sexta-feira, 29 de dezembro de 2017

Napoleão Bonaparte. Pascale Fautrier.

Embora compreendendo toda a importância histórica de Napoleão Bonaparte, nunca tinha lido algo de mais substancioso a seu respeito. O fiz agora, lendo Napoleão Bonaparte de Pascale Fautier, numa edição da L&PM. Dificilmente poderia ter feito uma escolha melhor. O livro se centra exatamente sobre os significados de Napoleão, a "última das grandes existências individuais", no dizer de Chateaubriand e " a primeira das existências modernas: das quais precisaram forjar por si mesmas seu destino sem dever nada ao nascimento", no dizer da autora.
 Um livro cheio de significados e da importância de Napoleão.

O livro é formado por seis capítulos, mais prólogo e um precioso epílogo. Os capítulos tem os seguintes títulos: Napoleão Bonaparte, ou como ser corso; A Revolução Francesa: amputação córsica e conversão à nação revolucionária; De Robespierre a Barras, de Toulon ao 13 vendemiário; O general Bonaparte; O momento Cromwell, ou as loucuras imperiais: Austerlitz e Waterloo, triste planície. São 319 páginas.

O prólogo, como não poderia deixar de ser, apresenta Napoleão como o definidor das políticas modernas, após as convulsões revolucionárias do mundo posterior às monarquias absolutas. ´Trata-se de uma memorável apresentação dos significados de Napoleão para a história.

O primeiro capítulo versa sobre os anos de infância e juventude de Napoleão em seu país natal, a ilha de Córsega, denominada como a "terra da liberdade". A ilha é próxima da cidade de Gênova, da qual recebeu as mais fortes influências. O pai de Napoleão morre cedo, aos 39 anos, (ele estava com 16) de câncer no estômago, doença que também vitimaria o general. O nome do pai era Carlo, nome do qual Napoleão procura tirar proveito em favor de uma nova dinastia carolíngea. Seu pai lutou para que a Córsega se tornasse francesa. Napoleão leu muito e poderíamos dizer que teve uma formação clássica dentro do espírito do iluminismo. Ingressa na carreira militar, na cavalaria.

O segundo capítulo, o mais longo deles, é dedicado aos anos da Revolução, das primeiras insurreições até a República. Diante do terror, Napoleão sempre se mostra um conservador, sempre ao lado da "ordem". Napoleão cresce sob a influência de Robespierre e vamos encontrá-lo em Toulon, já como general, preocupado com a reorganização das forças da artilharia. Assiste ao fim das agitações populares e já frequenta os círculos mais íntimos do poder, junto a Barras. Casa-se com Josephine e recebe o comando das tropas que irão combater na Itália. Napoleão terá outros amores, para além de Josephine.

No terceiro capítulo entra em ação o general Bonaparte, na campanha da Itália. Ali nasce e cultiva o sonho de ser o Alexandre dos tempos modernos. Dividir o butim e fazer propaganda de seus feitos alimentaram o mito do gênio militar junto ao Diretório. Desaprende as lições da soberania popular de Rousseau em favor do culto à personalidade do chefe. É também o tempo de sua famosa campanha no Egito e de sua derrota para o almirante Nelson

O quarto capítulo, de apenas 6 páginas, é aberto por uma significativa frase em epígrafe, de autoria de Chateaubriand. "O 18 brumário se encerra; o governo consular nasce, e a liberdade perece". Napoleão anuncia o fim dos ciclos revolucionários. É a fase do golpe parlamentar e militar. Para Napoleão tudo passa a ser cálculo.

O quinto capítulo é marcado pela fase das acomodações internas e das guerras a qualquer preço. Em suas memórias ditadas a Las Cases, ele meio que parafraseou Luís XIV, afirmando "O Estado fui Eu". É a fase da restauração da monarquia, da sua coroação em Aix la Chapelle, na tentativa de uma nova restauração carolíngea. É a fase do Código civil ou o Código de Napoleão. É o tempo de sua paixão pelo Poder e das maiores ofensivas contra a Inglaterra, como o famoso Bloqueio Continental, contando com o total apoio da burguesia francesa. Napoleão fez do ataque a sua grande estratégia militar.

O sexto e último capítulo é dedicado a Austerlitz e Waterloo. É o tempo das derrocadas. Sobre a campanha da Rússia Tolstoi em Guerra e Paz afirma que ele estava "sobre a fria mecânica do poder". Ele reconhece seu erro sobre o tempo de permanência na Rússia: "Estive em Moscou, pensei que assinaria a paz. Lá fiquei por tempo demais. Cometi um grande erro, mas terei como repará-lo". Ao final das campanhas, encerradas em Waterloo, quando uma alternativa ainda lhe restava, o quarto estado ou a "canalha", ele desistiu. Isso significaria recomeçar toda a revolução, agora em favor do povo, que ele abandonara ao longo do processo. Aí ele proclama: Estou sozinho diante da Europa. Esta é a minha situação". 

O Epílogo é uma rara preciosidade. Versa sobre o degredo de Napoleão sob custódia inglesa, na ilha de Santa Helena. Ali permanece até a sua morte em 1821, acometido também por um câncer de estômago. É um tempo de melancolia, de tendências suicidas e de escrita. Só que em vez de escrever ele ditava para o seu "fiel escudeiro", Las Cases, as suas reflexões, que junto com as observações deste resultou no Memorial de Santa Helena. Neste epílogo ele é apresentado como o Messias moderno da política. Seus restos mortais estão hoje em Paris, no Palácio dos Inválidos. Este Memorial me despertou bastante interesse. Por ele se construiu muito do mito de Napoleão.

A biógrafa recorre a uma frase de Michelet para encerrar o seu livro: "Napoleão Bonaparte tem a horrível honra de ter confirmado e aumentado um mal muito natural ao homem, a adoração da força brutal e a idolatria do sucesso". Antes já afirmara que ela não poderia em nada mascarar ou desculpar os seus erros criminosos. Uma nota de rodapé os menciona: "Lembremos aqui especialmente os mais incontestáveis: os quatro mil prisioneiros otomanos degolados em Gaza, a incompreensível aventura espanhola, os cem mil mortos (no mínimo) na retirada da Rússia, que poderiam ter sido evitados com um regresso menos tardio, os mortos de Fleures ou de Waterloo, preço a ser pago pela "aventura " romanesca dos cem Dias". Quanto ao código de Napoleão vou preparar um post especial.

