sexta-feira, 31 de julho de 2020

Guerra e Paz. Volume IV. Leon Tolstói.

O volume IV de Guerra e paz de Leon Tolstói, composto de mais 354 páginas de letras pequeninhas, completa a obra, que pela edição de bolso da L&PM, tem um total de 1491 páginas. Uma das obras mais longas da literatura universal. Mais do que uma obra apenas da literatura o livro é considerado como uma obra da arte universal, tal a sua grandiosidade.
Guerra e Paz. Volume IV.  pela capa, uma mostra da retirada da Rússia. É o grande tema.

Como é o livro de encerramento, os desfechos precisam ser feitos. Ele se divide em três partes, a décima segunda, décima terceira e décima quarta partes, mais um epílogo, este dividido em dois tempos. Tem ainda um apêndice, em que o autor faz interessantes considerações sobre a sua própria obra, que bem poderia ser o prefácio.

Na décima segunda parte o olhar se volta para Petersburgo, que nada sofrera com a guerra. Resta a pergunta - por que Napoleão não a atacou? A cidade continuava em festa, alheia às preocupações com Napoleão. As grandes festas não haviam sido interrompidas. De novidade, temos o falecimento de Helena, a esposa de Pedro mas com a qual ele não convivia. Apenas as milícias se preocupavam com a defesa da pátria. O termo milícias não tem o significado que nós lhe atribuímos. São os exércitos populares, montados fora da institucionalidade do exército.

Encontramos ainda Pedro como prisioneiro dos franceses sendo levado a julgamento e execução. Porém, no momento da sua vez, ele é beneficiado com um indulto, mas é mantido como prisioneiro. É o momento em que o autor introduz em sua obra um outro prisioneiro, um personagem fantástico, homem de extrema simplicidade e com o sugestivo nome de Platão Karataiev. Ele exerceu profundas influências sobre Pedro, sobre o seu pensar e sobre o modo de viver. Ele permanecerá em sua memória. Quero recuperar uma de suas frases e deixá-la aqui registrada, em especial para o povo adepto da chamada "República de Curitiba", da lava-jatista, justiceira e moralista república de Curitiba. Vejam a simplicidade e singeleza de sua afirmação: "Onde há justiça há injustiça". Os dois travam diálogos de profunda humanidade.

Na parte das famílias há a aproximação de Nicolau (Rostov) com Maria (Bolkonski) e a morte de André (Bolkonski). No início do volume I existe um quadro ilustrativo das grandes famílias protagonistas da obra, que convém ser constantemente consultada.

Na décima terceira parte ocorrem descrições da retirada de Napoleão e as chamadas "marchas de flanco" dos russos. "Tempo e paciência serão as duas grandes armas empregadas pelo general Kutuzov, o sereníssimo. Agora a terra prometida de Napoleão não era mais Moscou, mas sim, Paris. Os russos fustigam a retirada mas não a impedem. 

A décima quarta parte é muito peculiar. A guerra adquire novos contornos, fora das regras, fora da institucionalidade. É a guerra de guerrilhas. São as populações civis se movimentando e afugentando os franceses. A população age instintivamente. Cossacos e camponeses e o seu elevado moral  os alça à condição de heróis e protagonistas da parte final dessa absurda guerra. Ocorre ainda a libertação de Pedro e a morte do intrépido Pétia, o caçulinha da família dos Rostov.

No décimo quinto capítulo vemos as famílias russas voltando e reconstruindo Moscou, enquanto continua a fuga atabalhoada dos franceses, agora fazendo o caminho inverso, do oriente para o ocidente. As forças do seu exército estão literalmente em decomposição. Kutuzov recebe as maiores honrarias nacionais. Pedro se recompõe, recupera a sua saúde e se aproxima de Natacha. Tolstói volta agora a sua arte para a exaltação do povo russo, agora na reconstrução de Moscou e no afugentar das tropas francesas.

Na primeira parte do epílogo temos um avanço histórico de sete anos, após os fortes episódios de 1812. A diplomacia entra em cena. Alexandre exercerá fortes influências. O capítulo III dessa parte é uma análise sobre Napoleão, sua ascensão, sua queda e significados. Temos ainda os acertos afetivos entre as grandes famílias. Pedro casa com Natacha e Nicolau com Maria. Viverão felizes, retirados das grandes agitações de Moscou ou de Petersburgo. Consuma-se o fato de Pedro e Natacha serem os maiores personagens da obra. A segunda parte do epílogo é toda ela dedicada a reflexões de ordem política, histórica, filosófica e ética. A história e os seus personagens e as relações de poder ganham o maior destaque. A liberdade e a necessidade ganharão as suas contraposições e o livre arbítrio merecerá sentar-se no divã, posto sob análise.

O livro termina com um apêndice, que originalmente não fazia parte da obra, mas que perfeitamente poderia ser o seu prefácio. O autor fala de sua obra, escrita ao longo de cinco anos ininterruptos e de dedicação exclusiva. Faz seis grandes considerações em torno de sua obra, escrita ao longo dos anos 1865 e 1869. A contracapa dos quatro volumes tem a mesma apresentação, com a qual encerro o meu post.

"Publicado entre 1865 e 1869, Guerra e Paz é mundialmente aclamado como um dos maiores romances jamais escritos. Trata-se de um imenso e detalhado painel da sociedade russa durante o tumultuado período das guerras napoleônicas, de 1805 (ano da vitória de Napoleão na batalha de Austerlitz) a 1812 (quando ocorreram a célebre retirada dos franceses durante o inverno e o incêndio de Moscou). Como fio condutor, temos a vida, as misérias e os amores de duas grandes famílias aristocratas. Uma multidão de personagens retrata as diversas camadas do mundo russo, dos camponeses ao tzar, e os protagonistas parecem ter vida própria, tão admirável é a capacidade de Tolstói (1828-1910) de representar pessoas psicologicamente complexas e profundas. Por sua ambição e pelas técnicas utilizadas, Guerra e paz desafiou os parâmetros literários e a própria literatura de seu tempo.

