quarta-feira, 27 de março de 2024

O Tempo e o Vento (parte II). O Retrato. Vol. 2. Érico Veríssimo.

Como no volume anterior, vamos também neste, apresentar a síntese aposta na contracapa. "O Retrato vol. 2, conclui a segunda parte de O tempo e o Vento. A trilogia - formada por O Continente, O Retrato e O Arquipélago - percorre um século e meio da história do Rio Grande do Sul e do Brasil acompanhando a saga da família Terra Cambará.

Em 1915, Rodrigo Terra Cambará constrói uma imagem de político popular e generoso, enfrentando as contradições de seus afetos privados e reafirmando sua inteireza ética e sua coragem. Com o advento do Estado Novo, muda-se para o Rio de Janeiro. Em 1945, com a queda de Vargas e bastante enfermo, volta para sua pequena Santa Fé.

No fim do Estado Novo e da Segunda Guerra Mundial, a família Terra Cambará não se reconhece no país que ajudou a construir".

O tempo e o vento (parte II). O Retrato. (vol. 2). Companhia das Letras.

Este segundo volume é praticamente todo ele dedicado ao personagem de O Retrato. Mas, antes, vejamos os seus títulos: 1. Chantecler (continuação); 2. a sombra do anjo; 3. Uma vela pro Negrinho. No primeiro volume de O Retrato, Chantecler tinha 14 capítulos. Agora, neste segundo volume, teremos os capítulos 15 a 23. A sombra do anjo terá seis capítulos, enquanto que - uma vela pro Negrinho - terá apenas um. No primeiro título teremos todos os esclarecimentos.

Logo no início, às paginas 23 e 24 temos explicitações em torno do título - Chantecler. Vejamos: "Não sei se vocês leram esta notícia... Edmond Rostand acaba de levar à cena no teatro Porte Saint-Martin a sua nova peça, Chantecler, na qual trabalhou durante doze anos. Diz o jornal que não se fala noutra coisa em Paris. As confeitarias fazem bolos, tortas e pastelões com efígie de Rostand, e a imagem de seu herói, o Chantecler, anda por todos os cantos, nas vitrinas, nas revistas, nos jornais, no coração do povo parisiense. O que se sabe sobre essa peça dá para encher toda uma biblioteca". Mais adiante teremos mais esclarecimentos sobre a peça: "Mas, afinal de contas [...] em que consiste a peça? -  Originalíssima! imaginem vocês que as personagens são quase todas animais domésticos: galos, galinhas, cães, faisões...". A descrição da peça continua, com a exaltação do galo e do "Hino ao Sol". Com certeza, Rodrigo, o Chantecler de Santa Fé.

Este Chantecler não mereceria a perenidade ou a imortalidade? Sim. Ela virá com O Retrato. Don Pepe, o anarquista e pintor espanhol se propõe esta tarefa? "Rodrigo, me gustaria pintar tu retrato de cuerpo entero... No! De alma entera". Mais adiante Don Pepe exclama: " - Chantecler! Sí, tú eres el Gallo. Tu canto ha hecho el sol alzar-se en el horizonte, y ahora el sol te acaricia el rostro. Es la mañana de tu vida..." E depois de muito tempo, depois de muitas tentativas Don Pepe, num certo dia se chega a Rodrigo, lhe trazendo o quadro. Veríssimo assim descreve a perplexidade de Rodrigo:

"Ao ver a própria imagem na tela, Rodrigo sentiu como que um soco no plexo solar. Por um momento a comoção dominou-o, embaciou-lhe os olhos, comprimiu-lhe a garganta, alterou-lhe o ritmo do coração. Quedou-se por um longo instante a namorar o próprio retrato. Ali estava, nas cores mesmas da vida, o dr. Rodrigo Cambará, todo vestido de preto (Pepe explicava que o plastrão vermelho era uma licença poética), a mão esquerda metida no bolso dianteiro das calças, a direita a segurar o chapéu-coco e a bengala. O sol tocava-lhe o rosto. O vento revolvia-lhe os cabelos. E havia no semblante do moço do Sobrado um certo ar de altivez, de sereno desafio. Era como se - dono do mundo - do alto da coxilha ele estivesse a contemplar o futuro com os olhos cheios duma apaixonada confiança em si mesmo e na vida". E um pouco mais adiante:

" - Caramba! Pepe, palavra que nunca pensei...

Tornou a contemplar o quadro. Havia naquela figura uma poderosa expressão de vitalidade. Era o retrato de alguém que amava a vida, que tinha ânsias de abraçá-la, de gozá-la totalmente e com pressa. Sim, ele se reconhecia naquela imagem: a tela mostrava não apenas sua aparência física, as suas roupas, o seu "ar", mas também seus pensamentos, seus desejos, sua alma. Como era que o diabo do espanhol tinha conseguido tamanho milagre".

Este era o Rodrigo Terra Cambará. Um retrato de um momento de extrema e pura vitalidade. Estava aí impassível e perene. O Rodrigo real era, porém, cheio de afetos e paixões. Nele, força e fraqueza se equilibravam. Tinha noção clara de seus compromissos, porém, na real ele fraquejava. O retrato o advertia. Diante dele, ele se examinava. Busca em Flora e no casamento a estabilidade em sua vida, mas não conseguia suportar os seus limites. E isso lhe trazia problemas e repreensões, especialmente as dele próprio, diante de seu retrato.

Antônia (Toni) aparece em sua vida. Tinha 20 anos e educação europeia. Ela era austríaca. Por imposições do destino veio parar em Santa Fé. Pertencia a família filarmônica dos Weber. Falava com Rodrigo, de igual para igual, sobre música, sobre literatura e sobre os mais diferentes compositores e autores. Uma explosão tórrida de paixão! E... alguns dias de recolhimento no Angico. E... as torturas da culpa e do remorso. É o título A sombra do anjo. A morte paira nas páginas desse capítulo.

Uma vela para o negrinho é a parte final desse segundo volume. É Maria Valéria, já aos 85, que ascende esta vela para o negrinho do pastoreio. Ela assiste a desintegração da família, reunida no Sobrado, tendo Rodrigo como agonizante e seus filhos divididos por diferentes credos políticos, além de um genro espertalhão, ávido à espera da herança, que lhe asseguraria uma boa vida, no Rio de Janeiro. Não sei se a vela daria conta disso tudo, mas a obra de Érico estava aberta para os três volumes seguintes de O arquipélago.