Como a frase de abertura do primeiro capítulo me marcou profundamente, a deixo aqui transcrita. Ela é válida não apenas para Napoleão. Ei-la: "A inteligência, mesmo a mais aguda inteligência de ação, é conservadora: o homem raciocina a partir de poucos elementos, em geral adquiridos ao longo de sua formação. Os complementos mais sutis ou mais específicos recolhidos posteriormente têm dificuldade para modificar as grandes linhas de força dessa bússola antiga que funciona para a vida toda, sobretudo nos momentos de crise". Quantas pessoas permanecem neste estágio de suas vidas!


quinta-feira, 21 de dezembro de 2017

Santa Evita. Tomás Eloy Martínez.

Aproveitando um tempo livre, empreendi uma viagem. Como não conhecia Santiago, aproveitei para marcar duas cidades. Além de Santiago, incluiria também Buenos Aires, que eu conhecia de uma viagem em meados anos de 1980. Era moda e muito barato ir a Buenos Aires. Na época a guerra das Malvinas ocupava o foco dos noticiários. Já naquele tempo a história de Evita me chamou atenção, especialmente, pelas recomendações que recebia para visitar seu túmulo no cemitério da Recoleta, o que eu não fiz na época.
O jazigo da família Duarte no cemitério de la Recoleta.

Evita também me remete aos tempos de minha infância, por uma vaga lembrança, da qual desconheço as origens, mas como eu estava no seminário, a única fonte só poderia ser a dos padres. Falar de Evita remetia a um escândalo sem tamanho. O presidente da Argentina era casado com uma biscate, com uma artista. Os dois termos praticamente se equivaliam à época. Agora, lendo Santa Evita, de Tomás Eloy Martínez e postando uma frase do livro no facebook, de imediato ganhei uma resposta à postagem. El biscatón. Assim se referia a Evita um certo senhor. Certamente este deve ter sido um conceito muito cultivado pelos muitos inimigos que Evita teve, especialmente, nos círculos militares, que depuseram o governo de Perón, em 1955, três anos após a sua morte.

Nesta viagem, a visita à Recoleta estava entre as prioridades. Eu estava hospedado na Rua Marcelo T. Alvear e no city tour fiquei bem atento aos lugares por onde passamos. Buenos Aires é uma cidade com grandes marcos que ajudam muito na orientação. Estes marcos são referenciais. A minha rua cruzava com a avenida mais larga do mundo, a 9 de julho, e por ela segui em direção ao cemitério, tendo como guia apenas um mapa. Não precisei nem pedir informações. Cheguei bastante cedo e ainda não havia muita gente. O túmulo é bastante simples, não condizendo com toda a fama que tem. Na volta, de novo pela 9 de julho, bem para frente, outra presença de Evita na cidade. No Ministério da Ação Social, está ela falando com o povo, assim como o fazia de uma janela da Casa Rosada.
Evita discursando para os grasitas ou descamisados. Cena comum em uma das janelas da Casa Rosada.


Já de volta, tomei a decisão de ver uma boa biografia de Evita. Parei na primeira que o Google me indicou. Santa Evita, de Tomás Eloy Martínez. Este autor tem muitos créditos comigo, pelos seus Cantor de Tango e O vôo da Rainha, da coleção Plenos Pecados, em que fala sobre o pecado capital da soberba. Santa Evita é um romance biográfico. Realidade e ficção se encontram ao longo de todo o livro. Mas a parte biográfica é muito boa, fruto de muita pesquisa e entrevistas com pessoas que efetivamente tinham o que dizer. Tomás Eloy também é biógrafo do presidente Perón.

Evita teve uma vida muito curta e cheia de sofrimentos, desde a infância, como filha ilegítima, que não mediu esforços para ser artista. Nasceu em Los Toldos (1919) e com apenas 15 anos vai à capital em busca do sonho de ser atriz. Se envolveu com artistas já consagrados e com empresários, donde lhe veio a fama a que nos referimos no início e que foi, obviamente, explorada à exaustão pelos muitos inimigos. Circulou até um livrinho sob o título El Kamasutra pampeano. Num movimento em favor de vítimas de um terremoto da cidade de San Juan, conheceu o presidente da República, Juan Domingo Perón. Isso foi no ano de 1944. Pouco depois estavam casados. No poder, teve ascensão meteórica, se transformando no mito consagrado que foi. Seu cabeleireiro lhe clareou o cabelo e fez o coque que marcou a imagem que percorreu o mundo. Tudo isso está contado em amplos detalhes.

Evita viajou o mundo e se entregou a uma vida luxuosa e, na qualidade de primeira dama, se transformou na "chefe espiritual da nação", tendo a sua imagem associada à bondade e à generosidade. O povo a queria na vice presidência da República, mas Perón resistia. Foi acometida de câncer e teve morte em questão de pouco tempo, em 1952. Aí começa efetivamente o romance. O corpo foi embalsamado, num caro trabalho de rara perfeição. Em 1955 ocorre um golpe de Estado por parte dos militares, que tramavam contra Perón praticamente ao longo de todo o seu governo. O ódio destes militares, que resistiam obedecer a uma mulher, pode ser traduzido por uma frase inscrita nos muro na cidade "Viva o Câncer". Militares e trabalhadores começam a disputa pelo cadáver.
Santa Evita o belo romance biografia de Tomás Eloy Martínez.


Transcrevo a contra capa do livro para situar o romance: "Quando Eva morreu, em 1952, seu marido, o general Juan Domingo Perón, ordenou que seu corpo fosse embalsamado e exposto à nação argentina numa redoma de vidro. Três anos depois, quando o ditador caiu, o cadáver de Evita tornou-se um fardo pesado demais para qualquer regime.
Assim teve início uma das mais insólitas peregrinações de que se tem notícia. Sequestrado pelo Serviço de Inteligência do Exército (Haja inteligência!), o cadáver vagou semanas pelas ruas de Buenos Aires, estacionou durante meses nos fundos de um cinema, prestou-se a todo o tipo de paixões no sótão da casa de um capitão desmiolado até reaparecer, dezesseis anos mais tarde no velho continente".

