa. Os embates dos anos 1930 fornecem os componentes ideológicos, centrados no racismo. Afinal de contas, são os tempos da eugenia, do arianismo, tempos de Hitler. Estas teses são ardorosamente defendidas na Faculdade de Medicina, a glória da Bahia, especialmente nas cadeiras de medicina legal e de psiquiatria e que são um libelo condenatório da raça negra e, ainda mais, das raças que se misturam. "Negros e mestiços possuem natural tendência ao crime, agravada pelas práticas bárbaras do candomblé, das rodas de samba, da capoeira, escolas de criminalidade a aperfeiçoar quem já nascera assassino, ladrão canalha", eram algumas das lições ensinadas por alguns professores, capitaneados por Nilo Argolo. A polícia zelava contra "a exibição de tais costumes monstruoso acinte às famílias, achincalhe à cultura, à latinidade de que tanto se orgulhavam intelectuais, políticos, comerciantes, fazendeiros, a elite". Do outro lado estava Pedro Archanjo, bedel e ojoubá, os olhos de Xangô.
Mãe Menininha do Gantois. Jorge admirava e participava do candomblé, uma religião sem males, sem o pecado e sem a culpa. Um culto às alegrias a vida.

Pedro Archanjo morre em 1943 e recebe um dos maiores funerais de Salvador. Ele se torna personagem famoso a partir dos estudos do professor Levenson, da Universidade de Colúmbia e prêmio Nobel. Ele estuda os livros de Pedro Archanjo, sobre os costumes da Bahia. Quando estes estudos são descobertos vem os louvores, comemoração de centenário, promoções e concursos sobre o agora famoso escritor. Sobretudo, um esforço de higienização de sua obra, de purificação, isto é, de deturpação de sua obra.

Os embates entre Pedro Archanjo, o pequeno bedel e Nilo Argolo,o grande doutor, são notáveis e ocupam as páginas mais memoráveis do livro. E são muito importantes para o estudo da cultura brasileira, para a compreensão da mentalidade da elite brasileira e de seu caráter eminentemente antipopular. Também sobra para a imprensa baiana, sempre a apoiar as ideias da elite. Também é notável no livro, uma história paralela, uma história de amor, mas central para a defesa da tese do livro. A história de amor entre Tadeu, um filho do Pelourinho e da tenda dos milagres, com Lu, filha de aristocratas brancos e donos de infindas terras da Bahia. O casamento não terá consentimento da família branca, coisa que os netos consertarão. Tadeu fará carreira brilhante, com Paulo Frontin, na urbanização do Rio de Janeiro. É o sucesso da miscigenação.

O posfácio do livro é precioso. Coube ao professor de história da Universidade Federal da Bahia, João José Reis, fazê-lo. Ele nos dá dados sobre a criação dos personagens centrais, identificando-os com personagens reais. Se ler é contextualizar, o seu relato é de grande importância para um melhor entendimento da obra. Quanto à obra, não precisa dizer mais nada. Basta repetir que Jorge Amado considera este livro como a sua obra predileta e, junto com João José Reis, confirmamos a sua tese central: "identidade negra não interessa ao Brasil, interessa ao Brasil a identidade mestiça".

Mas sobre isso faremos um outro post. 

sexta-feira, 19 de abril de 2013

Terras do sem-fim. - Jorge Amado.

Eu vou contar uma história,
Uma história de espantar.
Eu já contei uma história, Uma história de espantar. Isto é "Terras do Sem Fim".

Estes versos aparecem praticamente no final do livro de Jorge Amado, Terras do sem-fim. Mas bem que poderiam estar no começo do romance, alertando desde cedo ao leitor, para o espanto que foi esta cultura no sul da Bahia, ao final do século XIX e no início do XX. Mas não foram só horrores. "Tudo é o cacau, meu filho... Nasce até bispo em pé de cacaueiro...até bispo...", conta Jorge, já ao final do livro.

Também, já ao final, um advogado se dirige a um dos coronéis do cacau: "É curioso como vocês podem fazer tanta desgraça e, apesar disso, serem homens bons". O romance é isso. Terras, cacau, coronéis e peões, jagunços, muitos jagunços, senhoras piedosas e fofoqueiras e prostitutas, muitas prostitutas e cabarés. Advogados chicaneiros e até um bispo. Em torno desses personagens se forma o romance. São cinco capítulos, que vem num crescendo. 

No primeiro, um navio sai da Bahia, como era chamada Salvador na época, em direção a Ilhéus. Aí se dá a ambientação dos principais personagens. No segundo capítulo se adentra a mata, para a sua derrubada e o plantio do cacau. Caxixes, tocaias e astuciamentos são agora os principais componentes, junto com os coronéis e os seus trambiques. Os coronéis Juca Badaró e Horácio mostram as suas ambições, sem limites, nestas terras do sem-fim. A luta entre estes dois coronéis, pelo comando político da região e pela posse das terras do Sequeiro Grande, as melhores terras para o plantio do cacau, formam ainda o segundo capítulo do livro. Também histórias de amor e, consequentemente, de sonhos vem num crescendo, já desde o início.O amor impossível entre o Dr. Virgílio e Ester, a menina educada e sonhadora, que casa com o bruto coronel Horácio, mas que vive ardendo em amores pelo e com o doutor, é de se imaginar, que não termine bem.