Se em seu magnífico romance o autor mostrou o sacrifício, o patriotismo e a grandeza do povo russo, também construiu um monumento à paz. A obra-prima de Tolstói brilha como um livro maior entre os milhões de livros, deslumbra como só uma verdadeira obra de arte é capaz de deslumbrar e emociona como só as grandes histórias, contadas pelos grandes narradores, conseguem emocionar".

Deixo ainda a resenha de uma biografia do autor e a dos três outros volumes;

http://www.blogdopedroeloi.com.br/2014/01/tolstoi-biografia-rosamund-bartlett.html

http://www.blogdopedroeloi.com.br/2020/06/guerra-e-paz-leon-tolstoi-volume-i.html

http://www.blogdopedroeloi.com.br/2020/07/guerra-e-paz-leon-tolstoi-volume-ii.html

http://www.blogdopedroeloi.com.br/2020/07/guerra-e-paz-leon-tolstoi-volume-iii.html




sexta-feira, 24 de julho de 2020

Guerra e Paz. Leon Tolstói. Volume III.

Se o volume II de Guerra e paz de Leon Tolstói era mais centrado nas grandes famílias de Moscou e Petrogrado e nas relações diplomáticas entre a França de Napoleão e a Rússia de Alexandre, o terceiro volume é guerra pura. São mais 395 páginas para descrever os avanços de Napoleão, já em território russo, penetrando em seu coração. Napoleão conta com uma exército europeu de 800.000 homens e vai ocupando as cidades que estão no rumo de Moscou. Ocorre a tomada de Smolensk e as famosas batalhas de Chevardino e Borodino, esta praticamente decisiva, e a chegada a Moscou, encontrando a cidade abandonada.
Guerra e paz. L&PM. Volume III. Vejam na capa o incêndio de Moscou - 1812.

Este livro se divide em três partes: A nona se ocupa da entrada de Napoleão na Rússia (Smolnesk), a décima nos avanços em direção a Moscou, com um grande destaque para a descrição da batalha de Borodino e a décima primeira, sobre as estratégias dos dois lados, dos franceses para tomarem a cidade e a dos russos de a abandonarem e a incendiarem. Quanto aos personagens ganham grande destaque, Kutuzov, o sereníssimo, comandante geral do exército russo, Pedro, um personagem que continua absolutamente confuso e André e a sua luta entre a vida e a morte. A força do livro continua nas análises da guerra e na caracterização existencial, humana ou não, dos principais atores envolvidos na trama.

Na nona parte, como vimos, Napoleão já se encontra na Rússia. Tolstói faz uma detalhada análise dos motivos que levaram Napoleão para a tomada de Moscou e sobre os absurdos da guerra. Mas as intrigas nas grandes famílias também continuam. Lembram de André, que perdeu a sua noiva, Natacha, para Anatole? Ele parte para a vingança, mas a guerra altera completamente os planos. O imperador Alexandre vai ao front e troca mensagens com Napoleão. Este está irredutível. A Rússia havia obtido interessantes vitórias na guerra contra os  turcos e, agora, os seus soldados e comandantes reforçam as forças contra Napoleão. Um deles é Nicolau, o irmão de Natacha, que está muito mal, e por isso ele volta para Moscou. É o momento em que Tolstói faz um acerto de contas com os médicos e as suas charlatanices. A autor se torna extremamente ácido.

Na casa dos Rostov (Nicolau - Natacha) aparece Pedro. Pedro é tomado de ternura pela menina Natacha, que supera seus problemas de saúde. O imperador reúne um Conselho de Guerra e começam os recrutamentos militares para fazer frente a Napoleão. O Conselho equivale a uma convocação dos Estados Gerais, que se preocuparam mais com festas do que com a própria guerra.

A décima parte é uma das mais famosas de todo o conjunto do livro. A descrição da batalha de Borodino, a exaltação do valor do povo russo e sobre os significados dessa batalha, considerada decisiva. Foi aí que Napoleão se inflou e decidiu efetivamente a avançar sobre Moscou, embora todas as perdas sofridas na batalha. Esta parte inicia com uma brilhante descrição sobre esse momento da guerra, sobre suas causas, sobre os avanços de Napoleão e os recuos da Rússia. O autor ouve e dá voz aos historiadores, Thiers, em especial, que acompanhavam as tropas. Surge a grande interrogação sobre o matar e o morrer. 

Nas proximidades de Smolensk se situavam as propriedades de André, da poderosa família Bolkonski. O seu pai está, como vimos no volume anterior, se encontrava senil e efetivamente chega a morrer. Sônia, a irmã de André, para agravar a situação, enfrenta uma rebelião de camponeses que se recusam a transportá-la em fuga para Moscou. Nicolau, da família Rostov, passa por aí e restaura a ordem. Nicolau percebe a existência da princesa Maria.

Vários capítulos se ocupam de Borodino, a grande batalha que só teve derrotados. Ela afundou Napoleão no interior da Rússia e provocou a fuga dos russos e os levou à condição do abandono da cidade de Moscou. Tolstói exalta a superioridade moral das tropas russas. A mortífera batalha teve mais de 70.000 mortos.

A décima primeira parte se ocupa dos russos e a tomada da nada fácil decisão de abandonar Moscou e de incendiá-la, com os veementes protestos Rostoptchine, uma espécie de prefeito e os avanços de Napoleão sobre a cidade. A família Rostov ganha novos destaques em sua fuga e a tentativa de levar o máximo de bens possíveis. Estes, no entanto, tem que ficar em Moscou, para dar lugar aos feridos para serem tratados. Entre esses feridos está, entre a vida e a morte, o valoroso André. Natacha nada sabe. O livro termina com Pedro, que fora para a guerra, observando a batalha de Borodino e, agora, se recusando a abandonar a cidade e ainda praticar atos heroicos, antes de sua prisão pelos franceses. O quarto volume promete. Deixo ainda as resenhas dos volumes I e II.

http://www.blogdopedroeloi.com.br/2020/06/guerra-e-paz-leon-tolstoi-volume-i.html

http://www.blogdopedroeloi.com.br/2020/07/guerra-e-paz-leon-tolstoi-volume-ii.html

sábado, 18 de julho de 2020

Guerra e Paz. Leon Tolstói. Volume II.

