Uma releitura fascinante. Os ensaios de Michel de Montaigne. Vamos a algumas contextualizações. Montaigne nasceu no ano de 1533 e morreu em 1592. Século XVI. O século da Reforma Protestante e dos reinados de Felipe II, da Espanha (1556-1598) e de Elizabeth da Inglaterra (1553-1603) e das Guerras religiosas na França (1562-1598), que terminam com a ascensão de Henrique IV. Tempos de muita agitação mas que não impediram a Montaigne de se refugiar em uma vida interior e, sobre ela, tecer as mais profundas considerações.
Os ensaios. Michel de Montaigne. Penguin - Companhia. 2010.Montaigne teve uma vida financeira tranquila, na qualidade de herdeiro de seu rico avô. Nunca se preocupou muito com a questão financeira e, muito menos, com a perspectiva de aumentar fortuna. Tratou, isso sim, do bom viver. Mesmo contra a sua vontade, foi por duas vezes prefeito de sua cidade, a cidade de Bordeaux. Pela leitura de seus ensaios e por dados biográficos seus, creio que podemos apresentá-lo como um senhor de boas relações, de grande afabilidade e de ótimas conversas, coisas de seu feitio. Os seus ensaios são conversas muito sinceras sobre os grandes temas da vida e de sua época, um retrato de seu tempo, mais precisamente, a segunda metade do século XVI.
O livro que eu li, é o da coleção - Clássicos - da Penguin - Companhia, uma edição do ano de 2010. A coordenação da obra (uma seleção de textos) é de M. A. Screech e tradução e notas de Rosa Freire D'Aguiar. Cada capítulo selecionado tem uma apresentação da tradutora. Nela ela sintetiza o ensaio selecionado e apresenta as suas repercussões e importância. Mas eu quero chamar uma particular atenção para a apresentação - O escritor Montaigne - de autoria do conceituado Erich Auerbach, autor do monumental Mimesis - estudos. Auerbach assim apresenta Montaigne e Os ensaios:
"Esse homem independente e sem profissão determinada criou assim uma nova profissão e uma nova categoria social: o homme de lettres ou écrivain, o leigo na condição de escritor. Conhecemos o caminho percorrido por essa profissão, primeiro na França e depois também em outros países de cultura: tais leigos tornaram-se os verdadeiros intelectuais, os representantes e guias da vida intelectual, e gozam hoje em dia de um tal reconhecimento que Julien Benda os chamou de clercs, o mesmo nome, portanto, daqueles a quem originalmente se opunham, os clerici ou religiosos. Isso equivale ao reconhecimento de que os escritores herdaram destes últimos o legado e o posto, isto é, a hegemonia intelectual na Europa moderna. De Montaigne a Voltaire há uma ascensão contínua; no século XIX, eles ampliam sua posição e alcançam repercussão sobre uma base mais larga, o jornalismo, e apesar de alguns sinais de decadência observados há tempos, é bastante provável que também no século XX eles venham a manter sua função de voz do mundo" (Página 16). Que beleza e que profundidade! Novos detentores da interpretação do mundo.
Montaigne, apesar de sua propensão ao recolhimento, não fica alheio às questões de seu tempo, e mais precisamente, à questão das guerras religiosas. Ele permanece monarquista e católico, mas o seu catolicismo não contagia a sua obra. Ele será um escritor leigo e que escreve para leigos, a partir da consonância com a natureza e sob as luzes da reflexão racional. Um autônomo. Está longe de empregar um método científico e da especialização em certos temas. Escreve muito e sobre os mais diversos temas. Os ensaios são escritos e revisados e, ao todo, ocupam mais de mil páginas. Por isso as seleções. Vida, morte, dores, doenças, são alguns de seus temas preferidos. Sócrates, Platão, Plutarco, Sêneca, Virgílio, entre outros, iluminam os seus escritos (a presente seleção tem 610 páginas). Segundo ele mesmo nos conta, três eram os seus afazeres prediletos: a conversa com amigos (La Boétie), a companhia de mulheres honestas e bonitas e a leitura.
Os textos da edição que eu li são retirados dos três livros que compõem Os ensaios. Vamos aos temas:
Livro Primeiro. Capítulo I - Por meios diversos se chega ao mesmo fim. O grande tema são as guerras e as versões a ela dadas; Capítulo VIII - Sobre a ociosidade. Aqui ele apresenta o conceito de ócio como um lazer letrado; Capítulo XV - Sobre a punição da covardia. Um alerta sobre os deveres para coma a pátria; Capítulo XVII - Sobre o medo. O pior medo é o medo do medo. Ele elimina a possibilidade do julgamento racional; Capítulo XIX - Que filosofar é aprender a morrer. O melhor preparo para a morte é o viver bem. Ela deve ser vista como algo muito natural. É um dos seus capítulos mais conhecidos e famosos; Capítulo XXV - Sobre a educação das crianças. Um belo capítulo que versa sobre uma educação aristocrática. Ainda não são tempos de educação pública. Belíssimos temas afloram como a importância de dizer "não" (La Boétie), que saber não é decorar, sobre professores encolerizados e sobre a espontaneidade do aprender, movido pela curiosidade natural; Capítulo XXVI - É loucura atribuir o verdadeiro e o falso à nossa competência. Aborda o tema da questão religiosa, mostrando a sua fidelidade ao catolicismo. Discute também a questão dos milagres, postos à prova pela razão; Capítulo XXX - Sobre os canibais. Fala dos horrores da colonização e nos apresenta os indígenas brasileiros. Apresentarei o tema em post especial; Capítulo XXXI - Que é preciso prudência para se meter a julgar os decretos divinos. Versa especialmente sobre as intervenções divinas nas guerras, ou não. Escrito logo após a Batalha de Lepanto (1571); Capítulo XXXVIII - Sobre a solidão. É sobre a sua busca e sobre os inimigos da felicidade humana, sendo a ambição o principal; Capítulo LVI - Sobre as orações. Versa sobre a excelência do Pai-Nosso e a sua aversão às orações mecanicamente repetidas e sobre o perigo das traduções em livros religiosos. Capítulo LVII - Sobre a idade. Escreve aos 47 anos e já se considera um velho. Fala de suas cólicas renais. É o capítulo que encerra a Primeira Parte.
