segunda-feira, 19 de outubro de 2015

Recordações do Escrivão Isaías Caminha. Lima Barreto.

Inúmeras vezes já contei sobre a fragilidade da minha formação. Muita declinação e pouca literatura. Com o tempo procurei sanar algumas deficiências por conta própria, mas confesso que nunca tinha chegado ao Lima Barreto. Quando ele já figurava nas minhas leituras próximas, a leitura de Brasil: uma biografia, o fez saltar nas minhas preferências. Lilia Schwarcz e Heloísa Starling abrem a introdução ao livro, citando Lima Barreto.
Uma boa edição. Ótima introdução à obra e ao autor.

O meu livro de abertura foi Recordações do Escrivão Isaías Caminha. Não sei do que gostei mais. Se foi do romance ou se foi a biografia do autor, afinal de contas eles se confundem. Vi que Lima Barreto só não foi considerado um escritor maior, por ser autobiográfico demais. Mas vamos, minimamente situá-lo. Ele nasceu no Rio de Janeiro em 1881 e morreu na mesma cidade em 1922. Uma vida curta de 41 anos, de vida intensa e grande produção jornalística e literária. Muita cachaça e muito desgosto o acompanharam.

Recentemente participei de uma semana de estudos de história na Faculdade de Filosofia de Mandaguari. Muitas das palestras faziam uma ligação entre a literatura e a história, o que é muito bom. Lembrei muito do evento, ao ler Lima Barreto. Três importantes pontos mereceriam um destaque maior. A vida dos escravos libertos, a instabilidade política dos primeiros anos da República e, em primeiríssimo plano, uma pormenorizada descrição do comportamento da imprensa nesse período.
Uma das edições das Recordações. O foco de capa na imprensa, com o jornal O Globo.


Com relação à escravidão ele (Isaías Caminha) conta como foi a sua recepção da notícia da abolição, pela voz de sua professora. Do entusiasmo inicial seguiu-se profunda decepção pelas dificuldades que a vida real impunham a um menino mulato. Nascera com um pecado original.  O menino era um verdadeiro prodígio. Procurava expiar o seu pecado com muita dedicação e estudo. Recebeu muitos elogios de sua professora e, de presente, um livro de autoajuda, Poder da vontade, que, ao menos em seus primeiros anos, se transformou na sua bíblia. O seu entusiasmo consigo próprio o fez buscar um destino maior no Rio de Janeiro. A cada desânimo se tonificava com o poderoso livro.

Já no caminho para o Rio, as decepções começam. Na viagem foi destratado, enquanto que um menino branquinho era coberto de atenções. Ainda no interior, às vezes, antevia o seu futuro. "Ladrão, bêbado, tísico", a exemplo de tantos. Foi ao Rio com recomendação. Procurar o deputado Castro para receber as necessárias ajudas. Em sua busca descobre os meandros da política. Só decepções. De Castro, nenhuma ajuda. Fora procurá-lo no Parlamento, mas só o encontrou em casa da amante.
O Rio de Janeiro dos tempos de Lima Barreto. O Morro do Castelo que foi removido.


Na visita à Câmara ele foi com entusiasmo. Recordava dos grandes nomes gregos que fundaram a democracia e o mundo das leis. Agora imaginava encontrar os seus sucessores na linha do tempo. A sua boa e ingênua formação os fazia cobertos de respeito. Este foi imediatamente perdido, já na primeira ida à Câmara. Uns discursavam feito loucos, enquanto outros conversavam em grupos, não dando a menor atenção aos oradores. Assim é que se faziam as leis que regiam a República.