Os grandes personagens desse volume são, Rodrigo, por óbvio, além de Don Pepe, o autor do retrato, Licurgo, Toríbio e Maria Valéria, que permanecem do primeiro volume e de Flora, mais uma das personagens femininas fortes de Veríssimo. E deixo ainda uma síntese da colonização de O Continente, ou do Rio Grande do Sul, nas palavras de Eduardo, o filho comunista, stalinista, prestista de Flora e Rodrigo: 

"Eduardo voltou-se para o Retrato de Rodrigo Cambará que pendia da parede da sala, dentro de sua moldura cor de ouro velho.

Ali está o símbolo das coisas que nós comunistas combatemos. O dono da vida, o moço do Sobrado, o morgado, a flor de várias gerações de senhores feudais, muitos dos quais começaram como ladrões de gado e foram aumentando seu patrimônio por meio do saque, do roubo, da conquista à mão armada e à custa do suor e do sangue do trabalhador rural. Olha só a empáfia, a vaidade... Parece que ele está dizendo: 'Eu sou o centro do mundo, o sal da terra'"! Era de matar o pai doente! Já Floriano, o outro filho, é aprendiz de escritor... uma promessa de escritor...

Deixo ainda a resenha do volume I de O Retrato.

http://www.blogdopedroeloi.com.br/2024/03/o-tempo-e-o-vento-parte-ii-o-retrato.html


quinta-feira, 21 de março de 2024

O tempo e o vento (parte II). O RETRATO (VOL.I). Érico veríssimo.

O primeiro volume da segunda parte de O tempo e o vento, O Retrato, de Érico Veríssimo, apresenta na sua contracapa a seguinte síntese: "O Retrato é a segunda parte da trilogia O tempo e o vento, que percorre a história do Brasil e do Rio Grande do Sul acompanhando a trajetória da família Terra Cambará. Aqui Rodrigo Cambará, neto do heroico capitão Rodrigo, homem sedutor, sobranceiro, torna-se líder populista, amante das causas populares - e da própria imagem. Seu projeto é modernizar tudo - da casa onde vive à cidade inteira - e proteger os pobres. Depois de aderir ao governo de Getúlio Vargas, muda-se para o Rio de Janeiro durante o Estado Novo. Em 1945, com a queda de Vargas e já muito doente, Rodrigo volta à cidade natal para um ajuste de contas com a família". A primeira edição data do ano de 1951.

O tempo e o vento (parte II). O Retrato. (vol. I). Companhia das Letras.

Como devem ter percebido, Rodrigo Terra Cambará será o personagem absolutamente central de toda a segunda parte da trilogia. "Amante de sua própria imagem", deve ter um significado todo especial. Deve ter relação com o título O Retrato. Os personagens da primeira parte, os do Sobrado, ainda estão presentes, como Licurgo, o pai, Toríbio, o irmão e Maria Valéria, a tia e madrinha (uma nova Bibiana!). Já Rubin, um tenente nietzschiano, o coronel Jairo, o militar positivista e o fantástico Don Pepe, o espanhol anarquista serão os novos personagens que darão força para a pluralidade de posições nos diferentes debates.

Este O Retrato (vol. I), tem apenas dois títulos; 1. Rosa-dos-Ventos e 2. Chantecler. Este segundo é bem mais longo que o primeiro e está subdividido em 14 capítulos. Chantecler terá continuidade no segundo volume. Rosa-dos-Ventos é um teco-teco, com o qual Rodrigo Cambará sobrevoa a sua Santa Fé, quando em 1945 volta do Rio de Janeiro para a sua cidade, depois da queda de Vargas e fim do Estado Novo (1937-1945). Rodrigo chega a Santa Fé, duplamente mal, com a queda de Vargas e os seus problemas do coração. Além disso vê o seu sogro, que de grande estancieiro, se vê agora reduzido a pequeno arrendatário. Seus filhos aderem a diferentes posições políticas. Prestes e o queremismo serão os temas em debate.

Depois de ter situado Rodrigo em Santa Fé, com a sua volta à cidade em 1945, começa a sua história, em retrospectiva até o ano de 1909, quando triunfante chega à sua Santa Fé, com o seu título de doutor. Formara-se no curso de medicina, em Porto Alegre. Junto com o seu diploma, o acompanham muitos sonhos, planos de modernização, de revolução social e dedicação a causas humanitárias. Julgava o fato de ser admirado como a suprema felicidade do ser humano. Tinha seus vinte e poucos anos. Um Dom Quixote a querer mudar o mundo. Este é o segundo capítulo que tem por título: Chantecler.

Acima de tudo, Rodrigo chega absolutamente inconformado à sua cidade, com a arbitrariedade na política e as injustiças nas estruturas da sociedade. A cidade é dominada pelos latifundiários, categoria à qual ele própria pertencia, por alguns homens que com eles trazem a indústria e o comércio e por toda uma legião de peões e operários. O lugarejo cresce e se transforma em cidade, com a sua elevação a condição de sede de municipalidade. A família Trindade a domina politicamente. Rodrigo será oposição, com o apoio de Licurgo, seu pai e Toríbio, seu irmão. Quer mudar completamente seus hábitos, dedicar-se à clínica médica e ser um cidadão influente e exemplar em sua cidade. Toríbio, incrédulo e irreverente o observa.

O grande valor desse primeiro volume de O Retrato, é o de dar continuidade à formação histórica e política do Rio Grande do Sul (O Continente) e fazer uma minuciosa análise de sua estruturação social com a definição das diferentes camadas sociais, das que frequentam os salões do Clube Comercial até os moradores da periferia da cidade e das colônias Alemã (Pomerânia) e italiana (Garibaldina). O que mais o revolta é a permanência das instituições e a sua impenetrabilidade. As transformações são praticamente impossíveis.

O grande tema político dessa época são eleições de 1910. É o marechal Hermes da Fonseca contra Rui Barbosa. Rodrigo é defensor ardoroso de Rui Barbosa. A derrota foi acachapante. E com muita violência. Rodrigo odiava a presença dos militares na política. Na parte teórica os grandes personagens serão o tenente Rubin, adepto de Nietzsche, de sua vontade de poder e de super-homem, do coronel Jairo e o seu positivismo, do qual o Rio Grande do Sul está totalmente impregnado. 

Mas, disparadamente o personagem mais fantástico é Don Pepe, o espanhol basco. Não bastava apenas ser espanhol, tinha que ser basco. Bakunin sempre está em seu pensamento, assim como também Tolstói. Pepe esconjura padres e militares, os que dão sustentáculo ideológico para a burguesia. Só que ele é ativista apenas em sua mente, embora seja corajoso e destemido. Ele é pintor e terá ainda grande importância ao longo da obra. Será de sua autoria o tal do Retrato, aquele que não desfigurará. Com a vitória do marechal Hermes termina este primeiro volume de O Retrato.

