sexta-feira, 16 de setembro de 2016

Presença e ausência da ética na formação da sociedade brasileira.



Palestra feita na Universidade Estadual do Norte do Paraná, na cidade de Jacarezinho, no dia 14 de setembro de 2016, na IX Jornada de Debates: Encontro com a filosofia - Ética: Desafios & Possibilidades e IV Encontro de Iniciação Científica em Filosofia da UENP.


“Eu sou os vínculos que vou tecendo com os outros”. Albert Jacquard.

“A vida sem exame não vale a pena ser vivida”. Apologia de Sócrates.

Em junho do ano passado, eu assistia a uma palestra do teólogo da Teologia da Libertação, Leonardo Boof, na Universidade Federal do Paraná, sob o título de “O cuidado de si, do mundo e do outro”. Pensei em tomar esta fala como o mote para o nosso encontro aqui, neste dia de hoje, na cidade de Jacarezinho, neste Encontro com a Filosofia e no seminário: Ética – Desafios & Possibilidades. Creio que, ao falar do eu, na constituição de sua singularidade, deste eu em relação com o outro e no encontro do eu com o tu, no mundo e na riqueza de uma convivência harmoniosa, encontramos o grande tema da ética. No cuidado de si, do outro e do mundo.

Inicialmente o Nilton Stein me propôs fazer uma fala sobre ética e a atual conjuntura política brasileira. Pouco depois, em contato com o professor Gerson Vasconcelos, chegamos ao tema Presença e ausência da ética na formação da sociedade brasileira.  Creio que chegamos a um bom termo para centrar a nossa fala em torno do eu e da sua constituição, do tu, em toda a relacionalidade que isso implica, relacionalidade que começa com a linguagem e se estende por toda a complexidade do conviver, quando então já entramos no tema da política, do viver em comum, em uma pátria, uma pátria de muitos filhos.

Assim, necessariamente, a nossa fala se comporá de duas partes. Na primeira abordaremos a questão filosófica da ética e na segunda, iluminados pelo conceito da ética, analisarmos a formação da sociedade brasileira.

Começamos então com a questão do eu, da formação da nossa individualidade ou singularidade. Uma formação social complexa. E ponha complexo nisso! Poderiam vocês me dizer quem são e como se constituíram? O eu se forma na relação que se estabelece entre o indivíduo e a sociedade, com as mais diversas mediações. Muitos disputam a formação desta nossa individualidade ou singularidade. (Vejam a absurda questão do Projeto “Escola sem partido).

Para falar do indivíduo recorro, primeiramente, a um magnífico artigo do professor Milton Santos, uma espécie de despedida sua, na Folha de S.Paulo, do dia 24 de janeiro de 1999. Morreria pouco depois, em 2001. O artigo tinha por título Os deficientes cívicos. 

Neste artigo ele definia que “em cada sociedade, a educação deve ser concebida para atender, ao mesmo tempo, ao interesse social e ao interesse dos indivíduos”. A partir desses interesses é que se definiriam os princípios que norteariam a educação. Por interesse social ele entendia a “manutenção da identidade nacional, na ideia de sucessão das gerações e de continuidade da nação, na vontade de progresso e na preservação da cultura”.

Já pelo interesse individual, que aqui nos interessa mais de perto, ele entende que ela “se revela pela parte que é devida à educação na construção da pessoa, em sua inserção afetiva e intelectual, na sua promoção pelo trabalho, levando o indivíduo a uma realização plena e a um enriquecimento permanente”. 

Depois de mostrar toda uma construção histórica da escola pública, ele vê o desvirtuamento da educação, em tempos de globalização, um tema constante em seus estudos. A globalização instituiu a competição como a regra e o egoísmo como a grande virtude, fato que levou a educação para um constante amesquinhamento e empobrecimento de objetivos. Rompeu com a unidade que existia entre o saber filosófico e o saber prático. O saber prático tomou conta de tudo e o saber filosófico se tornou residual. A educação se reduziu a mero treinamento. Disto sobra a grande ameaça à democracia, à República, à cidadania e à individualidade. E assim “a escola deixará de ser o lugar de verdadeiros cidadãos e tornar-se-á um celeiro de deficientes cívicos”. Assim, a educação falha na constituição do indivíduo em sua singularidade.

