sábado, 28 de setembro de 2024

Ensaio sobre a lucidez. José Saramago.

Ensaio sobre a lucidez, o livro de Saramago que reli nesta sequência, é uma continuidade do seu livro Ensaio sobre a cegueira. A cegueira foi o tema abordado em 1995 e a lucidez, quase dez anos depois, em 2004. A cegueira abordada na obra do final do século, para lembrar, era uma cegueira branca. A lucidez, por sua vez, se manifesta por uma decisão popular, de não mais votar em candidatos, mas sim, votar majoritariamente em branco. Na cegueira, as instituições do Estado deixaram de funcionar e na lucidez, o Estado se retirou da cidade e governou à distância, pelo arbítrio. Um mundo de barbaridades.


Ensaio sobre a lucidez. José Saramago. Companhia das Letras. 2004.

Na minha primeira leitura, na página 175 eu sublinhei algumas linhas e escrevi ao lado - Ensaio sobre a cegueira. Eis o trecho sublinhado: "... falemos abertamente sobre o que foi a nossa vida, se era vida aquilo, durante o tempo em que estivemos cegos, que os jornais recordem, que os escritores escrevam, que a televisão mostre as imagens da cidade tomadas depois de termos recuperado a visão, convençam-se as pessoas a falar dos males de toda a espécie que tiveram de suportar, falem dos mortos, dos desaparecidos, das ruínas, dos incêndios, do lixo, da podridão, e depois, quando tivermos arrancado os farrapos de falsa normalidade com que temos andado a querer tapar a chaga, diremos que a cegueira desses dias regressou sob uma nova forma, chamaremos a atenção da gente para o paralelo entre a brancura da cegueira de há quatro anos e o voto em branco de agora..."

Essa passagem é tão significativa para a compreensão do romance, ou do ensaio, que ela se encontra na própria contracapa do livro. Mas na página 186, tenho outras linhas sublinhadas. Ela faz parte de uma carta denúncia, enviada ao governo, por um dos cegos, integrante de um grupo de sete, que teve uma notável particularidade. Vejamos uma parte do teor da carta: "... e essa missão (a do denunciante), senhor presidente da república, consiste em revelar, escrevo a palavra por ser a primeira vez que falo deste assunto a alguém, que há quatro anos, com a minha mulher, fiz casualmente parte de um grupo de sete pessoas que, como tantas outras, lutou desesperadamente para sobreviver. Parecerá que não estou a dizer nada que vossa excelência, por experiência própria, não tenha conhecido, mas o que ninguém sabe é que uma das pessoas do grupo nunca chegou a cegar, uma mulher casada com um médico oftalmologista, o marido estava cego como todos nós, mas ela não..." O remetente da carta ainda alerta que esta mulher, que não cegara, havia cometido um assassinato. A partir dessa página, o romance vira uma investigação policial. Querem atribuir a esta mulher, a culpa pela lucidez que assolara a cidade.

Como já assinalamos, o mote do romance ocorre com uma eleição, ou melhor, pelos resultados dessa eleição. Nela os eleitores aparecem apenas ao final da tarde e, na apuração ficou constatado que 75% dos eleitores votaram em branco. A eleição terá que ser repetida. Os votos em branco aumentaram para 83%. Este é o cenário da crise. Diante dela, como o governo, o mais diretamente atingido, deverá agir? Tudo deveria ser diligentemente investigado. Quem seriam os conspiradores? Medidas urgentes deveriam ser tomadas. Para isso o Conselho de ministros se reúne constantemente. As discussões são hilariantes. As propostas mais absurdas sempre são as dos ministros da defesa e do interior e as menos acatadas, as do ministro da justiça e da cultura. O ministro do interior disputa o poder diretamente com o primeiro ministro.

É preciso endurecer o regime. O estado de sítio é decretado. A vida da cidade continua na mais plena normalidade. Não há indícios de que grupos organizados estejam a comandar o movimento. Uma decisão drástica é tomada. O governo se retira da capital, junto com todas as instituições, inclusive a polícia. Nas reuniões ministeriais passa a imperar o princípio de que o fim justifica os meios, desde que os resultados apareçam. Mas eles não aparecem, As medidas tomadas são as mais ridículas que se possa imaginar. Para que elas tenham efeito, é preciso criar um inimigo. Fundamental, criar um inimigo. Mas quem seria ele?

É o momento em que chega a carta com a denúncia da mulher que não cegara e que cometera um assassinato. É o inimigo perfeito. Ela e o seu grupo. A um comissário e a investigadores é confiada a investigação. Nada constatam que possa desabonar, nem a mulher do médico, nem o seu grupo. Mas o ministro cobra resultados. Uma fotografia do grupo, junto com matérias difamatórias são exibidas nos meios de comunicação. A eles é atribuída a culpa.