E, como estamos vivendo (estou escrevendo no dia 15 de março de 2024) uma nova e profunda era de obscurantismo no Brasil e especialmente no Paraná, do governador Rato Júnior, que recolheu o livro de Jeferson Tenório O avesso da pele, para efeitos de análise, para ver se concede o nihil obstat e o imprimatur, deixo uma frase forte do livro e que é, seguramente o motivo da recolhida para efeitos de análise, ou então, claramente, vergonhosa censura: "Depois que a gente lê certos livros, os horizontes do espírito se alargam". Página 211. Por óbvio, a frase só poderia ter sido proferida pelo Rodrigo.

Deixo também a resenha dos dois primeiros volumes, os de O Continente.

http://www.blogdopedroeloi.com.br/2024/03/o-tempo-e-o-vento-1-o-continente-vol-1.html

http://www.blogdopedroeloi.com.br/2024/03/o-tempo-e-o-vento-parte-i-o-continente.html


domingo, 17 de março de 2024

A abolição. Pelos personagens de O Continente. Vol. 2. Érico Veríssimo.

Creio que uma das maiores virtudes de Érico Veríssimo como escritor, é o fato de dar voz aos seus personagens. E como os personagem sempre são vários, está garantida a pluralidade de vozes e de opiniões. Como o segundo volume de O Continente, da trilogia de O tempo e o vento se ocupa do final do Segundo Reinado, os temas da República e da abolição da escravidão estão onipresentes. Por isso, o post especial.

O tempo e o vento. (parte I). O Continente (Vol. 2). Companhia das Letras.

No ano de 1884, a localidade de Santa Fé é elevada a condição de cidade, sede de municipalidade. Os festejos serão enormes. Uma das solenidades ocorrerá no Sobrado da família Terra Cambará, agora sob a liderança de Licurgo, que dará manumissão aos seus escravos. A descrição que Érico Veríssimo faz é riquíssima em seus detalhes e me fez lembrar o grande abolicionista Joaquim Nabuco de que - não bastaria abolir a escravidão, seria também necessário abolir a sua obra -. A escravidão permanecerá entranhada na mente até dos próprios abolicionistas, mesmo daqueles que se anteciparam ao ato oficial do 13 de maio de 1888, como ocorreu na solenidade do Sobrado.

Como creio ser um tema candente, mesmo com tanto tempo após a abolição, tomo a liberdade de pedir licença ao Érico para uma pequena transcrição do momento em que se dá a solenidade no Sobrado, que bem mostra o indicativo de Joaquim Nabuco de que a obra da escravidão estaria ainda longe de ocorrer, ou melhor, ainda não ocorreu, mesmo nos dias de hoje. Existem, isso sim, inúmeros disfarces. Mas, vamos ao texto:

"A entrega dos títulos de manumissão foi feita no meio dum silêncio grave e comovido. Os escravos estavam no quintal, junto da porta da cozinha, e entravam à medida que seus nomes iam sendo chamados. Sob o espelho da sala de visitas, os títulos empilhavam-se em cima do consolo de mármore. Toríbio Rezende lia a lista de nomes: 'Antônio Tavares! Marcolino Almeida! Terêncio Rodrigues!', e muitas vezes Licurgo tinha que soprar-lhe ao ouvido o apelido do negro chamado, pois muitos daqueles homens já haviam esquecido os nomes de batismo. 'Maneco Torto'!, gritava Toríbio, 'Dente de Porco! Inácio Moçambique!' Por entre alas de convidados os pretos entravam na sala, piscando os olhos à luz forte, e acanhados, de cabeça baixa, sem ousarem olhar para os lados, aproximavam-se de Licurgo, recebiam o título e beijavam-lhe a mão; alguns ajoelhavam-se depois diante da cadeira em que Bibiana estava sentada e levavam aos lábios a fímbria de sua saia. Retiravam-se, estonteados, buscando aflitamente a porta da cozinha. Muitos dos escravos choraram ao receber a carta de alforria. Houve, porém, um deles que entrou de cabeça erguida, olhou arrogante para os lados, como num desafio, recebeu o título e, sem o menor gesto ou palavra de agradecimento, fez meia-volta e tornou a voltar para o quintal, impassível como um rei que acaba de receber a homenagem a que tem direito. Licurgo acompanhou-o com um olhar furibundo. Era o João Batista! Merecia uns bons chicotaços na cara. Sempre fora assim altivo e provocador. Era um bom peão, um bom domador, um trabalhador incansável, mas tinha um jeito tão atrevido, que por mais de uma vez Licurgo estivera prestes a 'ir-lhe ao lombo'.

A chamada continuava. Negros entravam e saíam. Havia entre eles homens e mulheres, moços e velhos. Licurgo começava a irritar-se. A cerimônia não só se estava prolongando demais, como também não oferecia metade da emoção que ele esperava: era uma coisa tão lenta e aborrecida como uma eleição. 'Bento Assis', gritou Toríbio. E, como o preto chamado não aparecesse, ele repetiu em voz mais alta: 'Bento Assis!'. O peão que estava à porta da cozinha gritou para fora: 'Bento Assis!'. Nenhuma resposta veio. Licurgo, que sacudia a perna nervosamente, bradou de repente: 'Bento Burro! Onde está esse animal?. 'Bento Burro', repetiu o peão. Então uma voz soturna saiu do meio dos escravos que esperavam, no sereno: 'Pronto, patrão!'. E entrou na casa.

E o desfile continuou. Licurgo mal podia conter sua impaciência. Não conseguia convencer-se a si mesmo de que aquela era uma grande hora - uma hora histórica. Não achava nada agradável ver aqueles negros molambentos e sujos, de olhos remelentos e carapinha encardida a exibir toda a sua fealdade e sua miséria naquela casa iluminada. E como eram estúpidos em sua maioria! Levavam a vida inteira para atravessar a sala e depois ficavam com o papel na mão, atarantados, sem saber que fazer nem para onde ir. Era preciso que ele gritasse: 'Agora vá embora. Não! Por ali. Volte pro quintal.

O pior era que o Sobrado já começava a cheirar a senzala.

Foi com um suspiro de alívio que entregou o último título.

E quando o último escravo desapareceu na cozinha, houve um momento de silêncio e imobilidade, como se os convidados esperassem de Licurgo algumas palavras. Mas quem falou primeiro foi a velha Bibiana:

- Agora abram as janelas para sair o bodum!