No Rio ficou hospedado num hotel de fama duvidosa. O seu dinheiro não permitia coisa melhor. A partir dele fazia as sua incursões pela cidade. A sua formação lhe deu conversa agradável, o que o fez ficar amigo de alguns jornalistas, mas emprego que era bom, nada. Fez alguns bicos como uma espécie de secretário, até que chegou o primeiro emprego como contínuo de um jornal, O Globo, mas diz a nota de rodapé, que se tratava do Correio da Manhã. Mostrou-se eficiente e um dia, um dos jornalistas, o Floc se suicidou. Coube a Isaías encontrar o Loberant, o dono do jornal, para lhe transmitir a notícia. Ele estava na casa de Rosalina. Isso lhe valeu confiança, amizade, dinheiro e o cargo de redator, no lugar do morto.
Lima Barreto. Erudito, mulato e pobre. O nacionalismo virá com o Policarpo.


A maior riqueza do livro, seguramente reside nessa parte da descrição dos jornais, de seus donos e dos jornalistas de sua época. Os observa e os descreve a partir de vários momentos. O seu convívio com os jornalistas, enquanto menino desempregado, como contínuo e depois redator de um grande jornal. Enquanto trabalhava neste jornal, simultaneamente, escrevia um diário e também, as suas recordações, as recordações de Isaías Caminha. É agudo crítico com relação a má formação dos jornalistas, ao seu orgulho intelectual e a sua visão de supremacia na condução dos destinos do país, mesmo sendo absolutamente ignorantes. Vejam esta descrição, em que ele compara os jornalistas com piratas.

"Nada há tão parecido com o pirata antigo e o jornalista moderno: a mesma fraqueza de meios, servida por uma coragem de salteador; conhecimentos elementares do instrumento de que lançam mão e um olhar seguro, uma adivinhação, um faro para achar a presa e uma insensibilidade, uma ausência de senso moral a toda a prova... E assim dominam tudo, aterram, fazem que todas as manifestações de nossa vida coletiva dependam do assentimento e da sua aprovação... Todos nós temos que nos submeter a eles, adulá-los, chamá-los gênios, embora intimamente os sintamos ignorantes, parvos, imorais e bestas..." E olha, que esse trecho ainda é suave.
Na cor da pele, o seu pecado original.


Em suma, o livro é uma retrospectiva de um romancista, mas que talvez, mais apropriadamente, mereceria o título de memorialista. São 14 capítulos em que ele faz o resgate de sua infância e das  perambulações que um menino pobre e mulato fez pelas ruas do Rio de Janeiro. De um menino que faz um esforço inaudito para superar as suas condições, carregando consigo, a pena, a expiação de sua situação marcada pelo pecado original de sua cor A sua grande formação, que passara pelos grandes clássicos, tanto da filosofia, quanto da literatura, o tornaram um observador e um crítico extremamente agudo. Em outro post vou destacar a fina ironia com que via os escravos libertos da escravidão e a lei da gravidade social que lhes pesava nos ombros, vivendo numa sociedade absolutamente competitiva que lhe negava os meios e as oportunidades. Outro será o livrinho Poder da vontade, uma fina ironia aos livros de autoajuda.
A preocupação com a escrita. Lima Barreto escreveu para ser lido.


A edição que eu li é da Penguin&Companhia das Letras. Tem uma introdução primorosa de Alfredo Bosi e um prefácio de Francisco de Assis Barbosa, que é o seu maior biógrafo e ainda uma apresentação de Isabel Lustosa que situa o escritor em seu tempo. Ao final do livro, encontramos uma cronologia dos principais acontecimentos de sua época. Vou continuar lendo Lima Barreto. Já tenho mais dois volumes em mãos: Clara dos Anjos e Triste fim de Policarpo Quaresma.

Lilia Schwarcz, na introdução ao Triste fim de Policarpo Quaresma, assim fala da repercussão das Recordações. "Recordações do escrivão Isaías Caminha (1909), que lhe conferiu certa notoriedade, mas lhe custou caro, por causa das críticas ao racismo velado vigente no Brasil e, sobretudo, por causa das denúncias ao lobby da imprensa: segundo ele, o quarto poder da República".

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