As soluções apresentadas pelo governo não são nada honrosas. Depois de arbitrariedades cometidas, o ministro do interior é demitido e o primeiro ministro acumula o cargo. O comissário é assassinado, assim como o médico oftalmologista e a sua mulher e também Constante, que no Ensaio sobre a cegueira aparecia mais sob o nome de cão das lágrimas. Com três tiros o romance é encerrado. Vejamos: " o cão veio a correr lá de dentro, fareja e lambe a cara da dona, depois estica o pescoço para o alto e solta um uivo arripiante que outro tiro imediatamente corta. Então um cego perguntou, Ouviste alguma coisa. Três tiros, respondeu outro. Mas havia também um cão aos uivos. Já se calou, deve ter sido o terceiro tiro. Ainda bem, detesto ouvir os cães a uivar".

Sim, falta a frase de epígrafe: Uivemos, disse o cão. Livro das Vozes.

Vejamos ainda a síntese encontrada nas orelhas do livro: "Numa manhã de votação que parecia como todas as outras, na capital de um país imaginário, os funcionários de uma das seções eleitorais se deparam com uma situação insólita, que mais tarde, durante as apurações, se confirmaria de maneira espantosa. Aquele não seria um pleito como tantos outros, com a tradicional divisão dos votos entre os partidos 'da direita', 'do centro' e 'da esquerda'; o que se verifica é uma opção radical pelo voto em branco. Usando o símbolo máximo da democracia - o voto -, os eleitores parecem questionar profundamente o sistema de sucessão governamental em seu país.

É desse 'corte de energia cívica' que fala Ensaio sobre a lucidez. Não apenas no título José Saramago se remete ao seu célebre Ensaio sobre a cegueira: também na trama ele retoma personagens e situações, insistindo em algumas das questões éticas e políticas abordadas no romance de 1995. Ao narrar as providências do governo, polícia e imprensa para entender as razões da 'epidemia branca' - ações estas que elevam rapidamente a um devaneio autoritário -, o autor faz uma alegoria dos rituais da democracia e da fragilidade  do sistema político e das instituições que nos governam. A lucidez, aqui, é aquilo que se opõe à loucura, ao desvario, à demência: não se trata, portanto, de mera metáfora ou ironia.

O que se propõe não é a substituição da democracia por um sistema alternativo, mas o seu permanente questionamento. É pela via da ficção que José Saramago entrevê uma saída para esse impasse - pois é a potência simbólica da literatura, território em que reflexão, humor, arte e política se entrosam, que por fim se revela capaz de vencer a mediocridade, a ignorância e o medo".

Deixo ainda a resenha do livro lido anteriormente, A caverna.

http://www.blogdopedroeloi.com.br/2024/09/a-caverna-jose-saramago.html

segunda-feira, 23 de setembro de 2024

Saramago e os temas religiosos. Caim e O Evangelho segundo Jesus Cristo.

As críticas de Saramago à religião são ácidas. Ao tema ele dedica dois livros Caim e O Evangelho segundo Jesus Cristo. Um acerto seu com o Antigo e com o Novo Testamento. No meu entender esses dois livros são os mais impactantes de sua obra. Eles abordam os fundamentos da cultura ocidental. Críticas tão contundentes, ou ainda mais, são encontradas apenas em Nietzsche, em seus livros ensaio Genealogia da moral e Além do bem e do mal. Com base nesses quatro livros já poderíamos abrir um estudo de altíssimo nível sobre os fundamentos da cultura ocidental, no que tange aos seus fundamentos religiosos.

Caim. José Saramago. Um acerto com o Deus do Antigo Testamento.

Deixo o link das duas obras de Saramago. Primeiramente o seu Caim, personagem com quem um Deus rancoroso e sempre irado mantém profundos diálogos:

http://www.blogdopedroeloi.com.br/2024/08/caim-jose-saramago.html

E O Evangelho segundo Jesus Cristo, onde, de acordo com a minha opinião, encontram-se 40 páginas, das mais significativas da literatura ocidental: Um diálogo entre Deus e o demônio, quando Deus quer expandir a sua religião, para que ela seja, não mais a religião apenas do povo judeu, mas ser a grande religião universal:

http://www.blogdopedroeloi.com.br/2024/08/o-evangelho-segundo-jesus-cristo-jose.html


O Evangelho segundo Jesus Cristo. Um acerto com o Novo Testamento.

sexta-feira, 13 de setembro de 2024

Guerra e paz. O grande livro da paz. Leon Tolstói. Os quatro volumes.

