segunda-feira, 26 de outubro de 2015

Triste fim de Policarpo Quaresma. Lima Barreto.

"O 'triste' fim do major Quaresma, coroando uma triste vida, constitui o entrecho de uma novela à qual a imprensa do país não fez ainda  a devida justiça, porventura pela simples razão de ser a imprensa quem menos lê. Já lhe basta, dirá ela, ter que fornecer o que ler". Esta frase ácida foi escrita por Oliveira Lima, em 1916, em O Estado de S.Paulo. A frase dura contra os jornalistas e à crítica literária se refere ao livro de Lima Barreto Triste fim de Policarpo Quaresma. O livro fora lançado em 1915, às expensas do próprio escritor. O autor dava indícios de que alimentava grandes expectativas com relação ao livro, o que, pela crítica vista, parece que não ocorrera.
Edição da Penguin&Companhia das Letras. Introdução de Lília Schwarcz e prefácio de Oliveira Lima.

O livro é memorável e grandioso, a começar pelo seu título, que contém um nome e uma constatação.
Policarpo Quaresma e Triste fim. O triste fim será relatado no último capítulo, um capítulo de uma ternura e sensibilidade sem par. Ricardo Coração dos Outros, chega a triste constatação: "O mundo lhe parecia vazio de afeto e de amor", depois de procurar ajuda para salvar o seu amigo, o major Quaresma. Quanto ao nome, Lília Schwarcz nos diz, na introdução ao livro, que "Policarpo, segundo o dicionário, significa aquele 'que tem e produz muitos frutos'. Por outro lado, o verbo 'carpo' (de carpir, chorar, lamentar) parece introduzir [...] uma dupla referência ao título da obra. 'o triste fim'". Schwarcz também nos fala do sobrenome escolhido.
Bela introdução ao livro, feita por Lilia Schwarcz.

Neste caso, Quaresma é a referência aos quarenta dias que antecedem à Páscoa, dias de roxo, de jejum e de abstinência. Não por acaso, que Olga, a afilhada de Policarpo, em seu desespero na busca de ajuda para salvar o padrinho, brada a Deus: "Ele tinha que ir para o posto de suplício, tinha que subir o seu Calvário, sem esperança de ressurreição". No outro sentido, nos aponta Schwarcz "Quaresma é também um tipo de coqueiro, essa árvore presente na representação do Brasil desde as primeiras imagens e mapas seiscentistas". Como se vê, tudo com muito cuidado.

Com relação ao triste fim, vejamos a voz do narrador, no capítulo final. "Iria morrer, quem sabe se naquela noite mesmo? E que tinha ele feito de sua vida? Nada. Levara toda ela atrás da miragem de estudar a pátria, por amá-la e querê-la muito, no intuito de contribuir para a sua felicidade e prosperidade. Gastara a sua mocidade nisso, a sua virilidade também; [...] não brincara, não pandegara, não amara". E um pouco mais adiante: "Foi o seu isolamento, o seu esquecimento de si mesmo; e assim é que ia para a cova, sem deixar traço seu, sem um filho, sem um amor, sem um beijo mais quente, sem nenhum mesmo, e sem sequer uma asneira".
Capa em verde amarelo traduzindo o nacionalismo da obra.

O que fora então a vida deste homem de um triste fim. A história é narrada em três partes. Na primeira encontramos o major Policarpo Quaresma, um subsecretário do Arsenal de Guerra, dedicado e metódico e que morava em São Januário. Tinha uma vasta biblioteca e esta tinha uma característica bem peculiar. Só tinha livros de escritores nacionais. Vale até a pena olhar sob este aspecto da nossa historiografia. Os vizinhos se perguntavam meio incomodados, com o fato de ele ter tantos livros, se nem formado era. Os vizinhos também observavam um rapaz que vinha à sua casa com um violão, um instrumento popular. Era o Ricardo Coração dos Outros.

O major Quaresma, como era popularmente chamado, era um patriota e só gostava das coisas nacionais. Assim pesquisava o nosso folclore para contrapô-lo aos costumes importados da Europa e chegou ao cúmulo de enviar uma petição para a Câmara, para que fosse feita uma emenda à Constituição, que declarasse a língua Tupi Guarani como a língua nacional, em substituição à língua portuguesa. Depois deste hilário fato, o major Quaresma é internado e um antigo vizinho seu, imigrante italiano e compadre, que tendo alcançado a prosperidade, já morava em Botafogo, mas que lhe dedica grande afeição e que vai cuidar de sua aposentadoria. O compadrio se dá em virtude de Olga, filha do próspero Vicente Coleoni, ser afilhada do major, numa relação inversa dos apadrinhamentos no geral. A afilhada mantém com o padrinho uma relação muito afetuosa.
Capa com enfoque na cidade do Rio de Janeiro, no início do século. Houve uma grande reforma urbana que empurrou a população pobre para os subúrbios.

Na segunda parte do livro, o major Quaresma já curado da loucura, mora num sítio onde se dedica à agricultura. Aí o seu patriotismo continua mas ocorre a troca de livros. Estuda os nossos produtos agrícolas e as técnicas de seu cultivo, sem a necessidade de adubo, em virtude da natural fertilidade de nossos solos. As formigas são um caso à parte. Com muita dedicação coloca a sua produção no mercado, em negócios que não rendem quase nada. Por sua neutralidade na política local, recebe incômodos por parte das autoridades locais. Neste período elabora um memorial, que pessoalmente entregará ao presidente da República, oferecendo as contribuições de seus estudos para a redenção da agricultura brasileira.
Oliveira Lima apresenta o prefácio da edição da Penguin&Companhia das Letras.


Neste período é movido por novos ideais. A República recém formada tem dificuldades de manter a ordem. O marechal Floriano Peixoto assume o poder e sofre a Revolta da Armada, que ameaça a serenidade da República. Se alista no batalhão de voluntários e participa ativamente dos tiroteios contra os marinheiros rebelados. Ele e também o seu amigo Ricardo Coração dos Outros. A difícil vitória vem. Mas aí vem também o contratempo final a que alude o título da obra. O triste fim.