Na terceira parte, surgem as cidades. Onde antes havia apenas Ilhéus, agora o distrito de Tabocas se transforma na cidade de Itabuna. Vão surgindo também Ferraras, Baraúnas e o Sequeiro Grande. Nestas cidades o cotidiano se repete. Mulheres rezando e fofocando, os coronéis tramando e os advogados ardilando. Mas os mais rápidos são sempre os jagunços, preparando tocaias para as vítimas, estas, sempre indicadas pelos coronéis. As brigas se avolumam. Os comandos políticos estão para trocarem de mãos e a grande luta está anunciada para a quinta parte do livro, sem antes passar pelo mar, visto do cais, na quarta parte. O último capítulo é dedicado ao progresso. Ao progresso da região e a chegada da civilização junto com o cacau, que até bispo dá. A referência ao bispo é real, pois em 1913, a cidade de Ilhéus é elevada à condição de diocese. Esse é mais ou menos o desenlace da história. Mas a sua grande riqueza está na descrição dos personagens.

O livro é acompanhado de um breve, mas belo posfácio, escrito por Miguel Souza Tavares, que situa  e contextualiza magnificamente a obra. O neo-realismo como sendo a literatura da época, a militância de Jorge Amado no Partido Comunista, mas que consegue superar os limites que o neo-realismo impunha. Também fala do prazer que ele sentiu em ler Jorge Amado. Destaca, como sendo o maior mérito do livro, a caracterização que Jorge dá aos seus personagens. Ao Dr. Virgílio e a Ester e, especialmente aos coronéis Horácio e Juca Badaró.
Jorge Amado com a filha Paloma. Paloma nasceu em Praga em 1951, quando Jorge e Zélia estavam exilados no Castelo de Dobris.

O livro é ainda acompanhado por uma cronologia, que deve acompanhar todos os livros, na sua reedição, feita pela Companhia das Letras  em 2012, por ocasião do centenário de seu nascimento. Esta cronologia é antecedida de uma pequena nota também significativa. Transcrevo-a: 

"Terras do sem-fim e São Jorge dos Ilhéus têm praticamente uma unidade temática; é uma história única que se desenvolve sob dois ângulos, dois pontos de vista, dois tempos. Um tempo que é anterior ao craque da Bolsa de Nova York, em 1929, outro posterior, depois da revolução de 1930". A nota esclarece que esta informação foi dada pelo próprio Jorge, em entrevista à tradutora, Alice Raillard. A nota conclui com alguns dados do ciclo cacaueiro. Vou ler também o São Jorge dos Ilhéus. É um entrelaçamento entre literatura e história extraordinário.

Não deve ter sido muito difícil para Jorge escrever sobre o cacau, pois era filho de um de seus coronéis, de  Tabocas, depois transformada em Itabuna. Difíceis sempre foram as circunstâncias para que escrevesse. Sempre esteve limitado pela  militância política que o Partidão lhe impunha e, ordem do partido não se discutia, se cumpria e, pelas perseguições políticas que isto causava, tanto na ditadura Vargas, quanto nos horrores dos tempos da Guerra Fria. Terras do sem-fim foi escrita em Montevidéu, em 1942.Suas obras chegaram a ser queimadas, tanto em Salvador, quanto nos Estados Unidos, no período do Macartismo.

Terras sem-fim integra a primeira fase da escrita de Jorge Amado, os temas regionais, que ele viveu e dos quais ganhou gosto, especialmente, a partir da obra de Gilberto Freyre. Hoje mesmo vou começar a leitura de "Tenda dos Milagres", que marca um outro período de sua obra, dedicada a mestiçagem e ao sincretismo religioso.




quinta-feira, 18 de abril de 2013

Jorge Amado - Um baiano romântico e sensual.

Jorge Amado morreu em 6 de agosto de 2001. Zélia, a esposa, João, o filho e Paloma, a filha lhe rendem uma homenagem póstuma com o livro Jorge Amado - Um baiano romântico e sensual. São três depoimentos, verdadeiro tributos de amor da esposa e dos filhos. A morte fora lenta, Jorge se foi aos poucos A introdução é escrita pelo amigo da família Eduardo Portella, que define a vida de Jorge, como um sonho sempre sonhado, jamais alcançado e muito menos abandonado. Os três nos dão uma radiografia preciosa da vida do grande escritor.
Zélia, João Jorge e Paloma contam as histórias deste baiano formidável.

Para Zélia, na verdade, teria sobrado muito pouco a contar, pois, já contara quase tudo em seus livros de memórias. Mas ela faz relatos escritos com os sentimentos. Creio que nunca contou tão explicitamento o seu encontro com Jorge, em 1945, num Congresso de Escritores, no Teatro Municipal de São Paulo, conta ainda, muitas coisas do cotidiano da vida do casal. É interessante o encontro das mães, Angelina, a de Zélia e Lalu, a de Jorge. Dona Lalu defendia Jorge em qualquer circunstância e por ele comprava briga com toda a facilidade. Já Dona Angelina, muito humilde, sempre achava a filha despreparada para viver com um homem de tamanha importância. Tanto Jorge, quanto Zélia tinham saído de um casamento mal sucedido, quando ainda não se falava de divórcio e os preconceitos eram sem número, infindos.
Em 1945 o baiano romântico e sensual joga seu charme sobre Zélia. Discussões divertidas e eternas sobre quem tomou a iniciativa.

Zélia dá uma bela retrospectiva das andanças do casal. A eleição de Jorge como Constituinte por São Paulo, pelo Partido Comunista, a mudança para o Rio de Janeiro, a cassação da bancada do Partidão, o exílio, primeiro de Jorge e depois de Zélia, que não pode acompanhá-lo no primeiro momento por causa  do menino João. O primeiro exílio se dará em Paris, mas o clima da Guerra Fria os tira de Paris e seguem então para Praga, no Castelo de Dobris, onde formará um grande círculo de amigos intelectuais e receberá o Prêmio Stálin, por seus trabalhos em favor da paz. O prêmio lhe foi concedido em 1951.