Os grandes personagens do livro são Evita, obviamente, a sua mãe, presente ao longo de todo o livro, o coronel Moori Koenig (rei do lamaçal) o comandante do Serviço de informações, encarregado de cuidar do cadáver e o louco capitão necrófilo, que auxilia o coronel em seu insano trabalho. A descrição destes personagens também é muito interessante. O livro foi apresentado ao público argentino em 1995, ganhando edição brasileira já no ano de 1996, com tradução de Sérgio Molina. Tem 338 páginas divididas ao longo de 16 capítulos. O escritor também foi uma das grandes vítimas da violenta ditadura militar dos anos 1970.

sábado, 16 de dezembro de 2017

Topless. Martha Medeiros.

Desta vez foi o vestibular da Unicamp que me levou a este livro. Está incluído na sua relação. É um livro de crônicas. É fácil para alunos do ensino médio interpretarem um livro de crônicas? Creio que para os atentos sim, mas para os desavisados, deve ser um suplício. Mas ele tem uma vantagem, ele obriga os alunos a darem atenção ao cotidiano. O que é enfim uma crônica? Crônica tem a ver com o tempo, com o cronos, com a cronologia. Um olhar atento que interpreta os acontecimentos de seu tempo. Seria isto uma crônica? Creio que sim.
54 crônicas revivendo os anos 1995, 1996 e 1997.  Muitos olhares.

No caso de Topless, o olhar atento é o da gaúcha Martha Medeiros, vivendo na cidade de Porto Alegre, observando os acontecimentos dos anos de 1995, 1996 e 1997. As crônicas são bastante uniformes quanto ao tamanho, certamente uma exigência do jornal que as publicava. O livro é uma coletânea de 54 destas crônicas. O que estava acontecendo neste tempo? Nada de especial, embora final de século e de milênio. Assistíamos ao governo de FHC, anos duros de neoliberalismo. Mas a política não recebe muitos enfoques da escritora.

O título, Topless, tem certamente um duplo significado. Tanto pode ser o título de uma de suas crônicas, versando sobre a caretice dos costumes pela não prática deste hábito em nossas praias, como pode também, e aí mais significativamente, estabelecer uma relação com o desnudar. Ao menos é isso que lemos na contracapa do livro da Editora L&PM: "Em Topless, sem pudor algum, Martha Medeiros desnuda o dia a dia em 54 textos que revelam porque é ela conhecida como uma das mais importantes cronistas do Brasil. Ao olhar para o cotidiano, a escritora transforma o trivial em crônica, e a crônica em poesia e atualidade".

Esta contracapa continua a nos dar pistas sobre o conteúdo de suas crônicas: "Comenta e traz para o debate todas as normalidades e esquisitices do homem e da mulher moderna, com suas neuroses e anseios, medos e expectativas, fazendo um verdadeiro retrato de nossa época. Comenta filmes e livros, fala sobre o medo da morte, destrincha as agruras e as felicidades do casamento, tudo numa prosa ágil e límpida".

Este olhar sobre as instituições e costumes realmente ocupa a maior parte de suas crônicas. É um olhar feminino, feminista e moderno. Ela nasceu em 1961 e está escrevendo na segunda década dos anos 1990. Ela retrocede aos anos 1970, década em que completara seus 15 anos e aos 1980, quando, consequentemente, viveu a faixa de seus 25 anos. Gostei particularmente, da crônica Década de 70 - A adolescência do feminismo. Nela faz uma bela descrição das diferenças e da evolução dos anos 70 para os anos 80. 

Também gostei de Orlando X Veneza, onde traça paralelos culturais entre os Estados Unidos e a Europa, entre as cidades europeias e as dos Estados Unidos e vejam só a beleza dessa tirada sua: "A Europa não produz mercadorias, produz estilo de vida. Não estimula concorrência, estimula convivência. Não pensa apenas em construir, mas em preservar. E sabe que um único cálice de vinho contém mais história do que duzentas máquinas de Coca-Cola". Talvez a globalização já tenha tornado o mundo mais uniforme, ao menos  sobre as questões iniciais da frase, mas a do vinho é universal e atemporal. Também outra de suas crônicas, a Vestidos para matar, que fala de uniformes e a sua desmistificação, é notável. Ela lembra Sarney e o fardão da Academia. "Que escritor sonha hoje em vestir o fardão da Academia Brasileira de Letras e equiparar-se a José Sarney.

Para terminar, a lembrança de mais uma das crônicas, Grande África, que também, bem define o que é uma crônica em sua relação com o tempo, ou seja, o uso e a consagração de expressões de moda usuais em um tempo e já destituídas de significado em outro. Ela faz um pequeno exercício: "Querido diário. Ando meio jururu. Não fui convidada para o bota-fora da Penélope. Ah!, grande África. A festa vai ser numa big casa mas isso não quer dizer chongas. A Soninha me contou que vai todo mundo na maior estica e que o Rodrigo vai pegar a caranga do pai dele escondido. Credo, se ele for pego na tampinha vai levar um carão. Ou até uma sova.....". Conseguiu se identificar. Não é papo de um jovem dos dias de hoje, certamente.

Também as crônicas estão permeadas de valores, prevalecendo sempre um olhar moderno, feminino e emancipado e, humano. Um belo olhar sobre o seu tempo. Na crônica Os livros da nova era, ela faz uma bela declaração de amor aos livros e de estímulo para o hábito de ler. O livro é uma bela retrospectiva sobre a última década do século XX, que ela observou, especialmente, sob o olhar da mudança de hábitos e de costumes.

quarta-feira, 13 de dezembro de 2017

Boca do Inferno. Ana Miranda.

Há muito eu queria saber algo a mais sobre Gregório de Matos Guerra, algo a mais do que o Boca do Inferno, simplesmente. Como já havia ouvido falar muito do livro de Ana Miranda, foi pelo seu livro que procurei o algo mais. Uma agradável surpresa. O livro Boca do Inferno é muito mais do que uma biografia. Vai para uma descrição de época, do que era a cidade da Bahia (Salvador), a capital da colônia, ao final do século XVII, especialmente a década de 1680. O livro de Ana Miranda, publicado no ano de 1989, é fruto de uma rigorosa pesquisa histórica, como dá para ver nas fontes pesquisadas, ao final do livro.
O primoroso livro de Ana Miranda. Muito mais do que uma biografia.