Depois da vitória o Marechal Floriano instituiu o arbítrio, a ditadura. Ele vê e denuncia injustiças, em carta mandada ao presidente. É preso e, como ocorre em situações sob o arbítrio, não sabe do seu destino. O amigo Ricardo Coração dos Outros se mobiliza em sua defesa. Procura todos os amigos influentes e de todos recebe a resposta de que não se metem nesses assuntos. Finalmente lembra de procurar a doce afilhada do major. Esta, mesmo sob censura do marido, sai em defesa do padrinho, procurando o marechal presidente. É nessa hora que ela clama que o mundo lhe parecia vazio de afeto e amor. Como dá para perceber o livro se constitui numa pesada crítica ao marechal Floriano Peixoto e as críticas também são estendidas ao positivismo, a doutrina que ele e tantos outros homens do poder professavam. Também merece atenção especial a visão que Lima Barreto apresenta sobre o casamento, com atenção especial para a inteligente Olga e para  a infeliz Ismênia, que morre, vestida de noiva, à espera do ou de um noivo.
O escritor Lima Barreto, sempre autobiográfico.

Quando li Recordações do Escrivão Isaías Caminha deparei com uma elogiosa comparação de Lima Barreto com Émile Zola e o seu Germinal. As Recordações do Isaías Caminha seria o Germinal brasileiro. Agora, lendo O triste fim de Policarpo Quaresma vi uma comparação mais elogiosa ainda, comparando Lima Barreto com Miguel de Cervantes. Assim O Triste fim de Policarpo Quaresma seria o D. Quixote brasileiro. Olha o nível. Um escritor realmente maravilhoso. Tentou a Academia Brasileira de Letras, por três vezes. Numa, desistiu e nas outras duas, não foi acolhido, certamente por falta de mérito.Ah! Essa meritocracia!



segunda-feira, 19 de outubro de 2015

Recordações do Escrivão Isaías Caminha. Lima Barreto.

Inúmeras vezes já contei sobre a fragilidade da minha formação. Muita declinação e pouca literatura. Com o tempo procurei sanar algumas deficiências por conta própria, mas confesso que nunca tinha chegado ao Lima Barreto. Quando ele já figurava nas minhas leituras próximas, a leitura de Brasil: uma biografia, o fez saltar nas minhas preferências. Lilia Schwarcz e Heloísa Starling abrem a introdução ao livro, citando Lima Barreto.
Uma boa edição. Ótima introdução à obra e ao autor.

O meu livro de abertura foi Recordações do Escrivão Isaías Caminha. Não sei do que gostei mais. Se foi do romance ou se foi a biografia do autor, afinal de contas eles se confundem. Vi que Lima Barreto só não foi considerado um escritor maior, por ser autobiográfico demais. Mas vamos, minimamente situá-lo. Ele nasceu no Rio de Janeiro em 1881 e morreu na mesma cidade em 1922. Uma vida curta de 41 anos, de vida intensa e grande produção jornalística e literária. Muita cachaça e muito desgosto o acompanharam.

Recentemente participei de uma semana de estudos de história na Faculdade de Filosofia de Mandaguari. Muitas das palestras faziam uma ligação entre a literatura e a história, o que é muito bom. Lembrei muito do evento, ao ler Lima Barreto. Três importantes pontos mereceriam um destaque maior. A vida dos escravos libertos, a instabilidade política dos primeiros anos da República e, em primeiríssimo plano, uma pormenorizada descrição do comportamento da imprensa nesse período.
Uma das edições das Recordações. O foco de capa na imprensa, com o jornal O Globo.


Com relação à escravidão ele (Isaías Caminha) conta como foi a sua recepção da notícia da abolição, pela voz de sua professora. Do entusiasmo inicial seguiu-se profunda decepção pelas dificuldades que a vida real impunham a um menino mulato. Nascera com um pecado original.  O menino era um verdadeiro prodígio. Procurava expiar o seu pecado com muita dedicação e estudo. Recebeu muitos elogios de sua professora e, de presente, um livro de autoajuda, Poder da vontade, que, ao menos em seus primeiros anos, se transformou na sua bíblia. O seu entusiasmo consigo próprio o fez buscar um destino maior no Rio de Janeiro. A cada desânimo se tonificava com o poderoso livro.

Já no caminho para o Rio, as decepções começam. Na viagem foi destratado, enquanto que um menino branquinho era coberto de atenções. Ainda no interior, às vezes, antevia o seu futuro. "Ladrão, bêbado, tísico", a exemplo de tantos. Foi ao Rio com recomendação. Procurar o deputado Castro para receber as necessárias ajudas. Em sua busca descobre os meandros da política. Só decepções. De Castro, nenhuma ajuda. Fora procurá-lo no Parlamento, mas só o encontrou em casa da amante.
O Rio de Janeiro dos tempos de Lima Barreto. O Morro do Castelo que foi removido.


Na visita à Câmara ele foi com entusiasmo. Recordava dos grandes nomes gregos que fundaram a democracia e o mundo das leis. Agora imaginava encontrar os seus sucessores na linha do tempo. A sua boa e ingênua formação os fazia cobertos de respeito. Este foi imediatamente perdido, já na primeira ida à Câmara. Uns discursavam feito loucos, enquanto outros conversavam em grupos, não dando a menor atenção aos oradores. Assim é que se faziam as leis que regiam a República.

No Rio ficou hospedado num hotel de fama duvidosa. O seu dinheiro não permitia coisa melhor. A partir dele fazia as sua incursões pela cidade. A sua formação lhe deu conversa agradável, o que o fez ficar amigo de alguns jornalistas, mas emprego que era bom, nada. Fez alguns bicos como uma espécie de secretário, até que chegou o primeiro emprego como contínuo de um jornal, O Globo, mas diz a nota de rodapé, que se tratava do Correio da Manhã. Mostrou-se eficiente e um dia, um dos jornalistas, o Floc se suicidou. Coube a Isaías encontrar o Loberant, o dono do jornal, para lhe transmitir a notícia. Ele estava na casa de Rosalina. Isso lhe valeu confiança, amizade, dinheiro e o cargo de redator, no lugar do morto.
Lima Barreto. Erudito, mulato e pobre. O nacionalismo virá com o Policarpo.


