terça-feira, 20 de junho de 2023

Cleópatra - histórias, sonhos e distorções. Lucy Hughes-Hallett.

"Já houve muitas Cleópatras. Provavelmente, haverá muitas mais. As diferentes formas que a rainha do Egito até hoje assumiu ainda estão longe de esgotar seu potencial para a metamorfose. Na massa de anedotas e imagens que formam a sua lenda, é possível rastrear os contornos de incontáveis Cleópatras mais - Cleópatras ainda não escritas, não filmadas.

Em sua própria época, Cleópatra era comparada a Helena, Semíramis, Ônfale, Dido e a Ísis. Sua imagem foi criada a partir de moldes já existentes. Depois foi refeita para se encaixar em numerosos outros moldes, enquanto gradualmente ela própria se tornava um molde para formas posteriores. [...] Uma 'Cleópatra é um objeto identificável, no entanto mutável. Elizabeth Taylor tornou-se uma Cleópatra. A propaganda sugere a você ou eu também podemos fazer o mesmo, basta usar o sabonete Cleópatra. Uma imagem é uma máscara, e uma máscara pode ser emprestada. Sendo um pedaço de artifício vazio, é facilmente destacável da pessoa que supostamente representa. Com igual facilidade, pode ser imposta a outro corpo. A consumidora do sabonete Cleópatra pode não se tornar de fato uma 'Cleópatra', mas nem mesmo a própria Cleópatra conseguiria isso". O livro é uma viagem ao longo do tempo, na busca das diferentes representações de Cleópatra.

Cleópatra - histórias, sonhos e distorções. Lucy Hughes-Hallett. Record. 2005. 

A citação é retirada da abertura da conclusão do livro, Cleópatra - histórias, sonhos e distorções, de autoria da jornalista, historiadora e biógrafa londrina, nascida em 1951, Lucy Hughes-Hallett. Na contracapa temos mais informações a respeito do conteúdo de seu rico e maravilhoso livro, em que são mostradas as diferentes faces dessa fantástica personagem: "tirana, frívola, devassa, cruel, nos são oferecidas sob a ótica ocidental. O fato é que esta rainha desempenhou um papel crucial nas questões políticas do Ocidente, como a adversária de Roma e também no papel da Outra: mulher, oriental e estrangeira. Preconceitos de raça e gênero aqui se misturam, pois em um mundo de valores masculinos toda mulher é uma forasteira". Já temos aqui uma bela imagem do livro.

Como começamos com a abertura da conclusão da autora, vamos agora ver as frases finais dessa mesma conclusão: "É verdade que ela é uma mulher estranhamente dotada de um poder masculino. É verdade que é uma estrangeira exótica que põe em questão a hegemonia cultural do Ocidente. É verdade que ela é uma celebração sensual dos pecados mortais da carne. Mas sua imagem, que escarnece de forma tão abrangente da ordem estabelecida, pode ser entendida como um presságio, não do caos, mas da ampliação da possibilidade humana. Aqueles que a vislumbram com a mente livre, sem ansiedade sexual e arrogância racial, aqueles que (diferentemente de Baudelaire) são capazes de contemplar o próprio coração e o corpo sem repulsa, aqueles que não se agarram à moral fácil do certo e do errado podem enxergar sua beleza e ouvir sua tolerante risada".

Antes de apresentar a estrutura do livro, devo dizer que ele é extremamente erudito, como já devem ter percebido. Nele estão apresentadas as principais representações que a "rainha do Egito", ou a Femme fatale, teve ao longo da história, na literatura, no teatro e, finalmente no cinema. São os diferentes olhares lançados a ela, pelos olhos de cada tempo histórico e por seus valores morais dominantes. E também os interesses dominantes em cada uma dessas épocas, onde aflora a construção no imaginário das representações de poder e de dominação, bem como de seus inimigos.

O livro, que ganhei de presente em 2005, junto com uma bela dedicatória, é estruturado em duas partes, com onze capítulos e mais uma apresentação, conclusão, referências e bibliografia, ao longo de 486 páginas. Três são os seus personagens: Cleópatra, Antônio e Otávio. Mas também Júlio César. A primeira parte é formada por três capítulos: 1. O fato e a fantasia; 2. A história segundo Otávio; 3. A versão de Cleópatra. É a parte que apresenta a história dos personagens envolvidos, com destaque, por óbvio, à personagem do título.