Márcia Tiburi, no seu livro Filosofia Prática, afirma que a ética se situa onde a teoria e a prática se enlaçam. E para entendermos o que é a ética, a pergunta precisa ser feita já de início. Ainda se enlaçam? Ou as ações humanas se desconectaram da reflexão para ser mera ação espontânea e irrefletida. E aí vem a primeira grande característica da ética. Ela é sempre uma porta que se abre. Ela é uma permanente busca. Ela nunca é um código, um mandamento, uma receita ou uma prescrição. Ela sempre será a interação entre o pensar e o fazer, entre a reflexão e a ação. Práxis, como nos diria Marx E volta a pergunta? Ainda podemos falar em ética se o mundo foi conduzido a não pensar. Podemos falar em ética no vazio do pensamento?

O que nos impede de pensar? Milton Santos já nos respondeu que é por causa do saber prático que tomou conta de tudo, deixando à margem o saber filosófico. Já Márcia Tiburi vai mais longe, ao observar o nosso tempo de lazer, todo ele tomado pela indústria cultural, que nos impõe a cultura do mercado e do consumo. Esta cultura vende uma ideia de felicidade, que é o objetivo final de toda a ética, e submetem também, este conceito de felicidade, aos ditames da indústria cultural. A indústria cultural e a sociedade do espetáculo mataram a reflexão e, em consequência, aniquilaram também a experiência humana. Vivemos o tempo das distopias. O tempo dos sacerdotes do deus consumo, do deus mercado. Ética e felicidade são vendidas como commodities.  

 Em vez de individualidades fortes e bem constituídas temos seres amorfos, massas moldadas pelas mídias, que se apoderam de todo o tempo livre dos indivíduos, tempo livre que é, exatamente, o tempo da reflexão, da análise, da ação consciente e da experiência humana. “A vida sem exame não vale a pena ser vivida”, já vimos na frase em epígrafe, no primeiro grande livro de ética que o mundo conheceu. A Apologia de Sócrates.  Não considerar o ser humano como um ser complexo é, segundo Adorno, a primeira das características de uma personalidade autoritária. 

Mas vamos ao segundo tópico, ao da relação que estabelecemos com os outros.  Vamos à nossa outra frase em epígrafe. “Eu sou os vínculos que vou tecendo com os outros”. E então, - a grande pergunta que cabe fazer é a de como nos relacionamos? No livro Filosofia Prática, da Márcia Tiburi, no segundo capítulo ela procura responder sobre o que fazemos com os outros? Em parte, implicitamente, já respondemos quando nos interrogamos sobre nós mesmos.  O outro se defronta com os mesmos problemas do que nós, ao constituir a sua individualidade. O que pensamos sobre o outro e como nos dirigimos a ele? Como procedemos com o outro em nossas ações?

Como a relação quase sempre começa pela linguagem, vamos começar por ela a nossa análise. A linguagem se estabelece, tanto pelo diálogo, quanto pelo discurso. E a partir daí seguem mais perguntas. E as respostas se darão pelo que o outro representa para nós. As relações que estabelecemos com o outro são relações hierarquizadas, verticalizadas ou relações entre iguais? A linguagem entre iguais será sempre estabelecida pelo diálogo e nas relações hierarquizadas, como a que se dá numa sociedade dividida em classes, sempre será a do discurso. O discurso é o pronto, o estabelecido. Ele sempre terá teor moral. Ele tem origem na divisão social do trabalho, que divide os seres humanos entre os que pensam e os que fazem. 

Quais são as consequências? Se nos relacionamos pelo diálogo, pelas condições ditadas pela igualdade, o fundamento da relação se dará sempre pelo respeito, pela sua condição de sujeito, de sujeito para sujeito. Nunca de um sujeito para um objeto. Com objetos mantemos apenas contatos. Ao contrário, este respeito desaparecerá se a linguagem se der pelo discurso. Aí, ao máximo que podemos chegar, será a tolerância que, por incrível que pareça, em nossa cultura é uma palavra boa. Já a intolerância é marcada pela interdição total do diálogo. Aí entramos nos sistemas fundamentalistas dominados pelo ódio, pelos xingamentos e humilhações, tão comuns nestes tempos de cólera.

O que é a história da humanidade se a olharmos pelo prisma das relações humanas estabelecidas? É um mundo de imposições, de doutrinação e catequese, ou de relações efetivamente igualitárias e fraternas? O que é o mundo das religiões, senão um mundo de obediência e mando com vistas à dominação? Qual é o resultado final desse processo? Sujeitos autônomos ou sujeitos sujeitados?

