quarta-feira, 28 de setembro de 2016

O golpe e a destruição dos quatro pilares da cidadania.

Na origem da formação histórica da sociedade brasileira estão presentes duas perversas características que ainda não se apagaram. Elas se entranharam na elite brasileira e continuam vivamente presentes. Estas características são a escravidão e o espírito predador bandeirante, em oposição ao espírito dos pioneiros.
Um livro que explicita o golpe e as suas intenções.

A escravidão foi abolida, mas não a sua obra. Joaquim Nabuco, mesmo antes da abolição já alertava que, para além da escravidão, também deveria ser abolida a sua obra. Os escravos libertos ficaram propositalmente à margem da sociedade ao não serem integrados na economia brasileira. O espírito predador bandeirante continua presente com o espírito de não preservação das bondades da terra, que além do espírito de sua devastação também lhes reserva a destinação estrangeira e não o benefício da população nativa.

Dentro deste espírito se formou uma eterna colônia voltada aos interesses externos e a formação de uma sociedade de ricos e de pobres. Os governantes brasileiros se orgulhavam e continuam se orgulhando de sua função de cônsules de interesses estrangeiros. A partir de 1930 alguma coisa começa a mudar. Mas também a partir de 1930 o espírito golpista começa a estar vivamente presente. Cada vez que os interesses nacionais e de formação de um mercado interno buscam afirmação, as elites escravocratas e predadoras, golpeiam os desejos desta afirmação de soberania nacional.

Em meio a estas contradições algumas políticas de construção de cidadania foram sendo construídas. A mais longínqua data dos anos 1940, junto com as políticas de industrialização que, diga-se de passagem, foi um processo bem tardio. Muitas tentativas anteriores de industrialização foram abortadas. Junto com a industrialização veio a proteção ao trabalhador com uma série de leis. Estas leis foram transformadas num sistema de proteção através da CLT, na qual nem mesmo a ditadura militar ousou mexer.
Crônicas de resistentes na luta pela democracia.

Após a redemocratização brasileira no período posterior à Segunda Guerra, também a educação mereceu alguns olhares preocupados, expressos na construção de nossa primeira Lei de Diretrizes e Bases da Educação, aprovada em 1961. O seu espírito foi logo abortado com a ditadura civil militar que se instaurou em 1964. Com a redemocratização dos anos 1980 houve melhoras, ao menos quanto a inclusão escolar, mas ainda não atingimos um Sistema Nacional de Educação, sistemas construídos nos países mais avançados, já ao longo da segunda metade do século XIX. Mas não dá para negar que a educação em muito contribuiu com a construção de cidadania, especialmente nos últimos anos.

Os outros dois fatores vieram com a Constituição de 1988. A Previdência Social, vista como Seguridade Social e o Sistema Único de Saúde, o SUS. A Previdência já existia, mas na Constituição ela foi elevada à categoria de Seguridade Social. Para a sua sustentação duas novas contribuições foram criadas, O COFINS e a CSLL. Se o sistema está em crise é porque estas contribuições nunca foram destinadas à Seguridade Social. Sempre entraram no caixa do governo para o pagamento de compromissos financeiros para com os rentistas da especulação financeira.

Este sistema representa uma verdadeira revolução social. Ele atende hoje 30 milhões de famílias, beneficiando mais de 90 milhões de pessoas. Por causa da Previdência menos de 10% da população idosa vive na pobreza. Sem a Previdência, seriam mais de 70%.

Mas o mais significativo de todos os instrumentos foi a criação do SUS, o sistema universal de atendimento à saúde.  É muito importante que se diga, pois nem todos sabem e outros já esqueceram, que antes de 1988 só era atendido nos postos de saúde, quem tinha a carteirinha com esta finalidade. Esta carteira era obtida mediante a apresentação da carteira de trabalho. Assim, apenas quem tinha emprego, devidamente registrado, tinha atendimento à saúde. Quem estava desempregado também ficava penalizado pelo não atendimento nos postos de saúde. Estava relegado à caridade cristã. Apenas com a Constituição de 1988, todo o ser humano passou a ser visto como tal. Se o sistema atua com falhas, isto é um outro problema.

Bem, em 31 de agosto consumou-se um golpe de estado brando. Brando por não ter havido o emprego da violência. Admitindo a semântica em torno do termo brando, ele não deixou de ser extremamente perverso e de extrema violência, pois os ataques aos direitos básicos da cidadania sofrem ataques diários.
Em seu discurso de posse Temer prometeu, como prioridade de seu governo, a reforma da legislação trabalhista e da previdência. Prometeu atacar dois pilares fundamentais da construção de uma ainda incipiente cidadania brasileira.  Já que falamos em semântica, também a palavra reforma precisa ser levada em consideração.
Como diz o título. Uma radiografia do golpe.

Já o novo ministro da saúde do governo golpista, anunciava que o SUS não cabia no orçamento governamental pautado pela Lei de Responsabilidade Fiscal. Como solução indicava planos de saúde populares, financiadores de suas campanhas eleitorais. Esta visão mostra toda a irresponsabilidade para qualquer tipo de compromisso de responsabilidade social.

Agora, atônitos assistimos a reforma do ensino médio. Simultaneamente ela atenta contra a mente e o corpo dos estudantes. O país, ainda acalentado com o espírito olímpico, vê a retirada da disciplina de educação física do ensino médio e junto com projetos na direção fascista de "Escolas sem partido" atenta contra a mente dos jovens, suprimindo disciplinas como a filosofia e a sociologia. Também buscou a eliminação de qualquer possibilidade de formação humana, de sensibilidade eliminando também a formação artística. Estamos na direção da formação de "deficientes cívicos", usando uma expressão do professor Milton Santos.

Estes são os rumos deste governo golpista, que apontam para 50 anos em cinco, apropriando-se do marketing de JK. Só que são cinquenta anos de retrocessos em apenas cinco meses de governo. Triste, muito triste.

quinta-feira, 22 de setembro de 2016

Com Brecht - refletindo sobre o atual momento brasileiro.

Hoje (22 de setembro) foi um dia de grande indignação. Neste Brasil pós golpe não existe mais o mínimo respeito ao ser humano, nenhuma consideração com a dor alheia, em momentos em que o próprio momento impõem uma dor suprema e insuportável. Me refiro ao fato da prisão do ex ministro Guido Mântega e as circunstâncias em que ela foi feita.

Foi preso dentro do hospital, onde se encontrava acompanhando uma cirurgia de Câncer da esposa. Quem viveu próximo a uma cena dessas sabe da dor desses momentos. São momentos em que até acompanhamento psicológico se torna necessário. É um momento em que acima de tudo o conforto da presença passa a ser um importante elemento de cura. Mas a sanha é tamanha! É inacreditável. Me veio imediatamente à memória o livro de Primo Levy É isso um homem?, onde ele relata o ocorrido como prisioneiro em Auschwitz.

Também me lembrei de Maquiavel, da seguinte frase: "Não inflige dor um porco a outro - um cervo a outro: somente o homem outro homem mata, crucifica e despoja". A sua soltura não se deu pelo motivo humanitário, mas porque as provas já haviam sido coletadas e ele não poderia mais interferir com relação às provas.

Agora vi o Juca Kfoury citando Brecht. Achei oportuno reproduzir. O momento exige.