Antes de iniciar a resenha do volume II de Guerra e paz, de Leon Tolstói, creio ser necessário voltar à apresentação do livro (da L&PM) feita por Ivan Pinheiro Machado, sobre o teor do livro. Antes lembrando, que no volume II, são mais 378 páginas, divididas em cinco partes. Mas vamos ao comentarista:
Guerra e paz, volume II. L&PM. 

"Oficial do exército russo, veterano de várias batalhas, Tolstói conheceu os horrores e a irracionalidade da guerra. E todo o seu pacifismo e seu repúdio às guerras está registrado em Guerra e Paz. Tolstói é também meticuloso ao extremo no que diz respeito à verdade histórica; são absolutamente precisas as descrições das batalhas e as 'participações' de Napoleão, do tsar Alexandre I e do generalíssimo Kutuzov, comandante-geral das tropas russas. A trama ficcional se justapõe aos acontecimentos reais. A frivolidade de Ana Mikailovna, a bravura dos aristocratas André Bolkonski, Nicolau Rostov, a figura fascinante e controvertida do conde Pedro Bezukov, a apaixonante Natacha, a bela e pérfida Helena Bezukov, o ambiente de uma sociedade traumatizada pelo terror da guerra que a tudo destrói e separa os amantes - tudo está em Guerra e Paz, um livro que atravessa os séculos como um clássico humanista que, descrevendo a guerra de maneira magistral, faz a sua mais pungente e eterna condenação". O romance foi escrito entre os anos 1865 e 1869.

No volume II, a guerra dá uma trégua. É a paz de Tilsit. Lembrando que o primeiro volume termina com a vitória de Napoleão sobre a Áustria e a Rússia, na batalha de Austerlitz (1805). As relações entre Napoleão e Alexandre I chegam até a ser amistosas. Questões da diplomacia. Se a guerra está mais distante, ou se ela não ocorre porque as forças estão totalmente extenuadas em busca de recuperação, o segundo tema, o das grandes famílias ganha grande destaque. Vamos por etapas:

Na quarta parte (No primeiro volume são três partes), temos a volta dos heróis da guerra. Em primeiro lugar aparece Nicolau Rostov e o seu amigo Denissov. Mais adiante aparecerá André, da família Bolkonski, que partira para a guerra, deixando a esposa Lisa grávida. André era tido como morto, mas, de repente, ele surge, bem vivo. Boa parte do livro é destinada ao nascimento do filho e à morte de Lisa, a esposa.  O velho conde, um general, adoece gravemente e se desentende com toda a família (seria o Alzheimer?). Lautos jantares são oferecidos aos generais. Pedro, dos Bezukov se desentende com Dolokov e partem para duelo. Eles saem vivos e o caso é abafado. Pedro é muito poderoso.

Na quinta parte nos deparamos com os problemas de Pedro, um fantástico personagem, marcado pela inconstância, com picos de euforia e estados depressivos. Ele casa-se com Helena, da família Karaguine, desfaz o casamento mas volta a ela. Ela é bela e fútil. Pedro entra na maçonaria e com ela se encanta e se decepciona. Nessa parte são mostradas as deficiências do exército. Denissov assaltou o próprio exército em busca de alimentos para seus soldados famintos. O amigo Nicolau Rostov o encontra em um hospital (um lixo) e com ele acerta pedir clemência ao Imperador. É a parte do livro que é um libelo em favor da paz e uma procrastinação contra a guerra e o armamento dos exércitos.

A sexta parte é toda ela centrada em Pedro Bezukov e em André Bolkonski. Pedro continua em seus altos e baixos. Volta com Helena mas não convivem e passa a ter grandes decepções com a maçonaria. Nessa parte começa um dos pontos altos do livro, com o namoro entre André e Natasha, menina de 16 anos, de marcante beleza, pertencente à família dos Rostov. André ficara viúvo, mas não recebe o consentimento do pai para este casamento, ao menos para o momento. daqui a uma ano voltariam a conversar. Aí as coisas acontecem. Natacha se envolve com Anatole, irmão de Helena e cunhado de Pedro. Seguramente um personagem do mal.

A sétima parte é dedicada à família Rostov, em graves crises financeiras. Mas o centro das atenções será a filha Natacha. A crise financeira se resolve com a venda de patrimônio, mas a crise com Natacha só se agrava. Ela rompe com o príncipe André, por meio de carta, exatamente para se envolver com Anatole.

A oitava parte marca a continuidade. Natacha e Anatole ocupam a maior parte e a sua história certamente não terá um grande final.  André volta e continua a sua vida, não dando sinais de abatimento. O livro se encerra com Pedro procurando administrar os problemas de Natacha. Pedro se encanta com a ternura da menina, mas no horizonte passa um cometa, prenunciando os acontecimentos de 1812.

A força do livro está, obviamente, na descrição dos personagens. Pedro é hesitante. Anatole e Dolokov se definem como personagens do mal e Helena e Natacha vão configurando as famosas personagens femininas do escritor. Do livro selecionei uma passagem primorosa sobre a ociosidade no exército. Mas isso era naquele tempo! Eis a passagem:

"A tradição bíblica ensina-nos que a felicidade do primeiro homem antes da queda consistia na ausência de trabalho, isto é, na ociosidade. O gosto da ociosidade manteve-se no homem réprobo, mas a maldição divina continua a pesar sobre ele, não só por ser obrigado a ganhar o pão de cada dia com o suor do seu rosto, mas também porque a sua natureza moral o impede de encontrar satisfação na inatividade. Uma voz secreta diz ao homem que ele é culpado de se abandonar à preguiça. E, no entanto, se o homem pudesse achar um estado em que se sentisse útil e em que tivesse o sentimento de que cumpria um dever, embora inativo, nesse estado viria a encontrar uma das condições da sua felicidade primitiva. Esta condição de ociosidade imposta e não censurável é aquela em que vive toda uma classe social, a dos militares. Em tal ociosidade está e estará o principal atrativo do serviço militar" (Pág. 598).