Sobre este mundo de relações Márcia Tiburi fulmina falando do nazismo, um mundo de antirrelações: “O que o nazismo tentou nesse sentido foi eliminar o outro de uma relação. Assim como fazemos há séculos com os povos nativos do Brasil, com os pobres, com os marcados como ‘excluídos’ em geral”, apenas para já adentrar na segunda parte da fala.

Márcia Tiburi leva os seus leitores quase ao desespero ao examinar o livro de Hannah Arendt, Eichmann em Jerusalém. Ela examina o conceito da banalidade do mal. Não precisa ser um monstro para praticá-lo, como Eichmann parecia ser. Basta ter uma função burocrática de mando, para que com todo o zelo do mundo as ordens do mal sejam acatadas e cumpridas a risco. A banalidade de praticar o mal está embutida em pessoas aparentemente simples, zelosas no cumprimento de deveres.

E a nossa relação com o mundo? Como vemos a casa do nosso habitar comum? O nosso Oikos, donde deriva a palavra economia? Recorro a Susan George, ao seu irônico livro, Relatório Lugano, para fazer uma pequena abordagem. Supostamente o relatório tem a finalidade de salvar o capitalismo. Então uma equipe de especialistas é mandada para a internacional cidade de Lugano, na Suíça para elaborar este relatório. Qual é a conclusão a que chegam? A missão é impossível de ser cumprida e quem o impede é o próprio sistema capitalista.

Vou ficar apenas com uma imagem do livro, que para mim foi definitiva. É sabido que um sistema sempre é maior que um subsistema. Mas este princípio não é respeitado pelo capitalismo, que se comporta por uma inversão. Ele age como se fosse o sistema, reduzindo a natureza ao papel de subsistema. Ela tudo tem que suportar. Recursos finitos são tratados como se fossem infinitos e sempre renováveis.

Entre os problemas apontados nesta relação com o mundo se situa a questão da destruição das florestas. Elas são vistas como meros registros de entrada no livro caixa das empresas e nunca como absorvedoras do gás carbônico, como a preservação da estabilidade dos solos e da diversidade das espécies. Esses fatores não cabem na contabilidade das empresas, voltadas apenas para os lucros imediatos, típicos de uma mentalidade predatória de espírito bandeirante, tão caracteristicamente brasileira. A camada protetora de ozônio desaparecendo, as alterações climáticas calamitosas, a pesca entrando em colapso e a água cada vez mais escassa e transformada em mercadoria rara e cara, são fenômenos deliberadamente ignorados.

Os sintomas indicam estado mórbido. Mas as nações mais desenvolvidas do mundo se negam aos tratamentos recomendados. Ninguém tem a coragem de ser o primeiro. Embora preguem mudanças, continuam fazendo o mesmo. Lembro a história do palhaço, história também contada por Leonardo Boff. Enquanto o palhaço se apresentava no teatro, o teatro pegava fogo. Quanto mais ele gesticulava, berrava e se desesperava, mais o povo o aplaudia. Estava representando bem, cada vez melhor. Estavam cegos para o que não queriam ver. 

Vamos à segunda parte. Jamais esquecerei uma fala de Paulo Freire, dos idos de 1992, em Umuarama. Ele nos dizia que conhecia as elites do mundo inteiro e que nenhuma poderia ser comparada à brasileira, em seus graus de maldade e perversidade. A natureza do golpe, que acaba de se consumar no Brasil é uma triste constatação desta realidade. Basta perguntar pelos motivos que levaram a chamada “elite branca”, paulista, bandeirante, a mais um golpe. Digo e repito, a mais um golpe. Vejamos um pouco as origens da formação desta sociedade e de sua elite perversa.

Começo recorrendo a Joaquim Nabuco, um dos únicos liberais que este país realmente conheceu. Em seu livro O Abolicionismo, de 1883, ele defendia que, para além da abolição da escravidão, também a sua obra deveria ser abolida, pois ela corrompia todas as instituições. A que ele estaria se referindo? É conhecido o caráter lacônico da lei da abolição. Estabelece que ela fosse abolida e revogava as disposições contrárias. Mas as leis que preservaram a sua obra foram todas mantidas.