Primeiro levaram os negros
Mas eu não me importei com isso
Eu não era negro.

Em seguida levaram alguns operários
Não me importei com isso
Eu também não era operário.

Depois prenderam os miseráveis
Mas não me importei com isso
Porque eu não sou miserável.

Depois agarraram alguns desempregados
Mas como tenho meu emprego
Também não me importei

Agora estão me levando
Mas já é tarde
Como eu não me importei com ninguém
Ninguém se importa comigo.


AQUARIUS. Um retrato cultural do Brasil.

Precisando ir ao centro da cidade aproveitei a oportunidade para assistir o tão comentado filme Aquarius, especialmente em função das polêmicas que ele criou, desde o Fora Temer em Cannes, até a sua não indicação como representante do cinema brasileiro ao Oscar de melhor filme estrangeiro para 2017. Confesso que me arrependi, mas por não tê-lo visto antes.



Aquarius tem roteiro e direção de Kleber Mendonça Filho (Pelo amor de Deus, não confundir com o Mendonça Filho, ministro da Educação) e como acontece com os filmes que tem roteiro e direção da mesma pessoa, é um chamado filme cabeça. No elenco está a extraordinária atriz Sônia Braga, em monumental interpretação. O filme é um retrato da cultura brasileira, cada dia mais individualista e egoísta, ou então cada dia mais estadosunizada.

A especulação imobiliária é o grande mote do filme. A praia de Boa Viagem é o grande cenário. Clara é uma jornalista e escritora, viúva, e moradora da Boa Viagem, num prédio antigo de vários apartamentos confortáveis, de classe média alta. Ela é uma resistente. O prédio é modesto diante dos imponentes novos prédios que atendem, além da finalidade da moradia, as necessidades de status, dos emergentes homens bem sucedidos, praticantes da ética do sucesso nos negócios.


Clara tem uma vida sofrida, trazida à memória nas cenas iniciais do filme que mostram o  aniversário de 70 anos de sua tia. O diretor mostra, junto com os sofrimentos, os preconceitos que os acompanham. É o caso de seu câncer no seio e a consequente amputação. Mas Clara é resistente, temperada em seus sofrimentos. O único problema que não afetou a vida de Clara foi o problema financeiro, resultado de muito trabalho ao longo da vida.

Mas esta sua condição de privilégios financeiros se transformam no maior problema de Clara, a partir do momento em que a especulação imobiliária chega à Boa Viagem. Uma construtora quer demolir o velho prédio, construindo em seu lugar, um moderno prédio residencial. Todos os moradores aceitam as condições da construtora, menos Clara. Isso a põe contra tudo e todos, a começar pela filha, ávida para abocanhar a sua fatia, numa cena tão incomum em nossos dias.

As propostas de desocupação, no começo chegam de forma muito educada, com muitos sorrisos e boas maneiras mas com o tempo, o olho no foco, conceito aprendido pelo jovem engenheiro nos cursos de business nos Estados Unidos, alteram os tratamentos. A vida de Clara é transformada em um verdadeiro inferno. Pressões psicológicas, chantagens, indisposição com outros proprietários e possíveis compradores, com a filha suscetível à questão do dinheiro, até métodos menos ortodoxos.

Entre estes métodos está uma festa de arromba realizada no apartamento acima do de Clara, uma orgia que teve como sobra todos os exageros e defecações de seus participantes. Até os religiosos fundamentalistas da teologia da prosperidade viram instrumento de ódio a serviço dos interesses da construtora. Por fim, cupins são infiltrados nos apartamentos vizinhos para a corrosão das estruturas do antigo prédio. 


Clara se defende junto com a sua advogada e amiga. Conseguem documentos sobre a vida pregressa dos donos da construtora e os levam a eles, quando o filme já entra em sua reta final. Aí sobra também para o poder judiciário, de uma forma bem subliminar, alertando para que Clara não se metesse no departamento jurídico da construtora, que era enorme. O implícito e não dito é que ele era poderoso. Poderoso relativo a quem?

Muitas outras questões entram no filme. A tênue linha que separa a Boa Viagem da Brasília Teimosa, a acusação à empregada como ladra, a questão da sexualidade, com o pioneirismo de Clara na luta pela emancipação feminina e a questão da homossexualidade do filho. Até a questão da origem escravocrata da alta sociedade pernambucana é lembrada com a célebre frase de que em Pernambuco "quem não é Cavalcanti é cavalgado".
Uma vista da praia de Boa Viagem da janela do quarto de um hotel, na altura do nº 4.000.

Enfim, é um filme para ser visto e debatido. Primeiramente pelo filme em si, pelas questões éticas e morais que ele suscita, pelo questionamento da nossa cultura, cada vez mais preconceituosa e fundamentalista e também por todas as polêmicas que o filme está causando e que vão para além do filme, como o Fora Temer, da equipe no Festival de Cannes e a ação de retaliação de sua não indicação ao Oscar de melhor filme estrangeiro para 2017. Imperdível. Precisa ser visto e debatido.


quarta-feira, 21 de setembro de 2016

A reforma da previdência e a seguridade social.

O Brasil é o país campeão mundial em desigualdades sociais. Não obstante é necessário reconhecer que a partir da Constituição de 1988 houve avanços no rumo de se combater a fome e a miséria e avançar nas condições para a cidadania, diminuindo estas desigualdades. Para isso foram fundamentais os títulos II - Dos Direitos e Garantias Fundamentais (artigos 5 ao 17)  e o título VIII - Da Ordem Social ( artigos 193 a 232).


É ainda importante notar que a Previdência Social está inserida num conceito maior do que a simples previdência. Ela está inserida no contexto da seguridade social. Os legisladores constituintes tiveram noção precisa do que estavam fazendo, especialmente com relação ao financiamento destes direitos. A Constituição Brasileira segue os padrões mundiais a respeito. A previdência, vista com o olhar da seguridade social, tem financiamento tripartite. O trabalhador, o empresário e o Estado. Dois novos impostos foram criados para tal: a Contribuição Social para o Financiamento da Seguridade Social (COFINS) e a Contribuição Social sobre o Lucro Líquido das Empresas (CSLL). Há que ressaltar que estas contribuições simplesmente alavancaram o orçamento da União. Nunca tiveram destino correto.

Isso é levado em conta, quando se fala em superávit do sistema. Então vem a pergunta. Por que o governo investe com tanta sanha contra os direitos previdenciários? Aí é que entramos no contexto maior da questão. Foi esta a grande razão do golpe. O governo golpista não tem a questão social como a sua prioridade. Para ele a palavra fundamental é austeridade, mas nem tanto! Depende para quem e sobre quem. Todas as medidas que implicam em austeridade e seus componentes legislativos, traduzidos em leis de responsabilidade, atendem ao interesse do capital financeiro, que atinge menos de 1% da população brasileira, ou conforme os números fornecidos por Ciro Gomes, 10.000 famílias. 

Todas as políticas de austeridade, como a contenção dos investimentos em políticas públicas de combate à desigualdade e de construção de cidadania, são drenados para honrar compromissos financeiros  para com os pouquíssimos endinheirados do chamado capitalismo financeiro e parasitário. Em função disso é que estão sendo congelados por 20 anos os investimentos em educação, saúde, habitação e toda a área social. O não cumprimento das leis de responsabilidade tem severas punições, como a perda de mandato. Não foi esta a alegação para o golpe? Quem a descumpre tem punições mais severas do que os políticos corruptos.