E uma premonição, cá comigo. Nos dois próximos volumes, prestar muita atenção em Pedro, da família Bezukov e em Natacha, da família Rostov. E um adendo. A resenha do volume I. http://www.blogdopedroeloi.com.br/2020/06/guerra-e-paz-leon-tolstoi-volume-i.html

sexta-feira, 10 de julho de 2020

A cor púrpura. Alice Walker.

Um livro na lista de espera desde 2012. Não sei exatamente as razões por ter ficado tanto tempo nessa lista. Certamente não devo ter gostado das suas primeiras páginas. Estou falando de um livro famoso, A cor púrpura, da conhecida escritora dos Estado Unidos, Alice Walker. O livro está escrito sob a forma de cartas, cartas de Celie para Deus - Querido Deus, de Celie para Nettie, querida Nettie e de Nettie para Celie, querida Celie.
A cor púrpura. José Olympio. Tradução: Betúlia Machado, Maria José Silveira e Peg Bodelson.

O livro foi escrito em 1982 e já em 1983 ganhou o Prêmio Pulitzer de ficção. Chegou ao Brasil em 1986 e tenho em mãos a 9ª. edição, da José Olympio. Steven Spielberg o levou ao cinema. O cineasta se entusiasmou com o livro, como lemos na contracapa: "Eu não consegui parar de ler... Um dos melhores livros que li em anos, uma leitura de muita força, emocional". Algum exagero? Certamente.

Já que estamos nas frases, na contracapa tem mais duas: "Uma saga de alegria e dor, humor e amargura (...) e um elenco de personagens que vivem, respiram e iluminam o mundo". Publishers Weekly. E: "Personagens maravilhosos (...) Alice Walker ousa dizer verdades sobre homens e mulheres, sobre pretos e brancos, sobre Deus e amor (...) Um dos grandes livros de nosso tempo". Essence Magazine. Essas, creio, bem mais condizentes.

A narradora é Celie, sua irmã é Nettie. Sinhô (Albert) tomou Celie por esposa e afastou-a da irmã Nettie. Shug Avery era amane do Sinhô e depois também de Celie. Estão aí os principais personagens do romance. Celie é apresentada como meio semi analfabeta. Vamos a dois parágrafos da orelha do livro:

"'Querido Deus': assim começa a maior parte das cartas escritas por Celie. Negra semianalfabeta, vivendo no sul dos Estados Unidos, subjugada a um homem que ela pensa ser seu pai, forçada a viver longe dos dois filhos e com um marido a quem não ama, Celie vive entre cuidar da família e planejar uma vida diferente da sua para a irmã, Nettie.

As duas irmãs passariam trinta anos sem notícias uma da outra, Celie confiando seus pensamentos a Deus, seu único correspondente. Até que sua amizade com Shug Avery, cantora de sucesso e amante de seu marido, lhe dá outra perspectiva da vida. Em oposição à solidão, pobreza, brutalidade e violência, Celie descobre novas maneiras de sentir: beleza, conforto, desejo, amor, saudade, esperança e consciência de si".

A maioria das cartas são bem pequeninhas, duas a três páginas. Existem também as que chegam a dez. A maioria das cartas era endereçada mesmo para Deus, as outras são cartas trocadas entre as irmãs. O sinhô ocultava as cartas de Celie por desentendimentos com ela. Até que um dia, encorajada por Shug Avery, encontram e leem todas elas. Como vimos, trinta anos separaram as duas irmãs. Nettie é meio adotada por um casal de missionários e vai para a Inglaterra e de lá para a África trabalhar em missões religiosas. Nessas cartas aparece um tema forte do livro. Os males do colonialismo. A impiedade dos colonizadores brancos.

As cartas de Celie trazem os outros temas fortes da escritora. O patriarcalismo está presente na relação que se estabelece entre os personagens masculinos e femininos. Bater em mulher era uma especie de obrigação, mostra de autoridade. É uma constante de todos os homens e a resistência de apenas algumas das mulheres. Outro componente é o racismo, também fortemente expresso nas cartas, tanto de Celie quanto de Nettie. As questões financeiras são tratadas meio a margem. Não havia maiores problemas, como a fome, por exemplo. Quanto ao tempo retratado, ele retorna aos meados do século. Há uma referência de que Nettie teria morrido num navio americano, afundado pelos alemães.

A cantora Shug Avery é a personagem emancipadora do livro. Ela tem poder de fala. Dá de dedo em todos os homens e os enquadra. Ela é a professora de Celie, de quem se torna amante. Esse amor tem volta, isto é, tem reciprocidade. Acima de tudo, ela lhe ensina fazer sexo, com ela e com o sinhô, 'mexer com o butonzinho', numa referência ao clitóris. Bebida e drogas também fazem parte do cardápio. O livro é relativamente longo. São 335 páginas.

Com relação ao título, já ao final do livro encontramos a seguinte referência, quando Celie aponta para Shug, que está de volta, o seu quarto: "Bom, é aqui, eu falei, parada na porta. Tudo no meu quarto é púrpura e vermelho a num ser o chão que tá pintado de amarelo vivo. Ela foi direto ao pequeno sapo púrpura que tava na minha prateleira. O que é isso? Ela perguntou. Ah, eu falei, uma lembrança que o Albert (o sinhô) fez para mim". A essas alturas já existe afetividade e ternura na relação, uma relação que atinge também o espírito. Eram outras pessoas, seres humanos.