Relata também a volta para o Brasil, o fim de sua militância no Partido Comunista, a mudança para Salvador, a compra da casa no Rio Vermelho com o dinheiro do imperialismo americano, pela tradução de Gabriela. Outro grande destaque é o grupo de amizades que se forma em torno da casa do Rio Vermelho. Zélia nos esclarece sobre curiosidades do que Jorge não sabia fazer, como cantar, dançar, dirigir, ligar TV e abrir uma latinha de cerveja. Conta ainda da compra do apartamento em Paris, agora com o dinheiro de Tieta, e sobre seus anos finais, já acometido por doenças. Revela o seu lema de escritor; e também de ser vivente: "escrever, para mim, é o mesmo que viver".

João Jorge escreve sobre fragmentos de verdade do capitão de longo curso, uma alusão ao Navegação de Cabotagem, escrito pelo pai. Conta que a maior herança recebida  foi a generosidade, a alegria de viver e a sapiência, marcas maiores de seu pai. Não faz um ufanismo da obra do pai, mas cita o episódio de um jornalista que tentou desmerecer sua obra, qualificando-o como o escritor de putas e de vagabundos, contrapondo a isso a qualificação recebida da imprensa francesa: "Le Zolá Brésilien". Conta do machismo do pai, ao lhe ensinar os primeiros versos:
Em 1948, Zélia junto com João Jorge, seguem atrás de Jorge, este já no exílio. Primeiro em Paris e depois em Praga.

Joãozinho pica d'Aço foi à caça
Que caçou? Que caçou?
Bucetinha, bucetinha
Pica d'Aço já caçou.

Mais tarde, os mesmos versos foram repetidos para Bruno, o primeiro neto seu, filho de João Jorge. Depois, nos conta, ele foi superando este e outros preconceitos herdados em sua formação. Mas João Jorge procura mostrar o lado brincalhão de Jorge, o seu gosto por contar e inventar histórias, de aprontar com os amigos, lhes pregando peças, como mandar ao aeroporto peças de arte duvidosas, já na hora do embarque e em nome do governador e assim por diante. Conta de seus hábitos, do gosto de estar com os amigos, das viagens e especialmente do culto às suas amizades. Também nos conta de seu gosto pelos animais, papagaios, cães e, especialmente, gatos.

Conta ainda de seu gosto por frequentar mercados populares, dos lugares turísticos não convencionais e do seu gosto por jogos. Talvez o mais interessante seja o seu relato sobre a herança política recebida, a herança de um comunista ortodoxo. Entre as lições desta herança estava a de demonizar todas as pessoas ricas e guardar silêncio no dia da morte de Stálin (uma espécie de sexta-feira santa comunista). Revela ainda as tendências futebolísticas do pai, que era torcedor do Ypiranga, na Bahia e do Bangu, no Rio de Janeiro.

Paloma fala do pai como o seu melhor amigo, e que o culto à amizade era a sua verdadeira religião. A amizade era o sal da vida. Conta que sempre teve com o pai um relacionamento de cumplicidade, de muita amizade, que também foi extensiva a todos os amigos de papai. Prezava muito a convivência com gente simples e por esta razão, a escola dos filhos, sempre foi a escola pública. Mas para os que rompiam com a amizade, ele tinha um cemitério particular, onde enterrava estas pessoas. Paloma diz que esta foi uma herança rapidamente incorporada.

Jorge e Paloma no Castelo de Dobris, nos arredores de Praga.

Mas o relato mais impressionante de Paloma foi o período final da vida do pai. Já enfraquecido por diversas doenças, foi se entristecendo. Como não podia mais escrever, também cessara a vontade de viver, pois para ele escrever e viver se confundiam. Paloma se cala sobre o ano de 2001. Os sofrimentos devem ter sido profundos. Apenas relata que viveram em limites extremos, tanto ele, quanto nós.

O livro é escrito com um sentimento profundo. Como Zélia gostava de Jorge e como tinha reciprocidade este amor e como era linda a sua forma de se relacionar com João e Paloma. Coisa de se invejar, com aquela inveja santa. Um livro que penetra na intimidade dos sentimentos e da subjetividade das pessoas. Fantástico. Recomendo demais. O livro está recheado de fotografias.


quarta-feira, 17 de abril de 2013

Darcy Ribeiro recebe a "Extrema Unção" de Leonardo Boff.

A morte de Darcy Ribeiro deve ter ocorrido num dos cenários mais lindos, se é que se pode falar, de que para a morte, existe esse cenário lindo. Darcy teria solicitado, que em sua morte fosse assistido por frei Betto e por Leonardo Boff. Somente Leonardo Boff esteve presente. A morte de Darcy aconteceu, depois de resistências para lá de heroicas, em Brasília, no dia 17 de fevereiro de 1997.
Darcy Ribeiro pede para ser atendido por Leonardo Boff e por frei Betto, quando em seus últimos momentos de vida. 

Quando Leonardo chegou, Darcy lhe deu as suas Confissões, ainda inéditas, e pediu a leitura do parágrafo final do Prólogo. Leonardo leu: Termino esta minha vida exausto de viver, mas querendo mais vida, mais amor, mais saber, mais travessuras. A você que fica aí, inútil, vivendo vida insossa, só digo: "Coragem! Mais vale errar, se arrebentando, do que poupar-se para nada. O único clamor da vida é por mais vida bem vivida. Essa é, aqui e agora, a nossa parte. depois, seremos matéria cósmica, sem memória de virtudes e gozos. Apagados, minerais. Para sempre mortos". Se segue um belíssimo  diálogo e, certamente Darcy partiu feliz.