Guerra e paz, de Leon Tolstói é seguramente uma das maiores obras da literatura universal. Na apresentação do livro, da edição da L&PM Pocket, Ivan Pinheiro Machado o apresenta como "o grande livro da paz". O seu tema são as guerras napoleônicas que assolaram a Europa pelo longo período de 1803 a 1815. Foi possivelmente a mais sangrenta das guerras. Elas tiveram o seu fim, com a intervenção do "general inverno" do qual os soldados franceses foram vítimas. As consequências foram enormes e imensuráveis. A sua descrição só poderia caber a um dos maiores gênios da literatura universal, Leon Tolstói.


Guerra e paz. Leon Tolstói. Capa do primeiro volume. L&PM. 2017.

Como li e resenhei os quatro volumes da obra e publiquei os posts, à medida que lia os livros, os publico agora, agrupados em único post. A versão da obra que eu li é da L&PM Pocket, em reimpressão de 2017. A primeira impressão ocorrera no ano de 2007. A tradução é de João Gaspar Simões. A grande obra ocupa 1481 páginas, em letrinhas à altura de um livro em edição de bolso. Os li em tempo de reclusão absoluta, em função da pandemia do COVID-19. Vamos a eles. O primeiro volume:

http://www.blogdopedroeloi.com.br/2020/06/guerra-e-paz-leon-tolstoi-volume-i.html

O segundo volume. Nele há uma preciosidade sobre a ociosidade no exército, que não pude deixar de destacar:

http://www.blogdopedroeloi.com.br/2020/07/guerra-e-paz-leon-tolstoi-volume-ii.html

O terceiro volume, com a famosa batalha de Borodino:

http://www.blogdopedroeloi.com.br/2020/07/guerra-e-paz-leon-tolstoi-volume-iii.html

E o quarto e último volume, com um belo apêndice do próprio autor:

http://www.blogdopedroeloi.com.br/2020/07/guerra-e-paz-volume-iv-leon-tolstoi.html

Cumpre ainda dizer, que Leon Tolstói se ocupou com a escrita dessa obra entre os anos de 1865 a 1869. 

quinta-feira, 12 de setembro de 2024

Textos de literatura - Aulas de filosofia. A Categoria TRABALHO em A CAVERNA de José Saramago.

Sempre defendi que a categoria Trabalho é a principal categoria com a qual a filosofia trabalha. O trabalho é a linha divisória entre o mundo humano e o mundo animal. Em compensação, é também o humano, o único ser que tem a necessidade do trabalho para sobreviver. No mundo animal essa sobrevivência se dá de forma natural, na relação com a natureza. Já entre os humanos é necessária a intervenção nessa natureza. É a essa intervenção, para assegurar a sobrevivência, que chamamos de trabalho. Nessa relação, uma das características é a utilização de meios, de instrumentos, de extensões da mão, coisa que os animais, se o fazem, o fazem de forma absolutamente rudimentar. O trabalho, ao mesmo tempo que assegura a sobrevivência, também confere ao homem a alegria da criação, o chamado trabalho criativo.

A caverna. José Saramago. Companhia das Letras. 2000.

O trabalho é por excelência um trabalho criativo, um trabalho artesanal. Ele envolve o ser humano em sua totalidade, especialmente pela soma da mente e da mão. A mente que emite ordens para as mãos executarem as mais diferentes atividades. Mas o mundo capitalista se apropriou do trabalho e o transformou em mercadoria, voltada à produção, sendo ele próprio uma mercadoria. Em vez de trabalho artesanal e criativo ele é transformado em trabalho mecânico e repetitivo. A sua força de trabalho se transformou em mão de obra, simbolizando que apenas as mãos trabalham. Uns são pagos para conceber, para criar, enquanto aos outros é reservada a tarefa de trabalhar. Houve a separação da criação. O trabalho já não é mais práxis, e sim trabalho alienado, trabalho que a outro pertence e que também se apropria de seu resultado. 

Mas o objetivo deste post é mostrar essa transformação no mundo do trabalho e na estruturação da sociedade no livro A caverna, de José Saramago. Cipriano Algor é o principal personagem desse romance. Ele é oleiro, produz cerâmica, louças e outros utensílios domésticos. Como surgiram artefatos mais baratos, com outras matérias primas mais baratas e submetidas a produção mecânica e repetitiva, em série, Cipriano Algor, junto com a sua filha Marta, precisam se reinventar. precisam por a mente, a mão e os dedos a funcionar, para, a partir da produção de bonecos, garantirem o seu sustento. O texto de Saramago é uma das grandes definições para definir o trabalho como práxis, trabalho criativo e instrumento de realização humana. Vejamos:

