quarta-feira, 30 de outubro de 2024

MADAME BOVARY. Gustave Flaubert.

Uma das mais extraordinárias experiências educacionais que eu tive na minha vida foi o envolvimento em um trabalho de leituras, desenvolvido na Universidade Positivo, sob o título Ler e pensar. Participei desses trabalhos, tanto assistindo, quanto apresentando grandes obras. Para isso, tive que estudar muito  e, em consequência, também aprender muito. Num desses trabalhos lemos a obra Madame Bovary, de Gustave Flaubert (1821 - 1880), o pai do realismo. A orientadora dessa leitura era uma especialista na obra do autor, professora na Universidade Federal do Paraná. A obra apareceu sob a forma de folhetim, em 1856 e em livro, já livre de censura, em 1857.
Madame Bovary. Gustave Flaubert. Abril. 1972. Tradução: Araújo Nabuco.


Um breve olhar para a data da publicação nos mostra uma França extremamente agitada num período de grandes transformações (os fatos de 1848) com uma rápida ascensão da burguesia e uma profunda mudança nos costumes. Flaubert ousa abordar o tema tabu dos desejos de uma mulher. Ema, (Rouault de família e Bovary pelo casamento), é a personagem escolhida. Ela, de origem campeira, fora aluna de um colégio de freiras, onde se encantou com a literatura romântica que a tornou uma menina sonhadora e portadora de muitos desejos. Desejava viver intensamente. Aventuras românticas inebriantes. Essas seriam de difícil realização em um ambiente rural, de uma pacata vida no interior.

Apesar de Ema ser a personagem central da obra, ela começa e termina com outro personagem, Carlos Bovary, um médico viúvo da cidadezinha de Tostes. Ele faz um atendimento simples na casa de Rouault, fato que o aproxima de Ema. Esta vê em Carlos uma possibilidade de mudança de ares. Casam-se. Mas aí, como geralmente acontece na literatura romântica, eles, tanto os romances quanto os sonhos, acabam. Carlos Bovary não tinha encantos. Carlos era pragmático, todo devotado ao trabalho. Quase nem a percebia, embora a amasse. Ele era assim. Ema sofria. Carlos não correspondia aos personagens de suas leituras.

A família Bovary muda de ares. Vão morar em outra cidadezinha, em Yonville. Ali, com muitas dificuldades, recomeçam a vida. Novos personagens entram em cena. Entre eles, alguns fundamentais, como o jovem Léon, o esperto farmacêutico Homais, o inescrupuloso comerciante L'Heureux (observem o termo, seu significado: feliz, contente, alegre), e  Rodolfo Boulanger (seu primeiro amante). Ruão, uma cidade maior, ficava próxima. Esses novos personagens são personagens burgueses, todos portadores de uma nova moral, uma moral sem comprometimentos, uma moral em busca da ascensão econômica, social e de reconhecimento. Muitos fatos ocorrem. Carlos não foge dessa moral. Em busca de fama, deixa se iludir pelo ambicioso farmacêutico, que lhe sugere uma cirurgia em um pé defeituoso. O episódio quase o arruína e ele termina em amputação da perna. Com Rodolfo, Ema se envolve em uma fuga amorosa não consumada e junto a L'Heureux submerge em dívidas, notas promissórias e procurações. Léon se mudara para Ruão.

Carlos de nada desconfiava, embora todas as falações na cidade. Há também os conselhos do cura, a quem a pobre e desencontrada Ema que, em suas crises, promete se tornar uma santa. O casal, para desespero de Ema, tem uma filha (queria um menino). Berta, praticamente ausente em suas vidas. Uma ida ao teatro, em Ruão, a faz reencontrar Léon. Uma explosão de uma tórrida paixão e um passeio em uma acelerada carruagem, em plena tarde, coisa que nunca se vira, nem mesmo em Ruão. Mas a moral burguesa não permitia compromissos ou comprometimentos, apenas usufrutos. E Ema, atordoada em dívidas, busca um fim aos agitos de sua vida, num final trágico. Carlos, com um ataque apoplético, também tem a sua vida de dores e sofrimentos encerrada. Ficara sabendo de tudo, mas generosamente a perdoava. Sobra a desamparada Berta, acolhida por familiares remanescentes.