Possivelmente seja o campo da Previdência que mais retirou pessoas da miséria extrema no Brasil recente. Ela atinge hoje 30 milhões de famílias, mais de 90 milhões de pessoas. Eduardo Fagnani, em belo texto no livro Por que gritamos golpe nos aponta que apenas 10% dos idosos brasileiros vivem em situação de miséria. Sem a Previdência seriam mais de 70%.
Livro que aborda diversos temas relativos ao golpe. Escrito por gente da área.

No mundo inteiro o sistema previdenciário sofre reformas para a adequação do sistema, mas nenhum país obedece aos propósitos que o governo golpista almeja. Em primeiro lugar foi extinto o Ministério da Previdência, para que ele fosse diretamente subordinado ao Ministério da Fazenda, caso único no mundo. Quais são as reais intenções para trazer a Previdência para junto da Fazenda? É ali que se elaboram os orçamentos. É ali que se efetuam os cortes orçamentários. É ali que se pratica a austeridade. E a primeira medida pretendida é a desvinculação dos salários pagos aos aposentados do salário mínimo. Assim a definição dos reajustes salariais do Sistema Previdenciário dependeriam exclusivamente de um única pessoa, a pessoa do ministro. Assim, em muito pouco tempo o sistema poderá ser totalmente desmantelado, reduzido ao mínimo dos mínimos.

Outra das imposições é a idade mínima. Em cima desta questão existe toda uma falácia de que o Brasil é o único país que não leva este fator em conta. É mentira. Vejamos Fagnani a respeito: "O primeiro (critério para se aposentar) é a 'aposentadoria por idade', concedida aos homens com 65 anos e às mulheres com 60 anos, mais 15 de contribuição (trabalhador urbano). Os trabalhadores rurais do sexo masculino podem se aposentar aos 60 anos e as mulheres, aos 55. Portanto desde 1998, existe sim a 'aposentadoria por idade', que responde por 70% das aposentadorias concedidas". Quanto aos outros trabalhadores existem as restrições impostas pelo chamado "fator previdenciário".

Assim o Brasil, o país campeão em desigualdades sociais quer, através de seu governo ilegítimo, porque golpista, implantar as mais duras exigências mundiais para a concessão da aposentadoria, como a idade mínima de 65 anos para todos, atingindo inclusive as pessoas que já estão no sistema, em desrespeito flagrante aos direitos já adquiridos, além de submeter a todos a um sistema totalmente desregulamentado.

Por não ser tão extenso, transcrevo ainda as preocupações de André Singer, expressas no livro já citado, Por que gritamos golpe?, sobre a questão da reforma da previdência: "Cogita-se desvincular a seguridade social dos aumentos do salário mínimo. Para se ter uma ideia do que está em jogo, o economista Guilherme C. Delgado, do IPEA mostra que há 30 milhões de benefícios vinculados ao salário mínimo: 18,3 milhões da própria Previdência, 8 milhões do seguro-desemprego e 3,9 bilhões do Benefício de Prestação Continuada (BPC). São direitos da base da pirâmide que equivalem, em valor, a dez vezes o Bolsa Família. 'Removido esse vínculo, a questão do piso de benefícios sociais passaria a ser assunto administrativo do Ministério da Fazenda, a serviço do ajuste fiscal, como assim o fora na época dos governos militares', afirma Delgado. Em um cálculo inexato, mas expressivo, multiplique-se o número de benefícios por quatro (a família média) para imaginar quantos cidadãos poderiam eventualmente ser indiretamente atingidos pela medida em cogitação".

Haja perversidade na terra das perversidades! Houve um golpe constitucional com o impedimento da presidente Dilma com o objetivo de golpear permanentemente o espírito da Constituição de 1998. E..., nenhuma Lei de Responsabilidade Social.

segunda-feira, 19 de setembro de 2016

Por que gritamos golpe? Uma pluralidade de vozes.

Procuro acompanhar as diferentes leituras e olhares sobre o golpe que se consumou no dia 31 de agosto de 2016 e que afastou definitivamente a presidente eleita do Brasil (com 54,5 milhões de votos) pelo voto de 61 obscuros senadores, quase todos envolvidos em escândalos de corrupção. Pouco se diferenciaram do triste espetáculo ocorrido na Câmara, no dia 17 de abril, com os deputados.
Vozes plurais e diversidade de temas. Um livro imprescindível para interpretar o atual momento.

Pela profunda admiração que tenho por Jessé Souza, o livro dele, A radiografia do golpe - entenda como e por que você foi enganado, foi o primeiro que li e, inclusive, já fiz a sua resenha. O livro é composto de três capítulos. I. Os golpes sempre foram por mais dinheiro para poucos, e nunca para combater a corrupção. II. O golpe "legal" e a construção da farsa. III. Conclusão: ameaças e oportunidades à democracia. Recomendo demais.

Na sequência li Crônicas da resistência 2016 - Narrativas de uma democracia ameaçada. O livro tem como editora uma ex aluna minha, do curso de jornalismo, Cleusa Slaviero. As crônicas são uma bela e grande obra coletiva, desde o financiamento de sua publicação até a escrita de mais de oitenta contribuições de indignados resistentes. Entre estes, estou incluído. Os autores são quase todos anônimos. Mas o livro tem também presenças notáveis como o Nobel da Paz, Adolfo Pérez Esquivel e Leonardo Boff. Um belo registro para a história.
Um belo livro de construção coletiva. Muita dedicação e indignação.

Na sequência li Por que gritamos golpe? - Para entender o impeachment e a crise política no Brasil, da Editora Boitempo. Três frases das manifestações de rua aparecem na capa, com certa evidência: Amar sem temer - Fora Cunha e Esse ministério não nos representa. Todas elas muito significativas.

O livro é formado por 24 artigos, mais as devidas apresentações. Os articulistas todos tem grande representatividade  e autoridade intelectual e moral para falarem sobre os temas que abordam. Ele é composto de três partes: I. Os antecedentes do golpe. II. O golpe ponto a ponto. III. O futuro do golpe. Ainda, na contracapa comparecem Boaventura Souza Santos e Luiza Erundina.

Pela amplitude dos temas abordados, não tenho condições de fazer uma resenha de todos eles, mas com a finalidade de despertar para a leitura, apresento os títulos e os autores. Ao final do livro consta uma pequena apresentação destes. Creio que Graça Costa e Ivana Jinkings tem grande responsabilidade na construção do livro. São as responsáveis pelo prólogo e pela apresentação.

Na primeira parte encontramos os seguintes títulos e autores: 1. A nova classe trabalhadora brasileira e a ascensão do conservadorismo - Marilena Chauí; 2. Os atores e o enredo da crise política  - Armando Boito Jr.; 3. A democracia na encruzilhada - Luis Felipe Miguel; 4. Por que o golpe acontece? - Ciro Gomes; 5. O triunfo da antipolítica - Murilo Cleto; 6. Jabuti não sobe em árvore: Como o MBL se tornou líder das manifestações pelo impeachment - Marina Amaral; 7. O fim do lulismo - Ruy Braga.

