terça-feira, 28 de novembro de 2023

MANIFESTO contra a plataformização compulsória, contra as escolas cívico militares e outras políticas educacionais do governo Ratinho Jr.

No dia 25 de novembro de 2023, foi lido e aprovado o Manifesto elaborado pelos participantes do Círculo de Leituras, promovido pelo NESEF-UFPR contra o uso compulsório de plataformas de ensino, contra as escolas cívico-militares e contra outras políticas educacionais implantadas ao longo do governo Ratinho Jr., no estado Paraná. Eis o seu inteiro teor: 

"Nós, participantes ativos dos Círculos de Leituras promovidos pelo NESEF-UFPR, como coletivo de educadores em defesa da escola pública democrática, temos acompanhado atentamente o projeto político educacional implementado no estado do Paraná pelo governo Ratinho Júnior desde o início do ano de 2019 e, simultaneamente, temos realizado frequentes denúncias dos ataques sistemáticos promovidos por este governo contra a educação pública.


Foto do evento com a leitura do MANIFESTO. Curitiba, 25 de novembro de 2023. UFPR.

 Ainda no ano de 2020, lançamos o livro Aulas não presenciais em tempos de pandemia: improviso, exclusão e precarização do ensino no Paraná, pela Platô Editorial, o qual procurou retratar a educação pública paranaense no contexto do pragmatismo gerencial das políticas neoliberais levadas às últimas consequências durante a pandemia da Covid-19 pelas mãos do então secretário de educação, o empresário Renato Feder. No ano de 2022, lançamos uma outra  obra com o título  Mercantilização da educação pública no Paraná: autoritarismo, violência e plataformização do ensino, também pela Platô Editorial, a qual, por sua vez, procurou desvelar os impactos destrutivos da política gerencialista adotada pela Secretaria de Educação do Paraná durante o período pandêmico, bem como sua continuidade e seu aprofundamento no controle e na vigilância dos procedimentos pedagógicos instaurados com o retorno das aulas presenciais.

Em ambos os livros, a partir da análise crítica de um grande conjunto de dados, denunciamos o processo de destruição da escola pública do Paraná, a precarização da carreira dos profissionais da educação, a retirada de direitos, o aumento da jornada de trabalho e o achatamento salarial, bem como as práticas de pressão por resultados, de constrangimento e de assédio moral que têm levado grande parte da categoria ao adoecimento. Também denunciamos o esmagamento dos princípios legais de gestão escolar democrática presentes na LDB pela vigência de um autoritarismo exacerbado, com diferentes mecanismos de vigilância, de controle e de punição, além da militarização e da privatização de unidades escolares. 

É neste contexto de luta que temos travado em defesa da escola pública, efetivamente democrática e de qualidade, que repudiamos, veementemente, o desrespeito do governo Ratinho Júnior ao direito humano fundamental de ensinar e de aprender com liberdade, princípio básico de qualquer procedimento pedagógico inerente a uma concepção de educação humanizadora.  Entendemos educação, acima de tudo, como prática de liberdade.

O educador não pode se constituir como tal sem direito ao exercício de autonomia plena, sem liberdade para estudar, pesquisar, planejar e ensinar de acordo com o conjunto de conhecimentos e de formulações teóricas de seu campo de formação aliados às necessidades de aprendizagem do contexto histórico-cultural em que atua. Esse desrespeito aos professores no estado do Paraná materializa-se, especialmente, na imposição da obrigatoriedade de uso de tecnologias e de plataformas estranhas ao trabalho docente.

Não se trata, obviamente, de negar a presença de inovações tecnológicas como recursos pedagógicos. Muito pelo contrário, a reivindicação da presença de tecnologia de ponta em nossas escolas é uma pauta histórica da luta dos trabalhadores da educação. Uma das exigências dos educadores comprometidos com a escola pública é a disponibilização de recursos tecnológicos atualizados e de qualidade. Entretanto, o que não podemos admitir, de forma alguma, é a obrigatoriedade do uso e a submissão dos educadores a aparatos tecnológicos estranhos às necessidades da mediação pedagógica. A tecnologia precisa estar a serviço do trabalho docente, jamais o contrário.

Por si só, a tecnologia não existe. Sua existência concreta depende de uma relação, mesmo que mecânica, com a pessoa que a utiliza. No âmbito educacional, portanto, repudiamos toda relação tecnológica que não agrega aprendizado, nem satisfação ou promoção de conhecimento. E, ainda, diante do cenário de obrigatoriedade do uso das plataformas no Estado do Paraná, registramos nossa indignação pela falta de fundamentação teórica e pela imposição de um currículo que não se sustenta de forma alguma na prática de ensino e tão pouco ao crivo da mais simples análise crítica. Por isso:

- repudiamos o uso das plataformas, pois elas não atestam o aprendizado efetivo de nossos estudantes;

- repudiamos o uso obrigatório das plataformas porque o tempo de ensino, o tempo de aprendizagem e o tempo de vida não cabem no tempo mecânico das plataformas; 

- repudiamos seu uso obrigatório, porque não garantem a acessibilidade de todos os docentes e discentes no território do Paraná; 

- repudiamo-nas, porque limitam a criatividade com propostas vazias e desvinculadas das realidades escolares; 

- repudiamo-nas, porque os resultados de seu uso não correspondem de maneira verossímil aos dados alardeados pela propaganda governamental na imprensa e nas redes sociais;

- repudiamos, ainda mais, porque expõem os estudantes a longas horas em frente às telas, o que pode desencadear incontáveis problemas, tanto físicos quanto psicológicos, tais como dor-de-cabeça, dores generalizadas pelo corpo, ansiedade, insônia, estresse e depressão, entre outros apontados por especialistas da saúde; 

- por fim, reforçamos nosso repúdio ao uso obrigatório das plataformas porque ele desrespeita a autonomia docente, estando a serviço do controle e da vigilância das práticas educativas, inibindo a pesquisa, a produção de conhecimento e a autoria docente, empobrecendo a mediação pedagógica e, consequentemente, comprometendo o processo de desenvolvimento e de aprendizagem de nossas crianças e de nossos jovens. 

Esse manifesto dialoga com a percepção e o sentimento de milhares de educadores do chão de nossas escola, considera inúmeros registros e documentos, tanto aqueles expressos em depoimentos nas redes sociais quanto rigorosas reflexões teóricas presentes em artigos, teses e livros recentemente produzidos e publicados, em âmbito nacional e internacional, inclusive as recentes manifestações da ONU e de responsáveis pela educação em diversos países europeus, os quais fizeram a experiência do uso de plataformas e retrocederam, após observarem os resultados catastróficos em suas comunidades educacionais.

Como educadores comprometidos com a formação plena de nossos estudantes e responsáveis com o atual momento histórico, convidamos a todos aqueles que, de uma forma ou de outra, em um ou em outro setor da sociedade civil organizada, individual ou institucionalmente, atuem em defesa de propostas de educação humanizadora, somem-se a nós na defesa intransigente da escola pública, gratuita, democrática, laica e de qualidade, repudiando políticas e práticas de mercantilização da educação, de controle e de vigilância pedagógica, de autoritarismo, de violência, de plataformização, de precarização e, consequentemente, da negação do direito de ensinar e de aprender. 

Educação, acima de tudo, é prática de liberdade e, como tal, deve estar a serviço da construção de uma sociedade efetivamente democrática. O controle, a vigilância e a padronização inerentes ao uso obrigatório das plataformas de ensino, aliado às políticas de militarização e de privatização da escola pública, são mecanismos completamente antagônicos à construção democrática, aproximando-se, indiscutivelmente, de um modelo fascista de educação. 