Em meu livro, o do número 4 da coleção Os Imortais da Literatura Universal, eu tenho dois apontamentos, que foram feitos por ocasião do nosso trabalho de leitura. O primeiro é o seguinte: Ele o abriu e não encontrou nada. Trata-se de uma referência à parte final da obra, quando o dr. Canivet,  médico famoso, vem fazer a autópsia de Carlos e não encontrou nada  de extraordinário em sua morte. A segunda diz assim: Todos os finais são irônicos. Carlos, como personalidade, estava em julgamento.

Por se tratar de uma obra muito polêmica, obra que inclusive abre o período do realismo na literatura e por ter sido envolvida em censura e o autor submetido a julgamento, deixo as anotações alusivas a esses fatos, tirados do livro de mini biografias que acompanha a coleção. Creio que esclarecem bastante. Elas tem o sugestivo título de O Escândalo do adultério;

"Em julho de 1851, após um longo período de inatividade, Flaubert inicia a composição da mais famosa de suas obras: Madame Bovary, que o tornaria, em pouco tempo, um dos romancistas mais célebres da França. A elaboração exigiu-lhe quase cinco anos de trabalho incessante. O escritor desejava, como sempre, a forma perfeita, a palavra certa. Passava noites em busca de um adjetivo, semanas atrás de uma frase. Escrevia e reescrevia a mesma página dezenas de vezes. Por fim, achando que chegara a expressar o que queria, entregou a obra à publicação. Laurent Pichat e Maxime Du Camp encarregaram-se de imprimi-la na Revue de Paris, a partir de 1856. Tendo em vista, contudo, a austeridade dos costumes vigentes, resolveram cortar alguns trechos do romance, contra a vontade do autor. Tanto esforço ele fizera para encontrar a forma certa, e teria de ver inutilizadas páginas que lhe custaram dias e noites de aflição.

Mal o livro começou a ser publicado, Ulbach, o secretário da revista, levantou objeções à famosa cena do fiacre, na qual Flaubert descreveu, com detalhes, o colóquio amoroso de Ema Bovary com o amante. O episódio deveria figurar no número de dezembro, mas os editores resolveram omiti-lo. Du Camp explica a exclusão: 'Tua cena do fiacre é impossível, não para nós, nem para os que assinam, mas para a Polícia Correcional, que nos condenaria imediatamente'. Não imediatamente; alguns meses mais tarde. Ainda que sem a passagem discutida, a censura decidiu suspender a  publicação de Madame Bovary e processar o autor. A justificativa oficial foi a 'imoralidade' da obra. A verdade, porém, é que o romance atacava a moral burguesa, posta a nu em sua fragilidade, convencionalismo e falsidade, através da caracterização da vida monótona e sem atrativos da província. A única personagem que, para escapar à mediocridade do ambiente, enfrenta os preconceitos e persegue os próprios sonhos e aspirações, é Ema Bovary. Mas acaba destruída, menos por ser adúltera, do que pela incapacidade de enfrentar as dívidas contraídas para salvar o amante. A vitória, ao final do livro, há de pertencer ao mais estúpido dos seres retratados: o farmacêutico Homais, protótipo do interesseiro falso que se presume intelectual. Claro que a sociedade burguesa sentiu a força do ataque, e seus representantes, no poder desde 1848, trataram de punir o acusado atacante.

Flaubert tentou abafar o processo recorrendo a amigos influentes.

Em vão. Em janeiro de 1857, sentou-se no banco dos réus, ao lado de Laurent Pichat. Pinard, o pequeno e nervoso promotor público, descreve Ema Bovary, citando passagens do livro, e investe contra o autor.

Sénard, o arguto advogado de defesa, argumenta explorando um ângulo 'moralista' da história: toda a depravação da heroína tinha de ser muito bem descrita, para provar que o trágico fim de Ema Bovary constitui o justo castigo de seus erros. Sénard chega a demonstrar que a obra, longe de ser uma apologia do adultério, é, ao contrário, uma advertência, por mostrar que desgraças esperam os adúlteros, e, sobretudo, a mulher. Oito dias depois, o autor é absolvido, e o livro, em edição completa, esgota-se em pouco tempo. Flaubert se tornara um nome célebre, tema para elevadas discussões e grotescas caricaturas, uma das quais apresenta o escritor vestido num avental branco, tendo de um lado, instrumentos cirúrgicos e, de outro, um coração atravessado por um bisturi.