Além dos dados biográficos de Gregório de Matos Guerra (1636 - 1696) também encontramos dados sobre o padre Antônio Vieira (1608 -1697), o famoso e poderoso jesuíta, orador sacro, crítico dos costumes e defensor das causas indígenas e dos judeus. Os fatos narrados se passam na Bahia, onde encontraremos os dois, e os dois de um mesmo lado, ao lado da família dos Ravasco, em briga com o governador geral, Antônio de Souza Menezes e o alcaide Francisco de Teles de Menezes. O livro biográfico também é um belo romance que torna o leitor cativo até os desenlaces finais.

O livro se divide em seis partes, a saber: 1. A cidade, num único capítulo; 2. O crime, descrito ao longo de dez sub capítulos; 3. A vingança, esta descrita ao longo de onze sub capítulos; 4.  A devassa, apresentada em cinco sub capítulos; 5. A queda, que é rápida e mostrada em dois sub capítulos e 6. Epílogo - Destino, num único bloco mostrando o destino final dos principais personagens envolvidos no conflito, pelos dois lados.

"A cidade" cenário dos fatos é a cidade da Bahia, capital geral da colônia. O capítulo descreve os costumes e, especialmente, as contradições da cidade, entre o fausto da riqueza e a miséria generalizada da população. Também sobra para os desmandos do poder e os antagonismos tão próprios à disputa de poder, mesmo em tempos de poder real absolutista. O Boca do Inferno aparece na história como o "escravo das prostitutas". Farto material para sátiras!

"O crime" é o assassinato de Francisco de Teles de Menezes, o alcaide da cidade, aliado do governador, Antônio de Souza Menezes, supostamente cometido pelos Ravasco. É a briga entre as famílias Menezes e Ravasco, nos anos de 1680. O chefe dos Ravasco é Bernardo, irmão do padre Antônio Vieira. Gregório entra na história pela sua aliança com os Ravasco e por um de seus amores, Maria Berco, criada da família Ravasco e que foi envolvida no assassinato, encarregada de dar fim a mão decepada do alcaide. Entra um valioso anel na parte romanceada do livro. Neste tempo encontramos Gregório, já formado em direito, em Coimbra, exercendo função de desembargador da Relação Eclesiástica, um cargo de grande prestígio. Também aparece Anica de Melo, a apaixonada amante do poeta.

Em "A Vingança", é mostrada a reação do governador, na perseguição tenaz à família dos Ravasco. É um momento grandioso do livro. O poder é exposto em suas vísceras. Ele não conhece limites. Como tem crime envolvido, também aparecem os métodos do poder judiciário. Um horror. Vejamos uma descrição:

"Mata, quanto estão ganhando os desembargadores?
Perto de seiscentos mil réis de ordenado, senhor governador. Fora as propinas. Os emolumentos chegam a mais de cem mil réis mas eles solicitam gratificações para a festa das onze mil virgens e outras festas. Sem contar as taxas que cobram por serviços especiais e o que ganham em comissões ou visitas, pode ser que chegue a mil e duzentos. Eles pedem para receber o mesmo que recebem no Desembargo do Paço em Lisboa os desembargadores. Mas o príncipe nega.
Vamos dar mais uma propina, para a festa de Santo Antônio. Providencie uma carta ao Príncipe regente solicitando o aumento de ordenado dos desembargadores. E cópia da carta para cada um deles".

Tudo muito parecido com os dias atuais vividos pelo Brasil pós golpe de 2016. Gregório começa a ter problemas com o governo, o que faz aumentar a ferocidade de suas ironias e sátiras. Perde a sua função e fica sem remuneração. Isso aumenta a sua busca por sexo, bebida, bem como a ferocidade de sua escrita. Gregório viera de uma família abastada mas ele, em muito, já contribuíra para dissipar esta riqueza. 

Em "A Devassa" é mostrada a reação do poder real com relação aos desmandos do governador. É a influência do padre Antônio Vieira. A vingança contra os Ravasco termina e as coisas começam a se ajeitar, menos para o poeta. Ele não conhecerá os amores de Maria Berco, a quem muito ajudara, recebe apenas a sua gratidão. Perde também a companhia de Anica. As ironias e sátiras se tornam cada dia mais ferozes, contra todos os poderes estabelecidos, sobrando para padres e freiras, na dissolução de seus costumes. Conhecerá o exílio e, quando repatriado, o será para a cidade de Recife.

Em "A Queda" é mostrado o desfecho de todas as desavenças, com a queda da família dos Menezes e a ascensão de novos mandatários e no "epílogo" todos os personagens tem os seus destinos narrados. Vamos ver os dois mais famosos. O "Boca do Inferno" e o padre Antônio Vieira. Quanto ao "Boca do Inferno" lemos o seguinte: "Em Recife, o poeta foi proibido de escrever suas sátiras. Trabalhou como advogado num escritório repleto de bananas. Andava nu, assustando as pessoas. Sem recursos, doente, viveu até 1695 escrevendo sonetos e, é claro, sátiras. Jamais se afastou de suas crenças, de sua intimidade com as mulheres e com Deus. Acometido de uma "febre maligna e ardente, que aos três dias ou aos sete debaixo da terra mete o mais robusto", Gregório de Matos morreu, com cinquenta e nove anos, em Recife. Foi enterrado na capela do hospício de Nossa Senhora da Penha. A capela foi demolida, não restando nenhum vestígio de Gregório de Matos e Guerra".

Quanto ao destino final do padre Vieira, que ficara totalmente cego e parcialmente surdo, lemos o seguinte: "Pouco depois da partida do soldado, Antônio Vieira morreu. Assistiram sua morte José Soares e o reitor do colégio da Bahia, João Antônio Andreoni, o jesuíta toscano com quem travara muitas disputas ideológicas. Padre Andreoni era condescendente quanto à escravidão dos ameríndios, traduzira para o italiano um trabalho antissemita intitulado Sinagoga desenganada, e inclinava-se  a favor das nomeações de italianos e alemães para os altos cargos da Companhia. Vieira fora, acima de tudo, um português que favorecia seus conterrâneos".

Sempre as contradições. Um grande e belo livro. Gostei muito e sobrou muita vontade de conhecer muito mais.




segunda-feira, 11 de dezembro de 2017

Narrativas de uma viagem 6. Dois dias a esmo em Buenos Aires.