Uma palavrinha sobre a escritora: "Alice Walker é internacionalmente conhecida por sua participação em movimentos pelos direitos civis, principalmente das causas negra e feminina. Além de romancista premiada, é também autora de contos, ensaios, poemas e vários livros infantis. Sua obra está traduzida para mais de vinte línguas. Nascida no estado da Geórgia, Alice Walker mora na Califórnia, Estados Unidos", lemos na orelha do livro. Dela temos também.
http://www.blogdopedroeloi.com.br/2018/07/rompendo-o-silencio-alice-walker.html

terça-feira, 7 de julho de 2020

Mozart - Sociologia de um gênio. Norbert Elias.

Dando sequência às minhas leituras em tempos de pandemia, faço mais uma releitura.O livro da vez foi Mozart - Sociologia de um gênio, de Norbert Elias. O livro, como indica o título, é mais do que uma simples biografia. É uma biografia acompanhada de uma análise sociológica da época em que o artista viveu. Como certamente sabem, Mozart teve vida curta. Foram apenas 35 anos. Ele nasceu em Salzburgo em 1756 e morreu em Viena, em 1791. Lembrando que em Paris, em 1789, ocorre a famosa Revolução Francesa, mais propriamente chamada de Revolução burguesa.
Uma edição Jorge Zahar, 1995.

Essa percepção da mudança histórica e de suas consequências é a essência da análise de Norbert Elias. Mozart fora um artista de corte, atuando na corte de sua terra natal, a cidade de Salzburgo. Mas Mozart sempre quis ser um artista autônomo, um artista burguês para atuar num, digamos, livre mercado. De artista artesão queria passar para a arte de um artista. O artista era mais livre do que o artesão. Este vivia sob as ordens de um senhor, no caso, do arcebispo de Salzburgo, o conde Colloredo.

O livro de Norbert Elias está muito bem estruturado. Ele foi organizado por um estudioso de sua obra, Michael Schröter. Está dividido em duas partes: Parte I. Reflexões sociológicas sobre Mozart e a parte II. A revolta de Mozart: de Salzburgo a Viena. Na primeira parte Mozart fica sob a tutoria do pai, já músico da corte, e do arcebispo de Salzburgo, que lhe concede emprego estável. Tanto o pai quanto o filho são funcionários da corte. Tem, portanto, vida estável. A que custos, no entanto, devemos perguntar. A segunda parte mostra a ruptura tanto com o pai, quanto com o bispo.

Na primeira parte encontramos os seguintes títulos: Ele simplesmente desistiu, onde é mostrado um panorama geral de sua vida; músicos burgueses na sociedade de corte; Mozart se torna artista autônomo; arte de artesão e arte de artista; o artista no ser humano (a indissociabilidade); os anos de formação de um gênio; a juventude de Mozart - entre dois mundos sociais.

Na segunda parte temos: A revolta de Mozart: de Salzburgo a Viena; completa-se a emancipação: o casamento de Mozart; o drama da vida de Mozart; uma cronologia sob a forma de notas. Por essa cronologia, uma espécie de síntese de sua vida, vemos as diferentes fases de sua vida. A apresento, ao menos em partes. Antes, porém, quero deixar registrada uma frase bem expressiva a respeito do genial e precoce artista. Ele foi cultivado como uma planta em estufa. O pai foi para ele o professor, o empresário, o amigo, o médico, o guia de viagens e o mediador de negócios. A ruptura veio aos 25 anos. O pai projetara os êxitos de sua vida na carreira do filho. Possivelmente Mozart se antecipou ao seu tempo. Não foi capaz de efetuar a transição de um tempo passado, com o qual se defrontava. Uma geração depois, Beethoven conseguiu os êxitos do artista de "mercado".

Mas vamos à cronologia em forma de notas: 

Ato I: 27 de janeiro de 1756 - setembro de 1777. Infância e juventude de um gênio; pai e filho. O desenvolvimento de uma relação; a busca infrutífera de postos nas cortes da Europa; mudança na voz  (em Nápoles) e a pressão crescente  da dominação do pai; o singular treinamento musical de Mozart. Relações com todos os músicos conhecidos e famosos da época (Bach, Gluck, Haydn, Johann Adolf Hasse, padre Martini). Tudo isso, além do treinamento intensivo pelo pai,

Ato II. Setembro de 1777 - 8 de junho de 1781. Primeira viagem sem o pai. Começo da emancipação e suas dificuldades: consciência. O primeiro caso amoroso (conhecido): sua prima (Bäsle), a mulher vulgar para Mozart. [...] A primeira grande briga com o pai; o humor fecal de Mozart. [...] Noção cada vez maior, de seu próprio valor. Noção cada vez maior, de sua vocação como compositor, especialmente de óperas. (Tempos de grande produção). Volta a Salzburgo [...]. Rompimento com o arcebispo.

Ato III. 8 de junho de 1781 - maio de 1788. Liberação da imaginação artística, individualização do padrão. Música de corte sob uma forma única, altamente individualizada. Para mencionar apenas as óperas: 16 de julho de 1782, primeira apresentação de O rapto do serralho ("Notas demais", disse o imperador). Primeira apresentação de Die Räuber (Os salteadores), de Schiller. 1º de maio de 1786, As bodas de Fígaro; recebida com críticas. 7 de maio de 1788, Don Giovanni. Medidas de economia em Viena, devido à guerra com os turcos.

Ato IV: 1788 - 5 de dezembro de 1791. Solidão crescente, decepções cada vez maiores. Se este ato fosse representado dramaticamente, ver-se-ia Mozart de pé, no palco, enquanto as pessoas conhecidas se vão embora, uma a uma. A esposa passa a maior parte do tempo nas estações de águas, as alunas nobres/patrícias que tinha anteriormente (são citadas) foram-se todas. Aumentam as dívidas e as preocupações com dinheiro. Os concertos por subscrição que ele anuncia fracassam redondamente. Don Giovanni  é recebido com frieza em Viena, embora saudado calorosamente em Praga. Suas cartas mostram-no num estado de desespero crescente, em parte devido aos problemas financeiros, em parte devido ao seu isolamento psicológico. As razões são diversas: - rejeição pela sociedade aristocrática de corte devido ao Fígaro, que provavelmente foi tido como sedicioso. - Suas obras são cada vez mais difíceis de entender. - Compõe cada vez mais para si mesmo, seguindo o impulso de sua própria imaginação. As três grandes sinfonias e outras obras são produzidas sem patronos, como artista autônomo. Mas, na época, as instituições de um mercado livre para obras musicais mal existiam.