Boff fala para Darcy que esta leitura é a interpretação de quem vê de fora, citando a história do casulo e da borboleta. O casulo morre para que a borboleta possa ter vida. Esta foi apenas a entrada para a conversa que irá se aprofundar e Leonardo conta como imagina que seria a chegada de Darcy lá em cima e, de  como  ele seria recebido. "E você Darcy, não será recebido por Deus Pai, você será recebido por Deus em forma de uma mãe". Aí Darcy não se conteve e perguntou: "Então serei recebido por uma deusa"! E então Boff completa a imagem, afirmando que Darcy seria recebido de braços abertos e com palavras muito generosas, mais ou menos assim, "como você demorou! você não queria vir, mas como você veio, você irá de abraço em abraço e de festa em festa, ser apresentado a todos". De novo Darcy complementa: "Então será de farra em farra"?
As palavras de Leonardo Boff para Darcy Ribeiro são das coisas mais lindas que eu já vi.

Darcy então parou, olhou meio de lado e disse a Leonardo:"Como gostaria que fosse verdade"! e contou de sua mãe, que sempre tivera muita fé e que morreu tranquila e, se dirigindo para Leonardo lhe diz: "Eu te invejo por seres um homem inteligente e com fé. Eu não tenho fé. Mas como eu gostaria que isso fosse verdade"!

E então começam as partes mais lindas. Palavras que somente um sábio poderia falar, ao dizer que a fé não importava, o que importava era o amor. "E você Darcy, a que dedicaste a tua vida. Tua vida foi um só ato de amor, um único ato de amor: atendeste aos famintos, às crianças abandonadas, aos índios marginalizados, aos negros e às mulheres oprimidas e, mais, ninguém louvou tanto às mulheres, quanto você. Quem fez o que tu fizeste terá o reino, a eternidade e a Deus". Leonardo faz então um jogo maravilhoso entre as palavras fé e amor. "O amor é o que vale, pois é verdade de vida, enquanto a fé é uma convicção mental". Cita ainda palavras de Jesus, de que não se deve ter preocupações, pois estas geram pessoas doentes, neuróticas e ansiosas. Fala ainda da árvore e de seus frutos. Não há árvore boa que dê maus frutos e nem o contrário

As palavras finais são mais lindas ainda. "O que é, é. E o que é, é para sempre. Entre a fé, a esperança e o amor, o maior sempre será o amor, pois o amor permanece para sempre. Enquanto que a fé acabará quando tudo for revelado, da mesma forma que a esperança, que não fará mais sentido, quando o esperado for alcançado. E então haverá apenas o amor e ele permanecerá por toda a eternidade, pois Deus é amor e nós o seremos com Ele".

Darcy ainda consegue se dirigir a Leonardo para lhe dar um último recado: "Então, nos vemos na farra"! Pode existir fala mais tranquilizadora? Darcy deve ter partido em estado de muita felicidade. E...., eu de minha parte,desde que não seja para muito já, quando eu tiver que partir..., vou querer me integrar nesta farra, pois, conviver com estas companhias, deve ser para lá de bom.

terça-feira, 16 de abril de 2013

Reflexões sobre o Dia do Índio.

Estamos às vésperas do dia do índio. Datas, muito mais do que dias de comemoração, são datas para  a reflexão. O 19 de abril é um belo momento que nos propicia esta oportunidade. E ninguém melhor, para falar de índio, é Darcy Ribeiro. Para fazer a reflexão recorro ao seu livro Confissões, onde ele relata a criação do Serviço de Proteção ao Índio, em 1910, pelo Marechal Cândido Rondon, fato que ele compara com a data da abolição da escravidão, só que para os índios. Vou apenas transcrever algo do escrito por Darcy.
Eis o magnífico livro de Darcy. O que está entre as páginas 132  e 201 é dedicado aos povos indígenas.

"Em 1910, Rondon criou o Serviço de Proteção aos Índios e Localização de Trabalhadores Nacionais nas fronteiras da civilização. Esse acontecimento representa para os índios o que representou a Abolição para os escravos. Rondon não só afirmava o direito de os índios serem e continuarem sendo índios, mas criava todo um serviço, integrado por jovens oficiais, dedicado à localização e pacificação das tribos arredias e à proteção dos antigos grupos indígenas dispersos por todo o país.

Esses povos indígenas haviam enfrentado quatro séculos de opressão, ao longo dos quais sofreram chacinas, tiveram suas mulheres violentadas, seus filhos roubados, e ninguém levantava uma mão contra essa violência, porque eles eram vistos como selvagens que não mereciam outro destino.

A única proteção que conheciam era a das missões religiosas, cujo programa concreto consistia em prosseguir no processo de cristianização e europeização, sem nenhum respeito pelas culturas indígenas, desmoralizando suas crenças e cultos, inviabilizando seus costumes, tudo para convertê-los ao cristianismo. Não converteram tribo alguma. Nem mesmo aquelas que assistiram e evangelizaram por mais de um século, como os Bororo. Esse fracasso, reconhecido já por Nóbrega nos primeiros anos da ação missionária, não impedia que continuassem na sua tarefa furiosa de desindianizar os índios. Não o faziam em benefício dos índios, mas de si próprios, com vista à santificação
Darcy Ribeiro, uma vida dedicada a entender o povo brasileiro e integrá-lo numa grande Nação.

Foi nessa arena ideológica que entrei. Eu, que só estava armado para ver os índios como objeto de estudos antropológicos, cuja mitologia, religião e arte tentaria compreender e reconstituir criteriosamente, no mesmo esforço observava e registrava etnograficamente seus costumes, seus artesanatos, todo seu modo de ser, de encarar o mundo e de viver".