"... Porém, quando Marta colocou diante de si a folha de papel com que ia principiar a última série de ilustrações, reuniu rapidamente as cópias iniciais e saiu para a olaria. A filha ainda teve tempo de lhe dizer, Não se irrite se não lhe sair bem à primeira. Horas atrás de horas, durante o resto desse dia e parte do dia seguinte, até a hora em que teria de ir buscar Marçal ao Centro, o oleiro fez, desfez e refez bonecos com figura de enfermeiras e de mandarins, de bobos e de assírios, de esquimós e de palhaços, quase irreconhecíveis nas primeiras tentativas, mas logo ganhando forma e sentido à medida que os dedos começaram a interpretar por sua própria conta e de acordo com suas próprias leis as instruções que lhes chegavam da cabeça. Na verdade, são poucos os que sabem da existência de um pequeno cérebro em cada um dos dedos da mão, algures entre a falange, a falanginha e a falangeta. Aquele outro órgão a que chamamos cérebro, esse com que viemos ao mundo, esse que transportamos dentro do crânio e que nos transporta a nós para que o transportemos a ele, nunca conseguiu produzir senão intenções vagas, gerais, difusas, e sobretudo pouco variadas, acerca do que as mãos e os dedos deverão fazer. Por exemplo, se ao cérebro da cabeça lhe ocorreu a ideia de uma pintura, ou música, ou escultura, ou literatura, ou boneco de barro, o que ele faz é manifestar o desejo e ficar depois à espera, a ver o que acontece. Só porque despachou uma ordem às mãos e aos dedos, crê, ou finge crer, que isso era tudo quanto se necessitava para que o trabalho, após umas quantas operações executadas pelas extremidades dos braços, aparece feito. Nunca teve a curiosidade de se perguntar por que razão o resultado final dessa manipulação, sempre complexa até nas suas mais simples expressões, se assemelha tão pouco ao que havia imaginado antes de dar instrução às mãos. Note-se que, ao nascermos, os dedos ainda não têm cérebros., vão-nos formando pouco a pouco com o passar  do tempo e o auxílio do que os olhos veem.

O auxílio dos olhos é importante, tanto quanto o auxílio dos olhos é importante, tanto quanto o auxílio daquilo que por eles é visto. Por isso o que os dedos sempre souberam fazer de melhor foi precisamente revelar o oculto. O que no cérebro possa ser percebido como conhecimento infuso, mágico ou sobrenatural, mágico e infuso, foram os dedos e os seus pequenos cérebros que lho ensinaram. Para que o cérebro da cabeça soubesse o que era a pedra, foi preciso primeiro que os dedos a tocassem, lhe sentissem a aspereza, o peso e a densidade, foi preciso que se ferissem nela. Só muito tempo depois o cérebro compreendeu que daquele pedaço de rocha se poderia fazer uma coisa a que chamaria faca e uma coisa a que chamaram ídolo. O cérebro da cabeça andou toda a vida atrasado em relação às mãos, e mesmo nestes tempos, quando nos parece que passou à frente delas, ainda são os dedos que têm de lhe explicar as investigações do tacto, o estremecimento da epiderme ao tocar o barro, a dilaceração aguda do cinzel, a mordedura do ácido na chapa, a vibração subtil de uma folha de papel estendida, a orografia das texturas, o entramado das fibras, o abecedário em relevo do mundo. E as cores. Manda a verdade que se diga que o cérebro é muito menos entendido em cores do que crê. É certo que consegue ver mais ou menos claramente visto o que os olhos lhe mostram, mas as mais das vezes sofre do que poderíamos designar por problemas de orientação sempre que chega a hora de converter em conhecimento o que viu. Graças à inconsciente segurança com que a duração da vida acabou por dotá-lo, pronuncia sem hesitar os nomes das cores a que chama de elementares e complementárias, mas imediatamente se perde, perplexo, duvidoso, quando tenta formar palavras que possam servir de rótulos ou dísticos explicativos de algo que toca o inefável, de algo que roça o indizível, aquela cor ainda de todo não nascida que, com o assentimento, a cumplicidade, e não raro a surpresa dos próprios olhos, as mãos e os dedos vão criando e que provavelmente nunca chegará a receber o justo nome.

