Palestra feita na Universidade Estadual do Norte do Paraná, na cidade de Jacarezinho, no dia 14 de setembro de 2016, na IX Jornada de Debates: Encontro com a filosofia - Ética: Desafios & Possibilidades e IV Encontro de Iniciação Científica em Filosofia da UENP.
“Eu sou os vínculos que vou tecendo
com os outros”. Albert Jacquard.
“A vida sem exame não vale a pena ser
vivida”. Apologia de Sócrates.
Em junho do ano passado, eu assistia a uma palestra do
teólogo da Teologia da Libertação, Leonardo Boof, na Universidade Federal do
Paraná, sob o título de “O cuidado de si,
do mundo e do outro”. Pensei em tomar esta fala como o mote para o nosso
encontro aqui, neste dia de hoje, na cidade de Jacarezinho, neste Encontro com
a Filosofia e no seminário: Ética – Desafios & Possibilidades. Creio que,
ao falar do eu, na constituição de sua singularidade, deste eu em relação com o
outro e no encontro do eu com o tu, no mundo e na riqueza de uma convivência
harmoniosa, encontramos o grande tema da ética. No cuidado de si, do outro e do
mundo.
Inicialmente o Nilton Stein me propôs fazer uma fala sobre
ética e a atual conjuntura política brasileira. Pouco depois, em contato com o
professor Gerson Vasconcelos, chegamos ao tema Presença e ausência da ética na formação da sociedade brasileira. Creio que chegamos a um bom termo para centrar
a nossa fala em torno do eu e da sua
constituição, do tu, em toda a
relacionalidade que isso implica, relacionalidade que começa com a linguagem e
se estende por toda a complexidade do conviver, quando então já entramos no
tema da política, do viver em comum, em uma pátria, uma pátria de muitos
filhos.
Assim, necessariamente, a nossa fala se comporá de duas
partes. Na primeira abordaremos a questão filosófica da ética e na segunda,
iluminados pelo conceito da ética, analisarmos a formação da sociedade
brasileira.
Começamos então com a questão do eu, da formação da nossa
individualidade ou singularidade. Uma formação social complexa. E ponha
complexo nisso! Poderiam vocês me dizer quem são e como se constituíram? O eu
se forma na relação que se estabelece entre o indivíduo e a sociedade, com as
mais diversas mediações. Muitos disputam a formação desta nossa individualidade
ou singularidade. (Vejam a absurda questão do Projeto “Escola sem partido).
Para falar do indivíduo recorro, primeiramente, a um
magnífico artigo do professor Milton Santos, uma espécie de despedida sua, na
Folha de S.Paulo, do dia 24 de janeiro de 1999. Morreria pouco depois, em 2001.
O artigo tinha por título Os deficientes
cívicos.
Neste artigo ele definia que “em cada sociedade, a educação
deve ser concebida para atender, ao mesmo tempo, ao interesse social e ao
interesse dos indivíduos”. A partir desses interesses é que se definiriam os
princípios que norteariam a educação. Por interesse social ele entendia a
“manutenção da identidade nacional, na ideia de sucessão das gerações e de
continuidade da nação, na vontade de progresso e na preservação da cultura”.
Já pelo interesse individual, que aqui nos interessa mais de
perto, ele entende que ela “se revela pela parte que é devida à educação na
construção da pessoa, em sua inserção afetiva e intelectual, na sua promoção
pelo trabalho, levando o indivíduo a uma realização plena e a um enriquecimento
permanente”.
Depois de mostrar toda uma construção histórica da escola
pública, ele vê o desvirtuamento da educação, em tempos de globalização, um
tema constante em seus estudos. A globalização instituiu a competição como a
regra e o egoísmo como a grande virtude, fato que levou a educação para um
constante amesquinhamento e empobrecimento de objetivos. Rompeu com a unidade
que existia entre o saber filosófico e o saber prático. O saber prático tomou
conta de tudo e o saber filosófico se tornou residual. A educação se reduziu a
mero treinamento. Disto sobra a grande ameaça à democracia, à República, à
cidadania e à individualidade. E assim “a escola deixará de ser o lugar de
verdadeiros cidadãos e tornar-se-á um celeiro de deficientes cívicos”. Assim, a
educação falha na constituição do indivíduo em sua singularidade.