Assinam esta carta manifesto, juntamente com os integrantes do Círculo de Leituras NESEF, muitos educadores da educação básica da rede pública do estado do Paraná e de outras unidades federativas, professores da UFPR, da UNICAMP, da UFSM, da UFRGS, da UERJ, da UFSC, da UFU, da UFMS, da USP, da UEL, da UFF, da UFPE, da UFPA, da UNIPLAC, da URI, da PUC-GO, da UTFPR, da UFFS, do IFPR, do IFS, do IFRJ, do IFRR, da ABEH, da CEDES, da UNINOVE, da UFPI, do IFRN, da UDESC, da FURB, do IFC, do IFMGM da UNESP/Marília (entre outras), parlamentares do estado Paraná, dirigentes sindicais e autores de obras expressivas da literatura filosófica e pedagógica brasileira".

Seguem centenas de assinaturas de educadores (as) que dedicaram a vida inteira ao trabalho de educar e de formar seres humanos, estudantes e representantes de entidades classistas e da sociedade civil.

segunda-feira, 27 de novembro de 2023

OS ENSAIOS - MONTAIGNE. Sobre três relações: amigos, belas mulheres e livros.

No capítulo III, do Livro Segundo, de Os ensaios, encontramos um título muito simples: Sobre três relações. Vamos à apresentação do capítulo, pela tradutora do livro, Rosa Freire D'Aguiar:

"Este é um dos capítulos mais pessoais da obra. Fala dos três passatempos favoritos: a conversa com amigos, a companhia de mulheres bonitas e honestas, se possível inteligentes, e a leitura dos livros. São as três relações examinadas por Montaigne: formas de convívio social que enriquecem a vida privada e fazem com que valha a pena viver. Depois da morte de La Boétie, o grande amigo, as amizades mais correntes não lhe suscitam entusiasmo, são insípidas. O único objetivo comum a amigos, mulheres é honnête (honrado e decente). A relação social ideal engajaria o homem por inteiro, corpo e alma. Por si só nenhuma dessas três relações responde a esse objetivo, pois as duas primeiras engajam o corpo e a alma em proporções muito diferentes, enquanto os livros praticamente não engajam o corpo. Ele insiste no fato de que a relação sexual é mais que uma necessidade física e que, portanto, não deve ser mera fome a ser satisfeita fisicamente sem o envolvimento de faculdades mais elevadas. O fidalgo que se isolou no alto de sua tore está, porém, pronto para abandonar as delícias da reclusão e cultivar o corpo ou as relações sociais". O trecho que selecionei terá como foco a relação com os livros.

Os ensaios. Sobre a relação com os amigos, com as belas mulheres e com os livros.

"[...] Os julgamentos, a prudência e os deveres de amizade são mais encontrados entre os homens; por isso governam os negócios do mundo. Essas duas relações (com os amigos e com as belas mulheres) são fortuitas e dependentes de outros: uma é difícil pela raridade, a outra murcha com a idade; assim, não preencheram o suficiente as necessidades de minha vida. A dos livros, que é a terceira, é bem mais segura e mais nossa. Cede às primeiras as outras vantagens, mas tem, por sua vez, a constância e a facilidade de seu uso: acompanha todo o meu percurso e assiste-me por todo lado; consola-me na velhice e na solidão; descarrega-me do peso de um ócio enfadonho; e a todo instante me livra das companhias que me aborrecem; atenua as pontadas de dor se não extrema e soberana. Para me distrair de uma ideia inoportuna, basta recorrer aos livros, eles me desviam facilmente para si e a esquivam de mim. E não se amotinam ao ver que só os procuro na ausência dessas outras comodidades mais reais, vivas e naturais: recebem-me sempre com o mesmo semblante. É muito bonito andar a pé quando se leva seu cavalo pela rédea, dizem. E nosso Jaime, rei de Nápoles e da Sicília, que, belo, jovem e saudável, fazia-se transportar pelo país numa padiola, deitado sobre um ordinário travesseiro de penas, vestindo uma túnica de pano cinza e um gorro do mesmo tipo, mas seguido por uma grande pompa real, com liteiras, cavalos de todo tipo levados pela mão, fidalgos e oficiais, manifestava um tipo de austeridade que ainda era delicada e vacilante. O doente que tem sua cura na manga não merece compaixão. Todo fruto que tira dos livros consiste em experimentar e praticar essa máxima, que é muito verdadeira. Na verdade, praticamente não me sirvo deles mais que os que não os conhecem, Desfruto deles, como os avarentos de seus tesouros, para saber que desfrutarei quando me aprouver: meu espírito sacia-se e contenta-se com esse direito de posse. Não viajo sem livro, nem na paz nem na guerra. Todavia, hão de se passar muitos dias, e meses, sem que me sirva deles; digo que será dali a pouco, ou amanhã, ou quando me der vontade: enquanto isso, o tempo corre e se vai, mas não me inquieta. Pois é impossível dizer quanto me repouso e me tranquilizo com essa ideia de que estão a meu lado para me dar prazer quando eu desejar; e reconhecer quanto trazem de socorro à minha vida: é a melhor provisão que encontrei nesta viagem humana e compadeço-me ao extremo dos homens inteligentes que não os têm. Aceito qualquer outro tipo de distração, por frívola que seja, desde que essa não possa me faltar. Em casa, desvio-me um pouco mais frequentemente para minha biblioteca, de onde, com uma só mão, comando minha residência. Estou acima da entrada e descortino, abaixo de mim, o jardim, o galinheiro, o pátio e a maior parte dos cômodos de minha casa. Ali folheio, a tal hora, um livro, a tal hora, outro, sem ordem e sem objetivo, por trechos disparatados. Ora devaneio, ora registro e dito, caminhando, meus sonhos que aqui estão. Ela fica no terceiro andar de uma torre. No primeiro está minha capela, no segundo, um quarto com suas dependências, onde não raro durmo, quando quero ficar sozinho. Acima, há um grande depósito. Era, no passado, o lugar mais inútil da minha casa [...].

A forma da biblioteca é circular e só é plano o espaço necessário para minha mesa e minha cadeira; ao curvar-se, ela vai me oferecendo com um só olhar todos os meus livros arrumados em estantes de cinco prateleiras em toda a volta. Tem três janelas com bela perspectiva livre e um espaço vazio de dezesseis passos de diâmetro. No inverno ali permaneço menos tempo, pois minha casa fica empoleirada numa montanha, como diz seu nome, e não tem aposento mais exposto ao vento do que esse, por ser um pouco afastado, de difícil acesso, me agrada tanto pelo exercício a que me obriga como por me afastar da multidão. Esta é a minha sede. Tento ter sobre ela um domínio absolutamente puro, subtraindo esse único recanto da comunidade conjugal, filial e social. Em todos os outros lugares minha autoridade é mais verbal que real: essencialmente vaga. Em minha opinião, ai de quem não tem em casa onde estar consigo, onde falar privadamente consigo mesmo, onde se esconder! A ambição paga bem a seus servidores por mantê-los sempre à vista, como a estátua de uma praça do mercado. Uma grande servidão é um grande destino (Sêneca). Eles não tem privacidade nem mesmo na privada. Na austeridade de vida que nossos religiosos adotam jamais encontrei nada tão rude como o que vejo em algumas de suas companhias: a regra de estar perpetuamente em companhia de alguém e em numerosa presença dos outros, em qualquer ação que seja. E, em suma, acho mais suportável estar sempre só do que nunca poder estar. Se alguém me diz que é aviltar as musas usá-las somente como brinquedo ou passatempo, é que não sabe, como eu, quanto vale o prazer, o jogo e o passatempo: eu quase poderia dizer que qualquer outra finalidade é ridícula. Vivo dia a dia, e, com o devido respeito, só vivo para mim: meus objetivos terminam aí. Quando jovem, estudava por ostentação; depois, um pouco para tornar-me sábio; agora, para me divertir, nunca pelo proveito. O gosto vão e gastador que eu tinha por essa espécie de objeto, não para satisfazer apenas minha necessidade mas, três passos adiante, para atapetar e adornar minhas paredes, há muito tempo abandonei. Os livros têm muitas qualidades agradáveis para os que sabem escolhê-los. Mas não há bem que se obtenha sem pena. É um prazer que não é mais puro nem mais fácil que os outros: tem seus inconvenientes, e bem pesados. Neles a alma se exercita mas o corpo, cujo cuidado também não esqueci, permanece enquanto isso sem ação, degrada-se e se entristece. Não sei de excesso mais prejudicial para mim, nem mais a evitar neste declínio da idade. Essas são minhas três ocupações favoritas e particulares. Não falo das que devo ao mundo por obrigação civil". Páginas 376 - 380.