Na segunda parte comparecem: 1. Da tragédia à farsa: o golpe de 2016 no Brasil - Michel Löwy; 2. Uma ponte para o abismo - Leda Maria Paulani; 3. Rumo à direita na política externa - Gilberto Moringoni; 4. Previdência social: reformar ou destruir? - Eduardo Fagnani; 5. Para mudar o Brasil - Roberto Requião; 6. Os semeadores da discórdia: a questão agrária na encruzilhada - Luiz Bernardo Pericás; 7. Ruptura institucional e desconstrução do modelo democrático: o papel do judiciário - Marcelo Semer; 8. Cultura e resistência - Juca Ferreira; 9. As quatro famílias que decidiram derrubar um governo democrático - Mauro Lopes; 10. Avalanche de retrocessos: uma perspectiva feminista negra sobre o impeachment - Djamila Ribeiro; 11. "Em nome de Deus e da família"; um golpe contra a diversidade - Renan Quinalha; 12. Resistir ao golpe, reinventar os caminhos da esquerda - Guilherme Boulos e Vítor Guimarães; 13. A luta por uma educação emancipadora e de qualidade - Tamires Gomes Sampaio.

Já na terceira parte encontramos: 1. Por uma frente ampla, democrática e republicana - André Singer; 2. A ilegitimidade do governo Temer - Jandira Feghali; 3. Uma sociedade polarizada - Pablo Ortellado, Esther Solano e Márcio Moretto; 4. É golpe e estamos em luta! - Lira Alli.
O maravilhoso livro de Jessé Souza.

Embora todos os textos sejam valiosos eu destaquei alguns, especialmente, pelo caráter de novidade que eles representaram para mim. Outros poderão ter outras percepções. Gostei do texto da Marilena Chauí em função da análise sobre a nova classe trabalhadora no Brasil e sobre o jabuti e o histórico do movimento golpista, da primeira parte. Da segunda eu destaco a reforma da previdência. É de arrepiar esta perversidade pretendida. Também é notável a atuação das quatro famílias que controlam a mídia brasileira e que hoje, para você conhecer o Brasil tem que ler jornais estrangeiros. Da última parte eu destaquei o texto de André Singer e os seus cinco pontos de análise e ainda o texto de Lira Alli, pela clareza e firmeza de posições.

 Considero este livro o melhor deles, uma vez que ele foi planejado e estruturado. Por isso mesmo a sua diversidade nas abordagens. Recomendo a sua leitura, especialmente para as pessoas que trabalham com análise de conjuntura. Amplia muito o leque de visões sobre os propósitos inconfessáveis que acompanham o golpe, neste momento triste da realidade brasileira. Se não houver reação, adeus construção de cidadania, por décadas. Termino com a citação de Lira Alli, numa caracterização da perversa elite brasileira: "Colonização, escravidão, ditadura: a história de nosso país é feita da violência produzida pelos desmandos de uma elite que nunca se preocupou com o povo 'daqui', só com o lucro 'de lá'. Ainda que seja indigna, precisamos conhecer nossa história e ser donos de nossa própria memória: só assim teremos as ferramentas para construir transformações". Lira Alli, pág.165.

Como considero a questão da previdência um dos aspectos mais graves, farei um post em separado.

sábado, 17 de setembro de 2016

31 de agosto de 2016. É golpe!

Este texto constará apenas de frases marcantes sobre o golpe, que afastou Dilma Rousseff da Presidência da República, retiradas das minhas leituras, especialmente as mais recentes. Lembrando antes, que ela ascendeu ao cargo, eleita por 54,5 milhões de votos. Para retirá-la do poder bastaram 61 votos de obscuros senadores, a maioria sob suspeita de corrupção. Um golpe brando, como estão dizendo, mas de consequência de violências sociais inimagináveis. Creio que podemos dizer que a cidadania brasileira estava assentada sob três pilares básicos. Uma legislação trabalhista, já antiga e as conquistas do SUS e da Seguridade Social com a Constituição de 1988. O golpe, como já podemos perceber, fulmina exatamente estas conquistas. Como as frases são extremamente significativas, não necessitam comentários.
Livro de análise. Jessé Souza presidia o IPEA.

Sobre Sérgio Moro: "A juventude do homem de olhar sempre focado no horizonte distante, de rosto quadrado, cabelo bem-cortado, de terno e camisas escuras e poucos sorrisos no rosto sério montam a estética perfeita para o discurso 'doa a quem doer' e do estamos 'refundando o Brasil'. Sérgio Moro foi a figura perfeita para a estratégia do golpe funcionar, seja para a classe média nas ruas que o via como um dos seus, seja para os membros do aparelho jurídico-policial que o percebiam como a encarnação perfeita do partido corporativo que se traveste de partido do bem-comum. Jessé Souza. A radiografia do golpe. Pág. 119-20.

Sobre o poder judiciário: "Existe uma correspondência perfeita entre a classe média alta que saiu às ruas com o perfil do novo tipo de operador jurídico que se instala no Estado. Com os mais altos salários do setor público e privilégios de todo tipo - que se juntam ao salário de modo permanente -, com os quais os cidadãos mortais jamais sonham, esses operadores se percebem como empresários de si mesmos e sonham com níveis de vida dos grandes advogados das bancas privadas. Eles buscam combinar a segurança e a estabilidade do setor público, cuja contraparte são salários moderados, com os altos salários e vantagens das bancas privadas sem o risco e a insegurança que permeiam o mercado".  Jessé Souza. A radiografia do golpe. Pág. 120.

Sobre a popularidade de Moro e Lula: "... A essa altura, o engodo e a fraude atingiam seu clímax. Sérgio Moro, homem do ano da revista Isto é e personalidade do ano do jornal O Globo, foi blindado pela mídia e se tornou, na prática, a única figura de direita desde a ascensão de Lula em 2002 a rivalizar com ele em prestígio. Contra o 'campeão do combate à desigualdade', criava-se o 'campeão da luta pela moralidade' [...] 'dos moralistas de ocasião'". Jessé Souza. A radiografia do golpe. Pág. 125-6.

Sobre os envolvidos na articulação do golpe: "É a articulação desses três elementos principais - mídia venal, congresso reacionário e comprado e a fração mais corporativa e mais moralista de ocasião da casta jurídica - que municiou e municia constantemente o golpe. Esses três atores trocam vazamentos ilegais e todo tipo de ilegalidade antidemocrática com tanta habilidade como o time do Barcelona troca passes". Jessé Souza. A radiografia do golpe. Pág. 131.
Um livro com abordagem por áreas, feitas por especialistas.

Sobre os três pulsos que articularam o golpe: "O primeiro foi da banda podre da nossa política, que deseja obstruir a justiça barrando a operação Lava Jato, operação essa que revela as entranhas da corrupção no Brasil. O segundo se destina a reter todos os recursos destinados aos direitos sociais para colocá-los a serviço do pagamento dos juros da dívida pública. Neste caso estão, por exemplo, o tabelamento dos gastos com saúde e educação, que evidentemente afetarão a vida da grande massa da população brasileira, em favor de 10 mil famílias que vivem do capital especulativo. E, por fim, está o terceiro pulso, que é motivado pela tentativa de destruir o esforço de afirmação da soberania nacional entregando petróleo e outras riquezas para o capital estrangeiro". Ciro Gomes em Por que gritamos golpe? Pág. 40

Sobre a movimentação de classes durante os governos do PT. "Por esse critério (divisão mercadológica das classes sociais), chegou-se à conclusão de que, entre 2003 e 2011, as classes D e E diminuíram consideravelmente, passando de 96,2 milhões de pessoas para 63,5 milhões. No topo da pirâmide houve crescimento das classes A e B, que passaram de 13,3 milhões de pessoas para 22,5 milhões. Mas a expansão verdadeiramente espetacular ocorreu na classe C, que passou de 65,8 milhões de pessoas para 105,8 milhões". Marilena Chauí em Por que gritamos golpe? Pág. 15-6, com dados fornecidos pelo IPEA.