Licurgo mandou erguer as vidraças. Estava meio decepcionado. Esperava durante meses por aquele instante e no entanto ele não lhe trouxera a menor emoção. De repente viu-se cercado por amigos que lhe apertavam a mão e o abraçavam efusivamente. Um deles gritou: 'Viva o Clube Republicano! Viva o nosso correligionário Licurgo Cambará!'. Os outros gritaram em coro: 'Viva!' E começaram a bater palmas estrepitosamente. Os gaiteiros que estavam no vestíbulo romperam a tocar uma marcha. Licurgo, então, sentiu com tamanha força a beleza daquele instante, que esteve quase a rebentar em lágrimas. Foi com esforço que se conteve. Entregou-se passivamente àqueles abraços, alguns dos quais chegavam a cortar-lhe a respiração. Não ouvia as palavras que lhe diziam. Só sabia que aquele momento era glorioso, raro, grande. Com um gesto de suas mãos tinha dado liberdade a mais de trinta escravos! Lá fora estava acesa uma grande fogueira ao redor da qual os negros - agora homens livres, felizes e dignos - iam dançar, cantar, comer e beber!.

Uma preta de turbante vermelho, os dentes arreganhados, andava por entre os convidados com uma bandeja cheia de copos de cerveja. Alguém deu a Licurgo um copo, que ele apanhou e levou avidamente aos lábios, bebendo-lhe todo o conteúdo dum sorvo só, Ficou depois lambendo distraidamente os bigodes, a olhar em torno, meio zonzo, sentindo um calor e um tremor de febre, as ideias confusas e sempre aquela vontade absurda de chorar. Bibiana aproximou-se dele e abraçou-o e - pela primeira vez em muitos anos - seus lábios úmidos pousaram na face do neto num beijo chocho.

- Deus te abençoe, meu filho - balbuciou ela.

Licurgo inclinou-se, encostou uma das faces na cabeça da avó e rompeu a chorar como uma criança. Bibiana arrastou-o para o vestíbulo e depois para o escritório, cuja porta fechou apressadamente. Não queria que os convidados vissem aquele acesso de nervos de seu rapaz.

- Que é isso, Curgo? Vamos, enxugue as lágrimas. Ora, já se viu?

Licurgo passava o lenço nos olhos e nas faces e fungava, furioso consigo mesmo por ter fraquejado, e já com uma vaga vontade de brigar. Mas brigar com quem e por quê?

- Vamos botar essa gente na mesa! - exclamou de repente. - Devem estar morrendo de fome.

Puxou bruscamente a avó pelo braço, e sempre fungando, com vontade de dizer nomes feios a seus convidados e ao mesmo tempo de abraçá-los, voltou para a sala, exclamando:

- Vamos comer, minha gente! Vamos pra mesa! esta casa é de vassuncês!". Páginas 354-356.

Deixo também a resenha do vol. 2:

http://www.blogdopedroeloi.com.br/2024/03/o-tempo-e-o-vento-parte-i-o-continente.html

 

quarta-feira, 13 de março de 2024

O tempo e o vento. (parte I). O CONTINENTE. Vol. 2. Érico Veríssimo.

Na contracapa do volume 2 de O continente, temos uma esclarecedora síntese desse segundo volume de O Continente, a primeira parte da trilogia de O tempo e o vento. Vejamos: "O Continente - vol. 2 conclui a primeira parte de O tempo e o vento. A trilogia - formada por O Continente, O retrato e O arquipélago - percorre um século e meio da história do Rio Grande do Sul e do Brasil acompanhando a formação da família Terra Cambará.

O tempo e o vento (parte I). O Continente (Vol. 2). Companhia das Letras.

Aqui, as lutas da Revolução Federalista e a guerra no casarão chegam a um desfecho dramático na fictícia Santa Fé. Numa guerra sem quartel, Bibiana confronta-se com a nora, a enigmática Luzia, pela posse do Sobrado e do menino Licurgo, herdeiro da família. Distanciado, meticuloso, o médico alemão Carl Winter a tudo observa, fascinado pela tenacidade daquela gente".

Por essa pequena síntese já se faz sentir que Bibiana, Carl Winter, Luzia e Licurgo serão os personagens que ocuparão as principais páginas desse segundo volume. Vejamos os seus títulos, ou capítulos: 1. A teiniaguá; 2. O Sobrado V; 3. A guerra; 4. O Sobrado VI; 5. Ismália Caré; 6. O Sobrado VII. Grande parte do livro é tomada pela história - ou lenda - da Teiniaguá, ou A Salamanca do Jarau, lenda sempre presente na obra de Veríssimo. Vou tentar contar, em poucas palavras, essa lenda, mas na página 236, temos uma definição muito apropriada, dada pela própria Luzia, a Teiniaguá: "As pessoas normais, são as mais sem graça do mundo". Luzia tinha muita graça. Ela simplesmente encantava a todos, mas também a todos enfeitiçava. Não foi diferente com Bolívar, embora toda a permanente vigilância de Bibiana, no zelo com o seu neto Licurgo, o filho de Bolívar e de Luzia. Era preciso afastar dele a sua influência.

Vamos a lenda da Teiniaguá - ou da Salamanca do Jarau. Vou recorrer à Wikipédia para contá-la. É uma lenda que conta a história de uma princesa moura, transformada em bruxa, vinda de Salamanca para o Cerro do Jarau (Quaraí). Na lenda gaúcha ela foi transformada em lagartixa, que tinha na cabeça uma pedra brilhante, que fascinava e atraía os homens. Era uma princesa afortunada, mas que na qualidade de bruxa, era meio endemoniada. Arruinava os homens que dela se aproximavam. Pois bem, agora vamos à história de Luzia.

Apareceu em Santa Fé um tal de Aguinaldo Silva, um homem com muito dinheiro e poucos escrúpulos para ganhá-lo. Diziam-no pernambucano e agiota. Para mostrar-se afortunado, mandou construir o maior sobrado de Santa Fé. Ele veio com a sua neta, Luzia, a famosa Teiniaguá. Para o médico alemão, Dr. Carl Winter, ela era Melpômone, uma das nove musas gregas, que representava a tragédia. Tudo está armado para o Érico deslanchar no seu enredo. A tragédia estava anunciada. Bolívar se encanta por Luzia, moça de fino trato, educada na corte no Rio de Janeiro. Bibiana se transformou em permanente vigilante para amenizar a tragédia que seria esse casamento, já que não conseguia diminuir em nada a paixão de Bolívar pela moça. É o primeiro capítulo.

No segundo capítulo (O Sobrado V), vamos encontrar Licurgo Cambará, o chefe dos legalistas, comandar a resistência contra o cerco dos federalistas, disposto aos maiores sacrifícios em nome da honra e de não se dar por vencido. Terá uma grave baixa.