Manteve-se a Constituição de 1824, que proibia ao filho dos escravos negros o acesso à escola e foi mantida a Lei de Terras de 1850, que impedia o seu acesso, a não ser mediante dinheiro vivo, moeda sonante. Já no ano seguinte ao da abolição, através de um golpe, a elite branca bandeirante, instituía a República. Observem bem, uma República oligárquica e positivista. Contradição nos termos. E esta tomou como lema “Ordem e Progresso”. Pouco depois, por mais ordem, um novo golpe, o do marechal Floriano Peixoto. Resta perguntar, o que se entendia e se entende ainda hoje por ordem, já que este lema voltou? Em nome de uma ordem para poucos, menosprezamos a formação da pessoa e criamos problemas de convívio. Assim, em vez de solucionar problemas, houve a opção política pela exclusão, pelo absoluto menosprezo e ódio ao outro, ao diferente, ao pobre, ao não vencedor.

Também não poderia deixar de citar outro autor, Manoel Bomfim e o seu A América Latina – Males de origem, escrito em 1905. O escritor sergipano mostra a origem parasitária de nossos conquistadores, habituados à rapina dos povos mouros em uma guerra que já durava setecentos anos. No mesmo ano da expulsão destes, iniciam os descobrimentos marítimos. Com a cruz e espada se lançam ao novo empreendimento marcado pelos velhos hábitos do roubo, do saque e da pilhagem. A prática da escravidão é retomada com horrores sem precedentes. Escravidão também das populações indígenas.

E enquanto se discutia se negros e índios teriam, ou não, alma, os padres se esmeravam nas pregações, mostrando aos escravos a sua felicidade por terem sofrimentos que se igualariam aos sofrimentos de Jesus Cristo. Haja felicidade! Que Nietzsche nos acuda!

Em fevereiro deste ano fui com amigos para as terras missioneiras, esta fantástica invenção dos jesuítas paraguaios. Em Trinidad, no Paraguai, na missão mais bem conservada, a guia turística nos falava da perversidade dos bandeirantes. Jamais esquecerei a expressão de horror estampada em seu rosto, bem como a sua fala: Ah! Esses bandeirantes! E aqui, são os nossos heróis! O padre Montoya, um jesuíta peruano, chegou a pedir ao rei espanhol a licença para armar as populações indígenas para se defenderem da captura e da escravidão praticada pelos bandeirantes. E a licença foi obtida.

O espírito dos bandeirantes prevalece ainda hoje na formação da mentalidade da elite branca paulistana, em sua raiz predadora e parasitária. Lembram as últimas declarações do presidente da FIESP sobre a possibilidade de almoçar e trabalhar simultaneamente? Deve ter visto Os Tempos Modernos de Chaplin. Mas voltando aos índios guaranis das terras missioneiras. Estes, depois da vitória sobre os bandeirantes na batalha de M’bororé, em 1641, viveram uma das mais ricas experiências socialistas que durou até os anos de 1750, quando se realizou o Tratado de Madri. As cláusulas deste tratado ordenam a destruição desta experiência, promove a dispersão dos índios guaranis e entrega as suas terras à sanha do latifúndio. O canto missioneiro, ainda hoje, ecoa forte em seu lamento.

Estou participando de um projeto que está por organizar um curso de formação cuja temática será o estudo da violência na sociedade brasileira, das revoltas populares que dela decorreram. Cito três destas revoltas, do início da República. A destruição da experiência anarquista da Colônia Cecília, Canudos e o Contestado. A Canudos do beato Antônio Conselheiro só terminou com a maior das mobilizações do exército brasileiro até então e que, com o auxílio das polícias estaduais, liquidou  o movimento, até a morte do último combatente. O mesmo ocorreu com o povo do Contestado. Quanto a Colônia Cecília, uma guerra civil em andamento foi aproveitada para liquidar tão simpática experiência. As terras conflitadas deveriam servir ao progresso. Quantas relações com o momento presente!

Recorro ainda a Chico Oliveira para falar sobre o caráter golpista da elite brasileira. Entre os anos 1930 e 1985, quando a nação brasileira estava sendo construída, tivemos duas longas ditaduras e a cada três anos uma tentativa de golpe. Todos sempre serviram aos mesmos interesses. Os interesses de uma pequena elite, consorciada aos interesses do capital internacional. 

Os anos 1980 foram os anos da reconstrução democrática. Além dos movimentos da Anistia, pelas Diretas Já e da Constituinte, surgiram também novas demandas como a questão indígena e as relações de raça e gênero. Tempos de construção de cidadania, de consagração de direitos inscritos na Constituição de 1988, a Constituição cidadã, que nos deu a mais longa experiência democrática de nossa história.