Sobre a corrupção: "Ao mesmo tempo, seja por inexperiência, seja pela permanência de um compromisso moral, os governos petistas não foram capazes de sustar as investigações, como faziam seus antecessores; ao contrário, reforçaram os aparatos de controle do Estado. Com a ascensão de um grupo altamente adestrado e ideologizado de promotores e juízes, em parceria deliberada com a grande mídia, estava montado o cenário para a criminalização do petismo (e da esquerda)". Luis Felipe Miguel, em Por que gritamos golpe? Pág. 33.

Sobre o ódio à democracia que promove mudanças na base da pirâmide social: "Nos últimos anos, o Brasil se tornou um exemplo de inclusão social, com dezenas de milhões de pessoas saindo da pobreza e da miséria para terem uma vida melhor. [...] Entretanto, um número expressivo de membros da classe média os desqualifica, alegando diversos pretextos. Para eles, o Brasil era bom quando pertencia a poucos. Assim quando os polloi - a multidão - ocupam os espaços antes reservados às pessoas de 'boa aparência', uma gritaria se alastra em sinal de protesto. O que é isso, senão o enorme mal-estar dos privilegiados quando se expande a democracia"? Renato Janine Ribeiro, na orelha do livro O ódio à democracia, de Jacques Rancière.
Crônicas de resistentes e indignados.

Sobre a semelhança com o golpe de 1964: "A democracia que eles tentam impingir-nos é a democracia antipovo, do antissindicato, da antirreforma, ou seja, aquela que melhor atende aos interesses dos grupos a que eles servem ou representam. A democracia que eles querem é a democracia para liquidar com a Petrobras; é a democracia dos monopólios privados, nacionais e internacionais, é a democracia que luta contra os governos populares e que levou Getúlio Vargas ao supremo sacrifício". João Goulart, citado por João Alexandre Goulart, neto do ex presidente, em Crônicas da Resistência 2016. Pág. 34.

sexta-feira, 16 de setembro de 2016

Presença e ausência da ética na formação da sociedade brasileira.



Palestra feita na Universidade Estadual do Norte do Paraná, na cidade de Jacarezinho, no dia 14 de setembro de 2016, na IX Jornada de Debates: Encontro com a filosofia - Ética: Desafios & Possibilidades e IV Encontro de Iniciação Científica em Filosofia da UENP.


“Eu sou os vínculos que vou tecendo com os outros”. Albert Jacquard.

“A vida sem exame não vale a pena ser vivida”. Apologia de Sócrates.

Em junho do ano passado, eu assistia a uma palestra do teólogo da Teologia da Libertação, Leonardo Boof, na Universidade Federal do Paraná, sob o título de “O cuidado de si, do mundo e do outro”. Pensei em tomar esta fala como o mote para o nosso encontro aqui, neste dia de hoje, na cidade de Jacarezinho, neste Encontro com a Filosofia e no seminário: Ética – Desafios & Possibilidades. Creio que, ao falar do eu, na constituição de sua singularidade, deste eu em relação com o outro e no encontro do eu com o tu, no mundo e na riqueza de uma convivência harmoniosa, encontramos o grande tema da ética. No cuidado de si, do outro e do mundo.

Inicialmente o Nilton Stein me propôs fazer uma fala sobre ética e a atual conjuntura política brasileira. Pouco depois, em contato com o professor Gerson Vasconcelos, chegamos ao tema Presença e ausência da ética na formação da sociedade brasileira.  Creio que chegamos a um bom termo para centrar a nossa fala em torno do eu e da sua constituição, do tu, em toda a relacionalidade que isso implica, relacionalidade que começa com a linguagem e se estende por toda a complexidade do conviver, quando então já entramos no tema da política, do viver em comum, em uma pátria, uma pátria de muitos filhos.

Assim, necessariamente, a nossa fala se comporá de duas partes. Na primeira abordaremos a questão filosófica da ética e na segunda, iluminados pelo conceito da ética, analisarmos a formação da sociedade brasileira.

Começamos então com a questão do eu, da formação da nossa individualidade ou singularidade. Uma formação social complexa. E ponha complexo nisso! Poderiam vocês me dizer quem são e como se constituíram? O eu se forma na relação que se estabelece entre o indivíduo e a sociedade, com as mais diversas mediações. Muitos disputam a formação desta nossa individualidade ou singularidade. (Vejam a absurda questão do Projeto “Escola sem partido).

Para falar do indivíduo recorro, primeiramente, a um magnífico artigo do professor Milton Santos, uma espécie de despedida sua, na Folha de S.Paulo, do dia 24 de janeiro de 1999. Morreria pouco depois, em 2001. O artigo tinha por título Os deficientes cívicos. 

Neste artigo ele definia que “em cada sociedade, a educação deve ser concebida para atender, ao mesmo tempo, ao interesse social e ao interesse dos indivíduos”. A partir desses interesses é que se definiriam os princípios que norteariam a educação. Por interesse social ele entendia a “manutenção da identidade nacional, na ideia de sucessão das gerações e de continuidade da nação, na vontade de progresso e na preservação da cultura”.

Já pelo interesse individual, que aqui nos interessa mais de perto, ele entende que ela “se revela pela parte que é devida à educação na construção da pessoa, em sua inserção afetiva e intelectual, na sua promoção pelo trabalho, levando o indivíduo a uma realização plena e a um enriquecimento permanente”. 

Depois de mostrar toda uma construção histórica da escola pública, ele vê o desvirtuamento da educação, em tempos de globalização, um tema constante em seus estudos. A globalização instituiu a competição como a regra e o egoísmo como a grande virtude, fato que levou a educação para um constante amesquinhamento e empobrecimento de objetivos. Rompeu com a unidade que existia entre o saber filosófico e o saber prático. O saber prático tomou conta de tudo e o saber filosófico se tornou residual. A educação se reduziu a mero treinamento. Disto sobra a grande ameaça à democracia, à República, à cidadania e à individualidade. E assim “a escola deixará de ser o lugar de verdadeiros cidadãos e tornar-se-á um celeiro de deficientes cívicos”. Assim, a educação falha na constituição do indivíduo em sua singularidade.

Márcia Tiburi, no seu livro Filosofia Prática, afirma que a ética se situa onde a teoria e a prática se enlaçam. E para entendermos o que é a ética, a pergunta precisa ser feita já de início. Ainda se enlaçam? Ou as ações humanas se desconectaram da reflexão para ser mera ação espontânea e irrefletida. E aí vem a primeira grande característica da ética. Ela é sempre uma porta que se abre. Ela é uma permanente busca. Ela nunca é um código, um mandamento, uma receita ou uma prescrição. Ela sempre será a interação entre o pensar e o fazer, entre a reflexão e a ação. Práxis, como nos diria Marx E volta a pergunta? Ainda podemos falar em ética se o mundo foi conduzido a não pensar. Podemos falar em ética no vazio do pensamento?

