Ensaio sobre a lucidez, o livro de Saramago que reli nesta sequência, é uma continuidade do seu livro Ensaio sobre a cegueira. A cegueira foi o tema abordado em 1995 e a lucidez, quase dez anos depois, em 2004. A cegueira abordada na obra do final do século, para lembrar, era uma cegueira branca. A lucidez, por sua vez, se manifesta por uma decisão popular, de não mais votar em candidatos, mas sim, votar majoritariamente em branco. Na cegueira, as instituições do Estado deixaram de funcionar e na lucidez, o Estado se retirou da cidade e governou à distância, pelo arbítrio. Um mundo de barbaridades.
Ensaio sobre a lucidez. José Saramago. Companhia das Letras. 2004.
Na minha primeira leitura, na página 175 eu sublinhei algumas linhas e escrevi ao lado - Ensaio sobre a cegueira. Eis o trecho sublinhado: "... falemos abertamente sobre o que foi a nossa vida, se era vida aquilo, durante o tempo em que estivemos cegos, que os jornais recordem, que os escritores escrevam, que a televisão mostre as imagens da cidade tomadas depois de termos recuperado a visão, convençam-se as pessoas a falar dos males de toda a espécie que tiveram de suportar, falem dos mortos, dos desaparecidos, das ruínas, dos incêndios, do lixo, da podridão, e depois, quando tivermos arrancado os farrapos de falsa normalidade com que temos andado a querer tapar a chaga, diremos que a cegueira desses dias regressou sob uma nova forma, chamaremos a atenção da gente para o paralelo entre a brancura da cegueira de há quatro anos e o voto em branco de agora..."
Essa passagem é tão significativa para a compreensão do romance, ou do ensaio, que ela se encontra na própria contracapa do livro. Mas na página 186, tenho outras linhas sublinhadas. Ela faz parte de uma carta denúncia, enviada ao governo, por um dos cegos, integrante de um grupo de sete, que teve uma notável particularidade. Vejamos uma parte do teor da carta: "... e essa missão (a do denunciante), senhor presidente da república, consiste em revelar, escrevo a palavra por ser a primeira vez que falo deste assunto a alguém, que há quatro anos, com a minha mulher, fiz casualmente parte de um grupo de sete pessoas que, como tantas outras, lutou desesperadamente para sobreviver. Parecerá que não estou a dizer nada que vossa excelência, por experiência própria, não tenha conhecido, mas o que ninguém sabe é que uma das pessoas do grupo nunca chegou a cegar, uma mulher casada com um médico oftalmologista, o marido estava cego como todos nós, mas ela não..." O remetente da carta ainda alerta que esta mulher, que não cegara, havia cometido um assassinato. A partir dessa página, o romance vira uma investigação policial. Querem atribuir a esta mulher, a culpa pela lucidez que assolara a cidade.
Como já assinalamos, o mote do romance ocorre com uma eleição, ou melhor, pelos resultados dessa eleição. Nela os eleitores aparecem apenas ao final da tarde e, na apuração ficou constatado que 75% dos eleitores votaram em branco. A eleição terá que ser repetida. Os votos em branco aumentaram para 83%. Este é o cenário da crise. Diante dela, como o governo, o mais diretamente atingido, deverá agir? Tudo deveria ser diligentemente investigado. Quem seriam os conspiradores? Medidas urgentes deveriam ser tomadas. Para isso o Conselho de ministros se reúne constantemente. As discussões são hilariantes. As propostas mais absurdas sempre são as dos ministros da defesa e do interior e as menos acatadas, as do ministro da justiça e da cultura. O ministro do interior disputa o poder diretamente com o primeiro ministro.
É preciso endurecer o regime. O estado de sítio é decretado. A vida da cidade continua na mais plena normalidade. Não há indícios de que grupos organizados estejam a comandar o movimento. Uma decisão drástica é tomada. O governo se retira da capital, junto com todas as instituições, inclusive a polícia. Nas reuniões ministeriais passa a imperar o princípio de que o fim justifica os meios, desde que os resultados apareçam. Mas eles não aparecem, As medidas tomadas são as mais ridículas que se possa imaginar. Para que elas tenham efeito, é preciso criar um inimigo. Fundamental, criar um inimigo. Mas quem seria ele?
É o momento em que chega a carta com a denúncia da mulher que não cegara e que cometera um assassinato. É o inimigo perfeito. Ela e o seu grupo. A um comissário e a investigadores é confiada a investigação. Nada constatam que possa desabonar, nem a mulher do médico, nem o seu grupo. Mas o ministro cobra resultados. Uma fotografia do grupo, junto com matérias difamatórias são exibidas nos meios de comunicação. A eles é atribuída a culpa.
As soluções apresentadas pelo governo não são nada honrosas. Depois de arbitrariedades cometidas, o ministro do interior é demitido e o primeiro ministro acumula o cargo. O comissário é assassinado, assim como o médico oftalmologista e a sua mulher e também Constante, que no Ensaio sobre a cegueira aparecia mais sob o nome de cão das lágrimas. Com três tiros o romance é encerrado. Vejamos: " o cão veio a correr lá de dentro, fareja e lambe a cara da dona, depois estica o pescoço para o alto e solta um uivo arripiante que outro tiro imediatamente corta. Então um cego perguntou, Ouviste alguma coisa. Três tiros, respondeu outro. Mas havia também um cão aos uivos. Já se calou, deve ter sido o terceiro tiro. Ainda bem, detesto ouvir os cães a uivar".
Sim, falta a frase de epígrafe: Uivemos, disse o cão. Livro das Vozes.
Vejamos ainda a síntese encontrada nas orelhas do livro: "Numa manhã de votação que parecia como todas as outras, na capital de um país imaginário, os funcionários de uma das seções eleitorais se deparam com uma situação insólita, que mais tarde, durante as apurações, se confirmaria de maneira espantosa. Aquele não seria um pleito como tantos outros, com a tradicional divisão dos votos entre os partidos 'da direita', 'do centro' e 'da esquerda'; o que se verifica é uma opção radical pelo voto em branco. Usando o símbolo máximo da democracia - o voto -, os eleitores parecem questionar profundamente o sistema de sucessão governamental em seu país.
É desse 'corte de energia cívica' que fala Ensaio sobre a lucidez. Não apenas no título José Saramago se remete ao seu célebre Ensaio sobre a cegueira: também na trama ele retoma personagens e situações, insistindo em algumas das questões éticas e políticas abordadas no romance de 1995. Ao narrar as providências do governo, polícia e imprensa para entender as razões da 'epidemia branca' - ações estas que elevam rapidamente a um devaneio autoritário -, o autor faz uma alegoria dos rituais da democracia e da fragilidade do sistema político e das instituições que nos governam. A lucidez, aqui, é aquilo que se opõe à loucura, ao desvario, à demência: não se trata, portanto, de mera metáfora ou ironia.
O que se propõe não é a substituição da democracia por um sistema alternativo, mas o seu permanente questionamento. É pela via da ficção que José Saramago entrevê uma saída para esse impasse - pois é a potência simbólica da literatura, território em que reflexão, humor, arte e política se entrosam, que por fim se revela capaz de vencer a mediocridade, a ignorância e o medo".
Deixo ainda a resenha do livro lido anteriormente, A caverna.
http://www.blogdopedroeloi.com.br/2024/09/a-caverna-jose-saramago.html
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