Continuo firme na minha releitura das obras de José Saramago. O livro da vez foi Ensaio sobre a cegueira. Retomei a ordem cronológica, interrompida com a leitura dos temas religiosos. Depois de ler o Evangelho segundo Jesus Cristo (1991), emendei com Caim (2009). Sobre o Ensaio é importante notar, que ele é do ano de 1995. Por que é Importante? Na resposta possivelmente encontraremos um dos motivos que inspiraram o autor para a escrita do livro. A proximidade de um fim de século. Uma data já fora justificativa para O ano da morte de Ricardo Reis. Esta ocorreu no ano de 1936. Qual dos temas teria uma abordagem mais interessante? A ascensão do nazi-fascismo, o entre guerras e o início de uma nova, ou um final de um século, um século curto, na expressão de Hobsbawm, e extremamente violento, sangrento e tenebroso e a perspectiva de um novo, sob um outro olhar.
Ensaio sobre a cegueira. José Saramago. Companhia das Letras. 2004. 28ª reimpressão.Vamos imaginar o que teria se passado no imaginário de José Saramago para escrever sobre o tema da cegueira. Seria esta uma abordagem fácil ou difícil de se fazer? Creio que a imagem do final de século nos ajuda a entender o que se passava na mente do ilustre pensador e escritor. Um bom momento para fazer um balanço da nossa civilização. Uma balanço, não em retrospectiva, mas em perspectiva. A ideia de um progresso continuava a animar o povo ou nuvens sombrias e carregadas pairavam no ar, prestes a se precipitar. A esperança ainda fazia parte da caixa de Pandora, ou ela continha apenas males?
A epígrafe do livro também nos dá um bom indicativo das pretensões de Saramago com o seu Ensaio: "Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara". Livro dos Conselhos. O livro é da literatura portuguesa. Uma visão dialética e progressiva do fenômeno do olhar: olhar, ver e reparar. Não um olhar meramente mecânico, mas sim, e sempre, um olhar reflexivo. Um olhar que tem a sua origem ou raiz na profundidade do cérebro. Um olhar construído a partir de valores éticos. É por isso mesmo que o livro está inscrito entre os livros de ética.
Tudo começa num sinaleiro de esquina. Ao abrir-se para o verde, um carro não avança e atrapalha o tráfego. O motorista repentinamente ficara cego. Recebeu ajudas: teve o carro retirado do trânsito e foi levado para casa. Por óbvio, foi consultar um oftalmologista. Para irem ao consultório, não mais encontraram o carro no lugar deixado. O bom samaritano, o da caridade de tê-lo levado para casa, na verdade era um ladrão. O oftalmologista não encontrou causas no caso da cegueira de seu paciente. O aparelho da visão não sofrera nenhum tipo de lesão. Embora a situação ser gravíssima, menos mal, a cegueira não é doença de contágio. Mas, como logo veremos nas páginas seguintes, muitos cegos se encontravam num antigo manicômio, internados compulsoriamente. Já estavam ali, o primeiro cego e a sua mulher, o ladrão do carro, o médico que o atendera, sua mulher e a secretária do consultório, um menino estrábico e um cliente idoso com uma venda nos olhos, além de uma prostituta. Apenas a mulher do médico continuava a enxergar. Mais cegos continuavam a chegar e, logo todos os pavilhões estavam lotados.
As consequências da cegueira começam a se manifestar. Ainda existia um governo para cuidar da epidemia para que não se transformasse em pandemia. Evitava contatos, providenciava alimentação e distribuía os cegos pelos diversos pavilhões. Os primeiros cegos ocupavam o primeiro. A mulher do médico logo tomou a dianteira nas decisões. O que fariam com o ladrão do carro entre eles? Nos outros pavilhões, em um deles, juntaram-se as pessoas do mal. Apoderaram-se das caixas de comida e passaram a vendê-la aos demais. Primeiro por dinheiro e joias e depois, inimaginável, em troca das próprias mulheres. O que fazer?! E uma conclusão óbvia. A cegueira não melhorara os homens. A perversidade estava neles incrustada. Sujeiras e fedores se transformaram no novo habitat de todos. Pássaros passaram a ser os agentes sanitários. Já não havia mais governo que ditasse ou cuidasse da ordem. Tudo estaria ao deus dará.
Quando o caos se completara os cegos tratam da volta para casa. A sorte favoreceu o grupo da mulher do médico. A primeira providência a ser tomada era a de encontrar comida. A encontraram num porão de supermercado. As antigas residências foram todas visitadas, algumas ocupadas. Um cão, o das lágrimas, numa espécie de antecipação de o Achado, de A caverna, se associa ao grupo. O senso de propriedade ditava que não era justo, mas.... Instalam-se na casa do médico. A situação não se alivia. Uma chuva e alguma reserva de água lhes permite amainar a sede, tomar um banho e lavar as roupas. A comida se tornava cada dia mais escassa e quando a encontravam ela provocava vômitos. O caos diário indicava que a situação, dia após dia, piorava. O fim do mundo estava próximo. Os pregadores não cansavam de o anunciar. Entre as pregações também princípios de moralidade e de livre mercado eram anunciados. Sinais dos tempos.
Um prenúncio do final do romance é o momento em que todos começam a readquirir a visão. Muita troca de abraços e afetos. Mas o caos persistia. Para sobreviverem, muita organização seria necessária e a organização necessita de cooperação e participação. A organização é essencialmente coletiva. Organização coletiva era sinônimo de esperança e possibilidade de futuro. Ninguém seria capaz de sobreviver mantendo-se na autossuficiência e do espírito individualista e egoísta. Aliás, não teriam sido estes os princípios que os levaram à cegueira? E passadas mais de duas décadas do novo século, como vemos e enxergamos a situação do mundo? Devo dizer que as doutrinas políticas e econômicas em voga, pregadas quase em uníssono, nos levam ao aprofundamento da cegueira das desigualdades, da convivência harmoniosa, da miséria, da fome, da destruição ambiental e das guerras. Isso tudo sem falar da cegueira provocada pela expansão das chamadas redes sociais. Lembrando, esta cegueira, a do Ensaio, é uma cegueira branca.
Na contracapa do livro temos recomendação para a sua leitura e reflexões posteriores: "Cada leitor viverá uma experiência imaginativa única. Num ponto onde se cruzam literatura e sabedoria. José Saramago nos obriga a parar, fechar os olhos e ver. Recuperar a lucidez, resgatar o afeto: essas são as tarefas do escritor e de cada leitor, face a pressão dos tempos e ao que se perdeu - 'uma coisa que não tem nome, essa coisa é o que somos'". Com certeza, um livro que deve ser lido junto ao imaginário e ao simbólico profundamente ativos.
E, como um antigo de professor de filosofia, não poderia terminar sem citar e recomendar o documentário Janela da alma, de João Jardim e Walter Carvalho. Sempre o utilizei em minhas aulas, com um impacto extraordinário. O que é a construção de um olhar, a construção de uma visão de mundo. O olhar, o ver e o reparar brotam da profundidade da dimensão do humano e da convivência harmoniosa. Caso contrário, o caos e o inferno da cegueira, a cegueira branca, a cegueira deste Ensaio.
Deixo ainda com vocês as duas resenhas anteriores dos livros de Saramago, os dos temas religiosos. O Evangelho segundo Jesus Cristo.
http://www.blogdopedroeloi.com.br/2024/08/o-evangelho-segundo-jesus-cristo-jose.html
E Caim, o seu acerto como Antigo testamento.
http://www.blogdopedroeloi.com.br/2024/08/caim-jose-saramago.html
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