O que nos impede de pensar? Milton Santos já nos respondeu que é por causa do saber prático que tomou conta de tudo, deixando à margem o saber filosófico. Já Márcia Tiburi vai mais longe, ao observar o nosso tempo de lazer, todo ele tomado pela indústria cultural, que nos impõe a cultura do mercado e do consumo. Esta cultura vende uma ideia de felicidade, que é o objetivo final de toda a ética, e submetem também, este conceito de felicidade, aos ditames da indústria cultural. A indústria cultural e a sociedade do espetáculo mataram a reflexão e, em consequência, aniquilaram também a experiência humana. Vivemos o tempo das distopias. O tempo dos sacerdotes do deus consumo, do deus mercado. Ética e felicidade são vendidas como commodities.  

 Em vez de individualidades fortes e bem constituídas temos seres amorfos, massas moldadas pelas mídias, que se apoderam de todo o tempo livre dos indivíduos, tempo livre que é, exatamente, o tempo da reflexão, da análise, da ação consciente e da experiência humana. “A vida sem exame não vale a pena ser vivida”, já vimos na frase em epígrafe, no primeiro grande livro de ética que o mundo conheceu. A Apologia de Sócrates.  Não considerar o ser humano como um ser complexo é, segundo Adorno, a primeira das características de uma personalidade autoritária. 

Mas vamos ao segundo tópico, ao da relação que estabelecemos com os outros.  Vamos à nossa outra frase em epígrafe. “Eu sou os vínculos que vou tecendo com os outros”. E então, - a grande pergunta que cabe fazer é a de como nos relacionamos? No livro Filosofia Prática, da Márcia Tiburi, no segundo capítulo ela procura responder sobre o que fazemos com os outros? Em parte, implicitamente, já respondemos quando nos interrogamos sobre nós mesmos.  O outro se defronta com os mesmos problemas do que nós, ao constituir a sua individualidade. O que pensamos sobre o outro e como nos dirigimos a ele? Como procedemos com o outro em nossas ações?

Como a relação quase sempre começa pela linguagem, vamos começar por ela a nossa análise. A linguagem se estabelece, tanto pelo diálogo, quanto pelo discurso. E a partir daí seguem mais perguntas. E as respostas se darão pelo que o outro representa para nós. As relações que estabelecemos com o outro são relações hierarquizadas, verticalizadas ou relações entre iguais? A linguagem entre iguais será sempre estabelecida pelo diálogo e nas relações hierarquizadas, como a que se dá numa sociedade dividida em classes, sempre será a do discurso. O discurso é o pronto, o estabelecido. Ele sempre terá teor moral. Ele tem origem na divisão social do trabalho, que divide os seres humanos entre os que pensam e os que fazem. 

Quais são as consequências? Se nos relacionamos pelo diálogo, pelas condições ditadas pela igualdade, o fundamento da relação se dará sempre pelo respeito, pela sua condição de sujeito, de sujeito para sujeito. Nunca de um sujeito para um objeto. Com objetos mantemos apenas contatos. Ao contrário, este respeito desaparecerá se a linguagem se der pelo discurso. Aí, ao máximo que podemos chegar, será a tolerância que, por incrível que pareça, em nossa cultura é uma palavra boa. Já a intolerância é marcada pela interdição total do diálogo. Aí entramos nos sistemas fundamentalistas dominados pelo ódio, pelos xingamentos e humilhações, tão comuns nestes tempos de cólera.

O que é a história da humanidade se a olharmos pelo prisma das relações humanas estabelecidas? É um mundo de imposições, de doutrinação e catequese, ou de relações efetivamente igualitárias e fraternas? O que é o mundo das religiões, senão um mundo de obediência e mando com vistas à dominação? Qual é o resultado final desse processo? Sujeitos autônomos ou sujeitos sujeitados?

Sobre este mundo de relações Márcia Tiburi fulmina falando do nazismo, um mundo de antirrelações: “O que o nazismo tentou nesse sentido foi eliminar o outro de uma relação. Assim como fazemos há séculos com os povos nativos do Brasil, com os pobres, com os marcados como ‘excluídos’ em geral”, apenas para já adentrar na segunda parte da fala.

Márcia Tiburi leva os seus leitores quase ao desespero ao examinar o livro de Hannah Arendt, Eichmann em Jerusalém. Ela examina o conceito da banalidade do mal. Não precisa ser um monstro para praticá-lo, como Eichmann parecia ser. Basta ter uma função burocrática de mando, para que com todo o zelo do mundo as ordens do mal sejam acatadas e cumpridas a risco. A banalidade de praticar o mal está embutida em pessoas aparentemente simples, zelosas no cumprimento de deveres.

E a nossa relação com o mundo? Como vemos a casa do nosso habitar comum? O nosso Oikos, donde deriva a palavra economia? Recorro a Susan George, ao seu irônico livro, Relatório Lugano, para fazer uma pequena abordagem. Supostamente o relatório tem a finalidade de salvar o capitalismo. Então uma equipe de especialistas é mandada para a internacional cidade de Lugano, na Suíça para elaborar este relatório. Qual é a conclusão a que chegam? A missão é impossível de ser cumprida e quem o impede é o próprio sistema capitalista.

Vou ficar apenas com uma imagem do livro, que para mim foi definitiva. É sabido que um sistema sempre é maior que um subsistema. Mas este princípio não é respeitado pelo capitalismo, que se comporta por uma inversão. Ele age como se fosse o sistema, reduzindo a natureza ao papel de subsistema. Ela tudo tem que suportar. Recursos finitos são tratados como se fossem infinitos e sempre renováveis.

Entre os problemas apontados nesta relação com o mundo se situa a questão da destruição das florestas. Elas são vistas como meros registros de entrada no livro caixa das empresas e nunca como absorvedoras do gás carbônico, como a preservação da estabilidade dos solos e da diversidade das espécies. Esses fatores não cabem na contabilidade das empresas, voltadas apenas para os lucros imediatos, típicos de uma mentalidade predatória de espírito bandeirante, tão caracteristicamente brasileira. A camada protetora de ozônio desaparecendo, as alterações climáticas calamitosas, a pesca entrando em colapso e a água cada vez mais escassa e transformada em mercadoria rara e cara, são fenômenos deliberadamente ignorados.

Os sintomas indicam estado mórbido. Mas as nações mais desenvolvidas do mundo se negam aos tratamentos recomendados. Ninguém tem a coragem de ser o primeiro. Embora preguem mudanças, continuam fazendo o mesmo. Lembro a história do palhaço, história também contada por Leonardo Boff. Enquanto o palhaço se apresentava no teatro, o teatro pegava fogo. Quanto mais ele gesticulava, berrava e se desesperava, mais o povo o aplaudia. Estava representando bem, cada vez melhor. Estavam cegos para o que não queriam ver. 