A segunda parte ocupa o restante dos capítulos: 4. A suicida; 5. A amante; 6. A mulher; 7. A rainha; 8. A estrangeira; 9. A assassina. 10. A criança (versão de Bernard Shaw); 11. E Cleópatra pisca. Este último é a sua versão para o cinema, com destaque para o filme de 1963, de Mankiewicz, com Richard Burton e Elizabeth Taylor no papel de Antônio e Cleópatra, que reacendeu todo o imaginário em torno do lendário casal. O próprio filme se transformou numa lenda, por seus custos e escândalos.

Sobre o livro, ainda duas informações que o referenciam, contidas na contracapa: "(...) relato fascinante sobre as formas como sucessivas gerações têm visto Cleópatra: a suicida virtuosa, a dona de casa ineficiente, a amante exuberante, a cortesã profissional, a manipuladora ardilosa, a femme fatale, a encarnação de Ísis, a devassa". The Economist. E ainda:

"Nesta análise vibrante, Lucy Hughes-Hallett mostra como a imagem de Cleópatra foi constantemente modificada pela moda feminina predominante, ética política, neuroses sexuais. (...) um livro sobre fabricação e persuasão." The Observer. Mas, afinal de contas, quem foi Cleópatra? Uma breve resposta da orelha da capa:

"Última rainha da dinastia Lágida, filha de Ptolomeu XII, Cleópatra nasceu em 69 a. C. De origem grega, e à frente do governo de Alexandria após a morte misteriosa de seus dois irmãos (dos quais foi também esposa) e de suas duas irmãs, Cleópatra foi uma administradora eficiente: diplomata hábil, reformulou a política e equilibrou a economia egípcia, promoveu projetos de engenharia refinados e falava nove idiomas. Inteligente e sedutora, sem ter parâmetro de beleza, seduziu os imperadores romanos Júlio César e Marco Antônio, embora tenha ficado sozinha  parte de sua vida adulta".


quarta-feira, 14 de junho de 2023

O livro das semelhanças. Ana Martins Marques. Vestibular UFPR - 2024.

Entre os livros indicados para o vestibular da UFPR para o ingresso nela, no ano de 2024, está o livro de poemas O livro das semelhanças - poemas, de Ana Martins Marques. Ana é mineira, nascida em Belo Horizonte, no ano de 1977. É graduada em letras e tem doutorado em literatura comparada pela Universidade Federal de Minas Gerias (UFMG). O livro é de 2015 e a oitava reimpressão, que eu tenho em mãos, data do ano de 2022. É uma edição da Companhia das Letras, o que por si só já indica prestígio.

O livro das semelhanças - poemas. Ana Martins Marques. Companhia das Letras. 

Devo confessar que não aprendi a ler poesias. Tenho enormes dificuldades com a sua leitura até os dias de hoje. Mas também nunca a desprezei em função disso. O azar, tenho certeza, é todo meu. Já fiz muito esforço, mas acho que não levo mesmo jeito. Não me atrevo a fazer comentários e por isso vou me ater às observações constantes na orelha do livro e à escolha de um poema de cada uma das quatro partes em que o livro está dividido: Livro - cartografia - visitas ao lugar comum e - o livro das semelhanças. Vamos a um trecho da orelha:

"Pois graças a esses e a outros textos, esta nova reunião dos poemas de Ana Martins Marques parece ser a culminação de um dos caminhos mais relevantes da lírica brasileira dos últimos anos. Estão aqui, com uma força que já podia ser antecipada em seus livros anteriores, peças que versam, sobretudo, a respeito da tentativa - sempre temerária, mas também desafiadora - de recuperar o mundo e as coisas por meio da palavra. Porém a autora sabe que vivemos tempos fraturados, em que experimentamos aquilo que poderia ser nomeado como uma certa falência da mimese (figura que consiste no uso do discurso direto e principalmente na imitação do gesto, voz e palavras de outrem - imitação ou representação do real na arte literária, ou seja, a recriação da realidade - conforme o AURÉLIO), pois traduzir o real literariamente é deparar com o abismo que se interpõe entre o mundo sensível e a folha em branco. E Ana desconfia do quanto isso tem de frágil, de problemático - e de igualmente fascinante". E na sequência:

