quarta-feira, 1 de julho de 2020

O amante detalhista. Alberto Manguel.

Devo ter comprado O amante detalhista, de Alberto Manguel numa das liquidações das Livrarias Curitiba. Conhecia Alberto Manguel pelo seu maravilhoso livro Uma história da leitura, e isso, a referência ao autor e, mais a edição pela Companhia das Letras foram os motivos que levaram à compra. O livro é de 2005 e o comprei em 2011. Como eu ainda trabalhava nesse tempo, o livro ficou na lista de espera.
O amante detalhista. O livro de Alberto Manguel, com tradução de Jorio Dauster.

O livro está dividido em duas partes, a um e a dois. São os dois momentos da história de Anatole Vasanpeine, um personagem absolutamente peculiar, cuja história é narrada em "Le cas Vasanpeine", livro de Jean-Luc Terradilhos, de setembro de 1999. A essa narrativa Manguel faz os seus acréscimos. A narrativa ocorre na cidade de Poitiers, apresentando o seu retrato ao final do século XIX e início do XX.  Vasanpeine trabalha numa casa de banhos, no único emprego de sua vida. 

A narrativa de sua formação é muito interessante. O padre desiste de lhe ensinar o catecismo, em função de que o seu aluno não consegue enxergar as obras invisíveis de Deus. O padre chega a uma conclusão. Ele não está ali para ser questionado, ele está ali para ensinar. Um belo conceito de educação e que bem mostra que Vasanpeine era alguém um tanto diferente. Não aceitava facilmente as coisas. Méritos para o nosso personagem.

Vasanpeine terá um único emprego. Trabalhar na casa de banhos, cobrando ingressos. A história dos banhos, dos hábitos de higiene e o seu crescimento após a Revolução Francesa passam a ser relatados. A história de vida do nosso personagem muda quando um japonês monta na cidade um sebo, que além de livros trabalha também com fotografia. Anatole Vasanpeine se dedicará ao ofício, mas nunca se interessou por uma fotografia do objeto por inteiro, apenas por detalhes, como as mãos ou os dedos que lhe pagavam os ingressos. Está aí O amante detalhista. Sem ser um voyeur, passa a observar os frequentadores do estabelecimento. A sua câmara vai se aperfeiçoando com a evolução da técnica. Quando o japonês morre, já adquirira todas as técnicas da fotografia. Nunca fora flagrado em seu trabalho de observações.

Na parte dois, Vasanpeine se torna um ser normal e se apaixona por um ser, que passa a perseguir e a observar por inteiro. Segue-o pela cidade, até que ele cai de um posto de observação seu, com o disparo do flash de sua máquina. As intenções de Manguel com a história são complexas. Deixo o relato dos dois parágrafos finais do texto, quando ferido pela queda, está em seu quarto laboratório.

"Foi acordado pelos latidos do cachorro. Levantou-se e olhou a fotografia na luz intensa do meio-dia. Amassado e rasgado, um dos cantos dobrado, aquele pedaço de papel lustroso não era, ele sabia agora com absoluta certeza, a imagem da criatura amada. Não era nem mesmo a imagem de uma imagem. Era uma impostura, uma falsa recordação, um espantalho sem qualquer faísca do divino, sem qualquer conotação amorosa, em nada suscetível de espelhar a paixão ou o desejo que sentira. Tratava-se de algo vazio, frouxo, incapaz até de afugentar suas sensações doentias de vergonha e ridículo.  Ele fracassara, mas não como em todas as outras vezes. Agora fracassara para sempre.

O cachorro continuava a ladrar. Da gaveta da mesinha-de-cabeceira, Vasanpeine tirou a caixa de fósforos que guardava, junto com uma vela, desde os tempos de criança, antes que instalassem a eletricidade na casa. A colcha da cama era feita de algodão e pegou fogo com facilidade. O papel lustroso demorou um pouco mais, porém logo eclodiu em vivas chamas, emitindo um cheiro acre. As fotografias no chão queimaram a seguir, depois o tapete. O quarto se encheu de fumaça. Quando o fogo o atingiu, Vasanpeine havia tombado sobre a escrivaninha, misericordiosamente já inconsciente". É, o ser humano é realmente complexo, ainda mais no imaginário dos escritores. E uma dica final, da contracapa do livro.

"Logo após a Primeira Guerra Mundial, a pacata Poitiers torna-se laboratório para os experimentos de Anatole Vasanpeine, empregado da casa de banhos local. Com zelo e malícia, Alberto Manguel reconstrói o perfil desse personagem insatisfeito com as pessoas e seus corpos, que descobre na câmara fotográfica o veículo perfeito do amor que volta às partes do corpo. Fixados na imagem, dedos, unhas, comissuras e protuberâncias convertem-se em seres autônomos, livres de seus donos. Não se trata, porém, de um voyeur ou fetichista: Vasanpeine é um 'filósofo natural', sequioso de livrar o desejo da frustração e da melancolia que assediam o ato amoroso - até que uma criatura singular, fragmentária e indivisível, venha frustrar seu empenho e devolvê-lo ao tormento erótico".

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