Vamos à segunda parte. Jamais esquecerei uma fala de Paulo Freire, dos idos de 1992, em Umuarama. Ele nos dizia que conhecia as elites do mundo inteiro e que nenhuma poderia ser comparada à brasileira, em seus graus de maldade e perversidade. A natureza do golpe, que acaba de se consumar no Brasil é uma triste constatação desta realidade. Basta perguntar pelos motivos que levaram a chamada “elite branca”, paulista, bandeirante, a mais um golpe. Digo e repito, a mais um golpe. Vejamos um pouco as origens da formação desta sociedade e de sua elite perversa.

Começo recorrendo a Joaquim Nabuco, um dos únicos liberais que este país realmente conheceu. Em seu livro O Abolicionismo, de 1883, ele defendia que, para além da abolição da escravidão, também a sua obra deveria ser abolida, pois ela corrompia todas as instituições. A que ele estaria se referindo? É conhecido o caráter lacônico da lei da abolição. Estabelece que ela fosse abolida e revogava as disposições contrárias. Mas as leis que preservaram a sua obra foram todas mantidas.

Manteve-se a Constituição de 1824, que proibia ao filho dos escravos negros o acesso à escola e foi mantida a Lei de Terras de 1850, que impedia o seu acesso, a não ser mediante dinheiro vivo, moeda sonante. Já no ano seguinte ao da abolição, através de um golpe, a elite branca bandeirante, instituía a República. Observem bem, uma República oligárquica e positivista. Contradição nos termos. E esta tomou como lema “Ordem e Progresso”. Pouco depois, por mais ordem, um novo golpe, o do marechal Floriano Peixoto. Resta perguntar, o que se entendia e se entende ainda hoje por ordem, já que este lema voltou? Em nome de uma ordem para poucos, menosprezamos a formação da pessoa e criamos problemas de convívio. Assim, em vez de solucionar problemas, houve a opção política pela exclusão, pelo absoluto menosprezo e ódio ao outro, ao diferente, ao pobre, ao não vencedor.

Também não poderia deixar de citar outro autor, Manoel Bomfim e o seu A América Latina – Males de origem, escrito em 1905. O escritor sergipano mostra a origem parasitária de nossos conquistadores, habituados à rapina dos povos mouros em uma guerra que já durava setecentos anos. No mesmo ano da expulsão destes, iniciam os descobrimentos marítimos. Com a cruz e espada se lançam ao novo empreendimento marcado pelos velhos hábitos do roubo, do saque e da pilhagem. A prática da escravidão é retomada com horrores sem precedentes. Escravidão também das populações indígenas.

E enquanto se discutia se negros e índios teriam, ou não, alma, os padres se esmeravam nas pregações, mostrando aos escravos a sua felicidade por terem sofrimentos que se igualariam aos sofrimentos de Jesus Cristo. Haja felicidade! Que Nietzsche nos acuda!

Em fevereiro deste ano fui com amigos para as terras missioneiras, esta fantástica invenção dos jesuítas paraguaios. Em Trinidad, no Paraguai, na missão mais bem conservada, a guia turística nos falava da perversidade dos bandeirantes. Jamais esquecerei a expressão de horror estampada em seu rosto, bem como a sua fala: Ah! Esses bandeirantes! E aqui, são os nossos heróis! O padre Montoya, um jesuíta peruano, chegou a pedir ao rei espanhol a licença para armar as populações indígenas para se defenderem da captura e da escravidão praticada pelos bandeirantes. E a licença foi obtida.

O espírito dos bandeirantes prevalece ainda hoje na formação da mentalidade da elite branca paulistana, em sua raiz predadora e parasitária. Lembram as últimas declarações do presidente da FIESP sobre a possibilidade de almoçar e trabalhar simultaneamente? Deve ter visto Os Tempos Modernos de Chaplin. Mas voltando aos índios guaranis das terras missioneiras. Estes, depois da vitória sobre os bandeirantes na batalha de M’bororé, em 1641, viveram uma das mais ricas experiências socialistas que durou até os anos de 1750, quando se realizou o Tratado de Madri. As cláusulas deste tratado ordenam a destruição desta experiência, promove a dispersão dos índios guaranis e entrega as suas terras à sanha do latifúndio. O canto missioneiro, ainda hoje, ecoa forte em seu lamento.

Estou participando de um projeto que está por organizar um curso de formação cuja temática será o estudo da violência na sociedade brasileira, das revoltas populares que dela decorreram. Cito três destas revoltas, do início da República. A destruição da experiência anarquista da Colônia Cecília, Canudos e o Contestado. A Canudos do beato Antônio Conselheiro só terminou com a maior das mobilizações do exército brasileiro até então e que, com o auxílio das polícias estaduais, liquidou  o movimento, até a morte do último combatente. O mesmo ocorreu com o povo do Contestado. Quanto a Colônia Cecília, uma guerra civil em andamento foi aproveitada para liquidar tão simpática experiência. As terras conflitadas deveriam servir ao progresso. Quantas relações com o momento presente!

Recorro ainda a Chico Oliveira para falar sobre o caráter golpista da elite brasileira. Entre os anos 1930 e 1985, quando a nação brasileira estava sendo construída, tivemos duas longas ditaduras e a cada três anos uma tentativa de golpe. Todos sempre serviram aos mesmos interesses. Os interesses de uma pequena elite, consorciada aos interesses do capital internacional. 

Os anos 1980 foram os anos da reconstrução democrática. Além dos movimentos da Anistia, pelas Diretas Já e da Constituinte, surgiram também novas demandas como a questão indígena e as relações de raça e gênero. Tempos de construção de cidadania, de consagração de direitos inscritos na Constituição de 1988, a Constituição cidadã, que nos deu a mais longa experiência democrática de nossa história.

Veio a experiência neoliberal e a sua filosofia de excelência do mercado e do privado   e a satanização dos espaços públicos. Um retrocesso sem precedentes. FHC discursava pregando (discurso) a destruição da era Vargas. Que o Brasil deveria ser visto, não mais como uma pátria/nação, mas como um mercado emergente. Um mercado de poucos vencedores e de muitos perdedores com as marcas profundas da exclusão social.

Em 2002 houve a rejeição destas políticas. Com profundas contradições, iniciou-se uma política de distribuição de renda e construção de cidadania através de políticas públicas.  O outro, o diferente, o plural e o múltiplo foram levados em consideração. Elevou-se o valor do salário mínimo, ampliaram-se as oportunidades de escolarização e a universidade ganhou a cor do povo brasileiro. Os desiguais foram tratados de forma desigual para a promoção da igualdade, e políticas públicas de complementação de renda, retiraram o Brasil do mapa da fome. O bom momento econômico das commodities sustentou estas políticas.

Veio a crise de 2008. Foi contida no começo, mas os sintomas se agravaram a partir de 2013. Os ódios explodiram, tanto à direita quanto à esquerda. Ódio ao outro, xingamentos e humilhações! Aeroporto transformado em rodoviária, pobre andando de carro, engarrafando o trânsito, diaristas e empregadas domésticas ganhando igual à patroa, o povo usando roupas de marca e até viajando para o exterior, jovens arruaceiros fazendo rolês em shopping centers. Os sinais da distinção social estavam se tornando menos visíveis. A elite enxergava grave erro nestas políticas. Todos os recursos deveriam ser drenados para aqueles que sempre deles se apoderaram, o 1% mais rico do país. O Brasil bom é o Brasil para poucos. Um golpe começa a ser tramado, primeiramente em 2013, ainda em vista das eleições presidenciais de 2014. Com o fracasso a articulação do golpe se torna clarividente.