Mais quatro parágrafos da orelha do livro: "Mozart foi educado na tradição da música de corte, numa sociedade que considerava os músicos como trabalhadores manuais, e de quem se esperava apenas que produzissem entretenimento para uma audiência cortesã. Ao longo de sua vida, esteve constantemente em busca de trabalho, porém o único emprego que conseguiu foi o de organista na pequena corte de Salzburgo.

Ao descrever como o compositor tentou levar em Viena uma vida de músico autônomo, Norbert Elias esclarece que só na geração seguinte - a de Beethoven - é que foram criadas condições necessárias para esse gênero de atividade. Mozart fracassou, argumenta ele, porque deu um passo no sentido da independência numa sociedade que ainda não estava preparada para tal. A rejeição da aristocracia de Viena, as dívidas cada vez maiores e nenhuma perspectiva de satisfazer seus desejos mais íntimos fizeram com que Mozart morresse com o sentimento de que sua existência social naufragara e de que sua vida se tornara vazia de significado.

Como mostra o autor, 'a situação de Mozart era muito peculiar. Embora fosse socialmente dependente e subordinado à corte de aristocratas, a consciência de seu extraordinário talento musical fez com que se sentisse igual, senão superior, a eles. Era, em suma, um gênio, um ser humano excepcionalmente talentoso e criativo, nascido em uma sociedade que ainda não conhecia o conceito romântico de gênio, e cujo cânone social não previa lugar para artistas originais em seu meio'.

Em Mozart, sociologia de um gênio, Elias aplica seu enorme poder de percepção a este caso de conflito trágico entre criatividade pessoal e uma sociedade que queria controlá-la. Um livro para estudiosos e pesquisadores da sociologia, da história europeia e da história da música, bem como para qualquer pessoa interessada na vida e na obra de Mozart". Nós, no caso. Maravilhoso livro - vida sofrida.

domingo, 5 de julho de 2020

Romeu e Julieta. Shakespeare.

Esses tempos de pandemia nos trazem desassossegos, mesmo com aparente sossego total. O fato de não sair de casa, de não rever os amigos, de não satisfazer pequenos caprichos propiciam um clima um tanto depressivo. O frio também colabora. Bem, assim procuro me ocupar com coisas mais leves, como livros menores, entenda-se - não tão longos, ou então, como no caso, de releituras. Foi assim que retomei Romeu e Julieta, do mestre maior William Shakespeare.

Romeu e Julieta não é apenas uma tragédia. São várias. Não são apenas Romeu e Julieta as vítimas, há também Teobaldo, Páris e a mulher do chefe dos Montéquio. E há também a história inconclusa do bom e prestativo frei Lourenço. E uma descoberta. O plano de frei Lourenço só não deu certo em função de uma pandemia. Uma barreira sanitária impediu que os freis mensageiros pudessem seguir de Verona para Mântua e entregar a Romeu a carta com as ações finais traçadas para salvar o famoso casal. E aí, haja tragédia!  

Bem, vamos a algumas contextualizações. Shakespeare nasce em 1564 e morre em 1616. Essa tragédia foi encenada pela primeira vez em 1594, no auge do chamado teatro elizabetano. É das peças de Shakespeare em que ele mais mostra as sua habilidades. Afinal de contas, histórias e mesmo tragédias de amor não são fatos tão raros. A genialidade está então na forma de narrar. Os jovens enamorados pertenciam a famílias rivais. Romeu era Montéquio e Julieta era Capuleto. O Príncipe tinha poderes e estes já eram respeitados. Ele era obedecido. Mas o ódio era maior e, com isso, as transgressões. A peça se desenvolve através de cinco atos.

No primeiro ato são mostradas as rivalidades entre as duas famílias e as advertências do Príncipe, que puniria com a morte as transgressões. Os Capuleto dão uma festa e o atrevido Romeu comparece. Julieta tem então 14 anos incompletos. Trocam beijos e as paixões se incendeiam. São seis cenas. No segundo ato entra em cena o pátio da casa dos Capuleto, hoje um dos lugares mais famosos, e conhecidos do mundo. Romeu pulara a cerca e se posta abaixo de sua janela. As juras de amor rompem a madrugada. Romeu busca conselhos com Frei Lourenço, certamente um grande co- protagonista da tragédia. A ama de Julieta servirá de pombo-correio entre os envolvidos. Quando Julieta vai se confessar com o frei Lourenço ele os casa em cerimônia simples. São mais seis cenas.

No terceiro ato começa propriamente a tragédia. As famílias se envolvem em confusão e Teobaldo (dos Capuleto) mata Mercúrio (dos Montéquio) Romeu mata Teobaldo, o primo de Julieta. Romeu é punido com o exílio, que deverá ser cumprido em Mântua. O frei Lourenço mediará as situações favoráveis aos noivos, enquanto que, na casa dos Capuleto se trama o casamento imediato da menina com Páris, parente do Príncipe. A ama de Julieta dá uma de grande sem vergonha. Hoje diríamos, uma moral líquida, de acordo com as conveniências. São mais cinco atos.

O quarto ato tem cinco cenas e o quinto três. Não vou entregar a narrativa para não tirar o suspense. Nesses atos temos, de um lado a movimentação de Romeu e de Julieta, articuladas pelo frei Lourenço e de outro a família dos Capuleto querendo apressar o casamento com Páris, preparando uma festa que deveria ser inesquecível. Como já citei, uma barreira sanitária frustrou as comunicações e a tragédia assumiu efetivamente proporções descomunais. Julieta tivera premonições do que poderia ocorrer.

