segunda-feira, 27 de novembro de 2023

OS ENSAIOS - MONTAIGNE. Sobre três relações: amigos, belas mulheres e livros.

No capítulo III, do Livro Segundo, de Os ensaios, encontramos um título muito simples: Sobre três relações. Vamos à apresentação do capítulo, pela tradutora do livro, Rosa Freire D'Aguiar:

"Este é um dos capítulos mais pessoais da obra. Fala dos três passatempos favoritos: a conversa com amigos, a companhia de mulheres bonitas e honestas, se possível inteligentes, e a leitura dos livros. São as três relações examinadas por Montaigne: formas de convívio social que enriquecem a vida privada e fazem com que valha a pena viver. Depois da morte de La Boétie, o grande amigo, as amizades mais correntes não lhe suscitam entusiasmo, são insípidas. O único objetivo comum a amigos, mulheres é honnête (honrado e decente). A relação social ideal engajaria o homem por inteiro, corpo e alma. Por si só nenhuma dessas três relações responde a esse objetivo, pois as duas primeiras engajam o corpo e a alma em proporções muito diferentes, enquanto os livros praticamente não engajam o corpo. Ele insiste no fato de que a relação sexual é mais que uma necessidade física e que, portanto, não deve ser mera fome a ser satisfeita fisicamente sem o envolvimento de faculdades mais elevadas. O fidalgo que se isolou no alto de sua tore está, porém, pronto para abandonar as delícias da reclusão e cultivar o corpo ou as relações sociais". O trecho que selecionei terá como foco a relação com os livros.

Os ensaios. Sobre a relação com os amigos, com as belas mulheres e com os livros.

"[...] Os julgamentos, a prudência e os deveres de amizade são mais encontrados entre os homens; por isso governam os negócios do mundo. Essas duas relações (com os amigos e com as belas mulheres) são fortuitas e dependentes de outros: uma é difícil pela raridade, a outra murcha com a idade; assim, não preencheram o suficiente as necessidades de minha vida. A dos livros, que é a terceira, é bem mais segura e mais nossa. Cede às primeiras as outras vantagens, mas tem, por sua vez, a constância e a facilidade de seu uso: acompanha todo o meu percurso e assiste-me por todo lado; consola-me na velhice e na solidão; descarrega-me do peso de um ócio enfadonho; e a todo instante me livra das companhias que me aborrecem; atenua as pontadas de dor se não extrema e soberana. Para me distrair de uma ideia inoportuna, basta recorrer aos livros, eles me desviam facilmente para si e a esquivam de mim. E não se amotinam ao ver que só os procuro na ausência dessas outras comodidades mais reais, vivas e naturais: recebem-me sempre com o mesmo semblante. É muito bonito andar a pé quando se leva seu cavalo pela rédea, dizem. E nosso Jaime, rei de Nápoles e da Sicília, que, belo, jovem e saudável, fazia-se transportar pelo país numa padiola, deitado sobre um ordinário travesseiro de penas, vestindo uma túnica de pano cinza e um gorro do mesmo tipo, mas seguido por uma grande pompa real, com liteiras, cavalos de todo tipo levados pela mão, fidalgos e oficiais, manifestava um tipo de austeridade que ainda era delicada e vacilante. O doente que tem sua cura na manga não merece compaixão. Todo fruto que tira dos livros consiste em experimentar e praticar essa máxima, que é muito verdadeira. Na verdade, praticamente não me sirvo deles mais que os que não os conhecem, Desfruto deles, como os avarentos de seus tesouros, para saber que desfrutarei quando me aprouver: meu espírito sacia-se e contenta-se com esse direito de posse. Não viajo sem livro, nem na paz nem na guerra. Todavia, hão de se passar muitos dias, e meses, sem que me sirva deles; digo que será dali a pouco, ou amanhã, ou quando me der vontade: enquanto isso, o tempo corre e se vai, mas não me inquieta. Pois é impossível dizer quanto me repouso e me tranquilizo com essa ideia de que estão a meu lado para me dar prazer quando eu desejar; e reconhecer quanto trazem de socorro à minha vida: é a melhor provisão que encontrei nesta viagem humana e compadeço-me ao extremo dos homens inteligentes que não os têm. Aceito qualquer outro tipo de distração, por frívola que seja, desde que essa não possa me faltar. Em casa, desvio-me um pouco mais frequentemente para minha biblioteca, de onde, com uma só mão, comando minha residência. Estou acima da entrada e descortino, abaixo de mim, o jardim, o galinheiro, o pátio e a maior parte dos cômodos de minha casa. Ali folheio, a tal hora, um livro, a tal hora, outro, sem ordem e sem objetivo, por trechos disparatados. Ora devaneio, ora registro e dito, caminhando, meus sonhos que aqui estão. Ela fica no terceiro andar de uma torre. No primeiro está minha capela, no segundo, um quarto com suas dependências, onde não raro durmo, quando quero ficar sozinho. Acima, há um grande depósito. Era, no passado, o lugar mais inútil da minha casa [...].