Veio a experiência neoliberal e a sua filosofia de excelência do mercado e do privado   e a satanização dos espaços públicos. Um retrocesso sem precedentes. FHC discursava pregando (discurso) a destruição da era Vargas. Que o Brasil deveria ser visto, não mais como uma pátria/nação, mas como um mercado emergente. Um mercado de poucos vencedores e de muitos perdedores com as marcas profundas da exclusão social.

Em 2002 houve a rejeição destas políticas. Com profundas contradições, iniciou-se uma política de distribuição de renda e construção de cidadania através de políticas públicas.  O outro, o diferente, o plural e o múltiplo foram levados em consideração. Elevou-se o valor do salário mínimo, ampliaram-se as oportunidades de escolarização e a universidade ganhou a cor do povo brasileiro. Os desiguais foram tratados de forma desigual para a promoção da igualdade, e políticas públicas de complementação de renda, retiraram o Brasil do mapa da fome. O bom momento econômico das commodities sustentou estas políticas.

Veio a crise de 2008. Foi contida no começo, mas os sintomas se agravaram a partir de 2013. Os ódios explodiram, tanto à direita quanto à esquerda. Ódio ao outro, xingamentos e humilhações! Aeroporto transformado em rodoviária, pobre andando de carro, engarrafando o trânsito, diaristas e empregadas domésticas ganhando igual à patroa, o povo usando roupas de marca e até viajando para o exterior, jovens arruaceiros fazendo rolês em shopping centers. Os sinais da distinção social estavam se tornando menos visíveis. A elite enxergava grave erro nestas políticas. Todos os recursos deveriam ser drenados para aqueles que sempre deles se apoderaram, o 1% mais rico do país. O Brasil bom é o Brasil para poucos. Um golpe começa a ser tramado, primeiramente em 2013, ainda em vista das eleições presidenciais de 2014. Com o fracasso a articulação do golpe se torna clarividente.

Jessé Souza em sua recente Radiografia do golpe, assim descreve a aliança entre os seus três eixos fundamentais: “mídia venal, Congresso reacionário e comprado e a fração mais corporativa e moralista de ocasião da casta jurídica - que municiou e municia constantemente o golpe. Esses três atores trocam vazamentos ilegais e todo tipo de ilegalidade antidemocrática com tanta habilidade como o time do Barcelona troca passes". E para que o golpe? O mesmo Jessé responde que é para - "vender as riquezas brasileiras, o petróleo à frente, cortar os gastos sociais, posto que o que vale agora é apenas o interesse do 1% mais rico, e fazer a festa da turma da "privataria". Em discurso de posse o presidente golpista anuncia reformas na previdência e nas leis trabalhistas. Crises são invenções do capital no interesse da acumulação.

Tudo de acordo com a indústria cultural e da sociedade do espetáculo. Forma-se uma massa amorfa e um vazio de pensamento. Briga-se contra os próprios interesses. O desmonte social está sendo posto em prática. Os panelaços sumiram, indicando um povo feliz. E o estado policial está por vir.

Termino as minhas considerações sobre a formação da sociedade brasileira com a advertência de Jessé para um fenômeno que ele chama de intectualização do senso comum. Como funciona este processo. A elite financeira, o 1% de ricos usa de todos os instrumentos para o domínio das mentes. Para isso contam com a ciência das universidades, de seus professores e da venalidade da mídia para a sua promoção, sob o amparo da ideologia da meritocracia, transformando assim, na mente do povo, privilégios em direitos, e reivindicando para si “o direito de não ter direitos”.

 Outro expediente é o recurso tão comum dos regimes fascistas europeus, o combate à corrupção. O combate seletivo como instrumento de classe, que faz com que, ainda de acordo com Souza, “Lula - o campeão das políticas de combate à desigualdade rivalize em popularidade com Sérgio Moro - o campeão da moralidade seletiva de ocasião”.

E para terminar, procurarei estabelecer uma ligação entre as duas partes da fala. Da primeira, mais específica da ética, com a segunda, a da formação da sociedade brasileira, ou de sua deformação. Não se procurou aqui formar uma sociedade autônoma, emancipada e cidadã. Está aí uma sociedade enredada na busca de saídas fantasiosas, encontrando nas farmácias os remédios para a sua psiquiatrização, nas lotéricas, as saídas para seu desespero financeiro e nas igrejas da teologia da prosperidade, encontrar o consolo para a redução de suas vidas, à dimensão meramente econômica. Perdeu-se a significação e a perspectiva telúrica da transcendência. Um triste quadro, um triste futuro. Distopias em vez de utopias.