Deixo ainda a resenha do livro. http://www.blogdopedroeloi.com.br/2023/11/os-ensaios-montaigne-1533-1592.html

quarta-feira, 22 de novembro de 2023

Sobre as orações. MONTAIGNE, em "OS ENSAIOS", nos fala a respeito.

Reputo este texto como sendo de muita atualidade. Creio que em nenhuma época houve tanta hipocrisia e distanciamento entre DEUS e seus ditos ou autoproclamados representantes. Vendo certas figuras que se dizem religiosas, sempre afirmo, que é preciso muito - não acreditar - para fazer as barbaridades que eles têm coragem de praticar. Hipocrisia é o termo para aferir esta situação. Inicialmente apresento o texto introdutório ao capítulo, o de número 56, do Livro Primeiro, de autoria de Rosa Freire D'Aguiar. Vejamos:

Os ensaios. Montaigne. Penguin - Companhia. 

Para tratar desse assunto delicado, na fronteira do sagrado e do profano, Montaigne retrabalhou muito o texto, tornando o capítulo três vezes maior desde a primeira edição da obra, em 1580. A clareza se ressente um pouco desses sucessivos acréscimos, mas sua profissão de fé católica é claríssima. Temos aqui um enfoque mais aprofundado da austeridade e do rigor do catolicismo de Montaigne. Os numerosos acréscimos foram em parte uma resposta às críticas do Vaticano sobre a asserção de Montaigne de que quando um homem reza deve estar purgado de seus pecados, sem hipocrisia, e em lugar e circunstâncias próprias a essa prática. Os censores do Vaticano examinaram particularmente este capítulo, e finalmente recomendaram algumas correções. Tanto quanto em 'sobre o arrependimento', vemos que o catolicismo de Montaigne era exigente. Ele condena, assim como Rabelais e, claro, Calvino, a oração mecânica que se faz sem um recolhimento especial. Sua ortodoxia rejeita toda tentativa de tradução dos textos sagrados, para ele fonte de erros e de heresias. Vamos ao texto:

"[...] Não sei se me engano mas, já que por um favor particular da bondade divina certo tipo de oração nos foi prescrita e ditada, palavra por palavra, pela boca de Deus, sempre me pareceu que devíamos fazer dela uso mais corrente do que fazemos; e se acreditassem em mim, no início e no fim de nossas refeições, em nosso levantar e deitar, e em todas as ações particulares em que nos acostumamos a incluir orações, gostaria que fosse o padre-nosso que os cristãos usassem, se não somente, pelo menos sempre. A Igreja pode estender e diversificar as orações segundo sua necessidade de nos instruir, pois bem sei que é sempre a mesma substância e a mesma coisa. Mas àquela deveria se dar este privilégio: que o povo a tivesse continuamente na boca, pois é certo que diz tudo o que é preciso, e que é muito adequada a todas as ocasiões. É a única oração da qual me sirvo para tudo, e repito-a em vez de trocá-la. Disso resulta que não tenho outra tão bem na memória como aquela. Estava recentemente pensando de onde nos vinha esse erro de recorrer a Deus em todos os nossos projetos e empreendimentos, e de chamá-Lo em toda sorte de necessidade, e em qualquer lugar em que nossa fraqueza deseja ajuda, sem considerar se a ocasião é justa ou injusta; e de invocar Seu nome e Seu poder em qualquer situação e ação que pratiquemos, por mais pecadora que seja. Ele é de fato nosso só e único protetor, e para ajudar-nos pode todas as coisas, mas, conquanto se digne a honrar-nos com essa doce aliança paterna, é, porém, tão justo como bom e poderoso. Mas usa bem mais frequentemente Sua justiça do que Seu poder, e favorece-nos de acordo com essa justiça e não segundo nossos pedidos [...].

E a posição de um homem que mistura a devoção com uma vida execrável parece ser bem mais condenável que a de um homem coerente consigo mesmo e inteiramente dissoluto. Por isso, nossa Igreja (a católica) recusa todos os dias aos que se obstinam em fazer alguma insigne maldade o favor de admiti-los em sua comunidade. Rezamos por hábito e por costume, ou melhor, lemos ou pronunciamos nossas preces: não é, enfim mais que uma mímica. E desagrada-me ver fazerem três sinais da cruz no Benedicite, outros tantos nas Graças. (e desagrada-me mais por ser um sinal que reverencio e utilizo constantemente, mesmo quando bocejo) e, no entanto, todas as outras horas do dia vê-los dedicados ao ódio, à avareza, à injustiça. Hora para os vícios, hora para Deus, como por compensação e arranjo. É um milagre ver sucederem-se ações tão incompatíveis, de teor tão parecido, a ponto de não se sentir interrupção e hesitação nem mesmo nas fronteiras e na passagem de uma à outra. Que monstruosa consciência pode encontrar descanso enquanto nutre num mesmo lugar, em convívio tão harmonioso e tão pacífico, o crime e o juiz? Um homem cuja licenciosidade governa incessantemente sua cabeça, e que a julga muito odiosa aos olhos divinos, que diz ele a Deus quando lhe fala disso? Recupera-se, mas subitamente torna a cair.

Se, como diz, o conceito de justiça divina e sua presença golpearam e castigaram sua alma, por mais curta que fosse a penitência o simples temor volveria seu pensamento para ela, tão amiúde que, de imediato, ele dominaria esses vícios que lhe são tão habituais e lhe estão incrustrados. Mas qual! E os que fundam uma vida inteira nos frutos e nos lucros do pecado que sabem ser mortal? Quantos ofícios e profissões socialmente reconhecidas temos cuja essência é viciosa? E aqueles que, confiando-se a mim, recitava-me ter toda a sua vida professado e praticado o ritual de uma religião condenável, segundo ele mesmo, e contraditória com a que tinha no coração, para não perder seu crédito e a honra de seus cargos, como conciliava esses pensamentos em seu coração? Com que linguagem conversam com a justiça divina a respeito desse assunto? Como seu arrependimento requer uma reparação visível e tangível, perde o direito de evocá-lo, tanto perante Deus como perante nós. São tão ousados para pedir perdão sem satisfação e sem arrependimento? Penso que é o caso daqueles primeiros como destes, mas daqueles não é tão fácil mostrar a obstinação. Essa contradição e essa volubilidade tão súbitas, tão violentas, que fingem diante de nós me cheiram a milagre. Revelam o estado de um indigerível conflito. E, nesses últimos anos, tinham o costume de criticar qualquer um em que reluzisse certa clareza de espírito e que professasse a religião católica, dizendo que era fingimento! E até afirmavam, para honrá-lo, que pouco importava o que dissesse externamente, pois não podia deixar de ter, internamente, sua fé reformada pelos padrões deles. Fastidiosa enfermidade, a de se crer tão forte a ponto de persuadir-se de que não é possível acreditar no contrário, e mais fastidiosa ainda quando a pessoa se convence de que um espírito assim prefere não sei qual melhora de sua sorte atual às esperanças e ameaças da vida eterna! Eles podem crer em mim: se algo me tivesse tentado na juventude, boa parte disso teria sido o gosto pelos riscos e as dificuldades que acompanhavam esse recente empreendimento. Não é sem boa razão, parece-me que a Igreja proíbe o uso promíscuo, temerário e levianos dos salmos sagrados e divinos que o Espírito Santo ditou a Davi. Não devemos misturar Deus às nossas ações a não ser com reverência e atenção plena de ter outro uso que não exercitar os pulmões e agradar a nossos ouvidos. É na consciência que deve ser produzida e não na língua. Não é correto permitir que um caixeiro de armazém se entretenha e brinque com ela, entre seus pensamentos vãos e frívolos. Nem de certo é correto ver largado na sala ou na cozinha o Livro Sagrado dos mistérios de nossa fé. Outrora eram mistérios, agora são divertimentos e passatempos. Não é de passagem, nem de forma tumultuada que devemos manipular um estudo tão sério e venerável. Deve ser uma ação premeditada e séria, à qual sempre há que acrescentar este prefácio do nosso ofício, sursum corda, (elevemos os corações,) e tendo o próprio corpo disposto em atitude que ateste uma particular atenção e reverência. Não é estudo para todo mundo: é estudo para pessoas que a isso se dedicaram, que Deus chama para tal; os maus, os ignorantes tornam-se piores com isso. Não é uma história para contar; é uma história para reverenciar, temer e adorar. Engraçadas essas pessoas que pensam tê-la tornado manejável pelo povo, por tê-la posto em linguagem popular. Quando não entendem tudo o que encontram por escrito a culpa seria só das palavras? Direi mais? Quando trazem para um pouco mais perto delas essa história, na verdade a afastam. A mera ignorância, que se entrega inteiramente a outrem, era bem mais salutar e mais sábia do que é essa ciência verbal e vã e que nutre presunção e temeridade. Creio também que a liberdade de cada um de difundir uma palavra tão religiosa e importante em tantos tipos de idiomas apresenta muito mais perigo que utilidade. Os judeus, os maometanos e quase todos os outros desposaram e reverenciam a língua em que originalmente seus mistérios foram concebidos, e são proibidas sua alteração e mudança: não sem razão"... Páginas 180 - 185.