Ou talvez já o tenha, mas  esse só as mãos o conhecem, porque compuseram a tinta como se estivessem a decompor as partes constituintes de uma nota de música, porque se sujaram na sua cor e guardaram a mancha no interior profundo da derme, porque só com esse saber invisível dos dedos se poderá alguma vez pintar a infinita tela dos sonhos. Fiado do que os olhos julgaram ter visto, o cérebro da cabeça afirma que, segundo a luz e as sombras, o vento e a calma, a humidade e a secura, a praia é branca, ou amarela, ou dourada, ou cinzenta, ou roxa, ou qualquer coisa entre isto e aquilo, mas depois vêm os dedos e, com um movimento de recolha, como se estivessem a ceifar uma seara, levantam do chão todas as cores que há no mundo. O que parecia único era plural, o que é plural sê-lo-á ainda mais. Não é menos verdade, contudo, que na fulguração exaltada de um só tom, ou na sua musical modulação, estão presentes e vivos todos os outros, tanto os das cores que já tem nome como os das que ainda o esperam, do mesmo modo que uma extensão de aparência lisa poderá estar cobrindo, ao mesmo tempo que os manifesta, os rastos de todo o vivido e acontecido na história do mundo. Toda a arqueologia de materiais é uma arqueologia humana. O que este barro esconde e mostra é o trânsito do ser no tempo e a sua passagem pelos espaços, os sinais dos dedos, as raspaduras das unhas, as cinzas e os tições das fogueiras apagadas, os ossos próprios e alheios, os caminhos que eternamente se bifurcam e se vão distanciando e perdendo uns dos outros. Este grão que aflora à superfície é uma memória, esta depressão a marca que ficou de um corpo deitado. O cérebro perguntou e pediu, a mão respondeu e fez. Marta disse-o de outra maneira. Já lhe apanhou o jeito". Páginas 82-84.

Deixo ainda a resenha do livro A caverna.

http://www.blogdopedroeloi.com.br/2024/09/a-caverna-jose-saramago.html


sábado, 7 de setembro de 2024

A CAVERNA. José Saramago.

Na releitura das obras de Saramago, chegou a vez de A caverna, o seu livro do ano de 2000. Depois dessa releitura, não tenho dúvidas em afirmar que este é o melhor de seus livros, excetuando os dos temas religiosos. Ao menos é essa a minha escolha. É, e não podia deixar de ser - pelo título que ostenta, um livro de filosofia, mas também de psicologia, de sociologia, de compreensão dos valores humanos e de humanidade. Um livro de profunda sensibilidade, mas também de angustiantes preocupações com o futuro da humanidade. O novo século que está por se iniciar, certamente não trará perspectivas animadoras. O livro é também uma bela história de amor. Uma nova vida está a começar, quando tudo apontava para o seu fim. E o amor recria um milhão de motivos para a continuidade do viver, e viver com alegria e felicidade. Foi o que eu vi de essencial neste livro.

A caverna. José Saramago. Companhia das Letras. 2000.

O livro tem também uma peculiaridade única e insuperável. Não creio que haja paralelo que permita comparações, na relação que o ser humano estabelece com o mundo animal, com o cachorro em particular. O Achado. O cão assim foi chamado por ter aparecido na vida de Cipriano Algor, de sua filha Marta e do genro Marçal Gacho, o núcleo familiar do romance. Foram eles que acharam o cão a quem tanto se afeiçoaram. Achado se transformou em um dos motivos a mais para que o viver efetivamente continuasse a valer a pena. Mas há também Isaura Estudiosa, ou Isaura Madruga, como Cipriano Algor a preferiu chamar.

A construção do romance é belíssima e, não hesito em afirmar, que Saramago, ao escrevê-lo, o fez com grande e ímpar entusiasmo. Por óbvio, o tema Caverna nos remete a Platão. Além de óbvio, isso também está explícito na epígrafe, também repetida na contracapa: "Que estranha cena descreves e que estranhos prisioneiros. São iguais a nós". Platão. República. Livro VII. É nesse livro que Platão relata a famosa Alegoria da caverna, na qual as sombras do real, projetadas ao fundo da caverna são vistas como a realidade e que, portanto, para se conhecer a realidade é preciso sair da caverna. Sair do mundo de sombras, de aparências. Em A caverna de Saramago também há uma caverna. Ela está localizada num Centro, um local em que estão localizadas todas as atividades de uma cidade moderna. Será desse "Centro" que, primeiramente fugirá Cipriano Algor e logo a seguir Marçal e Marta.

Mas vamos aos personagens. Cipriano Algor tem, nas imediações da cidade, uma olaria. A partir do barro produzem, de forma artesanal, louças e outros utensílios domésticos. A olaria está passando para a terceira geração. Nela trabalham Cipriano e a sua filha Marta. Esta é casada com Marçal Gacho que trabalha como guarda provisório no famoso Centro. Ele está à espera de ser promovido a guarda residente. Cipriano é viúvo, já há quatro anos. Cipriano é um dos fornecedores do Centro, com contrato de exclusividade. Só pode vender as suas mercadorias para o Centro e, não mais poderá atender aos seus antigos clientes. Um dia, na rotina de descarregar suas mercadorias, só lhe querem a metade, para logo a seguir lhe desencomendarem todo o fornecimento. E mais, lhe dão um curto prazo para retirar as suas mercadorias, encalhadas nas prateleiras. Outras peças deveriam ocupar o seu lugar. Agora são de plástico e outras matérias primas mais práticas. Metamorfoses no mundo do trabalho. O que Cipriano e Marta irão fazer, não é um problema do Centro.