Uma dica do enredo, a retiro da contracapa da edição da L&PM Pocket: "O amor apresenta-se à vida de Romeu e Julieta de modo traiçoeiro: ambos apaixonam-se instantaneamente, em uma festa - um baile de máscaras -, desconhecendo a identidade um do outro. Ele é filho dos Montéquio, e ela, dos Capuleto, duas das mais poderosas famílias de Verona, inimigas entre si. Desobedecendo às restrições familiares e políticas, eles vivem a sua paixão explosiva e desesperançada, naquela que se tornou a mais famosa história de amor da literatura ocidental, além de uma das mais populares tragédias shakespearianas".

Aproveito para fazer dois destaques dessas partes finais. A primeira se passa em Mântua quando Romeu suborna um pobre boticário para lhe comprar o veneno, apesar da proibição. Romeu entrega-lhe o dinheiro da encomenda: "Aqui está o ouro, o pior veneno para a alma humana, o que comete mais assassinatos nesse mundo detestável - mais que esses pobres compostos que o senhor está impedido de vender. Sou eu quem estou lhe vendendo veneno; o senhor não me vendeu nenhum. Adeus. Compre comida, e acrescente carnes a esse seu esqueleto. - Venha licor estimulante. Não és veneno. Vamos até a sepultura de Julieta, pois é lá que devo te usar".

A segunda é a fala do Príncipe, depois da tragédia consumada e esclarecida com a carta de frei Lourenço: "Esta carta corrobora as palavras do frei: o andamento do amor dos dois, a notícia da morte de Julieta, e aqui ele escreve que comprou veneno de um pobre boticário, depois do que veio até a cripta, para morrer e deitar-se com Julieta. - Onde estão os inimigos? - Capuleto! - Montéquio! - Vejam que maldição recaiu sobre o ódio de vocês, que até mesmo os céus encontraram meios de matar, com amor, as vossas alegrias! E eu, por fechar meus olhos às vossas discórdias, também perdi dois de minha família. Fomos todos punidos.
No pátio, abaixo da janela de Julieta.

Por fim temos a fala dos dois chefes das famílias, expressando arrependimento e mandando construir estátuas de ouro para as pobres vítimas dessas inimizades. Eu estive em Verona. Estive no pátio, abaixo da janela, onde Romeu e Julieta trocavam as suas juras de amor. Estive com o mais famoso casal de amantes infelizes, que o gênio de Shakespeare legou à humanidade, junto com uma mensagem de paz e de entendimento. E, sem nenhuma condenação moral.

sexta-feira, 3 de julho de 2020

Como me tornei estúpido. Martin Page.

Deste livro eu guardo a origem. Ele tem uma dedicatória. "Ao grande Pedro Elói. Que você continue  com essa cabeça privilegiada. Um abraço".Júlio Hey. Me lembro perfeitamente do Júlio, um aluno do curso de Publicidade e Propaganda. Ao Júlio, um duplo agradecimento; pelo livro e pelo elogio. O livro em questão é Como me tornei estúpido, do escritor francês Martin Page. A edição francesa data de 2001 e a brasileira, pela Rocco, é de 2005. A tradução é de Carlos Nougué.
Tornar-se estúpido não foi uma tarefa tão simples. Uma vez tocado pela consciência...

O livro tem uma bela frase em epígrafe. É uma citação de O crime de lord Arthur Savile, de Oscar Wilde. "Ele lhes enviava o que eles não conheciam". Seria isso uma coisa perigosa? Creio que sim. Esse perigo está expresso também através de uma citação do livro do Eclesiastes: "Quem tem a sua ciência aumentada, este também tem aumentada a sua dor". Bastariam essas duas frase para um belo tratado sobre educação. Mas, Antoine, o jovem do título do livro, não fora prevenido dos perigos do estudo. Vejamos: "Mas, não tendo tido jamais a felicidade de frequentar o catecismo com as outras crianças, não foi prevenido dos perigos do estudo. Os cristãos tem a sorte, quando jovens, de ser postos em guarda contra os perigos da inteligência; por toda a vida saberão distanciar-se dela. Bem-aventurados os pobres de espírito".

Quem era Antoine? Na orelha do livro encontramos uma explicitação: "Antoine, o protagonista deste romance, é um rapaz como muitos outros. Não gosta de explorações colonialistas, não gosta que lhe obriguem a estudar assuntos desinteressantes, odeia burocracia e todas as suas máscaras.

Traduzir do aramaico e conhecer a fundo o cinema de Sam Peckinpah e Franz Capra, no entanto, não o levaram muito longe. Por isso um belo dia, Antoine anuncia a seus amigos mais queridos - Ganja, Charlotte, Aslee e Rodolphe - um plano perfeito. Investir na idiotice, como forma de sobrevivência.

 Depois de tentar o alcoolismo e o suicídio, Antoine está convencido de que só a estupidez lhe permitirá ser plenamente aceito pela sociedade em que vive.

E o que pode ser mais estúpido que ganhar dinheiro, muito dinheiro, e gastar em bens de consumo inúteis?

Manipulando imagens nonsense deliciosas, verdadeira homenagem a mestres do surrealismo e do humor francês, como Boris Vian, Alfred Jarry e Eric Satie, Martin Page oferece a seus leitores um banquete para a inteligência. Um livro leve, fácil de ler, enganosamente simples, e rico, repleto de minuciosas citações e piadas ao pé do ouvido. Um livro feito sob medida para todos os Antoines que existem por aí.

Os dois capítulos da resistência à idiotia são extraordinários. A tentativa de se tornar um alcoólatra ou um suicida são dois capítulos de um humor extraordinário. Ele faz cursos, com salas apropriadas à finalidade. Creio que conseguem imaginar! Já o caminho para a idiotice foi fácil e no caso de Antoine, isso foi facilitado por um amigo de infância, que se tornara empreendedor, um rico corretor de valores, que em agradecimento por tê-lo lançado nos caminhos do sucesso, o acolhe. A idiotia lhe vem junto com o dinheiro. Vida vazia, vida burguesa, vida de bens de consumo fúteis e, por óbvio, belas mulheres, carrões, roupas de marca, Nikes e McDonalds. E nenhuma preocupação ambiental. Doses de Felizac não podem faltar. Antoine, no entanto, tem resistências e recaídas.