Com tanto alarde em torno do romance, principalmente da protagonista, muita gente queria saber quem teria sido Ema Bovary. [...] Nenhuma pista era satisfatória. Às insistências dos curiosos, Flaubert declara: 'Madame Bovary sou eu'. A frase, encarada como gracejo na época, encerra muita verdade. Os fatos de sua vida não são evidentemente os mesmos, mas o temperamento romântico sim. Como Ema, Flaubert também procurava fugir à mesquinhez cotidiana e sonhava com amores irreais, ansiando por uma existência mais plena".

E uma das frases mais precisas do livro. Ema, em seu desespero financeiro, busca socorro com o tabelião Guillaumin, que tenta um lance de sedução. A sua resposta: Eu sou para lastimar, mas não para vender!

Ah! Eu ainda, inspirado em Philip Roth, em O professor do desejo, vou empreender o meu curso de literatura erótica, começando com Madame Bovary e continuando com O primo Basílio e Dom Casmurro. E de lambuja, Anna Karenina. E, ainda, a resenha de O professor do desejo:



quarta-feira, 23 de outubro de 2024

O HORROR ECONÔMICO. Viviane Forrester. 1996.

O ano de 1997 marca a minha chegada a um endereço famoso: rua Monte Alegre, em Perdizes, São Paulo. Depois de minha aposentadoria, como professor da escola pública do estado do Paraná, eu chegava a PUC, para iniciar os meus estudos de mestrado, no renomado programa de História e Filosofia da Educação, sempre laureado com uma nota sete. Foram os anos de aprimoramento da minha formação teórica. Oportunidade rara na vida. Chegava, portanto, ao curso de mestrado, ao final do século XX, num período de grandes transformações, tanto na ordem política, quanto na econômica. Um mundo de novos livros se colocava à frente de meus olhos. Avidamente eu os comprava nas livrarias que rodeavam o famoso endereço. Cada dia mais, aprendia a ler o mundo.

O horror econômico. Viviane Forrester. UNESP. 1997. Tradução: Álvaro Lorencini.

No campo econômico os termos mais citados eram os do neoliberalismo, da mundialização, dos livres mercados, agora globalizados. Revendo as minhas anotações, me deparo com estes termos, ainda hoje em pleno vigor. Anotações de aula da professora Nereide Saviani: desestatização - desnacionalização - globalização; desregulamentação - desconstitucionalização; desuniversalização - desproteção. Entre os autores, apenas os mais citados: David Harvey, Frederic Jameson, Atílio Borón, Perry Anderson, Adam Przeworski, além dos teóricos do liberalismo e do neoliberalismo. Depois veio o Fórum Social Mundial de Porto Alegre, onde entramos em contato direto com muitos desses autores.

Me lembro de um livro, em particular. O tomei para uma releitura. Um pequeno livro que causou profundo impacto. O horror econômico, de Vivane Forrester (1925-2013). O livro surgiu em 1996. Não poderia haver um título melhor para a realidade descrita: O horror econômico provocado pelo fim do mundo do trabalho e dos empregos, categorias estruturantes do sistema capitalista. Vejamos os dois primeiros parágrafos do livro: "Vivemos em meio a um engodo magistral, um mundo desaparecido que teimamos em não reconhecer como tal e que certas políticas artificiais pretendem perpetuar. Milhões de destinos são destruídos, aniquilados por esse anacronismo causado por estratagemas renitentes, destinados a apresentar como imperecível nosso mais sagrado tabu: o trabalho.

Com efeito, deformado sob a forma perversa de 'emprego', o trabalho funda a civilização ocidental, que comanda  todo o planeta. Confunde-se a tal ponto com ela que, ao mesmo tempo em que se volatiliza, seu enraizamento, sua evidência jamais são postos em causa, menos ainda sua necessidade. Não é ele que, em princípio, rege toda distribuição e, portanto, toda sobrevivência? Os emaranhados de intercâmbios que daí decorrem parecem-nos tão indiscutivelmente vitais quanto a circulação do sangue. Ora, esse trabalho, tido como nosso motor natural, como a regra do jogo que serve à nossa passagem para esses lugares estranhos, de onde cada um de nós tem vocação a desaparecer, não passa hoje de uma entidade desprovida de substância" (Página 7).