Para ter uma visão maior de Montaigne, deixo o post de Os ensaios, mas antes lembrando que ele viveu no tempo das Guerras Religiosas na França, entre os católicos e os huguenotes. Ainda tenho a dizer  que a coerência é um elemento fundamental na vida das pessoas. Um dia ganhei uma camiseta de presente. Ela continha os seguintes dizeres: É fundamental diminuir a distância entre o que se diz e o que se faz, de tal forma que, num dado momento, a tua fala seja a tua prática. Paulo Freire. Viver de forma coerente e distante da hipocrisia - creio ser uma fórmula para o viver bem.

http://www.blogdopedroeloi.com.br/2023/11/os-ensaios-montaigne-1533-1592.html

segunda-feira, 20 de novembro de 2023

Os horrores da colonização e os indígenas canibais. Montaigne em "OS ENSAIOS".

O capítulo XXX do Livro Primeiro de Os ensaios, tem por título - Sobre os canibais. É um dos textos mais conhecidos e - aos brasileiros -, interessa particularmente. Ele tem a seguinte apresentação, da tradutora do livro, Rosa Freire D'Aguiar:

"Os canibais do título são os índios do Brasil. Montaigne leu muitos relatos da conquista do Novo Mundo, inclusive  o de Girolano Benzoni, Historia del mondo nuovo (Veneza, 1565), na tradução francesa de 1579, obra cujo subtítulo enfatiza o terrível tratamento dado aos nativos pelos conquistadores. Ele pretende se apoiar em testemunhos diretos, recolhidos junto aos atores do episódio da França Antártica, a colônia que os franceses tentaram implantar na baía da Guanabara a partir de 1555; junto a marinheiros e até mesmo a alguns índios que estavam no porto de Rouen em 1562. O 'primitivismo' de Montaigne tem pouco a ver com o 'bom selvagem' dos séculos seguintes. Seus índios são sanguinários e cruéis, antropófagos e polígamos. Estes dois últimos traços, longamente analisados, levam a pensar no caráter paradoxal e provocador do ensaio, muito trabalhado em sua eloquência. Se aqueles povos são de fato cruéis, nós também somos. Mas seus métodos simples têm muito a nos ensinar: podem servir de padrão para julgarmos A República de Platão, o mito da Idade de Ouro, a crueldade, a corrupção e a cultura da Europa. O que seduz Montaigne nos habitantes da costa brasileira é sua coragem, sua virtude, seu ascetismo espartano: cidadãos ideais de uma Grécia onírica que uniria Esparta e Atenas. Com seu título chamativo, este capítulo seduzirá Shakespeare (que o ecoa em A tempestade) e Rousseau. Mas vamos ao texto:

Os ensaios. Michel de Montaigne.

Os canibais - [...] Eles (Licurgo e Platão) não conseguiram imaginar uma ingenuidade tão pura e simples como a que vemos por experiência e nem conseguiram acreditar que nossa sociedade conseguisse manter-se com tão pouco artifício e solda humana. É uma nação, eu diria a Platão, em que não há nenhuma espécie de comércio, nenhum conhecimento das letras, nenhuma ciência dos números, nenhum termo para magistrado nem para superior político, nenhuma prática de subordinação, de riqueza, ou de pobreza, nem contratos nem sucessões, nem partilhas, nem ocupações além do ócio, nenhum respeito ao parentesco exceto o respeito mútuo, nem vestimentas, nem agricultura, nem metal, nem uso de vinho ou de trigo. As próprias palavras que significam mentira, traição, dissimulação, avareza, inveja, difamação, perdão, são desconhecidas. Como ele consideraria distante dessa perfeição a república que imaginou!

"Eis as primeiras leis que oferece a natureza". Virgílio, Geórgicas, II, 20.

Ademais, vivem num país muito agradável e de clima ameno, de modo que pelo que me disseram minhas testemunhas é raro ver ali um homem doente; e garantiram-me não ter visto nenhum trêmulo, remelento, desdentado, ou curvado de velhice. Estão instalados ao longo do mar e cercados do lado da terra por grandes e altas montanhas, tendo entre os dois uma extensão de cerca de cem léguas de largura. Têm grande abundância de peixe e carnes, sem nenhuma semelhança com os nossos; e os comem sem outro artifício além de cozinhá-los. O primeiro que para lá levou um cavalo, embora já os tivesse encontrado em várias outras viagens, causou-lhes tanto horror naquela posição que o mataram a flechadas antes de chegarem a reconhecê-lo. Suas construções são muito compridas e com capacidade para duzentas ou trezentas almas; são cobertas de casca de grandes árvores, presas à terra por uma ponta e sustentando-se e apoiando-se uma na outra pela cumeeira, à moda de algumas de nossas granjas, cuja cobertura pende até o chão e serve de muro. Têm madeiras tão duras que as usam para cortar, e com elas fazem suas espadas e espetos para grelhar os alimentos. Seus leitos são de um tecido de algodão, suspensos no teto, como os de nossos navios, cada um com o seu, pois as mulheres dormem separadas dos maridos. Levantam-se com o sol e comem logo depois de se levantarem, para o dia todo, pois, não fazem outra refeição além dessa. Não bebem nesse momento, como Suídas (grande lexicógrafo do final do século X) conta sobre alguns outros povos do oriente, que só bebem fora da refeição; bebem várias vezes ao dia, em profusão. Sua bebida é feita de certa raiz e é da cor de nossos vinhos claretes. Só a tomam morna: essa beberagem se conserva apenas dois ou três dias, tem um gosto um pouco picante, nada inebriante, é salutar para o estômago e laxativa para os que não estão acostumados; é uma bebida muito agradável para quem está habituado. Em vez do pão comem uma substância branca, parecida com coriandro em conserva. Provei-a, o gosto é doce e um pouco insosso. Passam o dia dançando. Os mais moços vão à caça dos bichos, com arcos. Enquanto isso, uma parte das mulheres se ocupa de aquecer a bebida, o que é sua principal função. 