Márcia Tiburi, no seu livro Filosofia Prática, afirma que a ética se situa onde a teoria e a
prática se enlaçam. E para entendermos o que é a ética, a pergunta precisa ser
feita já de início. Ainda se enlaçam? Ou as ações humanas se desconectaram da
reflexão para ser mera ação espontânea e irrefletida. E aí vem a primeira
grande característica da ética. Ela é sempre uma porta que se abre. Ela é uma
permanente busca. Ela nunca é um código, um mandamento, uma receita ou uma
prescrição. Ela sempre será a interação entre o pensar e o fazer, entre a
reflexão e a ação. Práxis, como nos
diria Marx E volta a pergunta? Ainda podemos falar em ética se o mundo foi
conduzido a não pensar. Podemos falar em ética no vazio do pensamento?
O que nos impede de pensar? Milton Santos já nos respondeu
que é por causa do saber prático que tomou conta de tudo, deixando à margem o
saber filosófico. Já Márcia Tiburi vai mais longe, ao observar o nosso tempo de
lazer, todo ele tomado pela indústria cultural, que nos impõe a cultura do
mercado e do consumo. Esta cultura vende uma ideia de felicidade, que é o
objetivo final de toda a ética, e submetem também, este conceito de felicidade,
aos ditames da indústria cultural. A indústria cultural e a sociedade do
espetáculo mataram a reflexão e, em consequência, aniquilaram também a
experiência humana. Vivemos o tempo das distopias. O tempo dos sacerdotes do
deus consumo, do deus mercado. Ética e felicidade são vendidas como
commodities.
Em vez de
individualidades fortes e bem constituídas temos seres amorfos, massas moldadas
pelas mídias, que se apoderam de todo o tempo livre dos indivíduos, tempo livre
que é, exatamente, o tempo da reflexão, da análise, da ação consciente e da
experiência humana. “A vida sem exame não vale a pena ser vivida”, já vimos na
frase em epígrafe, no primeiro grande livro de ética que o mundo conheceu. A
Apologia de Sócrates. Não considerar o
ser humano como um ser complexo é, segundo Adorno, a primeira das
características de uma personalidade autoritária.
Mas vamos ao segundo tópico, ao da relação que estabelecemos
com os outros. Vamos à nossa outra frase
em epígrafe. “Eu sou os vínculos que vou tecendo com os outros”. E então, - a
grande pergunta que cabe fazer é a de como nos relacionamos? No livro Filosofia Prática, da Márcia Tiburi, no
segundo capítulo ela procura responder sobre o que fazemos com os outros? Em
parte, implicitamente, já respondemos quando nos interrogamos sobre nós
mesmos. O outro se defronta com os mesmos
problemas do que nós, ao constituir a sua individualidade. O que pensamos sobre
o outro e como nos dirigimos a ele? Como procedemos com o outro em nossas
ações?
Como a relação quase sempre começa pela linguagem, vamos
começar por ela a nossa análise. A linguagem se estabelece, tanto pelo diálogo,
quanto pelo discurso. E a partir daí seguem mais perguntas. E as respostas se
darão pelo que o outro representa para nós. As relações que estabelecemos com o
outro são relações hierarquizadas, verticalizadas ou relações entre iguais? A
linguagem entre iguais será sempre estabelecida pelo diálogo e nas relações
hierarquizadas, como a que se dá numa sociedade dividida em classes, sempre
será a do discurso. O discurso é o pronto, o estabelecido. Ele sempre terá teor
moral. Ele tem origem na divisão social do trabalho, que divide os seres
humanos entre os que pensam e os que fazem.