A maior riqueza do livro, seguramente reside nessa parte da descrição dos jornais, de seus donos e dos jornalistas de sua época. Os observa e os descreve a partir de vários momentos. O seu convívio com os jornalistas, enquanto menino desempregado, como contínuo e depois redator de um grande jornal. Enquanto trabalhava neste jornal, simultaneamente, escrevia um diário e também, as suas recordações, as recordações de Isaías Caminha. É agudo crítico com relação a má formação dos jornalistas, ao seu orgulho intelectual e a sua visão de supremacia na condução dos destinos do país, mesmo sendo absolutamente ignorantes. Vejam esta descrição, em que ele compara os jornalistas com piratas.

"Nada há tão parecido com o pirata antigo e o jornalista moderno: a mesma fraqueza de meios, servida por uma coragem de salteador; conhecimentos elementares do instrumento de que lançam mão e um olhar seguro, uma adivinhação, um faro para achar a presa e uma insensibilidade, uma ausência de senso moral a toda a prova... E assim dominam tudo, aterram, fazem que todas as manifestações de nossa vida coletiva dependam do assentimento e da sua aprovação... Todos nós temos que nos submeter a eles, adulá-los, chamá-los gênios, embora intimamente os sintamos ignorantes, parvos, imorais e bestas..." E olha, que esse trecho ainda é suave.
Na cor da pele, o seu pecado original.


Em suma, o livro é uma retrospectiva de um romancista, mas que talvez, mais apropriadamente, mereceria o título de memorialista. São 14 capítulos em que ele faz o resgate de sua infância e das  perambulações que um menino pobre e mulato fez pelas ruas do Rio de Janeiro. De um menino que faz um esforço inaudito para superar as suas condições, carregando consigo, a pena, a expiação de sua situação marcada pelo pecado original de sua cor A sua grande formação, que passara pelos grandes clássicos, tanto da filosofia, quanto da literatura, o tornaram um observador e um crítico extremamente agudo. Em outro post vou destacar a fina ironia com que via os escravos libertos da escravidão e a lei da gravidade social que lhes pesava nos ombros, vivendo numa sociedade absolutamente competitiva que lhe negava os meios e as oportunidades. Outro será o livrinho Poder da vontade, uma fina ironia aos livros de autoajuda.
A preocupação com a escrita. Lima Barreto escreveu para ser lido.


A edição que eu li é da Penguin&Companhia das Letras. Tem uma introdução primorosa de Alfredo Bosi e um prefácio de Francisco de Assis Barbosa, que é o seu maior biógrafo e ainda uma apresentação de Isabel Lustosa que situa o escritor em seu tempo. Ao final do livro, encontramos uma cronologia dos principais acontecimentos de sua época. Vou continuar lendo Lima Barreto. Já tenho mais dois volumes em mãos: Clara dos Anjos e Triste fim de Policarpo Quaresma.

Lilia Schwarcz, na introdução ao Triste fim de Policarpo Quaresma, assim fala da repercussão das Recordações. "Recordações do escrivão Isaías Caminha (1909), que lhe conferiu certa notoriedade, mas lhe custou caro, por causa das críticas ao racismo velado vigente no Brasil e, sobretudo, por causa das denúncias ao lobby da imprensa: segundo ele, o quarto poder da República".

O Encouraçado Potemkin e o Golpe Militar de 1964.

Lendo o livro Brasil: uma biografia, das historiadoras Lília M. Schwarcz e Heloisa M. Starling, me deparei novamente com os acontecimentos que precipitaram para o golpe militar de 31 de março, ou primeiro de abril de 1964. Me lembrei especificamente do dia 25 de março, quando os marinheiros receberam voz de prisão do Ministro da Marinha, Sílvio Mota. Esta voz de prisão confrontava com a vontade do presidente Jango, que em viagem de descanso para São Borja na semana santa, ordenou ao seu ministro da justiça, Abelardo Jurema, para contornar qualquer problema que surgisse.
Um livro maravilhoso. Do descobrimento ou invasão, até o governo Collor.

Esse episódio me lembrou do filme de Eisenstein, O Encouraçado Potenkim. Aproveitei o momento para revê-lo. Daí lembrei da bela biografia de Jango, - João Goulart, uma biografia, de Jorge Ferreira, para rever os acontecimentos em maior profundidade. Me lembrava que os marinheiros amotinados assistiam ao filme e que ele era constantemente interrompido para ouvirem explicações e estabelecer paralelos entre a vida dos marinheiros, no porto de Odessa de 1905, com as dificuldades que eles viviam no presente. A revolta no Encouraçado teve origem na má qualidade da comida, onde a carne estava infestada de vermes.
O filme de Eisestein. O Encouraçado Potemkin.

O encontro do dia 25 de março era para marcar o aniversário de dois anos da criação da Associação de Marinheiros e Fuzileiros Navais do Brasil (ANFEB). A entidade, contam as historiadoras, "tinha viés sindical e fora criada com o objetivo de conseguir melhores condições de trabalho para o pessoal da Marinha de Guerra que sobrevivia com salários baixos, péssima alimentação nos navios e regulamentos absurdos". Entre os absurdos estava a proibição de casamento e a de não saírem para a rua em trajes civis. E para complicar ainda mais, convidaram João Cândido, o líder remanescente da Revolta da Chibata, de 1910, que ocorrera em consequência da aplicação de castigos físicos aos marinheiros que não se enquadravam à disciplina naqueles idos tempos. João Cândido era o convidado de honra.

Evidentemente que a presença de João Cândido tinha um caráter profundamente simbólico. O Ministro da Marinha já havia conseguido remover o encontro, que aconteceria na sede da Petrobras, em contatos como o seu presidente General Osvino Ferreira Alves, para a sede do Sindicato dos Metalúrgicos. Jorge Ferreira assim narra o desenrolar dos acontecimentos: "O ministro da marinha, então, enviou uma tropa de 500 fuzileiros navais, apoiados por 13 tanques, para invadir o prédio do sindicato e de lá retirar os marinheiros, vivos ou mortos". Ferreira continua relatando os fatos, nos contando que houve sublevação e que parte da tropa de choque se recusou em atacar, indo ao encontro dos marinheiros rebelados. Em protesto o ministro renunciou ao seu cargo.
Uma bela biografia de um presidente muito querido pelo povo.