Há um dos velhos que, de manhã, antes de começarem a comer, prega ao mesmo tempo para todos os moradores, passeando de uma ponta à outra e repetindo a mesma frase várias vezes, até que tenha completado a volta (pois são construções que têm bem uns cem passos de comprimento), e só lhes recomenda duas coisas, a valentia contra os inimigos e a amizade por suas mulheres. E jamais deixam de salientar essa obrigação, como um refrão, de que são elas que lhes mantêm a bebida morna e temperada. Vê-se em vários lugares, e entre outros em minha casa, a forma de seus leitos, cordões, espadas, e pulseiras de madeira com que cobrem os punhos nos combates, e grandes caniços abertos numa ponta, cujo som marca a cadência de sua dança. São inteiramente raspados e barbeiam-se muito mais rente que nós, sem outra navalha que não de madeira ou pedra. Creem que as almas são eternas e aquelas que bem mereceram dos deuses estão alojadas no lugar do céu onde o sol se levanta: as malditas, do lado poente. Têm não sei que sacerdotes e profetas, que aparecem raramente ao povo e moram nas montanhas. Ao chegarem, faz-se uma grande festa e uma assembleia solene de várias tabas (cada granja, como descrevi, constitui uma taba, e distam  uma da outra cerca de uma légua francesa). Esse profeta lhes fala em público, exortando-os à virtude e ao dever, mas toda a moral deles só contém estes dois artigos: coragem na guerra e afeição por suas mulheres. Prognostica-lhes as coisas vindouras e os resultados que devem esperar de seus empreendimentos: encaminha-os ou os dissuade da guerra, mas com a condição de que, caso se engane em suas previsões e lhes aconteça diferentemente do que lhes predisse, ele é picado em mil pedaços, se o agarrarem, e condenado como falso profeta. Por isso, quem uma vez se enganou não é mais visto.  A adivinhação é dom de Deus: eis por que abusar dela deveria ser uma impostura punível. Entre os citas, quando os adivinhos falhavam eram deitados com ferros nos pés e nas mãos em cima de carroças cheias de urze, puxadas por bois, onde eram queimados. Aqueles que manipulam as coisas sujeitas ao governo da competência humana são desculpáveis se fizeram o que podiam. Mas esses outros, que vêm nos embair com garantias de uma faculdade extraordinária, que está fora de nosso conhecimento, não devemos puni-los por não manterem suas promessas e pela temeridade de sua impostura?

Eles têm suas guerras contra as nações que ficam além das montanhas, mais adiante na terra firme, para as quais vão inteiramente nus, não tendo outras armas além dos arcos ou de espadas de madeira, afiadas numa ponta, à modas das ponteiras de nossas lanças. É admirável a firmeza de seus combates, que sempre terminam em morte e efusão de sangue, pois eles não sabem o que é fuga e pavor. Cada um traz como troféu a cabeça do inimigo trucidado e a pendura à entrada de sua casa. Depois de tratar bem por muito tempo seus prisioneiros, e com todas as comodidades que podem imaginar, quem for o dono deles faz uma grande assembleia com seus conhecidos. Prende uma corda num dos braços do prisioneiro, por cuja ponta o segura, afastado alguns passos, temendo ser ferido por ele, e dá ao mais querido amigo o outro braço para que o segure da mesma forma; e os dois, em presença de toda a assembleia, o matam a golpes de espada. Feito isso, assam-no e o devoram juntos, e mandam pedaços aos amigos ausentes. Não é, como se pensa, para se alimentarem, assim como faziam antigamente os citas, mas para simbolizar uma vingança extrema. E, como prova, tendo visto que os portugueses, aliados de seus inimigos, usavam contra eles, quando os agarravam, outro tipo de morte, que consistia em enterrá-los até a cintura e darem no restante do corpo muitas flechadas e enforcá-los depois, pensaram que os homens desse outro mundo (pessoas que tinham espalhado pela vizinhança o conhecimento de muitos vícios e que eram mestres muito maiores que eles em toda maldade) não empregavam sem motivo esse método de vingança, que devia ser mais cruel que o deles, tanto assim que começaram a abandonar sua maneira antiga para seguirem essa outra.

Não fico triste por observarmos o horror barbaresco que há em tal ato, mas sim por, ao julgarmos corretamente os erros deles, sermos tão cegos para os nossos. Penso que há mais barbárie do que comê-lo morto, em dilaceram por tormentos e suplícios um corpo ainda cheio de sensações, fazê-lo assar pouco a pouco, fazê-lo ser mordido e esmagado pelos cães e pelos porcos (como não apenas lemos mas vimos de fresca memória, não entre inimigos antigos, mas entre vizinhos e compatriotas, e, o que é pior, a pretexto de piedade e religião) do que em assá-lo e comê-lo depois que está morto. Crísipo e Zenão, chefes da escola estoica, pensaram que não havia nenhum mal em usar nosso cadáver, no que fosse para nossa necessidade, e dele tirar alimento, assim como nossos ancestrais, estando sitiados por César na cidade  de Alésia, decidiram enfrentar a fome desse cerco com os corpos dos velhos, das mulheres , das crianças e de outras pessoas inúteis para o combate". A tonalidade do ensaio continua por aí, a mostrar as hipocrisias do seu tempo. (Páginas 146 a 151). Deixo ainda a resenha completa do livro.

http://www.blogdopedroeloi.com.br/2023/11/os-ensaios-montaigne-1533-1592.html

quarta-feira, 15 de novembro de 2023

OS ENSAIOS. Montaigne (1533- 1592).

Uma releitura fascinante. Os ensaios de Michel de Montaigne. Vamos a algumas contextualizações. Montaigne nasceu no ano de 1533 e morreu em 1592. Século XVI. O século da Reforma Protestante e dos reinados de Felipe II, da Espanha (1556-1598) e de Elizabeth da Inglaterra (1553-1603) e das Guerras religiosas na França (1562-1598), que terminam com a ascensão de Henrique IV. Tempos de muita agitação mas que não impediram a Montaigne de se refugiar em uma vida interior e, sobre ela, tecer as mais profundas considerações.
Os ensaios. Michel de Montaigne. Penguin - Companhia. 2010.

Montaigne teve uma vida financeira tranquila, na qualidade de herdeiro de seu rico avô. Nunca se preocupou muito com a questão financeira e, muito menos, com a perspectiva de aumentar fortuna. Tratou, isso sim, do bom viver. Mesmo contra a sua vontade, foi por duas vezes prefeito de sua cidade, a cidade de Bordeaux. Pela leitura de seus ensaios e por dados biográficos seus, creio que podemos apresentá-lo como um senhor de boas relações, de grande afabilidade e de ótimas conversas, coisas de seu feitio. Os seus ensaios são conversas muito sinceras sobre os grandes temas da vida e de sua época, um retrato de seu tempo, mais precisamente, a segunda metade do século XVI.

O livro que eu li, é o da coleção - Clássicos - da Penguin - Companhia, uma edição do ano de 2010. A coordenação da obra (uma seleção de textos) é de M. A. Screech e tradução e notas de Rosa Freire D'Aguiar. Cada capítulo selecionado tem uma apresentação da tradutora. Nela ela sintetiza o ensaio selecionado e apresenta as suas repercussões e importância. Mas eu quero chamar uma particular atenção para a apresentação - O escritor Montaigne - de autoria do conceituado Erich Auerbach, autor do monumental Mimesis - estudos. Auerbach assim apresenta Montaigne e Os ensaios:

"Esse homem independente e sem profissão determinada criou assim uma nova profissão e uma nova categoria social: o homme de lettres ou écrivain, o leigo na condição de escritor. Conhecemos o caminho percorrido por essa profissão, primeiro na França e depois também em outros países de cultura: tais leigos tornaram-se os verdadeiros intelectuais, os representantes e guias da vida intelectual, e gozam hoje em dia de um tal reconhecimento que Julien Benda os chamou de clercs, o mesmo nome, portanto, daqueles a quem originalmente se opunham, os clerici ou religiosos. Isso equivale ao reconhecimento de que os escritores herdaram destes últimos o legado e o posto, isto é, a hegemonia intelectual na Europa moderna. De Montaigne a Voltaire há uma ascensão contínua; no século XIX, eles ampliam sua posição e alcançam repercussão sobre uma base mais larga, o jornalismo, e apesar de alguns sinais de decadência observados há tempos, é bastante provável que também no século XX eles venham a manter sua função de voz do mundo" (Página 16). Que beleza e que profundidade! Novos detentores da interpretação do mundo.