Depois do maravilhoso show de tango dormi tranquilo me preparando para os dois dias que ainda me sobrariam em Buenos Aires. Até imaginei dar uma chegada em Colônia, cidade que imagino com muitos atrativos históricos, além de um passeio pelo estuário do rio da Prata. Já na segunda cedo modifiquei completamente meus planos. A previsão de tempo indicava chuva, mesmo assim ainda arrisquei uma caminhada, nada mais do que uma meia dúzia de quadras. O quarto do hotel me aguardava.
Com a chuva, apenas revendo alguns lugares. Eu frequentei esta churrascaria nos anos 1980.

A chuva só parou por volta das 18h00. Assim prolonguei o almoço, tomando duas taças de vinho e antes do anoitecer ainda dei uma volta pela cidade, com show de tango na rua, na Florida com a Corrientes. Vi um tanto de televisão, mas esta é uma unanimidade quase mundial. Muito pouco se aproveita dela. O foco todo estava voltado para o submarino desaparecido. De noite repeti a dose. Pizza e Patagônia. Muito bom. Previsão de tempo bom para o dia seguinte.
No cemitério da Recoleta.

Na manhã de terça feira me enveredei pela 9 de julho em direção norte, rumo a Recoleta. Passei em frente a embaixada brasileira, pura ostentação, e um pouco depois já avistei uma igreja e, ao lado, um muro branco. O Requiescant in Pace me indicava que ali era o cemitério de La Recoleta. Considero que os cemitérios são museus artísticos a céu aberto. Localizei num mapa o túmulo da família Duarte, com destaque para Evita. Nada de ostentação. Um jazigo de família, bem simples, bem menor do que toda a projeção política que Evita teve. Estou atrás de uma biografia dela. Morreu com 33 anos, de câncer. O povo argentino lhe devota grande e filial devoção. Ela foi fundamental por toda a legislação social e trabalhista existente.
Túmulo da família Duarte. Placas em homenagem a Evita.

Já vi um filme da vida dela. Um belo filme. Não foi o famoso com a Madonna. A elite, especialmente a militar, lhe devotava muito ódio. Tramavam contra o governo Perón e em 1955, três anos após a morte de Evita, aplicaram o golpe. Os tempos deviam ser muito parecidos com os tempos de ódio vividos no Brasil de hoje. Me impressionou muito, no filme, uma frase inscrita nos muros: "Viva el câncer". Vou procurar uma boa biografia e fazer um post. Acabo de descobrir, Santa Evita, de Tomás Eloy Martinez, de quem já li O cantor de tango e gostei muito. Versava sobre a horrenda ditadura militar argentina.

Depois de visitar a igreja ao lado, voltei ao centro da cidade, no rumo da Plaza de Mayo, andando pela caje Florida. Me deparo com a livraria EL Ateneo, mais do que centenária e conhecida como a segunda mais bela do mundo, perdendo para a Lelo & Irmão, da cidade do Porto.  Me demorei bastante, vendo um panorama da leitura, em exposição pelas diversas estantes. Ainda voltaria a ela. Foi o que fiz ao final da tarde, comprando um exemplar do grande clássico da literatura argentina, do sofrido povo marginalizado da cidade. Martín Fierro de José Hernandez.
A centenária livraria. Considerada a segunda mais bonita do mundo.

Da livraria, agora sim, a prioridade seria a Plaza de Mayo. Ela é a antiga Plaza de Armas, que todas as cidades de origem espanhola tem. Comecei pela catedral, belíssima. Nela está enterrado o general San Martín, o grande heroi nacional da independência. Observei muitos detalhes da catedral. Ela começa bonita até pelo chão onde você pisa, a qualidade e a beleza do piso. Observei bem a Casa Rosada. Não tem toda aquela imponência. Muitos tapumes, em função de obras. E tem muita história. E protestos quase diários, que segundo a nossa guia, ajudam, e muito, a atrapalhar o trânsito.  Depois fui visitar o cabildo, um palácio em estilo colonial que é hoje o Museo del cabildo y de la Revolucion de Mayo.  Gostei demais, como eles cultivam as suas datas nacionais. Criação de um imaginário em torno da data.
Catedral, Casa Rosada e o Cabildo. E muito mais. Plaza de Mayo.


Algumas lembrancinhas básicas do artesanato de Buenos Aires, compradas nos arredores do obelisco encerraram as atividades do dia e na cidade. Um DVD de tango e um acústico de Mercedes Soza  também fizeram parte. Na viagem de volta, mais uma vez o transfer super pontual e acompanhamento até o guichê da companhia. O Aeroparque tinha um movimento excepcional. Os torcedores do Lanus viajando para Porto Alegre, onde enfrentariam o Grêmio, o Imortal tricolor, na primeira partida da final da Libertadores, 2017, ganha com raro brilho pelos tricolores. Fizeram muita festa. Mas a festa final seria do Grêmio.



sexta-feira, 8 de dezembro de 2017

Narrativas de uma viagem 5. City tour em Buenos Aires.

Sobrevoar os Andes dá um frio na barriga. Nunca tinha visto tão de perto, e de cima, uma cadeia montanhosa. Quanto ao voo, tudo normal e dentro do horário. Desembarque, imigração e alfândega tudo dentro do previsto. Todos muito gentis. O transfer, mais uma vez com serviço perfeito. Quanto ao hotel, um tanto velho, mas também muito bem localizado. Três quadras da 9 de julho, duas da Caje Florida e umas dez da Casa Rosada e catedral.
Uma das primeiras fotos tiradas em Buenos Aires. A beleza da florada do jacarandá.

Um excelente almoço, um breve descanso e um primeiro reconhecimento da cidade. Tudo me era bastante familiar. Me reconheci nos mais diferentes lugares. Estive aí em meados dos anos 1980. Suipacha, Lavalle, Corrientes, o Obelisco e o teatro Colon. Quanto a cerveja, a Patagônia, uma das minhas preferidas. Custo de vida em Buenos Aires, bem alto. Para janta, logo descobri um lugarzinho bem agradável. Pizza em pedaços e a Patagônia. Mais descanso, que no domingo cedo teríamos o city tour.
Reconhecimento básico em Buenos Aires. O Obelisco.