O terceiro capítulo, menos longo apenas que o primeiro, se ocupa de contar as loucuras da Guerra do Paraguai (1864-1870). A família Terra Cambará terá uma vítima. Florêncio voltará mutilado. Este capítulo traz uma das grandes marcas presentes na obra: os diálogos. A discussão envolve juiz, padre, militar e médico. Assim está garantida a pluralidade de opiniões. Um major, que está de olho em Luzia, agora já viúva, apresenta Caxias como o Bismarck brasileiro. A vigilância de Bibiana não permite a aproximação entre Luzia e o major. Essa guerra entre as mulheres será vencida por Bibiana. A guerra no Sobrado se arrastava por mais tempo do que a própria Guerra do Paraguai. No itálico, que segue ao capítulo, Fandango (que personagem fantástico!), o capataz da fazenda do Angico, conta histórias de suas andanças pelo Rio Grande.

No quarto capítulo, de novo no Sobrado (Sobrado VI), a espera continua. O cerco dos maragatos continua, impondo aos moradores do Sobrado, fome, cansaço e espera. Para divertir e distrair as crianças, Fandango contará as lendas do folclore gaúcho.

O quinto capítulo é dedicado a Ismália Caré. É mais um sobrenome, o dos Caré, que se juntará aos Terra Cambará. São as aventuras amorosas de Licurgo Cambará, heranças do espírito aventureiro do Capitão Rodrigo. Essas aventuras são contadas em meio as festividades programadas na agora cidade de Santa Fé, elevada à condição de município. Grandes festejos não impedem as rivalidades entre os Amaral e os Terra Cambará. Fortes entreveros na luta entre cristãos e mouros. Nos festejos o abolicionista e republicano Licurgo Cambará libertará os seus escravos. Abolição e República serão os grandes temas em debate (A abolição merecerá um post especial). Isso ocorreu no ano de 1884. Em itálico, José Lírio exaltará o monarca D. Pedro II e o personagem gaúcho de Gaspar Silveira Martins, o grande personagem da Revolução Federalista (1893-1895).

O segundo volume da parte 1 da trilogia, termina no Sobrado (Sobrado VII). Licurgo está prestes a estender bandeira branca, mas não é necessário. A Revolução terminara, com a vitória dos legalistas e a consequente derrota dos federalistas. Restou, no entanto, muita tristeza e desolação e, mais uma grave baixa no Sobrado. Mas a mais sangrenta e vingativa das revoluções chegara ao seu final, "com perda de vidas, de tempo e de dinheiro".

Deixo também a resenha do vol. I.

http://www.blogdopedroeloi.com.br/2024/03/o-tempo-e-o-vento-1-o-continente-vol-1.html

  



domingo, 10 de março de 2024

200 anos da imigração alemã. Érico Veríssimo conta como foi. O tempo e o vento.

O tempo e o vento é seguramente a maior epopeia da literatura brasileira. É o retrato perfeito de mais de duzentos anos de história, da colonização e povoação do Continente. "Veio gente de tudo que era lado", nos conta Érico Veríssimo, o seu autor. Entre as gentes que vieram estão os alemães. Por sinal, neste ano de 2024, faz duzentos anos que isso aconteceu. E Érico Veríssimo nos conta como foi. Entre os que chegaram, estão os meus antepassados. Estes chegaram um pouco mais tarde, em 1828 e fizeram - não de São Leopoldo, mas de São José do Hortêncio a sua querência. Mas, vejamos o Érico nos contando da chegada dos alemães:

O tempo e o vento (parte I). O Continente (Vol. I). Companhia das Letras.

"E as bandeiras e velas do bergantim Protetor, que está atracando no trapiche de Porto Alegre com imigrantes alemães a bordo.

S. Exa., o Presidente da Província, de chapéu alto e sobrecasaca, os espera no porto, no meio de autoridades.

Da amurada do navio, Willy olha a cidade que os casais açorianos fundaram.

Desembarca meio estonteado, de mãos dadas com a mulher: Hänsel e Gretel, coitados, perdidos na floresta.

Num batelão com outras famílias de imigrantes sobem o rio dos Sinos, de águas barrentas e margens baixas, rio sem história, sem castelos, sem ondinas nem Loreleis.

Tornam a pisar terra firme, entram num carro de bois.

Este é o lote que te toca, Willy. Agora não passarás mais fome como em tua terra natal.

Willy olha a mata. Verflucht! É preciso derrubar árvores, virar a terra e antes de mais nada fazer uma casa. Mas o alfaiate Willy não sabe construir casas. Senta-se numa pedra e fica olhando as nuvens e achando que Gott wird helfen.

Outras levas de imigrantes chegam. São da Renânia, do Palatinado, de Hesse, da Pomerânia, da Baixa Saxônia e da Vestfália.

O ar da antiga Feitoria do Linho-Cânhamo se enche do som de machados, martelos e vozes estrangeiras. Árvores tombam, picadas se abrem, e escondidos dentro do mato bugres e bugios espiam intrigados aqueles homens louros.

Heirich ficou debaixo dum cedro com o peito esmagado.

Kurt foi mordido por uma cobra.

Um índio furou o olho de Jacob com um frechaço.

Schadet nichts!

Dão à colônia o nome de São Leopoldo.

Ach mein Gott! Não gosto de charque nem de pão de milho nem de feijão com arroz. Quem me dera ter batatas, sauerkraut, pão de centeio e alguns litros de cerveja!

Willy experimenta o mate chimarrão, queima a língua, cospe longe a água verde e amarguenta. Mas Hans o ferreiro prova e gosta, veste chiripá, se amanceba com mulata e, vergonha da colônia, muda de nome: é João Ferreira.

Uma tarde em casa, nas faldas da serra Geral, Werner escreve ao seu Vetter Fritz, que ficou na Alemanha:

[...] o governo não nos deu tudo que prometeu, mas com o amor de Deus vamos vivendo.

Como não havia mais terras devolutas em São Leopoldo, nos mandaram aqui para a serra, onde existem índios ferozes.

Graças à divina Providência não passamos mais fome. Temos comida em abundância e nossa terra dá feijão branco e preto, milho, arroz e batata. Imagina, Fritz, batata! Também planto fumo, que é da melhor qualidade.

Deves vir também para cá. A viagem foi longa e dura, passei perigos e agruras, mas estou certo de que dentro de poucos anos serei um homem rico.

Olha, Fritz, tu que tanto gostas de frutas viverias aqui muito feliz, pois esta boa terra produz limas e limões, bananas, laranjas, ananases, figos, maças, melancias e melões. Agora vou plantar linho e algodão, e um dia talvez...