"Esta obra desperta o leitor para o prazer sempre iluminador e sensível de uma das vozes mais originais da poesia brasileira. Do amor à percepção de que há um espaço - geográfico, quase - para o lugar comum, do entendimento da precariedade do nosso tempo no mundo à graça (mineira, matreira) proporcionada pela memória: eis uma poeta que nos fala diretamente. Ou como diz um de seus versos: 'Ainda que não te fossem dedicadas / todas as palavras nos livros / pareciam escritas para você'". Então vamos às escolhas. Da primeira parte - Livro - fiz a seguinte escolha:

Último Poema:

Agora deixa o livro                                                                                                                                        volta os olhos                                                                                                                                                para a janela                                                                                                                                                  a cidade                                                                                                                                                          a rua                                                                                                                                                              o chão                                                                                                                                                            o corpo mais próximo                                                                                                                                    tuas próprias mãos:                                                                                                                                        aí também                                                                                                                                                      se lê

Da segunda parte - cartografias - o que segue:

Você assinala no mapa                                                                                                                                  o lugar prometido do encontro                                                                                                                      para o qual no dia seguinte me dirijo                                                                                                          com apenas café preto o bilhete só de ida do metrô a pressa feroz do desejo                                              deixando no entanto esquecido sobre a mesa o mapa que me levaria                                                          onde?   

Da terceira parte - Visitas ao lugar comum - o poema de número 8.

Cortar relações                                                                                                                                              e depois voltar-se                                                                                                                                          verificar se o que restou                                                                                                                                suporta                                                                                                                                                          remendo                                                                                                                                                        demorar-se                                                                                                                                                    sobre a cicatriz                                                                                                                                              do corte     

Da quarta parte - o livro das semelhanças - Ícaro.

Quando Ícaro                                                                                                                                          caiu                                                                                                                                                                no mar                                                                                                                                                            a sereia que                                                                                                                                                    que primeiro                                                                                                                                                  o encontrou                                                                                                                                                    amou nele                                                                                                                                                      o pássaro                                                                                                                                                        ele amou nela                                                                                                                                                o peixe

Os restos de suas asas                                                                                                                                    desfeitas                                                                                                                                                        forma dar na praia                                                                                                                                          entre embalagens                                                                                                                                          de plástico preservativos                                                                                                                              garrafas vazias latas                                                                                                                                      de cerveja                                                                                                                                                                                                               

segunda-feira, 12 de junho de 2023

O livro dos insultos. Henry Louis Mencken. "O espetáculo da estupidez humana".

Sábado por volta do meio dia recebo uma ligação do meu amigo Valdemar. "Venha aqui para o restaurante São Francisco", disse-me ele. O motivo era para conversar com Cristovam Buarque, que ali viera para almoçar. Lembrando que Cristovam foi, entre outras funções e atividades, reitor da Universidade de Brasília (UNB). governador do Distrito Federal, ministro da educação, senador e candidato a presidente da República. A conversa foi pouca e se reportou mais à escravidão, tema de um livro seu. Sobrou uma fotografia como lembrança.

O livro dos insultos. H.L. Mencken. Companhia das Letras.2009.

No almoço também se encontrava Firmino Ribeiro, o venerável Pai Firmino, um venerável do humor, da ironia e da sátira. Ele passara antes por um sebo, do qual ele trazia alguns livros. Entre eles, O livro dos insultos, de H. L. Mencken (1880-1956). Perguntando se eu o tinha lido e se eu o tinha e, diante de minha resposta negativa, me presenteou com o livro. Registro aqui os meus agradecimentos. O livro, além de seu chamativo título, traz duas informações de capa: Seleção, tradução e posfácio de Ruy Castro e - A língua mais afiada do jornalismo americano em uma reunião de seus melhores (e piores) momentos.