Está aí anunciado o teor do livro. A explanação e análise se dá ao longo de 12 pequenos capítulos, no decurso de 154 páginas. Nesse novo mundo cabem apenas os seres úteis aos objetivos do sistema, isto é, os que auferem lucros. Para os excluídos, medidas paliativas de "alívio à pobreza", termo tão ao gosto do Banco Mundial, que junto ao FMI e a OCDE, são os gestores do sistema, os formuladores de suas políticas. E não há alternativas. Todos precisam se adaptar ao único sistema viável. É domínio do 'pensamento único". Lembremos da sra. Tatcher, a conhecida sra. TINA. (There Is Not Alternative). Fim do trabalho e pensamento único aprisionam a todos. Não resisto à tentação de transcrever um pequeno texto de Perry Anderson, que descreve esse mundo, no belo livro Pós neoliberalismo, livro organizado por Emir Sader e Pablo Gentili. Usei este texto à exaustão em trabalhos de formação: 

"O remédio, então, era claro: manter um Estado forte, sim, em sua capacidade de romper o poder dos sindicatos e no controle do dinheiro, mas parco em todos os gastos sociais (as medidas paliativas de alívio à pobreza, medidas compensatórias à ausência dos empregos) e nas intervenções econômicas. A estabilidade monetária deveria ser a meta suprema de qualquer governo. Para isso seria necessária uma disciplina orçamentária (Teto de gastos - arcabouço fiscal), com a contenção dos gastos com o bem-estar social, e a restauração da taxa 'natural' de desemprego, ou seja, a criação de um exército de reserva de trabalho para quebrar os sindicatos. Ademais, reformas fiscais eram imprescindíveis, para incentivar os agentes econômicos. Em outras palavras, isso significava redução de impostos sobre os rendimentos mais altos e sobre as rendas" (Página 11).

Viviane Forrester também estava enfronhada com o mundo da literatura e dela retira alguns personagens para ilustrar as suas análises e aplicar a elas um tom de ironia mordaz. Aos economistas a serviço desse sistema e pregadores de seus dogmas, ela evoca o personagem do senhor Homais, o farmacêutico flibusteiro do livro de Flaubert, Madame Bovary. Um pseudocientista que ditava os dogmas que infelicitavam os seus atingidos. Era ele que detinha o veneno do envenenamento da madame. Genial e perfeitamente aplicável aos economistas de nossa mídia, a serviço do capital.

Entre os parágrafos finais, selecionei este para a conclusão do post: "Não se trata de chorar sobre o que não existe mais, de negar e renegar o presente. Não se trata de negar, de recusar a mundialização, o surto das tecnologias, que são fatos, e que poderiam ser animadores não só para as 'forças vivas'. Trata-se, pelo contrário, de levá-los em consideração. Trata-se de não ser mais colonizado. De viver com conhecimento de causa, de não mais aceitar tacitamente as análises econômicas e políticas (de homens inescrupulosos como o senhor Homais) que passam por cima dos fatos, que só os mencionam como elementos ameaçadores, obrigando a medidas cruéis, as que se tornarão ainda piores se não forem aceitas com toda a submissão" (Página 144).

Carlos Heitor Cony, sob o título O novo holocausto, apresenta o livro em suas orelhas: "Depois da exploração do homem pelo homem em nome do capital, o neoliberalismo e seu braço operacional, que é a globalização, criaram, mantêm e ampliam, em nome da sacralidade do mercado, a exclusão de grande parte do gênero humano. O próximo passo seria a eliminação? Caminhamos para um holocausto universal, quando a economia modernizada terá repugnância em custear a sobrevivência de quatro quintos da população mundial? Depois de explorados e excluídos, bilhões de seres humanos, considerados supérfluos, devem ser exterminados?

O raciocínio é bem mais do que uma hipótese. É um desdobramento lógico do horror econômico fabricado no laboratório dos economistas neste final de século. Horror - este sim - globalizado pelos governos que buscam resultados contábeis e condenam a ação social como jurássica.