Marta troca ideias com Cipriano. E... se produzíssemos, em vez de louças, bonecos. Cipriano irá ter com o chefe de compras. A ideia não lhe desagradou. Fez uma encomenda inicial de 300 exemplares. Cipriano e Marta não cabem em si de felicidade. Mas não foi fácil, foi necessária uma reinvenção. O trabalho seria muito diferente. A essa altura do romance, Saramago nos dá uma aula sobre a principal categoria da filosofia, que é o trabalho. A mente a as mãos, a habilidade dos dedos, os conhecimentos técnicos, a modelagem, o cozimento do barro, o manuseio das tintas, tudo isso precisa ser trabalhado (Isso será tema de um post especial). O chefe de compras alertara a Cipriano, que faria uma grande pesquisa entre os consumidores para ver sobre a aceitação, ou não, de seus novos produtos, frutos de tão árduo trabalho, trabalho criativo. Dias de aflição e muita angústia.

Estes só não foram maiores, porque a tão aguardada promoção de Marçal a guarda residente finalmente saíra. Se nada desse certo, Cipriano iria morar como a filha e o genro no tal do Centro. Mas, havia um problema. O pai e a mãe de Marçal queriam o mesmo e, por isso o atormentavam insistentemente, enquanto Cipriano, ao contrário, resistia à ideia. Em meio a esses acontecimentos, Cipriano encontrou-se com Isaura Estudiosa, ou a Isaura Madruga. Ela era viúva. Cipriano lhe promete e lhe leva um cântaro. Mas, isso não era tudo. Marta, para profundo incômodo do pai, constantemente trazia o tema à baila. Também é desse tempo o aparecimento do cão, o Achado. Repito, - são das mais belas reflexões que se possa encontrar na literatura - das relações de profunda amizade e compreensão entre o ser humano e o animal, no caso, o cão. Quanta sensibilidade! Quanto entendimento de sentimentos mútuos! Seria o Achado um dos motivos pelos quais Cipriano não queria ir morar no Centro? Lá os animais não eram tolerados.

Já quase ao final do livro, os três irão morar ao Centro. Cipriano faz as suas investigações. Marçal ganhara uma missão especial. Trabalharia em turnos especiais e seria dispensado da farda. - Sem farda, não há guarda, há, isso sim, espionagem - observa o perspicaz sogro. A guarda especial era no local chamado de caverna. O seu turno era de madrugada. Cipriano, após alguns dias, irá visitá-lo, invocado com o que lá se passava. O que viu foi o suficiente  para abandonar imediatamente o Centro, mesmo sem saber que destino tomar. Alguns dias depois, o casal, que estava à espera do primeiro filho, segue o seu caminho. Enquanto houver vida, haverá futuro e haverá esperança. Já é muito saber o que não se quer!

Cenas lindas ocorrem ao final. Cipriano na sua volta, passa pela casa de Isaura, a quem havia confiado o Achado. Lá não está ela, nem ele. Então toca-se para a sua casa. La encontra os dois. Achado fugira, já no primeiro dia. Voltara para a casa de Cipriano, esperando pela sua volta. Cenas de comovente sensibilidade e felicidade descrevem esse encontro, não mais dado a separações. Dias depois, já junto com a filha e o genro, deliberam que esse mundo não lhes serve e vão em busca - não sabem exatamente do que, - mas sabendo muito bem em que mundo não mais querem viver. Enquanto isso, Saramago anuncia a mais nova atração do centro, na frase que encerra o seu romance: BREVEMENTE, ABERTURA AO PÚBLICO DA CAVERNA DE PLATÃO, ATRAÇÃO EXCLUSIVA, ÚNICA NO MUNDO, COMPRE JÁ A SUA ENTRADA. 