Fui à leitura. Eu estava à frente de 18 temas da civilização mundial em geral e da estadosunidense, em particular. Eu estava diante de um dos mestres do humor e da fina ironia e diante dos mais sagrados temas da civilização ocidental e cristã, profundamente cristã, para a qual a sua flecha, com muito veneno, estava apontada na maioria das vezes. Junto com a civilização cristã (os protestantes com larga preferência) e a sua irmão gêmea, a moral, sua hipocrisia e farsa, são os seus temas preferidos. Vejamos os 18 temas presentes nas agudas percepções do iconoclasta Mencken:

1. Homo sapiens. 2. Tipos de homens (o romântico, o cético, o crédulo, o operário, o médico, o cientista, o empresário, o rei, o metafísco, o homem médio, o dono da verdade, o parente, o contraparente, o amigo, o filósofo, o altruísta, o iconoclasta, o chefe de família, o solteiro, o homem perfeito, o eterno macho, o escravo). 3. Mulheres (a mente feminina, mulheres fora da lei, a mulher fria, intermezzo sobre a monogamia, a libertina, a isca da beleza). 4. Religião (funcionários da fé, o secretariado cósmico, a natureza da fé, a restauração da beleza, o colapso do protestantismo, imune, um novo uso para as igrejas, livre-arbítrio, meditação de sábado, a imortalidade da alma, quod est veritas?, Sagrada escritura, cerimônia memorial). Daqui para frente não darei mais os subtítulos.

5. Moral -, onde além de sua gênese, volta ao tema do livre-arbítrio. 6. Morte. 7. Governo. 8. Democracia. 9. Homens em combate. 10. Economia. 11. Psicologia. 12. Tempos modernos. 13. A literatura dolorosa. 14. Litterati. 15. Música. 16. Artes menores. 18. Bufonarias. 18. Sententiae. Dessas sentenças eu escolhi uma: "Mostre-me um puritano e eu lhe mostrarei um filho da puta". Assim, na lata. Também escolhi um aforisma sobre o livre arbítrio, tema que super recomendo: "Se Ele sabe que vou trabalhar esta noite escrevendo este livro tão ímpio, para escândalo da fé e terrível ameaça às almas, por que não me induz a um trabalho mais decente? Impossível imaginar, à luz daquela fé, que Ele não saiba o que estou fazendo, assim como é impossível imaginar que não possa me deter. Ergo, deve assumir pelo menos parte da culpa por meu pecado e fará um papelão se tentar me punir por ele no inferno". Ah! a onipotência e a onisciência. Deus tudo vê e tudo pode! Imperdível mesmo é o capítulo - Tempos modernos. Nele ele aborda a Lei Seca, que durou entre os anos de 1920 e 1933. Inacreditável.

Mas vamos a juízos mais abalizados: Para a publicação brasileira do livro de 1988 houve um anexo de autoria de Paulo Francis. Ele assim encerra o seu breve comentário: "Nada de solene em Mencken. Ele era um jornalista literário e um satírico, por excelência. O espetáculo da estupidez humana 'fazia o dia dele, como Rambo faz o de Ronald Reagan (babamos de antecipação frustrada em imaginar o que Mencken diria de Reagan). Chamava o sul dos Estados Unidos de 'Sara do Bozart' (trocadilho de bobo com Mozart). Ridicularizava, em particular, os fundamentalistas cristãos. Fez o estado do Tennessee mundialmente célebre e infame, quando, em 1925, descreveu o julgamento do professor secundário John Scopes, que ensinava Darwin em biologia, e não a Bíblia (O episódio está presente no livro).

E Mencken também não gostava dos ricos exibicionistas daqui. Chamava-os de boobosie. Os ensaios reunidos neste livro dão uma dimensão variada do estilo e incisividade de Mencken. Em pessoa, ele era mais conservador do que por escrito. Sua ideia de uma noite feliz era ouvir e tocar Brahms e Schubert, se bem que ele e Nathan (autor da frase 'bebo para tornar os outros interessantes') tomaram pileques homéricos, enquanto riam dos outros. Mencken é atualíssimo. O mundo regrediu para a jequice de que ele tirou os Estados Unidos. Que ao menos ressuscite sua prosa neste livro".