Montaigne, apesar de sua propensão ao recolhimento, não fica alheio às questões de seu tempo, e mais precisamente, à questão das guerras religiosas. Ele permanece monarquista e católico, mas o seu catolicismo não contagia a sua obra. Ele será um escritor leigo e que escreve para leigos, a partir da consonância com a natureza e sob as luzes da reflexão racional. Um autônomo. Está longe de empregar um método científico e da especialização em certos temas. Escreve muito e sobre os mais diversos temas. Os ensaios são escritos e revisados e, ao todo, ocupam mais de mil páginas. Por isso as seleções. Vida, morte, dores, doenças, são alguns de seus temas preferidos. Sócrates, Platão, Plutarco, Sêneca, Virgílio, entre outros, iluminam os seus escritos (a presente seleção tem 610 páginas). Segundo ele mesmo nos conta, três eram os seus afazeres prediletos: a conversa com amigos (La Boétie), a companhia de mulheres honestas e bonitas e a leitura.

Os textos da edição que eu li são retirados dos três livros que compõem Os ensaios. Vamos aos temas:

Livro Primeiro. Capítulo I - Por meios diversos se chega ao mesmo fim. O grande tema são as guerras e as versões a ela dadas; Capítulo VIII - Sobre a ociosidade. Aqui ele apresenta o conceito de ócio como um lazer letrado; Capítulo XV - Sobre a punição da covardia. Um alerta sobre os deveres para coma a pátria; Capítulo XVII - Sobre o medo. O pior medo é o medo do medo. Ele elimina a possibilidade do julgamento racional; Capítulo XIX - Que filosofar é aprender a morrer. O melhor preparo para a morte é o viver bem. Ela deve ser vista como algo muito natural. É um dos seus capítulos mais conhecidos e famosos; Capítulo XXV - Sobre a educação das crianças. Um belo capítulo que versa sobre uma educação aristocrática. Ainda não são tempos de educação pública. Belíssimos temas afloram como a importância de dizer "não" (La Boétie), que saber não é decorar, sobre professores encolerizados e sobre a espontaneidade do aprender, movido pela curiosidade natural; Capítulo XXVI - É loucura atribuir o verdadeiro e o falso à nossa competência. Aborda o tema da questão religiosa, mostrando a sua fidelidade ao catolicismo. Discute também a questão dos milagres, postos à prova pela razão; Capítulo XXX - Sobre os canibais. Fala dos horrores da colonização e nos apresenta os indígenas brasileiros. Apresentarei o tema em post especial; Capítulo XXXI - Que é preciso prudência para se meter a julgar os decretos divinos. Versa especialmente sobre as intervenções divinas nas guerras, ou não. Escrito logo após a Batalha de Lepanto (1571); Capítulo XXXVIII - Sobre a solidão. É sobre a sua busca e sobre os inimigos da felicidade humana, sendo a ambição o principal; Capítulo LVI - Sobre as orações. Versa sobre a excelência do Pai-Nosso e a sua aversão às orações mecanicamente repetidas e sobre o perigo das traduções em livros religiosos. Capítulo LVII - Sobre a idade. Escreve aos 47 anos e já se considera um velho. Fala de suas cólicas renais. É o capítulo que encerra a Primeira Parte.

Livro Segundo. Capítulo I. - Sobre a inconstância de nossas ações. Ela dificulta os estudos sobre a condição humana; Capítulo II. Sobre a embriaguez. Embora não despreze a bebida, mostra a embriaguez como um vício grosseiro e brutal; Capítulo V - Sobre a consciência. É a força que nos denuncia a nós mesmos. Nos faz perceber o certo e o errado. Já fala do absurdo da tortura como método de punição; Capítulo VIII - Sobre a afeição dos pais pelos filhos. Neste capítulo, profundamente revelador, aparecem belos temas, como a ausência da violência na educação, da precedência dos interesses sociais sobre os individuais, sobre o ser amado, mais que temido e sobre as suas obras, como seus filhos; Capítulo XI - Sobre a crueldade. Fala da morte de Sócrates, sobre os vícios, sendo a crueldade o maior de todos, inclusive com relação aos animais; Capítulo XXXII. Defesa de Sêneca e Plutarco. É um tributo que presta a estes autores, sempre entre os seus preferidos; Capítulo XXXV - Sobre três boas esposas. Afirma que não as há, às dúzias. Fala sobre os deveres e às virtudes no casamento. Mulheres trágicas e fortes. O capítulo revelaria dados de misoginia? Capítulo XXXVIII - Sobre a semelhança dos filhos com os pais. Montaigne não era muito bom ao atribuir títulos aos capítulos. Este mesmo, versa sobre um mundo de coisas, com destaque à sua visão negativa da medicina.

Livro Terceiro. Os capítulos são mais longos. Capítulo II. Sobre o arrependimento. As minhas ações estão em harmonia com as minhas condições. Sempre procedi sensatamente. Estes são indícios de que não tinha grandes simpatias com relação ao arrependimento. É um dos temas de abordagem religiosa. Capítulo III. Sobre as relações. Belíssimo. destaca as suas preferências: conversa com os amigos; estar em companhia de belas mulheres e a leitura. Sobre a sua companhia com os livros, um post especial como deferência à beleza do texto; Capítulo V - Sobre versos de Virgílio. Mais uma vez a fuga ao tema anunciado. Fala de sexualidade e casamento. Penso até em incluir este capítulo no meu curso de literatura erótica, que sempre anuncio e nunca programo. E, também por óbvio, sobre os versos do poeta latino. Capítulo VI - Sobre os coches. Fala da ostentação e da malversação do dinheiro público. O seu meio de transporte era o cavalo. Capítulo XI - Sobre os coxos. Fala da origem de muitas verdades, sobre a feitiçaria e sobre o pensamento filosófico e a valorização da dúvida. Este capítulo o relaciona ao iluminismo; Capítulo XIII. O capítulo final. Sobre a experiência. Apresenta o conhecimento como o mais natural dos desejos e reflete sobre o lugar do ser humano no mundo. Retoma alguns temas de sua preferência como o viver, o envelhecer, doença, dor e morte. Também merece um post especial.

Antes de encerrar, apresento ainda os três parágrafos da contracapa do livro: "Personagem de vida curiosa, Michel Eyquem de Montaigne (1533-1592) é considerado o inventor do gênero ensaio. Herdeiro de uma fortuna deixada pelo avô, um comerciante de peixes abastado, Montaigne foi alfabetizado em latim e também prefeito de Bordeaux. A certa altura, retirou-se para ler, meditar e escrever sobre praticamente tudo.

Esta seleção de ensaios oferece ao leitor brasileiro um panorama abrangente do pensamento (cada vez mais atual) de Montaigne, sem que se precise recorrer aos três volumes de suas obras completas. Selecionados para a edição internacional da Penguin por M.A. Screech, estes ensaios passam por temas como o medo, a covardia, a preparação para a morte, a educação dos filhos, a embriaguez, a ociosidade.

De particular interesse para nossos leitores é o ensaio "Sobre os canibais", que foi inspirado no encontro que Montaigne teve, em Ruão, em 1562, com os índios da tribo Tupinambá. Esta edição traz também um prefácio do crítico literário Erich Auerbach, que apresenta e contextualiza o autor para os leitores de hoje".

terça-feira, 7 de novembro de 2023

IRACEMA-RIQUEZA. Fragmentos de uma história. Origens da cidade de Riqueza no oeste de SC.