Werrner parou de escrever porque estava na hora de voltar para a lavoura. Nunca chegou a terminar a carta, pois naquele mesmo dia os índios atacaram a picada e mataram os colonos. Werner caiu de borco com uma frecha cravada nas costas. A última palavra que disse, babujando a terra de sangue, não foi o nome do Vaterland nem o de algum ente amado. Foi Scheisse!

Um dia um gaúcho andarengo e pobre passou a pé por São Leopoldo.

Olha a colônia que já tomava jeito de vila, viu homens trabalhando nas roças, ferreiros batendo bigorna, seleiros fazendo lombilhos, moleiros moendo trigo, padeiros fazendo pão, e como passasse por sua frente um filho de Willy, grandalhão, corado, feliz, bem montado num lindo alazão, o caboclo teve um súbito ímpeto de revolta e gritou:

Alamão batata!

E se foi, desagravado, erguendo poeira do chão com seus pés descalços.

Depois veio a guerra com os castelhanos. Formaram nas colônias uma Companhia de Voluntários alemães.

E de vários pontos da Província cinco Carés foram levados a maneador para as tropas nacionais como voluntários.

Nunca ficaram sabendo direito contra quem brigavam nem por quê.

Mas lutaram como homens, e nenhum deles desertou. Eram magros mas rijos.

Foi nessa mesma guerra que um tal Tenente Rodrigo Cambará um dia avançou a cavalo contra uma bateria castelhana e com um laço de onze braças laçou uma boca-de-fogo inimiga e se precipitou com ela, gritando e rindo a trancos e barrancos, para as linhas brasileiras.

Por essa e por outras ganhou uma medalha e foi promovido a capitão.

Pedro Caré nessa guerra teve um braço amputado. E nunca recebeu soldo.

Quando veio a paz voltou à vida antiga.

Onde foi que perdeu o braço?

Na guerra.

Não faz muita falta?

Nem tanto. Graças a Deus me cortaram só o braço.

E meio rindo ele mostrava sua china, que tinha um filho no colo e outro na barriga.

Por essa e por outras que a raça dos Carés continuou".

Creio que, também no Continente, junto com Jorge Amado, podemos dizer: "há de nascer, de crescer e de se misturar" e "Quanto mais misturado, melhor". De acordo com a narrativa de Érico, os alemães também chegaram a Santa Fé e, para o desespero do padre Lara, eram protestantes!. Deixo o link da resenha geral do livro.

http://www.blogdopedroeloi.com.br/2024/03/erico-verissimo-descreve-as-missoes-o.html

Sobre a imigração alemã, também tenho alguns posts. Deixo aqui o link de dois deles. Os imigrantes do Hunsrück: http://www.blogdopedroeloi.com.br/2017/10/os-imigrantes-do-hunsruck-haus-weber.html e sobre São José do Hortêncio: http://www.blogdopedroeloi.com.br/2017/10/historia-de-sao-jose-do-hortencio.html



quinta-feira, 7 de março de 2024

Erico Veríssimo descreve AS MISSÕES. O tempo e o vento. O Continente. Vol. I

Tenho muitos orgulhos em minha vida. Um deles, e dos grandes, foi ter estudado e conhecido as terras missioneiras, uma das experiências mais fantásticas ao longo de toda a história. Li, do padre jesuíta suíço, Clóvis Lugon A República Comunista Cristã dos guaranis, um dos melhores livros que tenho em minha pequena, mas selecionada biblioteca. E de Umberto Eco trago a monumental frase de que o Papa Francisco é um jesuíta paraguaio, isto é, Francisco é um missioneiro, um herdeiro do espírito das missões. Tenho também músicas dos troncos missioneiros, músicos e payadores, da cidade de São Luiz Gonzaga, do coração da região missioneira do Rio Grande do Sul. Os padres jesuítas sempre admiraram a virtude musical dos guaranis. 

O tempo e o vento. (parte I). O Continente (Vol. I). Companhia das Letras.

Para situar e datar as Missões, algumas informações: As Missões ou Reduções, foram as experiências de colonização feitas pelos padres jesuítas alemães  em território paraguaio, isto é, reuniam os índios em aldeias (reduções) ou pequenas cidades, vivendo basicamente de forma coletiva. Tomo como datas referência, os anos de 1641, quando ocorreu a Batalha de M'bororé, em que os missioneiros rechaçaram os bandeirantes e 1750, quando ocorreu o Tratado de Madri, em que houve a troca entre os portugueses e espanhóis dos sete povos das Missões pela Colônia do Sacramento e o compromisso de - os dois povos - fazerem a limpeza da área, isto é, expulsar os indígenas dessas terras. Isso não ocorreu pacificamente. Ocorreram as chamadas guerras guaraníticas, das quais Sepé Tiaraju é o grande herói. Foram mais de cem anos de uma experiência apaixonante e muito bem sucedida. Hoje, sete das Reduções são Patrimônio da Humanidade. Duas no Paraguai, quatro na Argentina e São Miguel, no Rio Grande do Sul. Na época, tudo era Paraguai.

Érico Veríssimo, ao escrever sobre a formação de O Continente de São Pedro do Rio Grande, traz a sua história em retrospectiva e nos apresenta um de seus personagens, o fantástico índio Pedro Missioneiro, que com a sua relação com Ana Terra, dá origem aos Terra, da qual serão protagonistas Ana Terra, Pedro Terra e Bibiana Terra. Esta, ao se casar com Rodrigo Cambará, dará origem aos Terra-Cambará, personagens da épica formação do povo rio-grandense. Mas Érico também se entusiasmou com a experiência das Missões e assim as descreveu:

"Uma tarde, à hora do crepúsculo (foi no ano de 1750, por ocasião da Páscoa) Alonzo parou no centro da praça, contemplou a catedral e sonhou de olhos abertos com o Mundo Novo. Havia de ser algo tão belo e sublime que a mais rica das imaginações mal poderia conceber.