Do posfácio de Ruy Castro também tomo a sua última frase, após ele descrever seus anos finais de vida, consagrados a Beethoven e Johnny Walker: "Quando morreu de enfarte, em 1956, a grande dificuldade dos redatores de seus obituários foi escolher uma classificação que melhor o definisse. Repórter, crítico, colunista, editor, polemista, escritor, filólogo, humorista? Eu escolheria todas".

Ainda, breves dados biográficos, contidos na contracapa do livro: "Henry Louis Mencken nasceu em Baltimore, Maryland, em 1880. Fez boa parte da sua carreira nos jornais da cidade, o Sun e o Evening Sun, enquanto editava as revistas Smart Set e American Mercuy, com Jorge Jean Nathan. Depois de um derrame, em 1948, ele não conseguiu mais escrever. Morreu dormindo na noite de 28 para 29 de janeiro de 1956. Quando foi se deitar, ouvia uma sinfonia transmitida pelo rádio". Também deve ser dito que era autodidata.

Memória do encontro. Com Cristovam e Pai Firmino.

E na contracapa: "Embora o próprio Mencken fizesse questão de difundir a sua imagem de iconoclasta e irreverente, Edmond Wilson afirmava que havia por trás desta máscara  'um crítico, um evangelista e um artista; ele é uma mente de extraordinário interesse.  Gore Vidal diz que H.L. Mencken foi o jornalista mais influente de sua época e 'também o mais sagaz'".


segunda-feira, 5 de junho de 2023

Noite na taverna. Álvares de Azevedo. Vestibular 2024 - UFPR.

Creio que poucas vezes demorei tanto para ler um livro. A sua leitura não foi nada agradável. Histórias extremamente escabrosas. Estou falando de Uma noite na taverna, de Álvares de Azevedo. O livro é uma indicação para o vestibular da Universidade Federal do Paraná para o ano de 2024. Fui buscar ajudas, para compreender a obra. Algumas informações preliminares: A obra é uma publicação póstuma do ano de 1855, três anos após a sua morte, absolutamente prematura. Álvares de Azevedo nasceu em São Paulo, no ano de 1831 e em 1840 muda-se, com sua família, para o Rio de Janeiro. Em 1848 volta para São Paulo para cursar a faculdade de Direito do Largo de São Francisco. Morre em 1852, no Rio de Janeiro, aos 21 anos de idade. 

Noite na taverna. Álvares de Azevedo. Principis. 2019.

Por óbvio, a sua breve vida me chamou muita atenção. Ele é um daqueles poetas românticos, de vida curta, dos quais ouvimos falar ao longo do ensino médio. Ele foi uma das tantas vítimas da tuberculose, que tantas vidas ceifara, em tempos em que não havia antibióticos. Um poeta romântico. Talvez seja esta a maior dica para compreender a sua obra. Ele era um romântico da segunda geração, ou um ultrarromântico. O romantismo brasileiro já saíra de sua primeira geração, em que os temas eram essencialmente nacionais, para se ocupar dos temas universais. A obra é extremamente erudita, com um sem fim de citações de autores clássicos e dos românticos europeus, que tanto o influenciaram e que, por meio dele, chegaram ao Brasil.

Mais alguns dados preliminares: Ele pertencia a uma família de posses. No Rio de Janeiro ele frequentava a corte. A mudança para São Paulo se deveu exclusivamente em função da Faculdade de Direito. Havia apenas duas no Brasil, na época. A de São Paulo e a do Recife. A São Paulo da época não devia oferecer muitas atrações, o que favorecia as noites de bebedeira e orgia, como a dos contos presentes no livro. O livro é de muita ousadia e, possivelmente, a sua publicação póstuma tenha sido proposital. Seria uma ousadia ainda maior publicá-la em vida. Os contos são um horror, uma afronta, o que repercutiu sobre a recepção da obra pela crítica. Muitos juízos morais em vez de literários.