Mais uma vez o meu irmão, Hédio José Rech, me brindou com um livro que relata a origem de algumas cidades do oeste catarinense (dois sobre Mondaí e agora sobre Riqueza), locais pelos quais ele passou em busca de um lugar, em suas andanças pelo mundo. Hédio, hoje mora na sede do município de Mondaí e chegando perto dos 90 anos de uma vida, marcada por muitos esforços e dedicação. Sei que ele também foi morador de Linha Catres e de Linha Cambucica.


Portal da cidade de Riqueza e sua localização no oeste catarinense.

Hédio é o meu irmão mais velho e, ainda nos anos 1960, depois de estudos feitos no Seminário São José, em Gravataí, foi, como que, recrutado para ser professor em Santa Catarina. Ele não teve dúvidas em deixar para trás a nossa Harmonia, na época, um distrito de Montenegro e atual sede de município, a nossa terra natal. Eu sou o mais novo, entre cinco irmãos. Apenas dois ficaram em Harmonia, sendo que um deles, após o casamento se mudou para Tupandi. Hédio andou por muitas pequenas localidades, as então, e creio que até hoje, as chamadas linhas, até aposentar-se como professor do estado de Santa Catarina. Eu, da minha parte, vim para o Paraná, no ano de 1969 e resido atualmente na cidade de Curitiba.

Bem, a finalidade deste post não é a de relatar as nossas andanças, mas sim, fazer uma pequena resenha do livro que ele me enviou, Iracema-Riqueza - Fragmentos de uma história de autoria da professora Silvani Morgenstern Di Domênico, residente e filha de pioneiros da cidade. Iracema era o nome da localidade na época de sua fundação, tendo depois, em virtude da abundância de madeira na região, ter adquirido o nome de Riqueza. O livro é uma publicação da Arcus editora, do ano de 2010. A história da cidade de Riqueza tem uma particularidade, que, creio ser única na história do Brasil, que é a da presença dos chamados teuto-russos no início de sua colonização, no ano de 1930. Este registro histórico, junto a saga de outros migrantes, praticamente todos gaúchos, além dos "caboclos", já moradores do local, é que conferem grande valor ao livro.

Teuto- russos... Quem seriam eles? Qual é a sua história? Quais foram as suas migrações e qual a causa das mesmas? Tudo isso será respondido ao longo de livro de 205 páginas, divididas em cinco capítulos, mais prefácio, introdução e considerações finais. Os cinco capítulos, designados como partes, tem os seguintes títulos: 1. Localizando Riqueza no oeste de Santa Catarina, que abrange também a saída dos alemães, na sua primeira migração da Alemanha para a Rússia, sob o governo de Catarina II; 2. A saída da Alemanha e a chegada ao Brasil. Eu explico, a saída da então URSS deu-se através da Alemanha, pelo porto de Bremen; 3. A chegada de outros grupos étnicos; 4. Crescimento do comércio nas décadas de 1960 até os anos de 1980; 5. O cinquentenário da colonização - 1980. 

Em minha resenha vou me ater mais aos dois primeiros capítulos, pelo inusitado do ocorrido em 1930, o ano da fundação de Riqueza, com a vinda de alemães, que, ao menos, por duas gerações moraram na Rússia e de lá saíram, quando o país ostentava a denominação de União das Republicas Socialistas Soviéticas (URSS), no ano de 1929. Faço isso pelo inusitado do fato, sem menosprezar as outras partes do livro, que focam mais na parte local, das peripécias da colonização.

As migrações europeias são uma consequência da modernidade, com a ocorrência da Revolução Industrial e o avanço da ciência no controle das doenças e o consequente aumento na expectativa de vida e da população. As migrações geralmente se deram em consequência do aumento da miséria e pela busca de melhores oportunidades. O fenômeno da migração de alemães para a Rússia se deu após as funestas consequências da Guerra dos Sete Anos (1756-1763 - praticamente uma primeira guerra mundial) e das promessas de Catarina II, a Grande (1762-1796) aos alemães, em seu desejo de povoar regiões ainda praticamente desertas, como a Sibéria. Os números constantes na página 29, apontam que entre 1764 e 1769, oito mil famílias alemãs migraram para a Rússia, perfazendo um total de cerca de 27.000 pessoas. Se estabeleceram no baixo Volga.

A saída da Rússia (já URSS) se deu no ano de 1929. Tudo foi consequência da Revolução bolchevique de 1917, mais precisamente, no segundo governo, o governo de Stálin e a sua política de coletivização das terras. Os famosos Kolkhozes. Além dessa questão, constata-se pelas entrevistas, a enorme insatisfação  causada pela ausência da liberdade religiosa sob o governo de Stálin, foi a outra grande causa para a saída da URSS. A saída se deu, primeiramente por meios legais e depois por fugas, numa epopeia de rara bravura e sacrifícios. Contaram com a ajuda da Cruz Vermelha e de instituições religiosas.

A fixação no oeste de Santa Catarina se deu através de processos de colonização, via Rio Grande do Sul, pela travessia do rio Uruguai, pela região de Iraí. O oeste de Santa Catarina era, na época um enorme descampado. O único município existente era o de Chapecó, do qual foram desmembrados cerca de 60 municípios. Para a colonização de Riqueza foi de fundamental importância a presença da colonizadora Companhia Territorial Sul Brasil e o seu gerente, um engenheiro alemão, Carlos Culmey. As dificuldades foram enormes e obedeceram, de uma maneira geral, as dificuldades da ocupação agrícola de novas fronteiras. Entre os problemas enfrentados se somou a proibição da fala da língua alemã, no tempo da Segunda Guerra Mundial. Vieram para a região de Riqueza em torno de 250 famílias dos chamados teuto-russos, isto é, de alemães com passagem pela Rússia.

Riqueza inicialmente pertenceu ao município de Mondaí e conseguiu a sua emancipação, por decreto do estado de Santa Catarina, do ano de 1991 após a realização de um plebiscito. A partir de primeiro de janeiro tomaram posse os primeiros mandatários e legisladores do município. Pelo censo divulgado em 2023, Riqueza conta com 4.768 habitantes. As atividades econômicas são predominantemente agrícolas. Como o meu irmão também me mandou outros dois livros sobre a colonização da região oeste de Santa Catarina, mais precisamente de Mondaí, deixo a resenha desses dois livros:

http://www.blogdopedroeloi.com.br/2021/07/um-novo-lar-na-imensidao-da-mata.html

http://www.blogdopedroeloi.com.br/2022/08/porto-feliz-mondai-o-centenario-da.html

Deixo ainda uma pequena história contada pelo meu outro irmão, o irmão Canísio, que mora em Ponta Grossa e integra a ordem religiosa da Congregação do Verbo Divino. Conta ele, que o Hédio, (Se não me engano, ele chegou a ser secretário de educação do município e que, por muitos anos, foi professor em Linha Cambucica) um dia foi passear em Harmonia, a nossa terra natal, coisa que ele fazia com frequência, e no carro levava um adesivo com os dizeres - EU amo Riqueza -, aqueles em que o - amo - é expresso por um coraçãozinho. Diz o irmão Canísio, que isso foi o suficiente para que ele recebesse uma forte repreensão do padre vigário de Harmonia, o conhecido cônego Oscar Mallmann, advertindo-o de que deveria se dedicar mais à vida espiritual do que à material. Faz sentido!

Também quero fazer o registro de um fato que chamou muito a minha atenção, um registro de um grande valor histórico. Na página 44 o encontramos descrito da seguinte forma: "As famílias Hergeroether, Horst, Goldmann e Schneider eram vizinhas na Rússia (URSS), residindo na "Agrovila 43". Então, após tudo o que juntas passaram e viveram, compartilhando os maus e alguns bons momentos desde a Rússia até aqui em Iracema, no acampamento, os laços de amizade se estreitaram. Por essa razão, não quiseram separar-se e compraram, então suas colônias de terra próximas, para serem vizinhos novamente. Em homenagem às suas raízes e como essas terras ficavam próximas ao povoado, o lugar foi nomeado de - Linha 43 -".