Nessa sua nova vida plena ele sofre um sequestro. São os seus amigos de infância. O valor do livro está, obviamente, na sua ironia. O drama da existência vazia de significados e de todas as imagináveis e inimagináveis fugas possíveis e impossíveis. O drama da existência humana, narrada por um jovem antropólogo.

Na orelha da contracapa lemos sobre o autor: "Martin Page nasceu em 7 de fevereiro de 1975 e estudou antropologia. Convencido de que a escrita não exige a convivência em ambientes hostis, Martin Page tenta, até hoje, e desesperadamente, levar uma vida tranquila". Na contracapa um elogio do Le Monde: "Martin Page fez um romance coberto de razões e que revela um escritor que domina seu estilo tão bem quanto seu humor fino e sutil". Seria essa sua escrita uma sessão de psicanálise?

quarta-feira, 1 de julho de 2020

O amante detalhista. Alberto Manguel.

Devo ter comprado O amante detalhista, de Alberto Manguel numa das liquidações das Livrarias Curitiba. Conhecia Alberto Manguel pelo seu maravilhoso livro Uma história da leitura, e isso, a referência ao autor e, mais a edição pela Companhia das Letras foram os motivos que levaram à compra. O livro é de 2005 e o comprei em 2011. Como eu ainda trabalhava nesse tempo, o livro ficou na lista de espera.
O amante detalhista. O livro de Alberto Manguel, com tradução de Jorio Dauster.

O livro está dividido em duas partes, a um e a dois. São os dois momentos da história de Anatole Vasanpeine, um personagem absolutamente peculiar, cuja história é narrada em "Le cas Vasanpeine", livro de Jean-Luc Terradilhos, de setembro de 1999. A essa narrativa Manguel faz os seus acréscimos. A narrativa ocorre na cidade de Poitiers, apresentando o seu retrato ao final do século XIX e início do XX.  Vasanpeine trabalha numa casa de banhos, no único emprego de sua vida. 

A narrativa de sua formação é muito interessante. O padre desiste de lhe ensinar o catecismo, em função de que o seu aluno não consegue enxergar as obras invisíveis de Deus. O padre chega a uma conclusão. Ele não está ali para ser questionado, ele está ali para ensinar. Um belo conceito de educação e que bem mostra que Vasanpeine era alguém um tanto diferente. Não aceitava facilmente as coisas. Méritos para o nosso personagem.

Vasanpeine terá um único emprego. Trabalhar na casa de banhos, cobrando ingressos. A história dos banhos, dos hábitos de higiene e o seu crescimento após a Revolução Francesa passam a ser relatados. A história de vida do nosso personagem muda quando um japonês monta na cidade um sebo, que além de livros trabalha também com fotografia. Anatole Vasanpeine se dedicará ao ofício, mas nunca se interessou por uma fotografia do objeto por inteiro, apenas por detalhes, como as mãos ou os dedos que lhe pagavam os ingressos. Está aí O amante detalhista. Sem ser um voyeur, passa a observar os frequentadores do estabelecimento. A sua câmara vai se aperfeiçoando com a evolução da técnica. Quando o japonês morre, já adquirira todas as técnicas da fotografia. Nunca fora flagrado em seu trabalho de observações.

Na parte dois, Vasanpeine se torna um ser normal e se apaixona por um ser, que passa a perseguir e a observar por inteiro. Segue-o pela cidade, até que ele cai de um posto de observação seu, com o disparo do flash de sua máquina. As intenções de Manguel com a história são complexas. Deixo o relato dos dois parágrafos finais do texto, quando ferido pela queda, está em seu quarto laboratório.

"Foi acordado pelos latidos do cachorro. Levantou-se e olhou a fotografia na luz intensa do meio-dia. Amassado e rasgado, um dos cantos dobrado, aquele pedaço de papel lustroso não era, ele sabia agora com absoluta certeza, a imagem da criatura amada. Não era nem mesmo a imagem de uma imagem. Era uma impostura, uma falsa recordação, um espantalho sem qualquer faísca do divino, sem qualquer conotação amorosa, em nada suscetível de espelhar a paixão ou o desejo que sentira. Tratava-se de algo vazio, frouxo, incapaz até de afugentar suas sensações doentias de vergonha e ridículo.  Ele fracassara, mas não como em todas as outras vezes. Agora fracassara para sempre.

O cachorro continuava a ladrar. Da gaveta da mesinha-de-cabeceira, Vasanpeine tirou a caixa de fósforos que guardava, junto com uma vela, desde os tempos de criança, antes que instalassem a eletricidade na casa. A colcha da cama era feita de algodão e pegou fogo com facilidade. O papel lustroso demorou um pouco mais, porém logo eclodiu em vivas chamas, emitindo um cheiro acre. As fotografias no chão queimaram a seguir, depois o tapete. O quarto se encheu de fumaça. Quando o fogo o atingiu, Vasanpeine havia tombado sobre a escrivaninha, misericordiosamente já inconsciente". É, o ser humano é realmente complexo, ainda mais no imaginário dos escritores. E uma dica final, da contracapa do livro.

"Logo após a Primeira Guerra Mundial, a pacata Poitiers torna-se laboratório para os experimentos de Anatole Vasanpeine, empregado da casa de banhos local. Com zelo e malícia, Alberto Manguel reconstrói o perfil desse personagem insatisfeito com as pessoas e seus corpos, que descobre na câmara fotográfica o veículo perfeito do amor que volta às partes do corpo. Fixados na imagem, dedos, unhas, comissuras e protuberâncias convertem-se em seres autônomos, livres de seus donos. Não se trata, porém, de um voyeur ou fetichista: Vasanpeine é um 'filósofo natural', sequioso de livrar o desejo da frustração e da melancolia que assediam o ato amoroso - até que uma criatura singular, fragmentária e indivisível, venha frustrar seu empenho e devolvê-lo ao tormento erótico".