Vamos à obra. Cinco jovens encontram-se em uma taverna, entre prostitutas, embriaguez, vinho e muito fumo. Depois de absolutamente bêbados, eles fazem uma espécie de concurso para ver quem consegue a proeza do conto mais escabroso. São sete os contos, ou se preferirem cinco. O primeiro é uma espécie de preâmbulo ou prólogo e o último, um posfácio. Vamos a eles. Uma parte do preâmbulo está contida na contracapa: " - Agora ouvi-me, senhores! [...] o que nos cabe é uma história sanguinolenta, um daqueles contos fantásticos como Hoffmann os delirava ao clarão dourado do Johannisberg! - Uma história medonha, não Archibald? - falou um moço pálido que a esse reclamo erguera a cabeça amarelenta. - Pois bem, dir-vos-ei uma história. Mas quanto a essa, podeis tremer a gosto, podeis suar a frio da fronte grossa de bagas de terror. Não é um conto, é uma lembrança do passado". Hoffmann (1776-1822) é um dos tantos autores do romantismo que por meio dele chegaram ao Brasil. Neste preâmbulo está contido o cenário dos contos, bem como os temas e os participantes da Noite na taverna. 

O conto de número dois (vamos adotar o critério dos sete) é contado por Solfieri e tem Roma, a cidade da perdição e do fanatismo como cenário. No conto aparece a sombra de uma mulher, com a qual ele irá parar num cemitério. Não era uma sombra, mas sim, uma mulher de verdade. Na saída, carregando-a, ele tropeça no coveiro, passa por uma patrulha policial, a qual ele dribla, beijando-a para provar que não era um cadáver. Ao chegar a seu quarto, após dois dias ela morre. Ele manda fazer dela uma estátua, mas enquanto ela não fica pronta, ele dorme sob a sua lápide. Ele abre o peito para mostrar o amuleto que carregava, o seu crânio. Uma amostra.

O terceiro conto  é de Bertram e é o mais longo. Envolve várias situações, com proezas escabrosas diversas, envolvendo mulheres, duelos, túmulos, velórios, degolas, traições, desonras, venda de mulher por dívida, suicídio, blasfêmias, piratas, antropofagia e necrofilia. Precisa mais!

O quarto conto é o de Gennaro, que conta uma história de seus tempos de aprendiz de pintor. O mestre vivia com a sua segunda mulher e uma filha. Meninas novas. Este é o cenário e os horrores que, creio, são de fáceis de imaginar. O quinto conto é o de Claudius Hermann, um conto também um pouco mais longo, alongado por divagações românticas. Envolve uma história de sedução e de traição, que termina em leito ensanguentado. O conto de número seis é o de Johann e tem como cenário um encontro em um bilhar de Paris e, as consequências. Envolve duelo, morte de irmão e encontro com a irmã.

O sétimo conto, ou o epílogo, ocorre já ao amanhecer, quando uma mulher entra na taverna e, um punhal reluz ao contato com os primeiros raios de sol. Envolve morte e é uma sequência do conto de número seis. Vingança contra o irmão.

Bem, mais dados gerais. Álvares de Azevedo, apesar da precocidade de sua obra (fundamentalmente composta por Noite na taverna e Lira dos vinte anos, coletânea de suas poesias) teve enorme repercussão e influenciou profundamente as gerações posteriores. Ele já pensava numa Academia de Letras, e a Academia Brasileira de Letras, como reconhecimento, o nomeou patrono da cadeira de número dois. A sua maior marca é a de ser o precursor brasileiro do ultrarromantismo e de ter trazido para o Brasil, a geração desses escritores estrangeiros ao Brasil. E depois do ultrarromantismo, certamente vocês conhecem a sequência de realismo, naturalismo...

O livro que eu li é o da editora Principis, 2019. Senti muita falta de um prefácio, de notas explicativas ao longo do texto e de um posfácio. Isso me levou a buscas em outros espaços. Aproveito para deixar uma recomendação: o comentário de Isabela Lubrano - do Ler antes de morrer. Uma exposição bem humorada e com teor. Deixo ainda alguns dos autores que o influenciaram: Lord Byron (1788-1824), Schiller (1759-1805), Goethe (1749-1832) e Edgar Allan Poe (1809-1849), este, dos Estados Unidos.