Quais são as consequências? Se nos relacionamos pelo diálogo,
pelas condições ditadas pela igualdade, o fundamento da relação se dará sempre
pelo respeito, pela sua condição de sujeito, de sujeito para sujeito. Nunca de
um sujeito para um objeto. Com objetos mantemos apenas contatos. Ao contrário,
este respeito desaparecerá se a linguagem se der pelo discurso. Aí, ao máximo
que podemos chegar, será a tolerância que, por incrível que pareça, em nossa
cultura é uma palavra boa. Já a intolerância é marcada pela interdição total do
diálogo. Aí entramos nos sistemas fundamentalistas dominados pelo ódio, pelos
xingamentos e humilhações, tão comuns nestes tempos de cólera.
O que é a história da humanidade se a olharmos pelo prisma
das relações humanas estabelecidas? É um mundo de imposições, de doutrinação e
catequese, ou de relações efetivamente igualitárias e fraternas? O que é o
mundo das religiões, senão um mundo de obediência e mando com vistas à
dominação? Qual é o resultado final desse processo? Sujeitos autônomos ou
sujeitos sujeitados?
Sobre este mundo de relações Márcia Tiburi fulmina falando do
nazismo, um mundo de antirrelações: “O que o nazismo tentou nesse sentido foi
eliminar o outro de uma relação. Assim como fazemos há séculos com os povos
nativos do Brasil, com os pobres, com os marcados como ‘excluídos’ em geral”, apenas
para já adentrar na segunda parte da fala.
Márcia Tiburi leva os seus leitores quase ao desespero ao examinar
o livro de Hannah Arendt, Eichmann em
Jerusalém. Ela examina o conceito da banalidade do mal. Não precisa ser um
monstro para praticá-lo, como Eichmann parecia ser. Basta ter uma função
burocrática de mando, para que com todo o zelo do mundo as ordens do mal sejam
acatadas e cumpridas a risco. A banalidade de praticar o mal está embutida em
pessoas aparentemente simples, zelosas no cumprimento de deveres.
E a nossa relação com o mundo? Como vemos a casa do nosso
habitar comum? O nosso Oikos, donde
deriva a palavra economia? Recorro a
Susan George, ao seu irônico livro, Relatório
Lugano, para fazer uma pequena abordagem. Supostamente o relatório tem a
finalidade de salvar o capitalismo. Então uma equipe de especialistas é mandada
para a internacional cidade de Lugano, na Suíça para elaborar este relatório.
Qual é a conclusão a que chegam? A missão é impossível de ser cumprida e quem o
impede é o próprio sistema capitalista.
Vou ficar apenas com uma imagem do livro, que para mim foi
definitiva. É sabido que um sistema sempre é maior que um subsistema. Mas este
princípio não é respeitado pelo capitalismo, que se comporta por uma inversão.
Ele age como se fosse o sistema, reduzindo a natureza ao papel de subsistema.
Ela tudo tem que suportar. Recursos finitos são tratados como se fossem infinitos
e sempre renováveis.
Entre os problemas apontados nesta relação com o mundo se
situa a questão da destruição das florestas. Elas são vistas como meros
registros de entrada no livro caixa das empresas e nunca como absorvedoras do
gás carbônico, como a preservação da estabilidade dos solos e da diversidade das
espécies. Esses fatores não cabem na contabilidade das empresas, voltadas apenas
para os lucros imediatos, típicos de uma mentalidade predatória de espírito
bandeirante, tão caracteristicamente brasileira. A camada protetora de ozônio
desaparecendo, as alterações climáticas calamitosas, a pesca entrando em
colapso e a água cada vez mais escassa e transformada em mercadoria rara e
cara, são fenômenos deliberadamente ignorados.