Esse é o primeiro contato que Darcy teve com os índios. Estes seus estudos o levaram a uma convivência  de dez anos e, os seus escritos a respeito, se tornaram uma referência mundial. Como são interessantes os caminhos dos grandes homens. Darcy estava destinado a ser um grande fazendeiro, daqueles grandes mesmo. As propriedades de sua família, por parte dos Ribeiro, abrangiam municípios inteiros da região mineira de Montes Claros. Mas o menino queria estudar. Atendeu primeiramente a vontade da família e foi estudar medicina. Mas a sua grande vocação mesmo, foi o estudo da antropologia, que o tornou personalidade mundial.
A criação do Serviço de Proteção ao Índio equivale ao dia da Abolição, para os povos indígenas.

A narrativa de Darcy, sobre a sua convivência com os índios é emocionante. Vale muito a pena ser lida e está contida na primeira parte das Confissões. Ali também se lê  sobre a concepção ideológica do marechal Cândido Rondon, que foi o positivismo. Darcy e Rondon ficaram muito amigos. A sua aproximação se deu em função dos índios. A história dos irmãos Vilas Boas também é muito interessante. O filme Xingu é uma boa mostra de seus pensamentos e trabalho. Por falar em Xingu, Darcy também relata detalhes em torno da criação desta primeira grande reserva de terras indígenas, criada ainda nos tempos do governo Vargas. Também recomendo o livro de Darcy sobre o Povo Brasileiro, quando ele fala da matriz índia, no nosso processo de formação histórica.

No Brasil de hoje o índio é, seguramente, um dos maiores problemas, no sentido de sua integração à Nação. Políticas públicas que deram certo em outros setores da sociedade, não tem tido os mesmos resultados, quando aplicadas aos povos indígenas. Talvez o melhor projeto para com os povos das florestas seja o de mantê-los na floresta, e para isso a criação das reservas indígenas é fundamental. Mesmo do ponto de vista econômico, isto vem dando certo, tanto pela questão de novas viabilidades para as chamadas drogas do sertão, quanto pela preservação da rica biodiversidade encontrada nestas áreas. E como diz Darcy Ribeiro, o Brasil precisa ser constantemente inventado. Para isso se torna necessário o uso da imaginação e não apenas a eterna repetição do cotidiano.

segunda-feira, 15 de abril de 2013

Siré Obá. A Festa do Rei.

Na quinta feira (04.04) fui assistir a peça de teatro, Siré Obá - A Festa do Rei, dentro da programação do Festival de Teatro de Curitiba. A peça foi apresentada pelo grupo NATA., Grupo Afro Brasileiro de teatro de Alagoinhas, da Bahia. Uma peça memorável. Como não tenho condições de comentar a peça, expresso aqui o que eu senti durante a sua apresentação. Mas desde já digo que compreendi o encanto que pessoas como Pierre Verger, Jorge Amado e Zélia e Carybé tiveram pelo candomblé e a ele se converteram (nem sei se converter é a palavra correta). Pierre Verger e Carybé, inclusive foram morar em Salvador.
Cena da abertura da peça.

A peça começou no páteo do teatro, com canto e dança e com o convite para adentrar ao recinto. A peça tem por finalidade familiarizar o público, numa pequena iniciação, com o candomblé. E a primeira sensação que eu tive, é a de que jamais você vai assistir a um candomblé como você vai assistir a uma missa. Você necessariamente irá participar de um candomblé.  Você é participante o tempo inteiro. Duas cenas me chamaram a atenção mais particularmente: a primeira em que o ator dramatiza um encontro dele com Xangô. É eu nele e, ele em mim. O humano e o divino se fundem numa única realidade; a segunda é quando o ator lembra dos banhos que sua mãe lhe dava, enquanto cantava e, no canto tinha carinho e lições. Imediatamente lembrei de uma conversa que eu tive na ilha de Superagui, com o pessoal do fandango. Nós passamos os nossos valores para os filhos, pelo nosso canto.

O processo civilizatório me passou pela cabeça. Livros e viagens vieram à tona. A Ilíada, a Eneida, especialmente o capítulo VI, Enéias no mundo das sombras, para encontrar-se com seu pai Anquises e ouvir dele as propostas para uma boa convivência entre os homens e A Cidade Antiga, e a elevação dos costumes em religiosidade e instituições. Nas viagens, lembrei-me de Delfos. Até o lugar é místico. O monte Parnaso.Águas sulfurosas, ventos cantantes e vapores subindo das profundezas da terra. moradia da serpente Pítias, filha da deusa Géia. Ali, envoltos em toda a magia se predizia o futuro, auscultando as manifestações de Géia. E a serpente, a que mais ausculta a terra, lugar onde estão nossos antepassados, é o mais sagrado entre os animais. É ela que faz a mediação dos vivos com os seus ancestrais. É ela a mediadora entre vivos e mortos e transmite os desejos de ambos. Uma mediação mística e divina. Não é por nada que a serpente passou a ser o mais abjeto dos animais, no cristianismo. Assim como Delfos era considerada o centro do mundo, também Cuzco era considerada como o umbigo do mundo, pelos povos incas e o seu culto à Pachamama, a mãe terra.
Na cultura greco-romana, o culto à serpente. Ela ausculta a terra, onde estão enterrados os ancestrais.