O sobrenome da professora Silvani, a autora do livro, - Morgenstern Di Domênico -, é bem uma síntese do que foi a colonização da cidade - alemães e italianos, além dos caboclos, ali já existentes e por ela não esquecidos. Uma amostra de outra grande riqueza, além da madeira, que originalmente conferiu o nome à cidade, a grande riqueza da diversidade cultural.  Ao Hédio, por me ter mandado o livro e para a professora Silvani, pelo seu magnífico trabalho de pesquisa, os meus melhores agradecimentos. Inclusive recebi o livro com autógrafo.

quarta-feira, 1 de novembro de 2023

EUGÊNIA GRANDET. Honoré de Balzac.

Eugênia Grandet é um dos 95 romances que integram o projeto de Honoré de Balzac de representação da Comédia humana, em oposição à Divina Comédia, o grande poema de Dante Alighieri. Em comum teríamos o encontro de gente perdida nos caminhos, ao meio da vida. Elas apresentam as misérias e os sofrimentos humanos, porém, sob diferentes perspectivas. Enquanto o inferno de Dante tem a sua construção no imaginário, o de Balzac, obedece a uma descrição da vida real. Ele é fruto da profunda ignorância,  mesquinhez e misérias do ser humano. No caso específico, os sofrimentos do inferno são provocados pelo nojento e asqueroso pecado da avareza. Ponha inferno nisso.

Eugênia Grandet. Honoré de Balzac. Coleção Imortais da Literatura Universal.

Depois de ler Ilusões perdidas, e tendo em minha biblioteca Eugênia Grandet, da coleção Imortais da Literatura Universal, continuei na leitura de Balzac. Praticamente o mesmo cenário e os mesmos temas. A vida pacata da província em contraste com a vida de fausto de Paris, a capital. Nobreza e burguesia se alternam, se alimentando das mesmas hipocrisias. Em Ilusões perdidas, a contraposição é mais nítida. Angoulême disputa com Paris, enquanto que em Eugênia Grandet o duelo se dá entre a provinciana Saumur e a capital. Os personagens é que mudam, mas não muda o tempo em que encontramos estes diferentes personagens. O romance data do ano de 1833. Balzac nasceu em 1799 e morreu em 1850.

Examinar o contexto histórico e espacial em que os romances ocorrem, sempre será uma dica interessante para se efetivar uma leitura com a necessária compreensão. Observemos as três datas e os acontecimentos dessa época. Tempos de mudanças e muitas instabilidades. Tempos de Revolução. Revolução no profundo sentido do termo. Mudanças no andar de cima. Nobreza X burguesia. Cabeças rolando sob o corte de guilhotinas. Militares se transformando em reis, sem nobreza de nascimento. Luta por liberdade, igualdade e fraternidade. Será mesmo? Pelos personagens de Balzac, parece que não.

Ao contrário de Ilusões perdidas, composto por três romances - os dois poetas; um grande homem de província em Paris e os sofrimentos de um inventor (790 páginas - Ed. Penguin), Eugênia Grandet é um romance bem mais curto (230 páginas - coleção Imortais da Literatura Universal) com prefácio, posfácio e cinco capítulos, a saber: Fisionomias burguesas; O primo de Paris; Amores de província; Desgostos de família; Assim vai o mundo. Vamos nos ambientando ao romance.

Na cidadezinha de Saumur (Hoje - com menos de trinta mil habitantes) iremos encontrar a família Grandet, composta pelo Sr. e Sra. Grandet e a filha Eugênia e a fidelíssima empregada Nanon, considerada da família. O sr. Grandet dispunha de uma fortuna enorme e da amizade de duas outras famílias locais, os Cruchot e os Des Grassins. O Sr. Grandet era um forreta, termo que aprendi com a leitura do livro. A sua sovinice é inacreditável. As suas pão-durices não cabem dentro do imaginário humano. Depois de velho e inabilitado para o trabalho se mantinha na monomania de contemplar o seu ouro acumulado, desprezando, e ponha desprezo nisso, mulher, filha, sobrinho e, enfim, a todas e todos. Regulava tudo, desde os torrões de açúcar, os pedaços de pão, a quantidade de manteiga, a lenha para o aquecimento, a qualidade e a quantidade de velas para a iluminação. Mas os maiores ganhos se originam das trapaças e falcatruas.

O romance ganha intensidade e dramaticidade com a chegada de Carlos, o sobrinho, filho do irmão do Sr. Grandet, que traz para o tio, uma carta de apresentação muito triste. Coisas de falência e suicídio, de recomeço de vida na América ou na Índia, conforme as imposições legais da época. O Sr. Grandet vê no ocorrido uma oportunidade de aumentara ainda mais a sua enorme fortuna, num jogo de títulos públicos e filigranas judiciais. Aí começam também os namoros de província, dois inocentes beijos, imorais, também conforme os costumes de época. Os namoros de província também envolvem ouro, dinheiro e dramaticidade. Pobre Eugênia.

A ganância também provoca desavenças, rupturas e mortes na família. Com a morte da Sra. e do Sr. Grandet, o núcleo familiar se reduz a Eugênia e a empregada Nanon, que se casa com outro funcionário, seu Cornoiller. No capítulo - assim vai o mundo - ocorrem os desfechos, que na literatura de Balzac, não são nada românticos. Não vou atender a curiosidade de ninguém adiantando estes desfechos. Apenas dou a indicação da grandeza de Eugênia, que resgatou, com uma pequena parte de sua herança, a dívida de seu tio para salvar a honra da família. Pobre e infeliz, mas honrada Eugênia. Não assimilara os valores postos em prática em Paris. Carlos voltara a França por Paris e não por Saumur.

Quero destacar uma passagem do romance, na qual o Sr. Grandet, em seu leito de morte, faz recomendações para a filha, sobre os cuidados na administração de sua fortuna e a ameaça de cobranças na vida futura. Vejamos esta tirada do Senhor Balzac: " - Toma cuidado de tudo! Terás de me prestar contas no outro mundo - disse ele, provando, com esta última frase, que o cristianismo deve ser a religião dos avarentos" Será? Deixo ainda a resenha de Ilusões perdidas.

http://www.blogdopedroeloi.com.br/2023/10/ilusoes-perdidas-honore-de-balzac.html

Pelo seu elevado grau de ilustração transcrevo também o primeiro parágrafo do prefácio da primeira edição, escrita pelo próprio autor (Paris, setembro de 1833): 

"Encontram-se, em certas cidades de províncias, alguns tipos dignos de um estudo sério, caracteres cheios de originalidade, existências tranquilas na superfície, e devastadas secretamente por tumultuosas paixões; porém as asperezas mais marcadas (as arestas mais vivas), as exaltações mais apaixonadas acabam por cessar ali, na constante monotonia dos costumes (na constante atonia) dos costumes iguais e sem acidentes). Nenhum poeta foi tentado a descrever os fenômenos dessa vida que se vai, esmaecendo sempre. Por que não? Se há poesia na atmosfera de Paris, onde turbilhona um sinum que arrebata fortunas (onde reina um sinum que arrebata, carrega as fortunas) e que quebra os corações, não a haverá também nessa lenta ação do siroco da atmosfera provinciana, que desgasta as mais altivas coragens, relaxa as fibras e desarma as paixões de sua agudeza? Se tudo acontece em Paris, na província tudo passa; ali, não há relevo, nem saliência (nem saliência nem relevo); mas ali estão os dramas em silêncio; ali os mistérios habilmente dissimulados; ali, os desfechos numa só palavra; ali, os enormes valores emprestados pelo cálculo e pela análise às ações mais indiferentes. Ali se vive em público".