Mesmo estilo de Santiago. Recolhemos os turistas em seus hotéis. Por ser domingo, sem problemas no trânsito. Buenos Aires é uma cidade enorme. A grande Buenos Aires tem mais de 17 milhões de habitantes, de um total de algo em torno de 45 milhões de argentinos. A cidade teve duas fundações, uma que não vingou, em 1536 e outra sim, para valer, em 1580. Problemas de insalubridade e a ferocidade dos indígenas. Isso eu já fiquei sabendo quando estudei sobre as missões.
A Floralis Generica e a Faculdade de Direito da Universidade de Buenos Aires.

Bem, o nosso tour começou pela parte nobre da cidade, a que se situa mais ao norte. Recoleta e Palermo, com a primeira parada em frente a Faculdade de Direito e Ciências Sociais da Universidade de Buenos Aires e na Floralis Generica, uma enorme flor em metal, que abre e fecha de conformidade com a luz solar. Foi desenhada pelo arquiteto argentino Eduardo Catalano e construída pela Lockheed, a famosa fabricante de aviões de guerra. É um dos orgulhos da cidade. Outra maravilha de Buenos Aires são os jacarandás floridos. Um azul esplendoroso. Tão abundantes quanto os nossos ipês amarelos.
No caminho, a suntuosa embaixada brasileira.


Palermo, Recoleta, o túmulo de Evita, as embaixadas, a monumental embaixada do Brasil e a 9 de julho, de ponta a ponta, com o teatro Colón, o Obelisco, O Ministério da Assistência Social, com Evita discursando. A 9 de julho é a mais importante avenida de Buenos Aires e tida como a mais larga do mundo, com 140 metros. Na esquina com a Corrientes encontra-se o Obelisco, com 67,5 metros de altura. Foi inaugurado em 1936, por ocasião do quarto centenário da primeira fundação da cidade. A 9 de julho começou a ser construída em 1912 e terminada em 1930. Sofreu, depois disso, constantes modernizações. Orgulho dos argentinos.
Ao longo da 9 de julho. Teatro Colón e o Ministério de Assistência Social. Lembrando Evita.


Enquanto isso já chegamos a Plaza de Mayo, com a Casa Rosada, catedral e o antigo cabildo. Uma parada para fotos. A Plaza de Mayo é a antiga Plaza de Armas da cidade. Ela homenageia as revoluções iniciadas em 25 de maio de 1810, que culminaram com a independência em 9 de julho de 1816. A maior fama da Praça lhe foi dada pelas mães, las locas de la plaza, como a elas se referia a cruel ditadura implantada no país em 1976. Elas ganharam notoriedade mundial. Choravam os filhos desaparecidos. A praça está passando por muitas reformas. É o principal centro da vida política da cidade.
 No meio do povão. La Boca. La Bombonera  e o Caminito.

Fomos adiante. San Telmo e sua famosa feirinha e passagem pela Boca, passando em frente ao estádio do Boca Juniors, La Bocanera, no rumo do Caminito. Era dia de jogo e os preparativos já estavam começando. O Boca é o mais popular dos clubes argentinos, fundado em 1905 por imigrantes italianos, a maioria de genoveses. Foram trabalhar de porto a porto, trocando Gênova por Buenos Aires. São os bairros originários de Buenos Aires. Hoje uma região bastante empobrecida, para dizer pouco. Ali começou o tango, uma dança absolutamente profana que foi se elitizando e lhe retirando o caráter original de uma dança pecaminosa. Muito colorido no El Caminito. O papa Francisco lá está, junto com os muitos dançarinos, sempre dispostos a uma fotografia. Lógico que fizemos uma parada.
Lateral da Casa Rosada e as torres residenciais do Puerto Madero, ao fundo.


O nosso passeio se encerraria no Puerto Madero, a nova zona nobre da cidade. Uma recuperação fantástica da área portuária. Os armazéns se transformaram em restaurantes e as áreas livres em torres residenciais, do metro quadrado mais caro da cidade. O Puerto Madero se situa aos fundos da Casa Rosada. O tour estava acabando. Quem quisesse ficar foi deixado na feira de San Telmo e o encerramento estava marcado para a 9 de julho com a Paraguay, bem pertinho do hotel. A estas alturas eu já estava com o mapa da cidade bem delineado. Pelos meus cálculos eu teria dois dias para revisitar tudo, a pé. Mas isso eu conto em outro post.

Um bom almoço e um bom descanso que a noite teríamos o show de tango, no Señor Tango. Este show é realmente um espetáculo imperdível. Hollywood é pouco, altamente profissional. Circo de Soleil em meio ao espetáculo com as bailarinas voando. Velhos músicos no bandoneón e outros nos violinos. Grandes cantores e cantoras. E um gran finale. O Não chores por mim Argentina, a música do filme sobre Evita. O show vem precedido de um maravilhoso jantar com direito a uma meia garrafa de vinho.
Show de tango. Simplesmente imperdível.


No Gran Finale fui acometido de bons sentimentos, sentimentos de grandeza e de nobreza para com Evita, pelo bem que ela fez. Como estes sentimentos só podem ser sentidos no contraste, me lembrei também dos sanguinários ditadores da Argentina e para completar, de todos os que hoje aplicam as políticas neoliberais e, para eles dediquei uma lembrança na passagem do Inferno de Dante onde, no pior dos infernos, as pessoas ficam isoladas dentro de enormes blocos de gelo. Neste isolamento, da não lembrança e da não comunicação, da não relação, da não possibilidade da alteridade, coloquei o nosso golpista presidente e o seu assecla governador do Paraná. Como viram, por eles tenho enorme apreço. Mas, cada um é o responsável pela construção de sua imagem.


terça-feira, 5 de dezembro de 2017

Narrativas de uma viagem - 4. Dois dias a esmo em Santiago.

Eu estava magnificamente hospedado em Santiago. Um bom hotel, o Panamericano, e um endereço fabuloso, Teatino e Huerfanos. Bem em baixo um mercadinho, bem estocado de cerveja cusqueña, da qual eu aprendi a gostar, quando conheci a cidade de Cusco.  Estava a duas quadras da Casa de La Moneda e da grande avenida Bernardo O'Higgins e umas dez, da Plaza de Armas e da bela catedral. Muitos cafés com piernas pela redondeza, tanto de vidros claros, quanto de bem escuros, com nomes bem apelativos.
 O Palácio de La Moneda e o cerimonial da troca da guarda.