A massa de excluídos em todo o mundo constituirá um formidável dinossauro que a economia modernizada eliminará como inviável no Estado neoliberal. Não se trata de um apocalipse, mas de um novo eixo da história. Só os melhores, os economicamente arianos, deverão sobreviver. Os não arianos formarão o gueto - e como a manutenção de um gueto é um paradoxo econômico (para quê produzir para quem não pode produzir?), a solução a médio ou a longo prazo será o extermínio em massa. Menos custo e mais benefício para os balanços de governos e empresas.

Viviane Forrester, romancista e ensaísta, autora de um belo livro sobre Van Gogh (um excluído que nunca vendeu um quadro) e outro sobre Virgínia Wolf, analisa com lucidez e lógica a decomposição dos valores humanísticos e sociais que se tornaram a besta-negra dos guarda-livros que se investiram na função de Sumos Sacerdotes, somente eles capazes de penetrar no Santo dos Santos do templo globalizado.

Ela prefere Rimbaud e Pascal aos economistas do neoliberalismo. O horror econômico denuncia o jargão e as siglas que estão fabricando o abominável mundo novo em gestação. Seu livro é um momento da consciência humana".

Na atualização de leituras sobre o tema, creio que este é o livro que mais aprofundou o tema. Deixo aqui a sua resenha:

http://www.blogdopedroeloi.com.br/2018/02/a-nova-razao-do-mundo-ensaio-sobre.html


quinta-feira, 17 de outubro de 2024

AS VINHAS DA IRA. John Steinbeck. Nobel de Literatura - 1962,

Neste meu ciclo de releituras chegou a vez de As vinhas da ira. Muitas vezes sou solicitado para fazer indicações, tipo os dez mais, dos melhores livros que já li. Sempre resisti a isso. Não gosto de estabelecer hierarquias, especialmente em campos tão diversos, como o é o dos livros. Mas, se o fizesse, não teria dúvidas em incluir As vinhas da ira nessa lista. O livro é uma verdadeira aula magna, tanto no campo da sociologia, quanto da história, um retrato vivo do sistema capitalista em seu processo duplo, da geração da acumulação, de um lado e o do espalhar a miséria, do outro. Me lembro de uma frase de que a única coisa que o sistema capitalista efetivamente democratiza é a generalização da miséria. John Steinbeck foi Nobel de Literatura de 1962, após oito indicações para tal.


As vinhas da ira. John Steinbeck. Abril. 1972. Tradução. Ernesto Vinhaes e Herbert Caro.

O ano da publicação é o de 1938. Na minha mania de professor, vamos à contextualização. Qual é o fato histórico mais importante próximo a esta data? Por óbvio que no âmbito mundial é a aproximação da Segunda Grande Guerra. Estamos às vésperas. Mas como o cenário do romance é o dos Estados Unidos, vamos retroceder um pouco, ao ano de 1929, o ano da grande crise econômica, da quebra da bolsa de valores e da crise econômica que se segue. É também o momento em que a Revolução Industrial chega com mais intensidade ao campo. O trator, cada vez mais, substituirá os trabalhadores. E estes, endividados, vão em busca de novas fronteiras para o trabalho. Nos Estados Unidos isso representa uma grande marcha para o oeste, para a Califórnia, que fora tomada aos mexicanos.

Este é o caso da família Joad, uma família de pequenos arrendatários de terras no Oklahoma, que trabalhavam no cultivo do algodão. Endividados, são obrigados a se porem em movimento, num velho caminhão, em que tem que caber as treze pessoas da família e os pertences que lhes restaram. A família se compunha do avô e da avó, do pai e da mãe, dos filhos Tom, Al e Noah, de Rosa e o marido Connie, das crianças Ruth e Wienfield, tio John e Casy, o ex pregador, incorporado à família. Esta começa a se desintegrar já na partida, uma vez que Muley se recusa a partir. Saem de Sallisaw, tomam a famosa rota 66, no rumo da Califórnia, levando muitos sonhos e pouquíssimos dólares. Já na viagem ocorrem novas perdas na família, avô e avó morrem no percurso. E sem enterros decentes.