Para não ficar apenas nas impressões da minha leitura deixo o relato de Benedito Nunes que encontramos nas orelhas do livro:

"O que singulariza a ficção de José Saramago é o ajustamento da narrativa romanesca a uma parábola. Neste novo romance a parábola já começa nos desiguais papéis dos personagens, o oleiro e o guarda, estampados nos seus próprios nomes. Algor o do primeiro, significando o frio prenunciador da agitação febril, e Gacho o do segundo, significando o lugar do pescoço que suporta a canga. A agitação do oleiro vem de seu desconforto moral: quando a louça que fabrica é rejeitada pelas instâncias decisórias superiores de um mega Centro econômico que atua como a "mão da Providência", Algor oferece-lhe bonecos de barro, representando diferentes tipos de gente que as mesmas instâncias lhe encomendam em grandes quantidades. A anulação do trabalho manual ou artesanal pela tecnologia tal poderia ser o resumo desse aspecto destrutivo do capitalismo em seu acme, convertido pelo romance numa parábola social, a que o romancista contrapõe, em sutil paródia, o mito dos que creem nas sombras. Mas quando o oleiro, o guarda e sua mulher ganham o mundo luminoso e real da estrada na companhia do amável cão Achado, em sua humana animalidade à altura da cachorra Baleia de Graciliano Ramos, do cavalo Colomer de Tolstoi e do cãozinho Karenin de Milan Kundera, a parábola social é contestada pelo mito, muito embora venha a ser este, como verá o leitor, neutralizado e reapresentado, em seu puro valor cênico, pela sociedade de espetáculos (ou de massa), que se funda no poder da tecnologia".

Para os leitores deixo também a alegoria da caverna, a de Platão, que serviu de mote para Saramago.

http://www.blogdopedroeloi.com.br/2014/04/a-alegoria-da-caverna-republica-de.html

E ainda, a resenha de Ensaio sobre a cegueira, o livro anteriormente resenhado.

http://www.blogdopedroeloi.com.br/2024/09/ensaio-sobre-cegueira-jose-saramago.html

quarta-feira, 4 de setembro de 2024

ENSAIO SOBRE A CEGUEIRA. José Saramago.

Continuo firme na minha releitura das obras de José Saramago. O livro da vez foi Ensaio sobre a cegueira. Retomei a ordem cronológica, interrompida com a leitura dos temas religiosos. Depois de ler o Evangelho segundo Jesus Cristo (1991), emendei com Caim (2009). Sobre o Ensaio é importante notar, que ele é do ano de 1995. Por que é Importante? Na resposta possivelmente encontraremos um dos motivos que inspiraram o autor para a escrita do livro. A proximidade de um fim de século. Uma data já fora justificativa para O ano da morte de Ricardo Reis. Esta ocorreu no ano de 1936. Qual dos temas teria uma abordagem mais interessante? A ascensão do nazi-fascismo, o entre guerras e o início de uma nova, ou um final de um século, um século curto, na expressão de Hobsbawm, e extremamente violento, sangrento e tenebroso e a perspectiva de um novo, sob um outro olhar.

Ensaio sobre a cegueira. José Saramago. Companhia das Letras. 2004. 28ª reimpressão.

Vamos imaginar o que teria se passado no imaginário de José Saramago para escrever sobre o tema da cegueira. Seria esta uma abordagem fácil ou difícil de se fazer? Creio que a imagem do final de século nos ajuda a entender o que se passava na mente do ilustre pensador e escritor. Um bom momento para fazer um balanço da nossa civilização. Uma balanço, não em retrospectiva, mas em perspectiva. A ideia de um progresso continuava a animar o povo ou nuvens sombrias e carregadas pairavam no ar, prestes a se precipitar. A esperança ainda fazia parte da caixa de Pandora, ou ela continha apenas males?

A epígrafe do livro também nos dá um bom indicativo das pretensões de Saramago com o seu Ensaio: "Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara". Livro dos Conselhos. O livro é da literatura portuguesa. Uma visão dialética e progressiva do fenômeno do olhar: olhar, ver e reparar. Não um olhar meramente mecânico, mas sim, e sempre, um olhar reflexivo. Um olhar que tem a sua origem ou raiz na profundidade do cérebro. Um olhar construído a partir de valores éticos. É por isso mesmo que o livro está inscrito entre os livros de ética.

Tudo começa num sinaleiro de esquina. Ao abrir-se para o verde, um carro não avança e atrapalha o tráfego. O motorista repentinamente ficara cego. Recebeu ajudas: teve o carro retirado do trânsito e foi levado para casa. Por óbvio, foi consultar um oftalmologista. Para irem ao consultório, não mais encontraram o carro no lugar deixado. O bom samaritano, o da caridade de tê-lo levado para casa, na verdade era um ladrão. O oftalmologista não encontrou causas no caso da cegueira de seu paciente. O aparelho da visão não sofrera nenhum tipo de lesão. Embora a situação ser gravíssima, menos mal, a cegueira não é doença de contágio. Mas, como logo veremos nas páginas seguintes, muitos cegos se encontravam num antigo manicômio, internados compulsoriamente. Já estavam ali, o primeiro cego e a sua mulher, o ladrão do carro, o médico que o atendera, sua mulher e a secretária do consultório, um menino estrábico e um cliente idoso com uma venda nos olhos, além de uma prostituta. Apenas a mulher do médico continuava a enxergar. Mais cegos continuavam a chegar e, logo todos os pavilhões estavam lotados.