A minha primeira movimentação foi pela Avenida Bernardo O'Higgins, que como vimos em outro post, é uma avenida de mais de trinta quilômetros e é a espinha central, em torno da qual a cidade se estrutura. Sua direção está no sentido cordilheira para o mar. Recebe diferentes nomes. No começo era só checar as localizações já vistas por ocasião do city tour. Andar em Santiago é muito fácil. O primeiro momento era assistir a troca da guarda, em frente ao La Moneda, as 10h00. Uma magnífica cerimônia cívica que dura algo em torno de trinta minutos. Uma cerimônia cívica. O civismo e o patriotismo são muito cultivados. Ela ocorre dia sim, dia não.
A Universidade do Chile. Faixa de protesto.

Depois andei pela grande Avenida. Universidade do Chile. Cartazes com reivindicações, próprias ao movimento estudantil, num país que cobra pelo ensino superior que oferece. Continuo a andar. A bela igreja de São Francisco e um belo museu, o Museu Colonial, que retrata a presença da ordem de São Francisco ao longo da história da cidade. Tem mais de cinquenta diferentes representações do querido santo. Um belo museu histórico. E tem Gabriela Mistral e o seu testamento em favor da ordem religiosa. Gabriela Mistral (1889 - 1957) foi uma poetisa, educadora, diplomata e feminista chilena, que junto com Pablo Neruda, foi agraciada com o Prêmio Nobel de Literatura. Ela em 1945 e Neruda em 1971.

Igreja de São Francisco e o Museu Colonial.

Continuo o passeio. Um centro de artesanato. Muita coisa em cobre, a grande riqueza chilena. Pablo Neruda, Violeta Parra, Victor Jara, Salvador Allende, abridores de garrafa, tudo em cobre, são o forte destes regalos. Ainda não comprei, ainda teria amanhã para isso. Continuo o caminho. Universidade Católica do Chile. Foi aí que se aninhou e propagou a doutrina neoliberal no Chile. Os Chicago boys aí foram ensinar. Milton Friedman chegou a ser ministro de Pinochet. Uma Universidade Católica. Foi a porta de entrada do neoliberalismo na América Latina. Depois a PUC do Rio de Janeiro lhe seguiu os passos. Nada muito cristão. A mais anti social das ideologias.
A PUC e o Centro de artesanato.


Ainda segui em frente. Uma bela praça e o famoso Cerro San Cristobal. Como o subimos no city tour, me senti satisfeito. Não me aventurei novamente. Tem bondinho e teleférico. O shopping Costanera não me interessou. Em vez de almoçar preferi experimentar um lanche. De noite eu iria jantar no Bali Hai, assim não haveria problema em lanchar. A guia tinha falado muito destes lanches. Tem carne e recheio de muito abacate. A combinação não é de todo ruim. Ainda subi o Cerro Santa Lucía, que do ponto de vista histórico é mais importante. A vista é urbana, Cordilheira ao fundo.

Cerro Santa Lucía. Alguns flagrantes. Até um sabiá.

Descansei um pouco, tomando umas cusquenhas, esperando a hora do jantar, o jantar show Balli Hai. É um belo restaurante, a decoração é primorosa, lembrando a Polinésia e localização privilegiada no aristocrático Las Condes. A janta é farta. Um pisco, a famosa bebida que o Chile disputa com o Peru, entrada, uma bela porção de frutos do mar muito bem preparada, prato principal com opção pelo salmão e sobremesa. Meia garrafa de vinho para acompanhar. O show, uma cueca, é um passeio pelo folclore chileno. Norte, centro e sul foram apresentados e, a principal atração fica por conta das danças da Polinésia, o principal apelo do show. Vale muito a pena. Muita agilidade nos movimentos. Logo para mim, que nos meus piedosos momentos de seminário, aprendia que tudo o que se movimenta é pornográfico.
 Momentos do Bali Hay. Uma noite muito agradável. Um brinde com o pisco.

O último dia ficou reservado para a Praça de Armas. Uma visita sem pressa à catedral, que receberá o papa Francisco em janeiro de 2018, uma demorada passada no Museu  Histórico Nacional e ficar bem por dentro da história chilena. Este Museu é semelhante ao Museu da República no Palácio do Catete, no Rio de Janeiro. Gostei muito. Me demorei bastante nesta bela praça, com grande destaque para uma estátua equestre de Pedro de Valdívia. Não fui ao Museu da memória, dedicado a Salvador Allende.
Pedro de Valdívia, a catedral e o Museu Histórico Nacional. No casco central.

O restante do tempo foi para as compras das lembrancinhas. O Centro de Artesanato é o local ideal. Também o mercadinho em baixo do hotel me serviu para comprar um Marques da Casa Concha Carmenere e um pisco dentro da escultura do Moai. A minha última noite ficou bem curta. Cinco da manhã já estava em pé, pronto para o transfer para o aeroporto, fazendo a travessia dos Andes, no rumo de Buenos Aires.





segunda-feira, 4 de dezembro de 2017

Narrativas de uma viagem - 3. Valparaíso e Viña del Mar.

A primeira parte do dia foi novamente tomada pelos problemas do trânsito de Santiago. Mais de duas horas para reunir os turistas e empreender a viagem para a paradisíaca Viña del Mar e para a cidade portuária de Valparaíso, esta patrimônio cultural da humanidade a partir de 2003. Algo em torno de 120 quilômetros separam as duas cidades da capital. As rodovias são modernas e pedagiadas, inclusive, na área urbana. Não existem postos de pedágio. Tudo é por controle eletrônico. Você recebe a conta em sua casa ao final do mês e paga por quilômetro rodado.
Um aperitivo de "chicha" na nossa primeira parada, nos Huernitos de Curacavi.

Nas proximidades desta rodovia se localiza o aeroporto da cidade. Depois tem uma descida de cerca de 700 metros. Nestas montanhas não há neve, esta só na Cordilheira dos Andes. Nesta descida vi minas de cobre a céu aberto. Depois vem um enorme vale, a fértil planície de Curacavi. Frutas e hortaliças tomam conta da região. Abóbora, melão, melancia, morangos, pêssegos  e verduras, nos falava a guia.  A irrigação é subterrânea, pela pressão da neve da cordilheira a penetrar nos solos porosos. As neves fortes evitam as secas. Neste vale fizemos nossa primeira parada nos huernitos del Curacavi, onde fomos brindados por uma chicha de la zona, calma que eu explico, uma bebida fermentada a base de uva, produto típico da região. Depois vem o segundo vale - Casablanca, onde além dos muitos vinhedos existem muitos roseirais, rosas brancas e vermelhas, numa alusão aos vinhos brancos e tintos produzidos na região.
As belezas de Viña del Mar.