Voltando á peça de teatro. Quando cheguei em casa, anotei quatro palavras com as quais eu fazia a minha síntese da peça: ancestralidade; transcendência; mediação e valores. Por estas palavras, a minha síntese da peça e da minha iniciação ao candomblé. O candomblé é uma grande festa, com danças e cantorias e muita comida e bebida. Se forma um ambiente de transe. "Xangô em mim e eu nele". A elevação do humano se dá até ao divino, passando pelos ancestrais, e humano e divino passam a ser a mesma realidade. E o que se passa? Os eternos pedidos dos humanos, relatando às divindades as suas necessidades, de um lado e por outro, fazendo os agradecimentos pelo já recebido. A natureza comanda os pedidos, essencialmente a fertilidade e é ela que determina o calendário das festas: festas de plantio, festas de colheita, festas de nascimento e de culto e reverenciamento na morte. E que valores decorrem disso? Aqueles valores legados pela ancestralidade. Eu os identifiquei com a Areté grega, o desenvolvimento das tuas possibilidades ao seu grau máximo. O que significa isso. Copiar o exemplo dos ancestrais e tudo fazer para que as gerações futuras tenham orgulho em se espelhar em você.

Como esta cultura deve fazer bem. Nada tem a ver com a neura da nossa cultura centrada no shopping center, erguido à condição de catedral do culto ao consumo de bens supérfluos, que não consigo adquirir com o salário do meu trabalho e que  isso ainda me gera uma enorme culpa, de que esta realidade é gerada por incompetência minha. E dê-lhe loterias, substâncias amortecedoras, igrejas da teologia da prosperidade e carnês de pagamento.
Cena do encerramento da peça. O público participando.


Mas, acima de tudo me lembrei de Nietzsche. Três livros seus: O Nascimento da Tragédia, Genealogia da Moral e Além do Bem e do Mal e como não, o subtítulo do Crepúsculo dos Ídolos,  -"Como filosofar com o Martelo", para, com o martelo quebrar os pilares que sustentam a cultura fundada na separação entre Apolo e Dionísio e nos ressentimentos causados pela culpa e pelo ascetismo. Lembrei também, de Mãe Senhora, se não me engano, que no vídeo sobre a obra de Darcy Ribeiro O Povo Brasileiro, fala que no candomblé a culpa e o pecado não tem destaque. Certamente porque Dionísio e Apolo vivem uma única e mesma realidade. Vivem a realidade do divino/humano. "Xangô em mim e eu nele".

Para entender melhor esta realidade, vou ler mais Jorge Amado e Zélia Gattai e começar a leitura de Pierre Verger, ou melhor, de Pierre Fatumbi Verger, como ficou sendo o nome deste aristocrata francês, baiano por opção e africano por paixão(de sua cultura, conhecida em Salvador). E parabéns aos organizadores do Festival de Teatro de Curitiba por terem trazido esta peça e com ela abrir esta janela para olhar para o mundo. 

sexta-feira, 12 de abril de 2013

O Povo Brasileiro 10 - Invenção do Brasil.

Darcy abre o décimo e último capítulo do vídeo sobre o Povo Brasileiro, falando do processo extraordinário que foi o fazimento do Brasil. O povo, ao negar sua ninguemdade, se fez brasileiro. Um novo gênero humano, a humanidade dos trópicos. Roberto Pinho nos lembra que o avanço humano se fez por conquistas e por seduções. Os povos se interpenetraram pelo amor e pela força, deixando a marca humana de paixões e conflitos, de paz e tranquilidade. Judith Cortesão, por sua vez nos fala do mito português, a partir do maravilhamento do descobrimento: a descoberta do paraíso terrestre, cumprindo o seu destino de que viver não é preciso, mas que viver sem sonhos é absolutamente impossível. O viver preciso seria obra da pura racionalidade.
Brasil, um país que ainda precisa se inventar, para ser realmente uma Nação para todos.

Darcy também destaca a beleza desta terra, o mito do paraíso tropical, enquanto Roberto Pinho lembra que, pela apropriação dos muitos mitos, o povo brasileiro foi construindo a sua identidade. A narração nos fala da subversão que o projeto português veio sofrendo com a realidade dos trópicos e a presença da força ameríndia e africana. E continua, - nada aqui permaneceu puro. Um povo mestiço, misturou deuses e mais uma outra realidade, uma nova língua: o português do Brasil. Darcy reflete sobre o milagre da unidade nacional. Como isso foi possível com a confluência de tanta e, tão diversa gente, vinda da Europa, da África e das florestas. Houve uma grande homogeneidade. A uniformidade nas diferenças marcou um conserto de uma grande beleza, que aos poucos foi amadurecendo. A narração nos alerta que esse processo não foi nenhum mar de rosas.

Chico mais uma vez lê Darcy. Lê que muitos tentaram atribuir ao Brasil a cordialidade como a sua principal característica. Por excelência seríamos cordiais, gentis e pacíficos. Não foi bem assim. Os conflitos foram de toda ordem: étnicos, econômicos, sociais e religiosos. O assinável, continua Chico, é que nunca houve conflitos puros. Cada um se pintou com as cores dos outros. Houve entrechoques de índios, negros e brancos e sempre vivemos em estado de guerra latente. E muitas vezes esses conflitos se tornaram cruentos e sangrentos. Darcy conta que houve luta em toda parte, porque diferentes eram os povos e os destinos dessas gentes. O Poder central sempre dominou a todos.

Como exemplo de conflitos, a narrativa do vídeo nos põe em contato com a Cabanagem. Os povos nativos e com vida autônoma entram em conflito com a estreita camada lusa e com o seu projeto de país. O resultado foi um grande genocídio. Mais de cem mil caboclos foram mortos, embora, nas lutas tivesse havido grandes conquistas, apoderando-se inclusive de cidades como Belém e Manaus. Estes caboclos foram trucidados para que a amazônia continuasse amarrada ao Brasil. Fizeram o anti natural para que aquela gente fizesse parte de nossa gente.
A construção da unidade brasileira não foi nenhum mar de rosas. Sublevações, guerras e revoluções sempre estiveram presente, sendo sempre dominadas.