A forma da biblioteca é circular e só é plano o espaço necessário para minha mesa e minha cadeira; ao curvar-se, ela vai me oferecendo com um só olhar todos os meus livros arrumados em estantes de cinco prateleiras em toda a volta. Tem três janelas com bela perspectiva livre e um espaço vazio de dezesseis passos de diâmetro. No inverno ali permaneço menos tempo, pois minha casa fica empoleirada numa montanha, como diz seu nome, e não tem aposento mais exposto ao vento do que esse, por ser um pouco afastado, de difícil acesso, me agrada tanto pelo exercício a que me obriga como por me afastar da multidão. Esta é a minha sede. Tento ter sobre ela um domínio absolutamente puro, subtraindo esse único recanto da comunidade conjugal, filial e social. Em todos os outros lugares minha autoridade é mais verbal que real: essencialmente vaga. Em minha opinião, ai de quem não tem em casa onde estar consigo, onde falar privadamente consigo mesmo, onde se esconder! A ambição paga bem a seus servidores por mantê-los sempre à vista, como a estátua de uma praça do mercado. Uma grande servidão é um grande destino (Sêneca). Eles não tem privacidade nem mesmo na privada. Na austeridade de vida que nossos religiosos adotam jamais encontrei nada tão rude como o que vejo em algumas de suas companhias: a regra de estar perpetuamente em companhia de alguém e em numerosa presença dos outros, em qualquer ação que seja. E, em suma, acho mais suportável estar sempre só do que nunca poder estar. Se alguém me diz que é aviltar as musas usá-las somente como brinquedo ou passatempo, é que não sabe, como eu, quanto vale o prazer, o jogo e o passatempo: eu quase poderia dizer que qualquer outra finalidade é ridícula. Vivo dia a dia, e, com o devido respeito, só vivo para mim: meus objetivos terminam aí. Quando jovem, estudava por ostentação; depois, um pouco para tornar-me sábio; agora, para me divertir, nunca pelo proveito. O gosto vão e gastador que eu tinha por essa espécie de objeto, não para satisfazer apenas minha necessidade mas, três passos adiante, para atapetar e adornar minhas paredes, há muito tempo abandonei. Os livros têm muitas qualidades agradáveis para os que sabem escolhê-los. Mas não há bem que se obtenha sem pena. É um prazer que não é mais puro nem mais fácil que os outros: tem seus inconvenientes, e bem pesados. Neles a alma se exercita mas o corpo, cujo cuidado também não esqueci, permanece enquanto isso sem ação, degrada-se e se entristece. Não sei de excesso mais prejudicial para mim, nem mais a evitar neste declínio da idade. Essas são minhas três ocupações favoritas e particulares. Não falo das que devo ao mundo por obrigação civil". Páginas 376 - 380.

Deixo ainda a resenha do livro. http://www.blogdopedroeloi.com.br/2023/11/os-ensaios-montaigne-1533-1592.html

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