Muitas negociações foram entabuladas e os marinheiros foram libertados. Se dirigiram então ao Ministério da Guerra para provocações. Ao final foram anistiados e o Ministro da Marinha demitido. As principais reivindicações foram atendidas. O fato foi visto como quebra da hierarquia militar e o presidente Jango foi perdendo o seu prestígio junto às Forças Armadas, mesmo entre aquelas que continuavam legalistas.

Logo a seguir, outro fato, que também apontava para a quebra da hierarquia entre as Forças Armadas apressou a deflagração do golpe. Para a noite do dia 30 de março estava marcado o jantar de posse da nova diretoria da Associação dos Sargentos. Jango compareceu à festa e discursou. Jango comparecera a uma festa organizada por subalternos das Forças Armadas. Mais uma vez a hierarquia militar fora quebrada. E os acontecimentos se precipitaram. Logo amanheceu o dia primeiro de abril. Mas os golpistas, certamente por não terem visto o dia amanhecer, envolvidos em conspirações e traições, confundiram o raiar do novo dia com o final da noite anterior, a noite do dia 31 de março. Apenas para lembrar, o dia primeiro de abril é o dia consagrado à mentira.

Certamente que Eisenstein cumpriu com a função pedagógica que julgava que o cinema tivesse. Ele provocou a revolta entre os subalternos da marinheiros brasileiros e lhes provocou os ímpetos revolucionários. Só que neste caso, as forças reacionárias falaram mais alto e contiveram os ânimos com um terrível golpe, de triste memória.

sexta-feira, 16 de outubro de 2015

O Encouraçado Potemkin. Sergei Eisenstein.

"No entanto, a proposta de Eisenstein era constituir, seguindo o estímulo de Lênin, um cinema pedagógico, ou seja, fácil de ser absorvido por todo mundo, do intelectual ao proletário, do habitante da metrópole ao camponês, do soviético ao brasileiro. E que fosse, nesse sentido, um instrumento de formação, apropriado para arrancar o homem do estado de ignorância e subserviência", escreve Cássio Starling Carlos, numa das apresentações do filme, na coleção Folha de cine europeu.

Eisenstein, no entanto, fez muito mais do que isso. Fez um clássico, que foi duplamente marcado, tanto pelo seu caráter de formação para a ideologia revolucionária, quanto para a construção das técnicas do cinema. O filme é de 1925 e se reporta ao ano de 1905. Se passa na cidade de Odessa,  hoje Ucrânia, nas costas do Mar Negro. No ano de 1905 Odessa pertencia ao império russo sob o regime czarista, um dos mais violentos da história. As duras repressões conduziram à revolução bolchevique de 1917 e ao regime que viria a se chamar de socialismo real.
O clássico de Eisenstein, da minha coleção cine europeu da Folha de S.Paulo.

Embora Eisenstein pertencesse a uma família de posses e favorável ao czarismo, ele próprio aderiu aos ideais revolucionários e colocou a arte do cinema a serviço da revolução e o fez de forma magistral. Isso, no entanto, dentro das muitas idiossincrasias do sistema, não lhe garantiu vida fácil. Ele jamais permitiu que a sua arte fosse apenas porta voz ou correia de transmissão do sistema. E muito menos o sistema deu vida fácil aos artistas. Logo depois de Lênin, já sob o comando de Stálin, os artistas foram enquadrados. Muitos não resistiram. Mas isso tudo é uma longa história.

O filme de Eisenstein é dividido em cinco partes: Na primeira, -os homens e as larvas-, são mostradas as cenas de maus tratos a que os marinheiros eram submetidos, com destaque para a má alimentação. Eram tratados com carne podre, na qual as larvas ou os vermes germinavam. Vakulinchuk desponta como o líder dos marinheiros revoltosos; No segundo episódio é apresentado o -drama no convés-, no qual ocorre a rebelião no navio, na qual o líder é morto.

No terceiro episódio, -o morto brada por justiça-, o encouraçado chega ao porto com o corpo do líder morto.  Quando o povo sabe da notícia da morte de Vakulinchuk, toda ela se rebela e a pregação revolucionária se multiplica com a conclamação de todos os oprimidos da Rússia. As cenas de solidariedade falam muito alto. Mas o quarto episódio, -a escadaria de Odessa-, é o mais famoso. É ali que ocorre a repressão por um violento massacre. As cenas crescem em intensidade dramática, com mulheres, deficientes e crianças sendo vítimas da fúria indomada de bem treinados e obedientes soldados. Diante desse horror, o povo recebe a solidariedade e o apoio do encouraçado, que bombardeia o teatro da cidade, onde os seus dirigentes estavam reunidos.


No quinto e último episódio, -o encontro com a esquadra-, o encouraçado se prepara para o combate, com a esquadra mas, quando tudo está preparado para o enfrentamento, eles lançam a voz para a união e o congraçamento entre todos os irmãos e são atendidos em seu pedido. É a vitória da revolução, que conclamou, contra a opressão, a luta pela emancipação. Historicamente, sabemos que essa vitória só veio em 1917, não pela emancipação das consciências de todo um povo, mas pelas armas de uma elite condutora de um povo. Coisas bem complicadas.

Mas o filme se tornou um clássico, tanto pelo seu conteúdo, quanto pela sua forma. Ele inovou, na fotografia, na montagem das imagens e na utilização da música. Os seus filmes tem uma dramaticidade incomparável. Mas recorro ao crítico de cinema, Paulo Emílio Sales Gomes, que eu tanto admiro, para dar a palavra final sobre o filme:


"Não é preciso ser comunista, socialista ou anarquista para se apreciar 'Potemkin'. Também é desnecessário conhecer o episódio da rebelião na Marinha russa durante os acontecimentos revolucionários de 1905. Basta ao espectador a mediana e generalizada capacidade de se insurgir contra a injustiça. Em suma, a cultura não é condição indispensável para se gostar do filme. A não ser as obras de Chaplin, não conheço outra grande obra de arte cinematográfica que, como 'Potemkin', exija tão pouco do espectador e ao mesmo tempo lhe dê tanto".

Em outro post vou relatar a importância que este filme teve na história brasileira, especialmente, sobre a sua Marinha, nas vésperas do golpe militar de 1964, que instaurou uma das mais longas e cruéis ditaduras nesse país.


quarta-feira, 14 de outubro de 2015

Brasil: uma biografia. Lília M. Schwarcz e Heloísa M. Starling.