Os sintomas indicam estado mórbido. Mas as nações mais
desenvolvidas do mundo se negam aos tratamentos recomendados. Ninguém tem a
coragem de ser o primeiro. Embora preguem mudanças, continuam fazendo o mesmo. Lembro
a história do palhaço, história também contada por Leonardo Boff. Enquanto o
palhaço se apresentava no teatro, o teatro pegava fogo. Quanto mais ele gesticulava,
berrava e se desesperava, mais o povo o aplaudia. Estava representando bem,
cada vez melhor. Estavam cegos para o que não queriam ver.
Vamos à segunda parte. Jamais esquecerei uma fala de Paulo
Freire, dos idos de 1992, em Umuarama. Ele nos dizia que conhecia as elites do
mundo inteiro e que nenhuma poderia ser comparada à brasileira, em seus graus
de maldade e perversidade. A natureza do golpe, que acaba de se consumar no
Brasil é uma triste constatação desta realidade. Basta perguntar pelos motivos
que levaram a chamada “elite branca”, paulista, bandeirante, a mais um golpe. Digo
e repito, a mais um golpe. Vejamos um pouco as origens da formação desta sociedade
e de sua elite perversa.
Começo recorrendo a Joaquim Nabuco, um dos únicos liberais
que este país realmente conheceu. Em seu livro O Abolicionismo, de 1883, ele defendia que, para além da abolição
da escravidão, também a sua obra deveria ser abolida, pois ela corrompia todas
as instituições. A que ele estaria se referindo? É conhecido o caráter lacônico
da lei da abolição. Estabelece que ela fosse abolida e revogava as disposições
contrárias. Mas as leis que preservaram a sua obra foram todas mantidas.
Manteve-se a Constituição de 1824, que proibia ao filho dos
escravos negros o acesso à escola e foi mantida a Lei de Terras de 1850, que impedia
o seu acesso, a não ser mediante dinheiro vivo, moeda sonante. Já no ano
seguinte ao da abolição, através de um golpe, a elite branca bandeirante,
instituía a República. Observem bem, uma República oligárquica e positivista.
Contradição nos termos. E esta tomou como lema “Ordem e Progresso”. Pouco
depois, por mais ordem, um novo golpe, o do marechal Floriano Peixoto. Resta
perguntar, o que se entendia e se entende ainda hoje por ordem, já que este
lema voltou? Em nome de uma ordem para poucos, menosprezamos a formação da
pessoa e criamos problemas de convívio. Assim, em vez de solucionar problemas,
houve a opção política pela exclusão, pelo absoluto menosprezo e ódio ao outro,
ao diferente, ao pobre, ao não vencedor.
Também não poderia deixar de citar outro autor, Manoel Bomfim
e o seu A América Latina – Males de
origem, escrito em 1905. O escritor sergipano mostra a origem parasitária
de nossos conquistadores, habituados à rapina dos povos mouros em uma guerra
que já durava setecentos anos. No mesmo ano da expulsão destes, iniciam os
descobrimentos marítimos. Com a cruz e espada se lançam ao novo empreendimento
marcado pelos velhos hábitos do roubo, do saque e da pilhagem. A prática da
escravidão é retomada com horrores sem precedentes. Escravidão também das
populações indígenas.
E enquanto se discutia se negros e índios teriam, ou não, alma,
os padres se esmeravam nas pregações, mostrando aos escravos a sua felicidade
por terem sofrimentos que se igualariam aos sofrimentos de Jesus Cristo. Haja
felicidade! Que Nietzsche nos acuda!
Em fevereiro deste ano fui com amigos para as terras missioneiras,
esta fantástica invenção dos jesuítas paraguaios. Em Trinidad, no Paraguai, na
missão mais bem conservada, a guia turística nos falava da perversidade dos
bandeirantes. Jamais esquecerei a expressão de horror estampada em seu rosto,
bem como a sua fala: Ah! Esses bandeirantes! E aqui, são os nossos heróis! O
padre Montoya, um jesuíta peruano, chegou a pedir ao rei espanhol a licença
para armar as populações indígenas para se defenderem da captura e da
escravidão praticada pelos bandeirantes. E a licença foi obtida.