Os povos não mais seriam governados por senhores de terras e nobres corruptos. Seria a sociedade prometida nos Evangelhos, o mundo do Sermão da Montanha, um império teocrático que havia de erguer-se acima das nações, acima de todos os interesses materiais, da cobiça, das injustiças e das maquinações políticas. Um mundo de igualdade que teria como base a dignidade da pessoa humana e seu amor e obediência a Deus. Nesse regime mirífico o homem não mais seria escravizado pelo homem. Não haveria mais exaltados e humilhados, ricos e pobres, senhores e servos. Que direito tinha uma pessoa de se apossar de largas extensões de terra? A terra, Deus a fizera para todos os homens. O que era de um devia ser de todos, como nos Sete Povos. Todas as criaturas tinham direito a oportunidades iguais. Não era, então, maravilhoso transformar-se um índio pagão num cristão, num artista, num músico, num escultor, num ourives, num arquiteto? Quantos milhares de seres havia no globo que vegetavam na ignorância e na miséria por falta apenas de quem lhes iluminasse o entendimento, despertando-lhes o desejo de melhorar, de criar coisas úteis e belas com a mão e o espírito que Deus lhe dera!? Mas para conseguir esse mundo ideal era primeiro necessário combater todos aqueles que por indiferença ou egoísmo se negavam a baixar os olhos para os humildes. Alonzo, que fora sempre um estudioso da história, sabia que os homens em todos os tempos foram sempre levados ao pecado pelo diabo, e a arma de que o diabo mais se servia era o desejo de riqueza, poder e gozo. Para conseguir essa riqueza, essa força e esses prazeres, não hesitavam em escravizar as outras criaturas. E a melhor maneira de conservá-las em estado de escravidão era mantê-las na ignorância. Pagavam soldados não só para defender-lhes as vidas e os bens como também para alargar-lhes as conquistas. Mas esses senhores consistiam numa minoria. Ah! Um dia esses eternos humilhados, esses eternos escravos haveriam de tomar consciência de sua força e erguer-se! Mas era indispensável que tal levante se fizesse não em nome do ódio, da vingança e da destruição, mas sim em nome de Deus e da Suprema Justiça.

A missão da Igreja - e neste ideal extremado Alonzo sabia que estava só - devia ser a de promover essa revolução. O trabalho da Companhia de Jesus já havia começado na América. Era preciso primeiro conquistar o Novo Continente, livrar o índio da influência do homem branco, organizar uma grande república teocrática que depois, aos poucos, poderia estender a outras terras a sua influência e o seu exemplo. Ah! Mas para conseguir esse supremo bem os jesuítas seriam obrigados a usar meios aparentemente ignóbeis. Teriam de ser obstinados e implacáveis. No princípio seria necessário exercer uma ditadura justa mas inexorável. Não havia outra alternativa. Seriam os fiadores dessa Revolução em nome de Deus, pois o povo não estava ainda esclarecido, não sabia o que lhe convinha, e portanto podia ser facilmente ludibriado pelos poderosos. Era pois imprescindível que os sacerdotes exercessem na terra a ditadura em nome de Deus até que um dia (dali a quantos anos? cem? duzentos? mil? que importava o tempo?) fosse possível atingir aquele estado ideal, conseguir a igualdade entre as criaturas, a paz e a felicidade universal.

Agora, porém, era preciso lutar, pregar, instruir, influir no espírito das gentes, educar e disciplinar a juventude, exercer uma censura feroz em todos os setores da vida daqueles povos a fim de que eles se habituassem a pensar de acordo com a Ideia Nova. Um dia haveria sobre a face da Terra governos justos, e não mais instrumentos secretos e cruéis de satanás. Até lá, porém, era inevitável que os sacerdotes suassem sangue, não cedessem às fraquezas de seus corações, tivessem a coragem de parecer tirânicos. Seriam odiados, caluniados, perseguidos, apresentados como monstros. Os senhores do mundo haveriam de atirar contra eles expedições militares punitivas. Ah! Mas ele conhecia a história. A justiça de Deus estava visível nas entrelinhas dos fatos. Que significavam as guerras contínuas entre nações, ducados e principados senão que a humanidade vivia em desentendimento porque era corrupta e adorava o bezerro de ouro? Por que países como Portugal e Espanha vivam sempre em guerras? Era porque faltava entre os povos separados por línguas e costumes diferentes um elemento de unidade espiritual. Esse elemento de unidade, esse denominador comum das almas só poderia ser um: o temor e o amor a Deus. Era em nome de Deus que eles, soldados da Igreja, tinham de lutar. Não haviam de recuar diante de nenhum obstáculo. O fim era bom: todos os meios para chegar a ele seriam necessariamente lícitos". Páginas 64 a 66.

Deixo ainda dois posts sobre o tema das Missões: A resenha do livro do padre Clóvis Lugon: Mas antes a resenha do primeiro volume de O Continente.

http://www.blogdopedroeloi.com.br/2024/03/o-tempo-e-o-vento-1-o-continente-vol-1.html

http://www.blogdopedroeloi.com.br/2016/03/a-republica-comunista-crista-dos.html  E a afirmação de Umberto Eco, de que o Papa Francisco seria um jesuíta paraguaio.

http://www.blogdopedroeloi.com.br/2016/02/francisco-e-um-jesuita-paraguaio.html

segunda-feira, 4 de março de 2024

O tempo e o vento 1. O CONTINENTE. Vol. 1. Érico Veríssimo.

A julgar por mim, todo o velho é um saudosista. E desse saudosismo faz parte o desejo por releituras. Há um certo tempo tomei a decisão de reler Érico Veríssimo. Comecei com Incidente em Antares, livro com o qual introduzi a literatura em minhas aulas, mas o meu objetivo mesmo era reler O tempo e o vento. Depois de lido o primeiro volume de O continente tenho a dizer apenas - porque não fiz isso muito antes! O livro é um mergulho profundo no interior desse continente fantástico, na formação desse povo fabuloso, fruto da maior miscigenação de povos existente na história. Mostrar essa formação histórica, no garrão sul desse Continente, sempre foi o grande objetivo do escritor. 

O tempo e o vento [parte I]. O Continente. Vol. I. Érico Veríssimo.

Ao final do primeiro volume dessa fantástica e épica obra encontramos as suas origens, a gênese de sua concepção, ao final desse volume: "Quando publica O continente. em 1949, Érico Veríssimo já é um escritor consagrado. As primeiras notas do romance que se tornaria O tempo e o vento, datam de muito antes, de 1941, embora a ideia já lhe tivesse ocorrido em 1939.

Em O resto é silêncio, de 1943, sete personagens presenciam o suicídio de uma jovem em Porto Alegre. No final do romance, o escritor Tônio Santiago, está no Teatro São Pedro, ouvindo a Quinta Sinfonia de Beethoven, quando tem a visão da história do Rio Grande do Sul como uma sinfonia. Nessa imagem sucedem-se personagens e momentos desde a época das Missões, até os dias contemporâneos. O que deflagra o devaneio do escritor é uma associação vertiginosa de tempo e espaço: 'Quando o tema da Quinta Sinfonia preocupava o espírito do compositor, os antepassados da maioria das pessoas que enchiam o teatro andavam pelas campinas do Rio Grande do Sul a guerrear com os espanhóis na disputa das missões' (O resto é silêncio, capítulo 45, 'Sinfonia').