A primeira parte do romance se ocupa com a descrição daquilo que poderíamos chamar de revolução agrícola pela mecanização. Ela expulsa os trabalhadores do campo. Estes, endividados, veem as terras sendo tomadas pelos bancos. Numa imagem nossa diríamos que o agronegócio estava se estabelecendo. A dificuldade dos lavradores em compreender essa situação é enorme, mas o quadro de sofrimentos provocados é real. Cartazes impressos, dizendo que há muito trabalho na Califórnia, os põem em movimento. Pura ilusão. Com a chegada à Califórnia começa a segunda parte do romance. Não há trabalho, ou melhor, há pouco trabalho para milhares e milhares de trabalhadores. Na beira das estradas formam-se as favelas chamadas de Hoovervilles (alusão ao presidente Hoover, o presidente republicano da crise (1929-1933). Ele era liberal. Não admitia intervenções do Estado na economia. A família também encontra um acampamento organizado pelo governo federal. Trata-se do acampamento de Weedpatch. Lá predominava a auto organização e a polícia não entrava.

A ação da polícia é outro ponto forte do romance. Ela sempre será a grande provocadora dos conflitos e sempre atuava em favor do sistema dominante e agia com extrema violência, inclusive com mortes movidas pela impunidade. Este foi o caso do ex pregador Casy, que morre numa greve contra a redução do valor da hora trabalhada. Como a polícia não podia intervir no acampamento de Weedpatch, ali procuravam implantar infiltrados para provocarem confusão, fato que daria motivo para intervenção. Lembrando que o romance foi escrito em 1938 e que, a partir de 1933 até 1945, o presidente dos Estados Unidos passou a ser o democrata F. D. Roosevelt, a favor das intervenções estatais, especialmente  em tempos de crise, em favor da geração de empregos e ajudas humanitárias. Isso explica o acampamento de Weedpatch.

Mas a situação da família Joad não melhora. Seguem a sua sina em busca de trabalho. Isso ocorre apenas esporadicamente e com salários cada vez menores, movidos pelo processo da super oferta do trabalho. Essa era a razão dos folhetos que procuravam atrair tantos trabalhadores. Desemprego parece ser um elemento estrutural do sistema capitalista. Quando não há oferta de trabalho, trabalha-se a troco de comida. O espírito da escravidão parece nunca ter sido abolido. E a família vai sofrendo novas baixas, a miséria vai desintegrando-a por completo.

O contraste entre a acumulação e a miséria é um dos pontos mais elevados do grande romance. A solidariedade humana entre os famintos é extraordinária. Eles partilham, com grande generosidade, o alimento que guardavam para o dia de amanhã, com aqueles que não tinham o que comer no dia de hoje. Por outro lado há grande euforia e total insensibilidade para a acumulação auferida com o emprego da exploração e da violência. Gestos simbólicos são profundamente significativos. Só não há maiores ajudas entre os pobres esfaimados pela absoluta impossibilidade de os mesmos ocorrerem. Entre os personagens, eu destacaria a força de Tom Joad, um ex presidiário e, acima de todos, a mãe Joad, força impressionante e decisiva nos momentos de crise maior. A força da mulher.

Outro ponto impressionante do livro é o ódio. O mesmo ódio tão presente nos dias de hoje. O ódio aos pobres, o ódio aos diferentes, o ódio aos pobres, que imediatamente passam a ser rotulados de vagabundos, preguiçosos, desordeiros e inúteis. Pessoas sem "mérito". Naquele tempo esse ódio era dedicado aos migrantes, aos OKIES, o termo pejorativo com o qual eram chamados os habitantes do Oklahoma. Hoje esse ódio é contra as políticas afirmativas, contra os detentores de ajudas humanitárias governamentais e, especialmente aos IMIGRANTES, sem esquecer também dos próprios migrantes. Vejam o caso brasileiro dos nordestinos.

O romance não poderia ter um final mais impressionante. Uma grande enchente toma conta e inunda o acampamento onde estão alojados. Pai, Mãe e Rosa, que recém parira uma criança morta, partem em busca de um lugar ainda seco. Num galpão abandonado encontram duas pessoas. Uma criança prestes a morrer de fome é amamentada com o leite que brota dos seios de Rosa. Um hino à solidariedade. Steinbeck ganhou o prêmio Nobel de Literatura, apenas após oito sucessivas indicações. Só em 1962, quando este livro é datado de 1938. Certamente o tema desse livro lhes foi indigesto.