Palmares também é lembrada. Um caso típico de um conflito inter racial. Negros fugidos dos canaviais se organizaram para viverem para si. Já tinham esquecido da África e fizeram uma república bem brasileira, socialista, comunitária onde tudo era de todos. Só que fizeram isso da única forma possível: primitiva, rudimentar, desordenada e desarticulada e, como os cabanos também foram trucidados. Chico lê que a sua destruição era um requisito da manutenção da sociedade escravista, seja para reaver negros fugidos ou para se precaver de novas fugas. As sublevações negras eram mais temidas que as invasões estrangeiras.A destruição teria que se dar por uma lição exemplar. A narrativa continua. E assim, conspirações, revoltas e guerras marcaram os caminhos da nossa configuração como povo e como país. Todos brigaram contra todos e as lutas não cessaram. Houve lutas pela independência e após ela, como nos atestam a Revolução Farroupilha, a Sabinada e a Guerra de Canudos e outros levantes sertanejos.

Canudos é comentada. A herança portuguesa é lembrada. O mito do sebastianismo. Como seu corpo nunca fora encontrado nos campos de batalha, ele voltaria forte, jovem e formoso. É uma das heranças mais bonitas que temos, lembra Darcy. Ele viria com seus exércitos para redimir o seu povo, matando os fazendeiros, os donos da terra, a gente canalha. Isso povoava a imaginação dessa gente. E eles poderiam plantar para comer. As crenças mais diversas se concentraram na figura de Conselheiro, com seus bandos de beatos. E os fazendeiros se apavoravam, não diante de sua religião, de seu misticismo. Se apavoravam com a ideia de que eles fariam as suas roças e comeriam o que plantavam e, ninguém mais faria isso para eles. Foram acusados de monarquistas e contra elas foram levados os exércitos e os canhões. Ao final o que encontraram? Algumas mulheres e crianças. Tinham matado todos.
O maior milagre brasileiro, a unidade nacional. Culturas originárias, fusões e incorporações construíram um povo único, o povo brasileiro.

A narração nos dá indícios para a conclusão do vídeo, mostrando que entre encontros e desencontros é que inventamos um povo e um país e também uma língua nova, o português do Brasil. E como a história continua, também continua a invenção do Brasil, com as fusões genéticas, técnicas e simbólicas. Mas o Brasil deu certo? Muitos acham que não. Eduardo Giannetti, explica. Quem acha que o Brasil não deu certo, olha apenas indicativos objetivos e busca comparações com os Estados Unidos. Diz ser um equívoco frequente. Lembra que muita coisa não deu certo mesmo, outras deram e muitas outras ainda poderão dar. Cita as mazelas sociais, como aquilo que não deu certo, como a educação, a saúde e a instabilidade das instituições políticas, que precisam ser melhoradas para propiciar uma convivência próspera e com instituições estáveis. E com toda a convicção exalta as nossas vantagens no campo da subjetividade. As heranças da vitalidade iorubá, a ternura lusitana e a magia índia nos dão a riqueza da arte, da cultura, da vida afetiva, das relações pessoais, tão ricas e tão densas. E Lupicínio canta: e assim vamos vivendo de amor...

Judith lembra da enorme capacidade produzida pelos mitos sobre esse povo e que os mitos, pelo simbólico são até mais importantes que os fatos. Darcy pergunta: o que queremos? E a resposta é tão simples. Queremos fazer o país habitável, queremos ser felizes, alegres, amorosos, afetuosos e comer todos os dias. É um absurdo, um país tão grande e tão rico ter tanta fome e tanta criança abandonada. E lamenta que o nervo da ética, do humano e do utópico tenha se quebrado.
Que a beleza da natureza brasileira seja o símbolo  maior de nosso futuro de prosperidade e grandeza.

Agostinho da Silva faz votos de que o mito português de D. Henrique, da instituição do reino do Espírito Santo, com fraternidade e prosperidade, efetivamente se concretize e Darcy termina, chamando muita atenção para o que irá dizer: Nós temos que inventar o país que queremos. Além disso eu, particularmente, gosto muito da afirmação de que - se o Brasil sempre deu certo como empresa para os outros, - por que ele não pode dar certo como Nação, para si próprio, para a sua gente, a nossa gente? 

quinta-feira, 11 de abril de 2013

O Povo Brasileiro 9. - O Brasil Caboclo.

De novo Darcy Ribeiro faz a maior parte dos comentários sobre o mais bonito dos Brasis, o Brasil caboclo, o Brasil  amazônico, das riquezas e dos povos da floresta. Chico continua lendo trechos de Darcy e Aziz Ab'Saber e  Márcio de Souza também comentam e, com raro brilho. Também são lidos textos do padre Vieira e de Rondon. Enquanto isso ao longo de todo o capítulo são mostradas a florestas e os rios, os produtos nativistas e os peixes, bem como manifestações de fé deste Brasil caboclo.
No Brasil mais profundo, encontramos o Brasil Caboclo.