O espírito dos bandeirantes prevalece ainda hoje na formação
da mentalidade da elite branca paulistana, em sua raiz predadora e parasitária.
Lembram as últimas declarações do presidente da FIESP sobre a possibilidade de
almoçar e trabalhar simultaneamente? Deve ter visto Os Tempos Modernos de Chaplin. Mas voltando aos índios guaranis das
terras missioneiras. Estes, depois da vitória sobre os bandeirantes na batalha
de M’bororé, em 1641, viveram uma das mais ricas experiências socialistas que
durou até os anos de 1750, quando se realizou o Tratado de Madri. As cláusulas
deste tratado ordenam a destruição desta experiência, promove a dispersão dos
índios guaranis e entrega as suas terras à sanha do latifúndio. O canto
missioneiro, ainda hoje, ecoa forte em seu lamento.
Estou participando de um projeto que está por organizar um
curso de formação cuja temática será o estudo da violência na sociedade
brasileira, das revoltas populares que dela decorreram. Cito três destas revoltas,
do início da República. A destruição da experiência anarquista da Colônia
Cecília, Canudos e o Contestado. A Canudos do beato Antônio Conselheiro só
terminou com a maior das mobilizações do exército brasileiro até então e que, com
o auxílio das polícias estaduais, liquidou
o movimento, até a morte do último combatente. O mesmo ocorreu com o
povo do Contestado. Quanto a Colônia Cecília, uma guerra civil em andamento foi
aproveitada para liquidar tão simpática experiência. As terras conflitadas
deveriam servir ao progresso. Quantas relações com o momento presente!
Recorro ainda a Chico Oliveira para falar sobre o caráter
golpista da elite brasileira. Entre os anos 1930 e 1985, quando a nação
brasileira estava sendo construída, tivemos duas longas ditaduras e a cada três
anos uma tentativa de golpe. Todos sempre serviram aos mesmos interesses. Os
interesses de uma pequena elite, consorciada aos interesses do capital
internacional.
Os anos 1980 foram os anos da reconstrução democrática. Além dos
movimentos da Anistia, pelas Diretas Já e da Constituinte, surgiram também
novas demandas como a questão indígena e as relações de raça e gênero. Tempos
de construção de cidadania, de consagração de direitos inscritos na
Constituição de 1988, a Constituição cidadã, que nos deu a mais longa
experiência democrática de nossa história.
Veio a experiência neoliberal e a sua filosofia de excelência
do mercado e do privado e a satanização dos espaços públicos. Um
retrocesso sem precedentes. FHC discursava pregando (discurso) a destruição da
era Vargas. Que o Brasil deveria ser visto, não mais como uma pátria/nação, mas
como um mercado emergente. Um mercado de poucos vencedores e de muitos
perdedores com as marcas profundas da exclusão social.
Em 2002 houve a rejeição destas políticas. Com profundas contradições,
iniciou-se uma política de distribuição de renda e construção de cidadania
através de políticas públicas. O outro,
o diferente, o plural e o múltiplo foram levados em consideração. Elevou-se o
valor do salário mínimo, ampliaram-se as oportunidades de escolarização e a
universidade ganhou a cor do povo brasileiro. Os desiguais foram tratados de
forma desigual para a promoção da igualdade, e políticas públicas de
complementação de renda, retiraram o Brasil do mapa da fome. O bom momento
econômico das commodities sustentou estas políticas.
Veio a crise de 2008. Foi contida no começo, mas os sintomas
se agravaram a partir de 2013. Os ódios explodiram, tanto à direita quanto à
esquerda. Ódio ao outro, xingamentos e humilhações! Aeroporto transformado em
rodoviária, pobre andando de carro, engarrafando o trânsito, diaristas e empregadas
domésticas ganhando igual à patroa, o povo usando roupas de marca e até
viajando para o exterior, jovens arruaceiros fazendo rolês em shopping centers.