São 694 páginas. Destas, 508 formam o texto. As restantes páginas são dedicadas a notas (53), indicando a origem e as fontes utilizadas ou explicitações, outras (mais 35) são dedicadas às referências bibliográficas e outras 53 à cronologia, com uma coluna dedicada aos fatos ocorridos no Brasil e em Portugal e a outra para os acontecimentos mundiais. Acompanham ainda em torno de 60 páginas, estas não numeradas, de fotografias com detalhadas explicitações. Além da introdução e conclusão, o corpo do livro é formado por 18 capítulos, começando pelo descobrimento, ou invasão e terminando com o governo Collor. Este é o livro BRASIL: uma biografia, das historiadoras Lilia M. Schwarcz (USP) e Heloísa M. Starling (UFMG).
O maravilhoso livro Brasil: uma biografia. Denso, com conteúdo.

"Nenhum homem nesta terra é repúblico, nem zela, ou trata do bem comum, senão cada um do bem particular". A frase data de 1630 e é uma citação de Frei Vicente do Salvador, frade franciscano, em seu livro História do Brazil. Talvez esta frase, que faz parte da apresentação do livro, seja uma bela síntese de toda a nossa história.

 Por que, no título, aparece a opção por uma biografia e não uma história geral dos brasileiros? Esta é uma pergunta que as autoras fazem na apresentação do livro e, respondem "Para se concentrar na ideia de que a biografia talvez seja outro bom caminho para tentar compreender o Brasil em perspectiva histórica: conhecer os muitos eventos que afetaram  nossas vidas, e de tal modo, que continuam presentes na agenda atual". E continuam:
Cartaz de lançamento do livro, na Livraria Cultura. Autoras prestigiadas.

"Uma biografia é a evidência mais elementar da profunda conexão entre as esferas pública e privada: somente quando estão articuladas, essas esferas conseguem compor o tecido de uma vida, tornando-a real para sempre. Escrever sobre a vida do nosso país implica questionar os episódios que formam sua trajetória no tempo e ouvir o que eles têm a dizer sobre as coisas públicas, sobre o mundo e o Brasil em que vivemos - para compreendermos os brasileiros que somos e o que deveríamos ou poderíamos ter sido". O foco do livro está na construção da cidadania ou, lamentavelmente, na maior parte do tempo, na sua não construção.

A introdução começa com uma citação de Lima Barreto, em que ele, menino negro e pobre, descreve o relato da abolição, feito por sua professora, passando para os leitores a sua percepção de menino. É óbvio que houve frustração. A corrupção e a violência estão inscritas na história deste país. A corrupção pela indistinção entre o privado e o público, com o uso do público em favor do privado, e atestado, desde as suas mais remotas origens, na expressão "quem rouba pouco é ladrão e quem rouba muito é barão". Já a violência sempre foi praticada, tanto pela escravidão, quanto pelo extermínio das populações nativas. A escravidão foi abolida, mas continuou como prática e o extermínio dos indígenas continuava na mesma proporção em que se expandiam as nossas fronteiras agrícolas.
As autoras do livro. Lilia M. Schwarcz e Heloisa Starling.

As autoras usam ainda duas expressões, as de bovinismo (Madame Bovary) e familismo para marcar as nossas marcas mais características. O nosso "cordial" sempre foi avesso às racionalizações da modernidade. A nossa biografia já é longa e, ao mesmo tempo, recente. São 18 capítulos que fluem. Para mim, me chamou muita atenção a constante presença do trabalho da idealização do imaginário. Como se foram construindo símbolos agregadores e unificadores e como isso resultou na formação de uma cultura tipicamente brasileira. Lembraria Jorge Amado, em Tenda dos milagres e o seu fabuloso personagem Pedro Archanjo, um dos meus favoritos: "e há de nascer, de crescer e de se misturar".
Uma das imagens do livro. Feitor castigando escravo.


Não vou entrar na análise dos capítulos, que não caberiam num post, e dou uma rápida pincelada na conclusão, em que os principais momentos de nossa história são retomados. As autoras mostram as dificuldades na construção dos direitos ligados à cidadania e constatam, que ainda patinamos nos direitos civis,  exatamente por onde a história dos direitos começou. Temos dificuldades em lidar com as chamadas liberdades individuais, como nos atestam as reações na luta pelos direitos dos negros, das feministas, ambientalistas, grupos LGBT, entre outros. Quanto aos direitos políticos vivemos numa democracia formal relativamente estável, a partir da Constituição de 1988 e são registrados os enormes avanços sociais ocorridos nos governos do Partido dos Trabalhadores.
Outra imagem do livro. O petróleo vinculado com a independência do Brasil.


Mas, continuam as grandes questões abertas: a corrupção, a prática da tortura no cotidiano policial, a enorme violência urbana e a dúvida diante da possibilidade de um crescimento sustentável. Lembrando que vivemos o mais longo período de estabilidade democrática em nosso país e que ameaças golpistas rondam os nossos ares, quase que permanentemente (Não teria o STF desarticulado um golpe por estes dias?). Um livro maravilhoso. Se nossas autoridades estivessem efetivamente comprometidas com a qualidade do ensino, este seria um livro a ser largamente distribuído e estudado entre os professores de história e de toda a chamada área das disciplinas ligadas às humanidades. É o estudo da formação da nossa identidade.

quarta-feira, 7 de outubro de 2015

Metrópolis. Fritz Lang.

Adoro frases sob a forma de epígrafes. As uso em ensaios e em falas. Elas devem ser fortes e se constituírem numa espécie de síntese do que é estudado, trabalhado ou apresentado. Nunca vi frases em epígrafe sendo usadas no cinema. Mas em Metropolis, ela é usada e, ao ver o filme, me deparei com a palavra Sinnspruch, epígrafe em alemão. Sinn tem o significado de sentido, de símbolo e Spruch, de sentença, de lema, slogan, ou ainda, aforismo. Juntando as duas palavras, teríamos então o significado de - uma palavra com sentido, como um símbolo, uma sentença. Mas vamos à Sinnspruch de Metropolis: "O mediador entre a cabeça e as mãos deve ser o coração".
Metropolis, da coleção Folha de S.Paulo - Cine europeu.