Érico tinha planejado escrever toda a ação de O tempo e o vento num único romance de oitocentas páginas, mas acabou por desdobrá-la em três: O Continente, cuja ação vai de 1745 a 1895, e O Retrato e O Arquipélago, que falam de fatos transcorridos entre 1895 e 1945". A história do Rio Grande do Sul concebida como uma sinfonia, uma sinfonia grandiosa, épica. Vamos a uma pequena resenha do primeiro volume, partindo da síntese da contracapa:

"O Continente abre a mais famosa saga da literatura brasileira, O tempo e o vento. A trilogia - formada por O Continente, O Retrato e O Arquipélago - percorre um século e meio da história do Rio Grande do Sul e do Brasil, acompanhando a formação da família Terra Cambará. Num constante ir e vir entre o passado - as Missões, a fundação do povoado de Santa Fé - e o tempo do Sobrado sitiado pelas forças federalistas, em 1895, desfilam personagens fascinantes, eternamente vivos na imaginação dos leitores de Érico Veríssimo: o enigmático Pedro Missioneiro, a corajosa Ana Terra, o intrépido e sedutor Capitão Rodrigo, a tenaz Bibiana". Reforçando, a origem da família Terra Cambará. O índio Terra e o paulista (tropeiro - mais guerreiro que tropeiro) Cambará. Que personagens!

A narrativa se apresenta em forma de retrospectiva. Ela começa no Sobrado, onde está entrincheirado Licurgo Cambará, chefe legalista, dos chamados republicanos. Os federalistas sitiaram o Sobrado. O clima é de total pavor. Os federalistas praticamente dominam o Rio Grande, embora o governador seja a favor do presidente, o marechal Floriano Peixoto. A partir daí é que começa a retrospectiva. Observem o sobrenome do homem do Sobrado, Licurgo Cambará. Para bem entender essa questão, trago algumas informações da Revolução Federalista. Ela ocorreu no Rio Grande do Sul, entre os anos de 1893 a 1895 e chegou ate as terras paranaenses. Tenho anotado as seguintes observações.

Revolução Federalista. 1893-1895. Uma divisão entre os republicanos, que defendiam a centralização em torno do sanguinário governo de Floriano Peixoto (Ah, os militares na política brasileira), do qual o governador Júlio de Castilhos era aliado. Usavam um lenço branco e eram chamados de pica-paus. Em Santa Fé, seu principal expoente era Licurgo Cambará. 

Do outro lado estavam os federalistas, que defendiam a descentralização, isto é, uma maior autonomia administrativa para as províncias, ideais que vem de longa data, e eram comandados por Gaspar Silveira Martins. Usavam lenço vermelho e eram chamados de maragatos. A vitória coube ao governo florianista, num dos episódios que mais ensanguentou este país. Foi a Revolução da chamada degola. Sempre afirmo que a nossa República conseguiu ser muito pior do que a nossa monarquia. Os militares tomaram gosto pela política e nela intervém, sempre que privilégios são ameaçados. Uma herança... (desculpem a digressão).

O livro tem sete títulos, que seriam os capítulos. Vejamos: O Sobrado I; A fonte; O Sobrado II; Ana Terra; O Sobrado III; Um certo capitão Rodrigo; O Sobrado IV. A primeira retrospectiva está em A fonte. Ela retrocede até o ano de 1745. Em 1750 ocorreria o Tratado de Madrid, que trocaria os sete povos das missões (possessão espanhola) com a Colônia do Sacramento (posse portuguesa). Os dois povos se comprometeram com a pacificação das áreas, isto é, acabar com os indígenas ou então fazê-los retornar às suas áreas de origem, em terras paraguaias. São as guerras guaraníticas, onde se destaca um grande personagem, Sepé Tiaraju, ou o São Sepé. São - de santo. Não canonizado pela Igreja, mas sim, pela concepção popular. Após o Tratado, Portugal deveria tomar conta das terras entre Laguna e a Colônia do Sacramento. Missão complicada. No interior do Continente praticamente existia apenas Rio Pardo.

Uma pacata família morava nas imediações de Rio Pardo e, de certa forma, até tiveram algum progresso. A família tinha dois filhos e uma filha, a  Ana Terra. Essa família acode a um ferido, de origem índia, que viera das terras missioneiras. Era Pedro Missioneiro. Ele engravidou Ana Terra. Seus irmãos, por ordem do pai, deram cabo dele. Desse relacionamento nasce Pedro Terra, pai de outro personagem central do livro, Bibiana. Mas aguardemos.

Esta família sofreu a invasão dos castelhanos e dela sobraram apenas as mulheres e crianças. Um dia aparece um carroceiro, a quem seguem para um novo povoado que se iria iniciar. Santa Fé, sob o comando dos Amaral. A narrativa volta ao Sobrado e a vila em guerra. Depois volta para Ana Terra, que se estabelece na cidade com o filho Pedro e os netos Juvenal e Bibiana. Ana será a parteira da cidade. A narrativa mais uma vez se volta ao Sobrado para retornar a Santa Fé, onde chega - possivelmente um dos mais fantásticos personagens da Literatura Brasileira. Rodrigo Cambará, ou - um certo capitão Rodrigo. Rodrigo não cabe no imaginário de ninguém. É muito diferente de todos. Bonachão, briguento e sedutor. Sedutor, inclusive de Bibiana. Ocorre então a mistura entre os Terra e os Cambará. Os Terra- Cambará. Bolívar e Leonor.

Com Rodrigo Cambará em cena, irrompe a Revolução Farroupilha (1835). Rodrigo era amigo de Bento Gonçalves. Os caciques de Santa Fé, os Amaral, ficam ao lado do governo, e Rodrigo, que partira para Rio Pardo, aderir a Revolução, volta a Santa Fé e toma a cidade. Apesar de todas as estripulias do capitão, os seus amores insaciáveis, Bibiana nunca se queixou e intimamente parecia ser feliz. Rodrigo era diferente e era o seu marido. A narrativa volta ao Sobrado.

Na narrativa, Érico introduz em itálico outros aspectos da história do Continente de São Pedro do Rio Grande: a povoação do continente, a chegada dos imigrantes alemães (1824) e a Revolução Farroupilha. São páginas notáveis. Vou fazer posts em separado. Quero destacar ainda, ou salientar os três personagens maiores desse primeiro volume de O Continente. Ana Terra, Bibiana Terra e Rodrigo Cambará.