Jessé Souza em sua recente Radiografia do golpe, assim descreve a aliança entre os seus três eixos fundamentais: “mídia venal, Congresso reacionário e comprado e a fração mais corporativa e moralista de ocasião da casta jurídica - que municiou e municia constantemente o golpe. Esses três atores trocam vazamentos ilegais e todo tipo de ilegalidade antidemocrática com tanta habilidade como o time do Barcelona troca passes". E para que o golpe? O mesmo Jessé responde que é para - "vender as riquezas brasileiras, o petróleo à frente, cortar os gastos sociais, posto que o que vale agora é apenas o interesse do 1% mais rico, e fazer a festa da turma da "privataria". Em discurso de posse o presidente golpista anuncia reformas na previdência e nas leis trabalhistas. Crises são invenções do capital no interesse da acumulação.

Tudo de acordo com a indústria cultural e da sociedade do espetáculo. Forma-se uma massa amorfa e um vazio de pensamento. Briga-se contra os próprios interesses. O desmonte social está sendo posto em prática. Os panelaços sumiram, indicando um povo feliz. E o estado policial está por vir.

Termino as minhas considerações sobre a formação da sociedade brasileira com a advertência de Jessé para um fenômeno que ele chama de intectualização do senso comum. Como funciona este processo. A elite financeira, o 1% de ricos usa de todos os instrumentos para o domínio das mentes. Para isso contam com a ciência das universidades, de seus professores e da venalidade da mídia para a sua promoção, sob o amparo da ideologia da meritocracia, transformando assim, na mente do povo, privilégios em direitos, e reivindicando para si “o direito de não ter direitos”.

 Outro expediente é o recurso tão comum dos regimes fascistas europeus, o combate à corrupção. O combate seletivo como instrumento de classe, que faz com que, ainda de acordo com Souza, “Lula - o campeão das políticas de combate à desigualdade rivalize em popularidade com Sérgio Moro - o campeão da moralidade seletiva de ocasião”.

E para terminar, procurarei estabelecer uma ligação entre as duas partes da fala. Da primeira, mais específica da ética, com a segunda, a da formação da sociedade brasileira, ou de sua deformação. Não se procurou aqui formar uma sociedade autônoma, emancipada e cidadã. Está aí uma sociedade enredada na busca de saídas fantasiosas, encontrando nas farmácias os remédios para a sua psiquiatrização, nas lotéricas, as saídas para seu desespero financeiro e nas igrejas da teologia da prosperidade, encontrar o consolo para a redução de suas vidas, à dimensão meramente econômica. Perdeu-se a significação e a perspectiva telúrica da transcendência. Um triste quadro, um triste futuro. Distopias em vez de utopias.

Busco três referências para o encerramento desta fala: A primeira em Darcy Ribeiro, daquela que considero a melhor frase sobre a realidade brasileira: "Fracassei em tudo o que tentei na vida. Tentei alfabetizar as crianças, não consegui. Tentei salvar os índios, não consegui. Tentei construir uma universidade séria, não consegui. Mas meus fracassos são minhas vitórias. Detestaria estar no lugar de quem venceu".

 A segunda, em Leonardo Boff. A imagem do cuidado, da fábula mito do cuidado, descrita em seu fabuloso livro Saber cuidar. Vejamos esta rica fábula mito, uma verdadeira e imprescindível aula de ética, de vida e de felicidade.

“Certo dia, ao atravessar um rio, Cuidado viu um pedaço de barro. Logo teve uma ideia inspirada. Tomou um pouco do barro e começou a dar-lhe forma. Enquanto contemplava o que havia feito, apareceu Júpiter.

Cuidado pediu-lhe que soprasse espírito nele. O que Júpiter fez de bom grado.

Quando, porém, quis dar um nome à criatura que havia moldado, Júpiter o proibiu. Exigiu que fosse imposto o seu nome.

Enquanto Júpiter e o Cuidado discutiam, surgiu, de repente, a Terra. Quis também ela conferir o seu nome à criatura, pois fora feita de barro, material do corpo da Terra. Originou-se então uma discussão generalizada.

De comum acordo pediram a Saturno que funcionasse como árbitro. Este tomou a seguinte decisão que pareceu justa:

Você Júpiter, deu-lhe o espírito, receberá, pois, de volta este espírito por ocasião da morte dessa criatura.

Você Terra, deu-lhe o corpo; receberá, portanto, também de volta o seu corpo quando essa criatura morrer.

Mas como você, Cuidado, foi quem, por primeiro moldou a criatura, ficará sob seus cuidados enquanto ela viver.

E uma vez que entre vocês há acalorada discussão acerca do nome, decido eu: esta criatura será chamada Homem, isto é, feita de húmus, que significa terra fértil”.

Li no livro de Fernado Savater, Ética para meu filho, a seguinte observação: “Não creio que a ética sirva para solucionar nenhum debate, embora seu ofício seja para iniciar todos eles...”.  A ética “é uma parte essencial de qualquer educação digna desse nome”. É por isso que uma universidade dedica uma semana de estudos ao tema da ética.

E..., obedeçamos à sábia decisão de Saturno e..., confiemos a nossa vida, enquanto vivos, ao Cuidado e - sejamos esta terra fértil, o humus em que se forma um indivíduo forte, autônomo e emancipado. E que este indivíduo entenda a frase que diz: “Se discordas de mim tu me enriqueces”, que o mais, na minha formação, ocorrerá com a soma das diversidades e das diferenças e que eu não goste apenas de ouvir o eco da minha própria voz. E que no encontro enriquecedor do eu e do tu, tenhamos o máximo de cuidado para com a Terra, a nossa casa comum, para que a possamos deixar para os nossos filhos num estado melhor do que a recebemos de nossos pais.

E então, já que ainda não falamos em liberdade, um pressuposto fundamental da ética, levar esta palavra em consideração, atendendo ao pedido final de Fernando Savater, em seu já citado livro: “Escolha o que abra: para os outros, para novas experiências, para diversas alegrias. Evite o que o feche e o enterre”. Façamos este exercício de liberdade e apostemos nesta escolha.

E juntos com Valter Hugo Mãe, que em seu livro O Filho de mil Homens, depois dos mais desastrados desencontros faz um dos mais divinos poemas celebrando o encontro e o sentimento de nunca mais se sentir só - possamos dizer ou rezar este verdadeiro poema, que tão bem traduz o verdadeiro significado da ética:

“Sabes, pai, gosto de pensar que nunca mais vou ficar sozinho e que alguém há de ficar comigo para sempre sem me abandonar.

O Crisóstomo disse ao Camilo: todos nascemos filhos de mil pais e de mais de mil mães, e a solidão é sobretudo a incapacidade de ver qualquer pessoa como nos pertencendo, para que nos pertença de verdade e se gere um cuidado mútuo. Como se os nossos mil pais e mais as nossas mil mães coincidissem em parte, como se fôssemos por aí irmãos, irmãs uns dos outros. Somos o resultado de tanta gente, de tanta história, tão grandes sonhos que vão passando de pessoa em pessoa, que nunca estaremos sós”.