A primeira cidade visitada foi Viña del Mar, um pequeno e rico paraíso. Esta cidade recebeu a seleção brasileira em 1962, ano em que ela se consagrou bi campeã mundial. Ainda existem muitas referências a este fato na cidade. Esta memória está também registrada por um relógio solar, presente recebido nesta ocasião, dos pontuais suíços. Não sabia que eles eram afeitos a dar presentes. Sempre ouvi dizer que eles são o dobro mais racionais do que os vizinhos alemães. Este relógio forma um belo jardim. Aliás, a cidade recebe a denominação de "Cidade Jardim" e de "Capital do Turismo".

Tem algo em torno de trezentos mil habitantes, excelente infraestrutura e ligação umbilical com Valparaíso, à qual está ligada até por uma linha de metrô. A cidade não é muito antiga. Sua fundação data do ano de 1878, mas se firmou efetivamente a partir do século XX. Seu nome lembra a junção de vinhedos com o mar. Viña del Mar. Rodamos por um bom tempo entre os casarões antigos, com os quais seus primitivos habitantes disputavam a ostentação de sua riqueza.
Eu e a escultura da Ilha de Páscoa. E um restaurante que eu recomendo.


Cassino, festival de cinema e da canção, além de belas paisagens de praia formam as suas atrações, embora as águas gélidas do Pacífico. Também tem uma atração única, o museu Wulff, onde tem, em sua frente uma escultura Rapa Nuí, única no mundo, fora da ilha de Páscoa. Ela representa toda uma tradição. Eu conto um pouco dela, em explicação contida numa caixa da bebida chilena "pisco", dentro de uma garrafa que imita a escultura. Nela se lê:

Isla de Pascua (Rapa Nuí) constituye uno de los tesoros arqueológicos más valiosos de la humanidad.

Além da Ilha de Páscoa e de Viña del Mar a minha casa também tem o Moai. Com uma vantagem, cheia de Pisco.

Sus Maai representan a los jefes de las dinastias que poblaron la isla en tiempos ancestrales y a través de la mirada proyectaban sus poderes sobre el territorio y sus descendentes.

Posteriormente, el ritual del "Hombre Pájaro" (simbolizado en el pecho de este Maai) se convertió en una de las cerimmonías más importantes de Rapa Nuí, la cual se realizaba anualmente en honor del díos Make-Make (díos creador). Los mejores de cada famílía competían en una dura prueba por la captura del huevo del Manutara. El ganador se hacía merecedor del t´tul Tangata Manu (hombre pájaro) y el jefe de su tríbu era quíen asumía durante un año el poder político y militar de la ísla.

Um excelente almoço nos aguardava. Este eliminou a primeira má impressão do Mercado Central. Um almoço de pacote. Um pisco, um entrada (um delicioso ceviche), um prato principal (três opções - optei pelo salmão) e uma sobremesa além de uma taça de vinho. Fui contemplado em minha negociação na substituição da sobremesa por uma segunda taça de vinho. Tudo por 20.000 pesos, algo em torno de 120 reais, o que para os padrões chilenos é muito barato. O nome do restaurante. Chez Gerald.
Uma vista da cidade de Valparaíso.


A tarde estava reservada para Valparaíso. Esta sim é uma cidade cheia de história. Ela remonta aos tempos da chegada dos primeiros espanhois. Ganhou o status de cidade por meio do governador, Pedro de Valdívia, em 1544. Foi o grande porto espanhol e constantemente atacado por piratas ingleses. Até o ano de 1914, ano da abertura do Canal do Panamá, recebia todos os navios que faziam a passagem do Atlântico para o Pacífico pela via do Estreito de Magalhães ou pelo Cabo Horn, únicas passagens possíveis. Tornou-se um grande porto internacional e recebeu imigrantes do mundo inteiro, uma cidade cosmopolita. Também as atividades portuárias a transformaram numa cidade de obreros, que falavam alto em suas reivindicações. Por isso foram merecedores da mais dura repressão ao longo da interminável ditadura de Pinochet.
Do alto, uma vista para o porto.


Evidentemente que a cidade entrou em decadência após a abertura do Canal do Panamá em 1914. A cidade contrasta até hoje a sua pobreza com a rica vizinha Viña del Mar. Ela é um porto natural. A sua geografia faz os morros resvalarem para o mar. Ela tem uma configuração muito bonita. Sofreu com a ação de terremotos, mas em compensação a cidade se modernizou a partir de reconstruções. Uma das características particulares da cidade é o seu transporte público. Antigos trólebus e coloridos funiculares ainda operam, levando a população aos morros. Se transformaram em grande atração turística e uma das razões para transformar a cidade em Patrimônio Cultural da Humanidade, em 2003.

Ainda preciso falar de incêndios. Eles também existem desde sempre. Fortes ventos ajudam na propagação do fogo. A cidade também tem as suas peculiaridades. Como nas áreas rurais os pais dividem a propriedade quando os filhos se casam, aqui eles ganham uma casa, construída em cima da original existente. Vão verticalizando. Imaginem as gambiarras, especialmente, na eletricidade. Dá para imaginar o tamanho da tragédia.
Uma última vista do porto de Valparaíso.


Outra questão é que a cidade ainda mantém importantes instituições nacionais com sede na cidade. Isso ocorre com o Parlamento, com o Serviço Nacional de Alfândegas, da Pesca e da agricultura, do Ministério da Cultura e o Comando geral da Marinha. Valparaíso é também uma cidade multicolorida, o que a torna realmente muito bonita. Tivemos uma parada num dos mirantes, para observar a cidade de cima, do alto. Paisagem muito bonita.

No tour não estava incluído a visita às casas de Pablo Neruda, nem em Valparaíso e nem a da Isla Negra. Esta é considerada como a mais bonita e tem um tour especial, combinado com a ida a uma vinícola. Tive e tenho que me contentar com o livro de memórias do grande poeta, Nobel de literatura em 1971, Confesso que vivi.