Os sinais da distinção social estavam se tornando menos visíveis. A elite
enxergava grave erro nestas políticas. Todos os recursos deveriam ser drenados
para aqueles que sempre deles se apoderaram, o 1% mais rico do país. O Brasil
bom é o Brasil para poucos. Um golpe começa a ser tramado, primeiramente em
2013, ainda em vista das eleições presidenciais de 2014. Com o fracasso a
articulação do golpe se torna clarividente.
Jessé Souza em sua recente Radiografia do golpe, assim descreve a aliança entre os seus três
eixos fundamentais: “mídia venal, Congresso reacionário e comprado e a
fração mais corporativa e moralista de ocasião da casta jurídica - que municiou
e municia constantemente o golpe. Esses três atores trocam vazamentos ilegais e
todo tipo de ilegalidade antidemocrática com tanta habilidade como o time do
Barcelona troca passes". E para que o golpe? O mesmo Jessé responde que é
para - "vender as riquezas brasileiras, o petróleo à frente, cortar os
gastos sociais, posto que o que vale agora é apenas o interesse do 1% mais
rico, e fazer a festa da turma da "privataria". Em discurso de posse
o presidente golpista anuncia reformas na previdência e nas leis trabalhistas.
Crises são invenções do capital no interesse da acumulação.
Tudo de acordo com a indústria cultural e da sociedade do
espetáculo. Forma-se uma massa amorfa e um vazio de pensamento. Briga-se contra
os próprios interesses. O desmonte social está sendo posto em prática. Os
panelaços sumiram, indicando um povo feliz. E o estado policial está por vir.
Termino as minhas considerações sobre a formação da sociedade
brasileira com a advertência de Jessé para um fenômeno que ele chama de
intectualização do senso comum. Como funciona este processo. A elite
financeira, o 1% de ricos usa de todos os instrumentos para o domínio das
mentes. Para isso contam com a ciência das universidades, de seus professores e
da venalidade da mídia para a sua promoção, sob o amparo da ideologia da
meritocracia, transformando assim, na mente do povo, privilégios em direitos, e
reivindicando para si “o direito de não ter direitos”.
Outro expediente é o
recurso tão comum dos regimes fascistas europeus, o combate à corrupção. O
combate seletivo como instrumento de classe, que faz com que, ainda de acordo
com Souza, “Lula - o campeão das políticas de combate à desigualdade rivalize
em popularidade com Sérgio Moro - o campeão da moralidade seletiva de ocasião”.
E para terminar, procurarei estabelecer uma ligação entre as
duas partes da fala. Da primeira, mais específica da ética, com a segunda, a da
formação da sociedade brasileira, ou de sua deformação. Não se procurou aqui
formar uma sociedade autônoma, emancipada e cidadã. Está aí uma sociedade
enredada na busca de saídas fantasiosas, encontrando nas farmácias os remédios
para a sua psiquiatrização, nas lotéricas, as saídas para seu desespero financeiro
e nas igrejas da teologia da prosperidade, encontrar o consolo para a redução
de suas vidas, à dimensão meramente econômica. Perdeu-se a significação e a
perspectiva telúrica da transcendência. Um triste quadro, um triste futuro.
Distopias em vez de utopias.
Busco três referências para o encerramento desta fala: A
primeira em Darcy Ribeiro, daquela que considero a melhor frase sobre a
realidade brasileira: "Fracassei em tudo o que tentei na vida.
Tentei alfabetizar as crianças, não consegui. Tentei salvar os índios, não
consegui. Tentei construir uma universidade séria, não consegui. Mas meus
fracassos são minhas vitórias. Detestaria estar no lugar de quem venceu".
A segunda, em Leonardo
Boff. A imagem do cuidado, da fábula mito do cuidado, descrita em seu fabuloso
livro Saber cuidar. Vejamos esta rica
fábula mito, uma verdadeira e imprescindível aula de ética, de vida e de
felicidade.