Metropolis, o filme de Fritz Lang, é de 1927, nos limites entre o cinema mudo e o falado. Ele ainda pertence ao cinema mudo. A exigência de criatividade é muito grande e Lang não o fez por menos. Produziu um clássico atemporal. Misturou expressionismo, ficção científica e, pasmem, romantismo. Metrópolis é marco do cinema, pelas coisas próprias ao cinema, bem como pelo seu conteúdo. O filme também é marcado pelo flagrar de contradições, de realidades opostas, das quais emana a dúvida e o conflito. Em meio a estas contradições existe espaço, inclusive, para o amor.
O triste retrato do sofrimento dos trabalhadores.


O filme também tem toda uma história, para se chegar a atual versão. Muito do que havia se perdido foi novamente incorporado, depois do encontrado em Buenos Aires. O filme se ocupa de três temas fundamentais: ciência, religião e trabalho. Diria que o tema central são as relações de trabalho, que deveriam ser mediadas pelo coração, mas não o são. A religião entra com o espírito do messianismo, à espera de um mediador, com os sete pecados capitais e a morte e a ciência ocupa o seu espaço com as experiências para se chegar ao homem máquina, à clonagem de Maria. A antevisão do robot.
Rotwang representa a ciência. O robot e a clonagem. Maria sendo clonada.


Metropolis é a cidade. Ela é comandada por Joh Fredersen, um industrial ou um deus quase onipotente. A cidade é mostrada em sua dualidade contraditória. O mundo das mãos, do fazer e o mundo da cabeça, do pensar. O mundo do fazer, o dos trabalhadores é o mundo das profundezas, dos sofrimentos do trabalho pesado e repetitivo, realizado em ambientes profundamente depressivos. Os homens são dominados pela máquina, o deus Moloch, um deus conhecido por sua cólera, que só é aplacada com sacrifícios humanos, especialmente de crianças.
Fritz Lang (1890-1976). A inventividade e a destrutividade do século XX.


Já o mundo do pensar, fica acima e é chamado o "clube dos filhos", que lhes é dado como herança, um jardim eterno de delícias e entretimentos a serem usufruídos, especialmente por Freder, o filho de Joh Fredersen. Neste mundo tem anfiteatros, bibliotecas, teatros e estádios. Os controles sobre o mundo do trabalho são rigorosos e acompanhados por painéis que permitem o acompanhamento de tudo. É o panóptico de Bentham. As cenas dos homens lidando com as máquinas lembram muito um outro filme com o mesmo tema, Tempos Modernos de Charles Chaplin. Mas se alguém se inspirou em alguém, foi Chaplin que se inspirou em Lang, pois o seu filme é de 1936.

O enredo começa com o namoro de Freder com Maria, em meio a seus entretimentos. Maria é operária e uma espécie de, diríamos hoje, sindicalista. Uma "agitadora" entre os operários. O namoro se transforma em paixão e, ao penetrar no mundo de Maria, vislumbra o sofrimento de seus "irmãos"do mundo do trabalho. Ele flagra as contradições. Intercede por eles junto pai, que se mostra inclemente e passa a tomar suas providências. Encomenda a Rotwang, o cientista inventor, um clone de Maria, para afastar o filho da verdadeira Maria, que ficaria presa na casa do cientista.
Cartaz de Metropolis. Foco na ciência.


Maria, diante das injustiças sofridas, sob a admiração dos trabalhadores, lidera uma rebelião. Joh Fredersen parte para a contraofensiva, através de Grot, o guardião da máquina coração. De heroína, Maria, em pouco tempo, se transforma em  em bruxa horrível e que será levada à fogueira pelos próprios trabalhadores. Mas a verdadeira Maria aparece na casa de Rotwang, o cientista, e que com a ajuda de Freder, é libertada. Ocorre então o gran finale, com a cena romântica da reconciliação de todos e com a frase da epígrafe: "O mediador entre a cabeça e as mãos deve ser o coração". 
O final romântico e conciliador. O mediador entre a cabeça e as mãos deve ser o coração.


Uma das cenas mais comentadas do filme é o show de Maria, a clonada, para entreter os operários. Esta cena inspira até hoje cantoras mais populares que reproduzem o seu show. Este é o Fritz Lang futurista. O roteiro do filme é uma parceria com a escritora e roteirista Thea von Harbou, que foi também esposa de Lang, que posteriormente aderiu ao nazismo. Digo isso, especialmente, em função da ideologia presente no filme. Mas tudo indica que o filme não visava ter esse caráter, de formação da consciência de classe. Vejamos o comentário de Paulo Emílio Sales Gomes, o grande crítico de cinema no Brasil e um marxista convicto, a respeito desta questão:
O show futurista da clonada Maria. O show continua sendo clonado ainda hoje.


"Deve-se a confusão, às vezes ridícula, da mensagem moral incluída em Metropolis à total falta de preparo intelectual de Lang para o empreendimento em que se arriscou. Há uma desproporção caricata entre seu rigoroso gênio plástico e a inconsequência do seu pensamento. Mas é possível que precisamente a debilidade ideológica do autor, facilitando a recepção de ideias e sentimentos que lhe eram exteriores, tenha dado à fita a faculdade de refletir a atmosfera ambígua de uma sociedade nos anos que precederam uma escolha grave para o seu destino". Lembrem, o filme data do ano de 1927, um dos anos que antecederam a ebulição do nazismo na Alemanha.




segunda-feira, 5 de outubro de 2015

O Ovo da serpente. Ingmar Bergman.

"E, portanto, pensar nele como um ovo de serpente, que incubado, deverá, em sua espécie crescer travesso; E matá-lo na casca". Esta é uma fala de Brutus, na peça Júlio César, de Shakespeare. Pois foi esta frase que inspirou Ingmar Bergman a realizar O ovo da serpente, um filme de 1977 e que retrata a perda da fé no presente e, muito mais ainda no futuro, no ano de 1923, na cidade de Berlim, em plena República de Weimar. O filme mostra a semana de 3 a 11 de outubro, exatamente, a semana em que alguém que prometia um futuro, fracassa em seu Putsch, na cidade de Munique.