As consequências da cegueira começam a se manifestar. Ainda existia um governo para cuidar da epidemia para que não se transformasse em pandemia. Evitava contatos, providenciava alimentação e distribuía os cegos pelos diversos pavilhões. Os primeiros cegos ocupavam o primeiro. A mulher do médico logo tomou a dianteira nas decisões. O que fariam com o ladrão do carro entre eles? Nos outros pavilhões, em um deles, juntaram-se as pessoas do mal. Apoderaram-se das caixas de comida e passaram a vendê-la aos demais. Primeiro por dinheiro e joias e depois, inimaginável, em troca das próprias mulheres. O que fazer?! E uma conclusão óbvia. A cegueira não melhorara os homens. A perversidade estava neles incrustada. Sujeiras e fedores se transformaram no novo habitat de todos. Pássaros passaram a ser os agentes sanitários. Já não havia mais governo que ditasse ou cuidasse da ordem. Tudo estaria ao deus dará.

Quando o caos se completara os cegos tratam da volta para casa. A sorte favoreceu o grupo da mulher do médico. A primeira providência a ser tomada era a de encontrar comida. A encontraram num porão de supermercado. As antigas residências foram todas visitadas, algumas ocupadas. Um cão, o das lágrimas, numa espécie de antecipação de o Achado, de A caverna, se associa ao grupo. O senso de propriedade ditava que não era justo, mas.... Instalam-se na casa do médico. A situação não se alivia. Uma chuva e alguma reserva de água lhes permite amainar a sede, tomar um banho e lavar as roupas. A comida se tornava cada dia mais escassa e quando a encontravam ela provocava vômitos. O caos diário indicava que a situação, dia após dia, piorava. O fim do mundo estava próximo. Os pregadores não cansavam de o anunciar. Entre as pregações também princípios de moralidade e de livre mercado eram anunciados. Sinais dos tempos.

Um prenúncio do final do romance é o momento em que todos começam a readquirir a visão. Muita troca de abraços e afetos. Mas o caos persistia. Para sobreviverem, muita organização seria necessária e a organização necessita de cooperação e participação. A organização é essencialmente coletiva. Organização coletiva era sinônimo de esperança e possibilidade de futuro. Ninguém seria capaz de sobreviver mantendo-se na autossuficiência e do espírito individualista e egoísta. Aliás, não teriam sido estes os princípios que os levaram à cegueira? E passadas mais de duas décadas do novo século, como vemos e enxergamos a situação do mundo? Devo dizer que as doutrinas políticas e econômicas em voga, pregadas quase em uníssono, nos levam ao aprofundamento da cegueira das desigualdades, da convivência harmoniosa, da miséria, da fome, da destruição ambiental e das guerras. Isso tudo sem falar da cegueira provocada pela expansão das chamadas redes sociais. Lembrando, esta cegueira, a do Ensaio, é uma cegueira branca.

Na contracapa do livro temos recomendação para a sua leitura e reflexões posteriores: "Cada leitor viverá uma experiência imaginativa única. Num ponto onde se cruzam literatura e sabedoria. José Saramago nos obriga a parar, fechar os olhos e ver.  Recuperar a lucidez, resgatar o afeto: essas são as tarefas do escritor e de cada leitor, face a pressão dos tempos e ao que se perdeu - 'uma coisa que não tem nome, essa coisa é o que somos'". Com certeza, um livro que deve ser lido junto ao imaginário e ao simbólico profundamente ativos.

E, como um antigo de professor de filosofia, não poderia terminar sem citar e recomendar o documentário Janela da alma, de João Jardim e Walter Carvalho. Sempre o utilizei em minhas aulas, com um impacto extraordinário. O que é a construção de um olhar, a construção de uma visão de mundo. O olhar, o ver e o reparar brotam da profundidade da dimensão do humano e da convivência harmoniosa. Caso contrário, o caos e o inferno da cegueira, a cegueira branca, a cegueira deste Ensaio.

Deixo ainda com vocês as duas resenhas anteriores dos livros de Saramago, os dos temas religiosos. O Evangelho segundo Jesus Cristo.

http://www.blogdopedroeloi.com.br/2024/08/o-evangelho-segundo-jesus-cristo-jose.html

E Caim, o seu acerto como Antigo testamento.

http://www.blogdopedroeloi.com.br/2024/08/caim-jose-saramago.html