O livro que eu li é da coleção Os imortais da Literatura Universal, volume 34. Ele tem 629 páginas, divididas em 29 capítulos. E uma falha sem tamanho. Há a ausência das páginas 567 a 598. Tive que recorrer ao Google e encontrar um PDF. Nessas páginas há a importante informação de que Tom se vê na obrigação de fugir da polícia, desintegrando assim, ainda mais, a já tão diminuída família. Ah! A família. A instituição Mater da sociedade.

No livro de biografias que acompanha a coleção lemos o seguinte sobre esta grande obra: "Recolhido em sua casa, o escritor dedicava-se inteiramente à composição de As vinhas da ira, romance de tese que relata o calvário dos pequenos agricultores expulsos de suas terras pela industrialização e atraídos pela ilusória fartura de uma Califórnia que a propaganda lhes apresenta como sendo a 'Terra da Promissão'.

As vinhas da ira evidencia mais uma vez, a posição filosófica característica do autor: a ele importa a realidade tal como ela é, não como poderia ou deveria ser, nem por que ou para que as coisas existem. Ante o problema abordado em seu romance, ele não toma partido. Descreve uma situação, mas abstém-se de dar opiniões. Dessa forma, ao longo da obra, conjugam-se curiosamente a nostalgia da vida patriarcal do tempo dos 'pioneiros' e o apelo à revolução social. As personagens e as ideias são superficiais, como geralmente ocorre em toda a sua produção literária. A grandeza de Steinbeck está mais no fôlego épico, na força de convicção e de emoção, na generosidade.

Publicado em 1939, As vinhas da ira transformou-se logo em enorme sucesso de vendas e de crítica, e propiciou ao autor dois importantes prêmios - o Pulitzer e o troféu dos Livreiros Americanos -, além da eleição para membro do Instituto Nacional de Artes e Letras. Para coroar o êxito, Hollywood comprou a estória e transformou-a num grande filme de protesto social, que teve como intérprete principal o ator Henry Fonda".

E, as razões para o título? "E o cheiro da podridão enche o país (diante da destruição dos alimentos, para que estes mantenham os seus preços). [...] Há um fracasso nisso, que opõem barreiras ante todos os nossos sucessos. À terra fértil, às filas retas de árvores, aos troncos vigorosos e às frutas maduras. E crianças sofrendo de pelagra, têm que morrer, porque a laranja não deve deixar de dar o seu lucro. E médicos-legistas devem declarar nas certidões de óbito 'Morte por inanição', porque a comida deve apodrecer, deve ser forçada a apodrecer.

O povo vem com redes para pescar as batatas no rio, e os guardas impedem-no. Os homens vêm nos carros barulhentos apanhar as laranjas caídas ao chão, mas elas estão untadas de querosene. E eles ficam imóveis, vendo as batatas passar flutuando; ouvem os gritos dos porcos abatidos num fosso e cobertos de cal viva; contemplam as montanhas de laranjas, num lodaçal putrefato. E nos olhos dos homens reflete-se o fracasso. E nos olhos dos esfaimados cresce a ira. Na alma do povo, AS VINHAS DA IRA diluem-se e espraiam-se com ímpeto, crescem com ímpeto para a vindima". Página 480. 

Por razões óbvias me lembrei dessa execração ao dinheiro. O texto é de Marx, numa citação de Shakespeare.

http://www.blogdopedroeloi.com.br/2014/03/o-dinheiro-marx-goethe-e-shakespeare.html



segunda-feira, 14 de outubro de 2024

Memórias de minhas putas tristes. Gabriel Garcia Marques. Nobel 1982.

Fiz uma breve busca em minha biblioteca por livros ainda não lidos. Logo de saída me deparei com um clássico que aguardava desde 2007 para ser lido. Trata-se de Memórias de minhas putas tristes, do Nobel de Literatura colombiano Gabriel Garcia Marques. Fui amplamente recompensado em minha busca. Uma leitura agradável e de um fôlego só estava no meu aguardo.