O filme é muito rico, especialmente em seus minutos finais, quando o Dr. Hans Vergerus revela o teor e o sentido das pesquisas realizadas na clínica psiquiátrica Santa Anna, para Abel Rosenberg, o desencontrado trapezista americano judeu, abalado com o suicídio de seu irmão. "Algum dia poderá dizer isto a quem quer que lhe dê ouvidos. Ninguém vai acreditar em você. Apesar de que qualquer um que fizer um mínimo esforço, pode ver o que lhe espera no futuro. É como um ovo de serpente através da fina membrana, se pode distinguir um réptil já formado".

Embora o filme marque uma volta ao passado o seu tom é profundamente simbólico e aponta para o futuro. Depois de 1923 muitos outros ovos de serpente puderam ser vistos com toda a clareza, mas se fazia e, ainda continua se fazendo, um esforço enorme para não enxergar o prenúncio do mal, com o réptil já formado. Poderosos interesses poderiam ser contrariados.


O filme começa com uma música bem conhecida dos alemães e seus descendentes. A cantarolei junto: schoen ist di Jugendzeit, sie kommt, sie kommt nicht mehr. Um lamento da perda dos tempos da juventude, de tempos que não voltam mais. Com esta música ao fundo começa o enredo. É o  momento em que entra em cena Abel Rosenberg, que fica sabendo do suicídio de seu irmão Max. Os dois eram trapezistas famosos, americanos de origem judaica.Um detalhe importante, marca de uma época anti judaica. Max era casado com Manuella, uma cantora de cabaré. Abel e Manuella enfrentam os difíceis tempos de uma Alemanha pós guerra, que vivia uma espécie de depressão coletiva, oriunda da perda de possibilidades futuras, à espera de um "salvador", ou de um Füher condutor.

A Alemanha vivia então a República de Weimar, uma experiência democrática memorável. Mas, a democracia se move lentamente e o país tinha pressa. A República de Weimar é um belo tema de estudos. A Alemanha fora humilhada pelo Tratado de Versalhes e as condições impostas por este tratado eram praticamente insuportáveis, impossíveis de serem cumpridas. Encontrei uma síntese sobre o período, em seis tópicos.


1. Havia uma recessão econômica, um processo de desaceleração do crescimento industrial e uma inflação sem precedentes no mundo civilizado;

2. Havia um clima de impunidade, com um poder judiciário que não funcionava e que, ao mesmo tempo, impedia qualquer tipo de reforma;

3. O ambiente de indefinição e de demora nas soluções propiciava e fazia fermentar  tentativas de golpe de Estado;

4. Havia uma profunda crise moral, de baixa auto estima, de perda da visão num futuro, provocado pelas cláusulas humilhantes e tidas como vingativas, impostas pelo Tratado de Versalhes;

5. A perda de territórios para a  França, pelo mesmo tratado;

6. A geração do clima de xenofobia, de fanatismo político e a potencialização do ódio anti semita. Como vimos, nesta semana retratada ocorreu o fracassado Putsch de Munique, que levou Hitler para a cadeia, onde escreveu a sua Bíblia, o Mein Kampf. A visão deste caldeirão fervendo é a visão do ovo da serpente, que embora, ainda não ter nascida, já está perfeitamente delineada e visível, dentro do ovo.


Nunca vi um ovo de serpente e procurei imagens. Estas não me satisfizeram, pois as imagens não conseguem captar o processo. Mas encontrei alegorias para os tempos presentes.  O filme de Ingmar Bergman, diretor e roteirista, tem a produção de Dino de Laurentis e tem em Liv Ulmann (Manuella Rosenberg) e David Carradine (Abel Rosenberg) os dois atores centrais. Eles são cunhados e vivem juntos os tempos difíceis da época. Gert Froebe, vive o inspetor Bauer. É ele que dá o toque de anti semitismo ao prender Abel como suspeito de crimes, por ser judeu, e Heinz Bennent vive o cientista Dr. Hans Vergerus. Será ele a contar para Abel sobre o ovo da serpente que já está desenhada e que irá desovar dez anos adiante. É interessante mencionar que as pesquisas eram patrocinadas pela iniciativa privada.

Já antes das revelações de Vergerus, um auxiliar se dirige a Abel e lhe faz uma confidência: "Diferentemente de você, eu tenho uma convicção. Algo inaudível está ocorrendo em Munique. Um salvador está nascendo. Mas seu parto ocorre em meio a sangue e dor. Uma época terrível está a caminho".  Vou reproduzir ainda alguns trechos da fala final do Dr. Hans Vergerus, muito proféticas e em que, mesmo contra as suas crenças, promete ajuda aos cunhados:


"Em dois ou três dias - talvez amanhã de manhã, o exército da Alemanha do sul começará uma revolta, comandados por um demente chamado Adolf Hitler. Será um fiasco descomunal. Herr Hitler carece de capacidade intelectual e técnica e não sabe as forças tremendas com as quais se enfrentará". Mais adiante continua: "Observe toda esta gente. São incapazes de uma revolução. Estão muito humilhados, muito temerosos, muito oprimidos. Mas em dez anos... em dez anos [...] Eles terão herdado o ódio de seus pais, mas com a adição de seu idealismo e impaciência, alguém se adiantará e colocará seus sentimentos sem palavras. Alguém prometerá um futuro - alguém fará suas exigências - alguém falará de grandeza e sacrifício. Os jovens e inexperientes brindarão seu valor e sua fé aos cansados e indecisos. E então haverá uma revolução e nosso mundo se fundirá em sangue e fogo".

E como será este tempo? O doutor explicita. "Em dez anos, não mais, eles criarão uma sociedade sem igual na história mundial. A antiga sociedade se baseava numa ideia muito romântica (Rousseau) sobre a bondade do homem. Muito complicado, já que as ideias não concordam com a realidade. A nova sociedade se baseará em um juízo real dos potenciais e limitações do homem. O homem é uma deformidade, uma perversão da natureza". Então os experimentos ganharão força no moldar o homem desejado:


"Liberamos as forças produtivas e controlamos as destrutivas, exterminamos a inferior e aumentamos  o útil". Aí segue a famosa frase do início do post, sobre a imagem do ovo da serpente. Como já destaquei, o filme, muito mais do que uma volta ao passado é um alerta para o futuro. Lembro de Adorno, quando, em Educação após Auschwitz, pergunta se as condições que provocaram Auschwitz ainda estão presentes na sociedade. A resposta, lamentavelmente, é sim. E o que pensar deste presente momento de destilação de ódio em nossa sociedade brasileira? 