“Certo dia, ao atravessar um rio, Cuidado viu um pedaço de
barro. Logo teve uma ideia inspirada. Tomou um pouco do barro e começou a
dar-lhe forma. Enquanto contemplava o que havia feito, apareceu Júpiter.
Cuidado pediu-lhe que soprasse espírito nele. O que Júpiter
fez de bom grado.
Quando, porém, quis dar um nome à criatura que havia moldado,
Júpiter o proibiu. Exigiu que fosse imposto o seu nome.
Enquanto Júpiter e o Cuidado discutiam, surgiu, de repente, a
Terra. Quis também ela conferir o seu nome à criatura, pois fora feita de
barro, material do corpo da Terra. Originou-se então uma discussão
generalizada.
De comum acordo pediram a Saturno que funcionasse como
árbitro. Este tomou a seguinte decisão que pareceu justa:
Você Júpiter, deu-lhe o espírito, receberá, pois, de volta
este espírito por ocasião da morte dessa criatura.
Você Terra, deu-lhe o corpo; receberá, portanto, também de
volta o seu corpo quando essa criatura morrer.
Mas como você, Cuidado, foi quem, por primeiro moldou a
criatura, ficará sob seus cuidados enquanto ela viver.
E uma vez que entre vocês há acalorada discussão acerca do
nome, decido eu: esta criatura será chamada Homem,
isto é, feita de húmus, que
significa terra fértil”.
Li no livro de Fernado Savater, Ética para meu filho, a seguinte observação: “Não creio que a ética sirva para solucionar nenhum debate, embora
seu ofício seja para iniciar todos eles...”.
A ética “é uma parte essencial
de qualquer educação digna desse nome”. É por isso que uma universidade dedica
uma semana de estudos ao tema da ética.
E..., obedeçamos à sábia decisão de Saturno e..., confiemos a
nossa vida, enquanto vivos, ao Cuidado e - sejamos esta terra fértil, o humus em que se forma um indivíduo
forte, autônomo e emancipado. E que este indivíduo entenda a frase que diz: “Se
discordas de mim tu me enriqueces”, que o mais, na minha formação, ocorrerá com
a soma das diversidades e das diferenças e que eu não goste apenas de ouvir o
eco da minha própria voz. E que no encontro enriquecedor do eu e do tu,
tenhamos o máximo de cuidado para com a Terra, a nossa casa comum, para que a
possamos deixar para os nossos filhos num estado melhor do que a recebemos de
nossos pais.
E então, já que ainda não falamos em liberdade, um pressuposto
fundamental da ética, levar esta palavra em consideração, atendendo ao pedido
final de Fernando Savater, em seu já citado livro: “Escolha o que abra: para os
outros, para novas experiências, para diversas alegrias. Evite o que o feche e
o enterre”. Façamos este exercício de liberdade e apostemos nesta escolha.
E juntos com Valter Hugo Mãe, que em seu livro O Filho de mil Homens, depois dos mais
desastrados desencontros faz um dos mais divinos poemas celebrando o encontro e
o sentimento de nunca mais se sentir só - possamos dizer ou rezar este
verdadeiro poema, que tão bem traduz o verdadeiro significado da ética:
“Sabes, pai, gosto de pensar que nunca mais vou
ficar sozinho e que alguém há de ficar comigo para sempre sem me abandonar.
O Crisóstomo disse ao Camilo: todos nascemos filhos
de mil pais e de mais de mil mães, e a solidão é sobretudo a incapacidade de
ver qualquer pessoa como nos pertencendo, para que nos pertença de verdade e se
gere um cuidado mútuo. Como se os nossos mil pais e mais as nossas mil mães
coincidissem em parte, como se fôssemos por aí irmãos, irmãs uns dos outros.
Somos o resultado de tanta gente, de tanta história, tão grandes sonhos que vão
passando de pessoa em pessoa, que nunca estaremos sós”.