Muitos índios e poucos portugueses, misturados pelos jesuítas, eis a origem do nosso caboclo, que habita no lugar de beleza incomparável, beleza só nossa e de alguns vizinhos, a beleza da Amazônia. O chamado Jardim da Terra, de uma extensão imensa. Lá impera a exuberância e o mistério, o mito das riquezas, do ouro e da prata. Das mulheres guerreiras, de gigantes e de anões, das drogas e das plantas fantásticas. Se eu tivesse que falar da minha terra, diz Aziz Ab'Saber, diria que ela convive com raízes ainda  pré-históricas e que copia o que existe de mais moderno no mundo ocidental. Diria também, em termos de futuro, que temos os maiores recursos hídricos de rios, riachos e igarapés, de rios brancos, negros e violáceos, o maior domínio de natureza tropical e as florestas com a maior biodiversidade da terra. Bela perspectiva.
A exuberância do Brasil caboclo, amazônico. Muito sol, muita água, muita planta. Que biodiversidade!

A chegada dos europeus representou a catástrofe. As doenças que trouxeram entraram no corpo dos índios para dizimá-los. Foi o sarampo, a bexiga, as cáries dentárias, a caxumba e as gripes. todas mataram grande número de índios. Os que sobraram foram transformados em escravos, para a coleta das drogas do sertão, ou então ficaram sob o controle da catequese de jesuítas, carmelitas e franciscanos. O narrador vai lendo texto do padre Vieira, lamentando a morte de dois milhões de índios, em trinta anos. Este caboclos se transformaram em índios genéricos, sem língua própria, sem identidade. Uma enorme massa de índios, de poucos brancos e negros formou uma nova matriz étnica. Falavam o tupi, uma língua estrangeira que lhes foi trazida pelos jesuítas. O português era apenas a segunda língua, que foi se firmando, graças aos esforços, no segundo reinado. Viviam das drogas do sertão e da abundância da natureza, da forma mais rudimentar e primitiva.

A partir de 1880 ocorreu a primeira grande transformação, que marcou o seu maior florescimento econômico. A borracha abriu um ciclo econômico vinculado com a exportação, com a Europa. Para lá é que eram drenados todos os recursos. O seringueiro levava uma vida desgraçada e que conheceu uma nova forma de exploração, o sistema de aviamento. Ele recebia adiantamente as mercadorias que precisava, poucas na verdade: comida, roupas, pólvora,  e pagava depois, mas nunca conseguia pagar. As contas sempre pendiam para um lado só. Manaus transformou-se na capital mundial da borracha e Belém na capital da Amazônia.
O teatro de Manaus, símbolo do fausto da borracha.

Depois da primeira guerra o cenário muda. A Malásia domina o mercado da borracha e aqui ocorre a debandada. Empresários se suicidam, casas e palácios começam a ruir e Manaus, a primeira cidade brasileira a ter telefone, energia elétrica e bondes, na década de cinquenta nem energia elétrica mais tinha. Um novo período de desastres se reabrirá com o projeto dos militares golpistas. Queriam integrar a amazônia, loteando-a para os grandes grupos internacionais. Com a Transamazônica queriam levar a modernidade à região. Mas só inauguraram uma nova via crucis de conflitos agrários e de destruição de áreas indígenas. A desintegração e os conflitos tomam conta da região. A contradição é percebida e os povos da floresta se organizam. A morte de Chico Mendes representa simbolicamente todo este conflito. O narrador lê um texto do marechal Rondon sobre o absurdo do loteamento da Amazônia, um projeto atrasado, lastimoso e vergonhoso. As terras, onde jamais o homem civilizado pôs os pés,  numa inversão monstruosa de ordem tanto moral, quanto racional, passou a ser propriedade privada, para no futuro, ali se promover a expulsão de índios e ainda acusá-los de intrusos, salteadores e ladrões.
Olhem a maravilha! Integração entre o homem e a natureza. Ah! se essa natureza fosse tratada como a Mãe Terra, a Pachamama inca.

Até hoje a civilização se mostrou incapaz de produzir um sistema de viabilidade econômica às condições da floresta tropical. E, enquanto Chico lê, a câmara mostra cenas das consequências, como os misticismos e os trabalhos degradantes. O Brasil precisa vencer o desafio da amazônia e tem que mostrar ao mundo, que nem tudo é mercado e competição e que o índio precisa de medidas especiais de proteção, para que as populações do Brasil Caboclo não sejam reduzidas à condições de vida de extrema pobreza. E Darcy quase chega a nos pregar: lá vive o povo mais culto da terra, o povo mais culto do Brasil. Tem dez mil anos de sabedoria herdada, de convívio com a natureza e de saber sobreviver nela, sem degradá-la. O que não seria de uma economia que incorporasse o cupuaçu, o bacuri e tantas outras frutas numa agricultura organizada. A própria mata se enriqueceria. O que não seriam as fazendas de criação de peixes e de jacarés.O cenário de fundo vai mostrando estas maravilhas.
Escolhi esta foto como símbolo do Jardim da Terra, do qual Darcy fala.

Darcy termina, afirmando que ninguém tem o que nós temos. Imaginem o turismo levando o mundo inteiro para ver as belezas da selva amazônica, e todos andando pelados pelas matas. Temos o maior sol, a maior  floresta e a maior biomassa. O mundo mais rico, o mais exótico e o mais bonito. Temos as eternas promessas do Eldorado Nós temos o Jardim da Terra.
Mais uma foto do Paraíso terrestre, o jardim do Éden, que é a amazônia. O encontro das águas do rio Solimões e do Negro.

Ir a Manaus, Belém também é muito bonita, é um dos maiores encantos que se pode imaginar. Quando a conheci, visitando filho que trabalhou por lá, comprei um álbum, em CD, de 400 fotografias, mostrando paisagem, flora, fauna, folclore, artesanato, etnias, arquitetura e gastronomia. Uma maravilha só. As fotos são de Nelson Jobim e Ana Butel. As quatro últimas fotos são deste álbum.