E para terminar, uma frase encontrada pelo caminho nestas buscas, que identificam o momento em que no ovo da serpente já "se pode distinguir um réptil já formado". É quando "O homem sai de si e passa a viver em seu exterior, quando ele começa a viver de acordo com a Opinião Pública, de acordo com o olhar do outro".





 

quinta-feira, 1 de outubro de 2015

Meu quintal é maior do que o mundo. Manoel de Barros.

Depois de ler os aterradores livros de Roberto Saviano sobre as maldades do mundo, foi importante marcar um encontro com as bondades desse mesmo mundo. E nada melhor, para conseguir este intento, do que buscar a beleza da poesia de Manoel de Barros. Meu quintal é maior do que o mundo é uma antologia de sua poesia, retirada de seus dezoito livros, muitos deles recomendados por diversas premiações. Uma bela edição da Alfaguara. Manoel de Barros se define por "encostar o verbo na natureza".
Meu quintal é maior do que o mundo. A antologia de poemas de Manoel de Barros.

Verbo e natureza são a sua vida. Nasceu em Cuiabá em 1916, foi para Corumbá, Campo Grande e para o Rio de Janeiro, para fixar raízes em Campo Grande e no Mato Grosso do Sul. Nessas terras, com a forte presença do pantanal, é que se situava o seu Meu quintal é maior que o mundo. Neste seu quintal tomou o gosto pelo viver e o fez até novembro de 2014, quando aos 97 anos transcendeu. A sua poesia é fortemente autobiográfica.

Uma carta, escrita em 1992, de Antônio Houaiss é uma espécie de apresentação da poesia de Manoel. O apresenta como um poeta maior, que em meio às contradições do mundo, com ele estabelece um nexo para nos fazer "mais solidários com a vida". Mas, afirma Houaiss, ele vai além disso. Ele "prova, com doçura e adequação de suas palavras, que, se quisermos, a nossa vida pode ser uma passagem de beleza em meio à beleza natural, uma prece de harmonia na vida universal, uma nuga de graça, um momento de bondade, em que há algo de irônico, de lírico, de doce, de solidário, de esperançoso". Depois define, ainda com maior clareza, a essência do poeta e de sua poesia:
Na antologia de suas poesias, também uma foto. Adoro esse tipo de cadeira.

"É um maravilhoso filtro contra a arrogância, a exploração, a estupidez, a cobiça, a burrice - não se propondo, ao mesmo tempo, ensinar nada a ninguém, senão que à vida". Mas a apresentação oficial do livro cabe a José Castello, que a faz com um título altamente definidor do que é a poesia em geral, e Manoel em particular - Manoel, além da razão. José Castello foi entrevistá-lo, e foi logo dizendo: "Não tenho nada para lhe dizer". O trecho é lindo, por isso o reproduzo.

"Não blefava, não mentia, ao contrário, levou-me a encarar a difícil verdade. A poesia de Manoel é feita de restos, de sobras, de dejetos. Como ele diz num poema: de 'inutensílios'. É uma poesia que se instala nos primórdios, quando as palavras ainda se confundem com as imagens. Ele confirma, assim, o caráter 'inútil' - isto é, não pragmático, indiferente aos resultados - que a define. Como ele mesmo nos diz no Concerto a céu aberto para solos de ave: 'Passei anos me procurando por lugares nenhuns./ Até que não me achei - e fui salvo". E no Livro sobre nada, ele afirma que "a sensatez me absurda". Mais uma característica de seu poetar.
Uma foto típica com a marca se seu sorriso amplo.

Do pintor boliviano assimilou o pensamento de que a força de um artista não vem de seus sucessos, mas de suas derrotas. "É ali onde a arte falha" - diz José Castello, "em pleno silêncio aterrador - que a poesia nasce". E continua: "Mesmo com os cabelos brancos, Manoel ainda vivia uma infância na qual 'não havia limites para ser'". A apresentação termina com o sentimento que o poeta provoca: "É porque erra - também no sentido de andar sem rumo - que ele acerta. Manoel nunca temeu afirmar que o nome empobrece a linguagem. Que a palavra a diminui e prende. Ainda assim, a palavra é tudo o que um poeta tem. Aceitando seu destino, escreveu: 'Com esses exercícios os nossos/ desconhecimentos aumentaram bem'".

Os poemas que compõem a antologia são selecionados a partir de seus 18 livros. Escolho dois como amostra. O primeiro, de seu primeiro livro. Poemas concebidos sem pecado. O poema leva por título - Antoninha-me-leva.
Um pouco de cada um de seus livros, nesta antologia.

Outro caso é o de Antoninha-me-leva:
Mora num rancho no meio do mato e à noite recebe os
vaqueiros tem vez que de três e até quatro comitivas
Ela sozinha!

Um dia a preta Bonifácia quis ajudá-la e morreu.
Foi enterrada no terreiro com o seu casaco de flores.
Nessa noite Antoninha folgou.

Há muitas maneiras de viver mas essa de Antoninha era 
de morte!

Não é sectarismo, titio.
Também se é comido pelas traças, como os vestidos.
A fome não é invenção de comunistas, titio.
Experimente receber três e até quatro comitivas de 
boiadeiros por dia!.
Neste filme documentário você tem uma bela oportunidade de conhecer  Manoel de Barros.

O segundo poema é do Livro sobre nada. Nem título tem, mas é maravilhoso.

Sei que fazer o inconexo aclara as loucuras.
Sou formado em desencontros.
A sensatez me absurda.
Os delírios verbais me terapeutam.
Posso dar alegria ao esgoto (palavra aceita tudo).
(e sei de Baudelaire que passou muitos meses tenso
porque não encontrava um título para os seus poe-
mas. Um título que harmonizasse os seus conflitos.
Até que apareceu Flores do mal. A beleza e a dor. Essa
antítese o acalmou.

As antíteses congraçam.