Livro Segundo. Capítulo I. - Sobre a inconstância de nossas ações. Ela dificulta os estudos sobre a condição humana; Capítulo II. Sobre a embriaguez. Embora não despreze a bebida, mostra a embriaguez como um vício grosseiro e brutal; Capítulo V - Sobre a consciência. É a força que nos denuncia a nós mesmos. Nos faz perceber o certo e o errado. Já fala do absurdo da tortura como método de punição; Capítulo VIII - Sobre a afeição dos pais pelos filhos. Neste capítulo, profundamente revelador, aparecem belos temas, como a ausência da violência na educação, da precedência dos interesses sociais sobre os individuais, sobre o ser amado, mais que temido e sobre as suas obras, como seus filhos; Capítulo XI - Sobre a crueldade. Fala da morte de Sócrates, sobre os vícios, sendo a crueldade o maior de todos, inclusive com relação aos animais; Capítulo XXXII. Defesa de Sêneca e Plutarco. É um tributo que presta a estes autores, sempre entre os seus preferidos; Capítulo XXXV - Sobre três boas esposas. Afirma que não as há, às dúzias. Fala sobre os deveres e às virtudes no casamento. Mulheres trágicas e fortes. O capítulo revelaria dados de misoginia? Capítulo XXXVIII - Sobre a semelhança dos filhos com os pais. Montaigne não era muito bom ao atribuir títulos aos capítulos. Este mesmo, versa sobre um mundo de coisas, com destaque à sua visão negativa da medicina.
Livro Terceiro. Os capítulos são mais longos. Capítulo II. Sobre o arrependimento. As minhas ações estão em harmonia com as minhas condições. Sempre procedi sensatamente. Estes são indícios de que não tinha grandes simpatias com relação ao arrependimento. É um dos temas de abordagem religiosa. Capítulo III. Sobre as relações. Belíssimo. destaca as suas preferências: conversa com os amigos; estar em companhia de belas mulheres e a leitura. Sobre a sua companhia com os livros, um post especial como deferência à beleza do texto; Capítulo V - Sobre versos de Virgílio. Mais uma vez a fuga ao tema anunciado. Fala de sexualidade e casamento. Penso até em incluir este capítulo no meu curso de literatura erótica, que sempre anuncio e nunca programo. E, também por óbvio, sobre os versos do poeta latino. Capítulo VI - Sobre os coches. Fala da ostentação e da malversação do dinheiro público. O seu meio de transporte era o cavalo. Capítulo XI - Sobre os coxos. Fala da origem de muitas verdades, sobre a feitiçaria e sobre o pensamento filosófico e a valorização da dúvida. Este capítulo o relaciona ao iluminismo; Capítulo XIII. O capítulo final. Sobre a experiência. Apresenta o conhecimento como o mais natural dos desejos e reflete sobre o lugar do ser humano no mundo. Retoma alguns temas de sua preferência como o viver, o envelhecer, doença, dor e morte. Também merece um post especial.
Antes de encerrar, apresento ainda os três parágrafos da contracapa do livro: "Personagem de vida curiosa, Michel Eyquem de Montaigne (1533-1592) é considerado o inventor do gênero ensaio. Herdeiro de uma fortuna deixada pelo avô, um comerciante de peixes abastado, Montaigne foi alfabetizado em latim e também prefeito de Bordeaux. A certa altura, retirou-se para ler, meditar e escrever sobre praticamente tudo.
Esta seleção de ensaios oferece ao leitor brasileiro um panorama abrangente do pensamento (cada vez mais atual) de Montaigne, sem que se precise recorrer aos três volumes de suas obras completas. Selecionados para a edição internacional da Penguin por M.A. Screech, estes ensaios passam por temas como o medo, a covardia, a preparação para a morte, a educação dos filhos, a embriaguez, a ociosidade.
De particular interesse para nossos leitores é o ensaio "Sobre os canibais", que foi inspirado no encontro que Montaigne teve, em Ruão, em 1562, com os índios da tribo Tupinambá. Esta edição traz também um prefácio do crítico literário Erich Auerbach, que apresenta e contextualiza o autor para os leitores de hoje".
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