Busco três referências para o encerramento desta fala: A primeira em Darcy Ribeiro, daquela que considero a melhor frase sobre a realidade brasileira: "Fracassei em tudo o que tentei na vida. Tentei alfabetizar as crianças, não consegui. Tentei salvar os índios, não consegui. Tentei construir uma universidade séria, não consegui. Mas meus fracassos são minhas vitórias. Detestaria estar no lugar de quem venceu".

 A segunda, em Leonardo Boff. A imagem do cuidado, da fábula mito do cuidado, descrita em seu fabuloso livro Saber cuidar. Vejamos esta rica fábula mito, uma verdadeira e imprescindível aula de ética, de vida e de felicidade.

“Certo dia, ao atravessar um rio, Cuidado viu um pedaço de barro. Logo teve uma ideia inspirada. Tomou um pouco do barro e começou a dar-lhe forma. Enquanto contemplava o que havia feito, apareceu Júpiter.

Cuidado pediu-lhe que soprasse espírito nele. O que Júpiter fez de bom grado.

Quando, porém, quis dar um nome à criatura que havia moldado, Júpiter o proibiu. Exigiu que fosse imposto o seu nome.

Enquanto Júpiter e o Cuidado discutiam, surgiu, de repente, a Terra. Quis também ela conferir o seu nome à criatura, pois fora feita de barro, material do corpo da Terra. Originou-se então uma discussão generalizada.

De comum acordo pediram a Saturno que funcionasse como árbitro. Este tomou a seguinte decisão que pareceu justa:

Você Júpiter, deu-lhe o espírito, receberá, pois, de volta este espírito por ocasião da morte dessa criatura.

Você Terra, deu-lhe o corpo; receberá, portanto, também de volta o seu corpo quando essa criatura morrer.

Mas como você, Cuidado, foi quem, por primeiro moldou a criatura, ficará sob seus cuidados enquanto ela viver.

E uma vez que entre vocês há acalorada discussão acerca do nome, decido eu: esta criatura será chamada Homem, isto é, feita de húmus, que significa terra fértil”.

Li no livro de Fernado Savater, Ética para meu filho, a seguinte observação: “Não creio que a ética sirva para solucionar nenhum debate, embora seu ofício seja para iniciar todos eles...”.  A ética “é uma parte essencial de qualquer educação digna desse nome”. É por isso que uma universidade dedica uma semana de estudos ao tema da ética.

E..., obedeçamos à sábia decisão de Saturno e..., confiemos a nossa vida, enquanto vivos, ao Cuidado e - sejamos esta terra fértil, o humus em que se forma um indivíduo forte, autônomo e emancipado. E que este indivíduo entenda a frase que diz: “Se discordas de mim tu me enriqueces”, que o mais, na minha formação, ocorrerá com a soma das diversidades e das diferenças e que eu não goste apenas de ouvir o eco da minha própria voz. E que no encontro enriquecedor do eu e do tu, tenhamos o máximo de cuidado para com a Terra, a nossa casa comum, para que a possamos deixar para os nossos filhos num estado melhor do que a recebemos de nossos pais.

E então, já que ainda não falamos em liberdade, um pressuposto fundamental da ética, levar esta palavra em consideração, atendendo ao pedido final de Fernando Savater, em seu já citado livro: “Escolha o que abra: para os outros, para novas experiências, para diversas alegrias. Evite o que o feche e o enterre”. Façamos este exercício de liberdade e apostemos nesta escolha.

E juntos com Valter Hugo Mãe, que em seu livro O Filho de mil Homens, depois dos mais desastrados desencontros faz um dos mais divinos poemas celebrando o encontro e o sentimento de nunca mais se sentir só - possamos dizer ou rezar este verdadeiro poema, que tão bem traduz o verdadeiro significado da ética:

“Sabes, pai, gosto de pensar que nunca mais vou ficar sozinho e que alguém há de ficar comigo para sempre sem me abandonar.

O Crisóstomo disse ao Camilo: todos nascemos filhos de mil pais e de mais de mil mães, e a solidão é sobretudo a incapacidade de ver qualquer pessoa como nos pertencendo, para que nos pertença de verdade e se gere um cuidado mútuo. Como se os nossos mil pais e mais as nossas mil mães coincidissem em parte, como se fôssemos por aí irmãos, irmãs uns dos outros. Somos o resultado de tanta gente, de tanta história, tão grandes sonhos que vão passando de pessoa em pessoa, que nunca estaremos sós”.






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