Memórias de minhas putas tristes. Gabriel Garcia Marques. Record.2007.

Na contracapa do livro está transcrita uma parte do seu primeiro parágrafo. Ele nos dá um prospecto da obra e uma perspectiva para a sua leitura: “No ano dos meus noventa anos quis me dar de presente uma noite de amor louco com uma adolescente virgem. Lembrei de Rosa Cabarcas, a dona de uma casa clandestina que costumava avisar aos seus bons clientes quando tinha alguma novidade disponível. Nunca sucumbi a essa nem a nenhuma de suas muitas tentações obscenas, mas ela não acreditava na pureza de meus princípios. Também a moral é uma questão de tempo, dizia com sorriso maligno, você vai ver”.

Estão aí os três protagonistas do livro. O idoso senhor, a completar noventa anos, a adolescente virgem e a astuta Rosa Cabarcas, a dona do bordel. O idoso e lascivo senhor, além de protagonista é também o narrador. Ele é homem culto e grande apreciador de música, especialmente a clássica. É jornalista por profissão e que, ainda aos noventa, mantem no jornal da cidade, uma crônica dominical bastante apreciada. Em sua narrativa afirma que as “putas” nunca lhe permitiram tempo para o casamento. Com elas teve uma longa vida, iniciada aos 12 e sem perspectivas de acabar, mesmo após os noventa.

Rosa Cabarcas se especializara no atendimento a seus clientes e não encontrou grandes dificuldades em atender o seu exigente cliente. Recrutou a adolescente virgem em uma fábrica, onde vivia a pregar botões e cuja remuneração ajudava no sustento de seus irmãos e irmãs. Uma presa fácil, no contexto de um mundo de exploração. Um amor para contemplação e sentimentalidades. E, acima de tudo, para a renovação de sua escrita nas crônicas dominicais. Exortações ao amor e às suas sublimidades.

Rosa e Delgadina, este era o nome que o jornalista deu à menina, subitamente desapareceram para só voltarem após trinta dias de vacâncias em paradisíacas praias. Este desaparecimento ocorrera depois do assassinato de um “graúdo”, nas dependências de seu estabelecimento. O desespero tomou conta de sua vida. Após a volta ele é acometido por uma crise de louco ciúme e de um ataque de fúria, do qual resultou a depredação do quarto VIP, que mantinha no estabelecimento de Rosa. As suas já debilitadas finanças acabaram de se arruinar por completo. Ainda lhe restavam quadros e joias, heranças da mãe. Ele não tem dúvidas em sua penhora. Isso proporciona a ele o desvendar das falsificações praticadas por sua própria mãe.

O livro, como já vimos, é de leitura de um fôlego só. São 120 páginas, divididas em cinco capítulos. É um dos últimos romances do autor, do ano de 2004. O Nobel de Literatura lhe fora concedido em 1982. O livro tem uma frase em epígrafe. É de Yasunari Kawabata, autor de A casa das belas adormecidas. Ela diz: “Não devia fazer nada de mau gosto, advertiu a mulher da pousada ao ancião Euguchi. Não devia colocar o dedo na boca da mulher adormecida nem tentar nada parecido”. A Delgadina também permanecia constantemente adormecida.

Na orelha temos um parágrafo bem ilustrativo do livro: "Um leitor mais atento vai encontrar aqui as principais referências e motivações desse hino de louvor à vida e, por extensão, ao amor, já que um não existe sem o outro no imaginário do Prêmio Nobel de Literatura de 1982. Apesar de parecer estranho, uma dessas chaves está no conto de fadas A bela adormecida, que, não por acaso, é citado em um momento crucial dessa narrativa ambientada em uma cidade colombiana imaginária, numa época que de tão remota parece imemorial". 

A edição do livro é da Record. A publicação original é do ano de 2004 e a edição que eu li é de 2007. A tradução é de Eric Nepomuceno.

 

 


segunda-feira, 7 de outubro de 2024

Viagem a Portugal. José Saramago.

As minhas releituras de Saramago. Olhando na estante os livros que tenho de José Saramago, deparo com Viagem a Portugal. Envergonhado, confesso que não me lembrava de tê-lo lido. Mas ao folheá-lo, vi partes sublinhadas e outras pequenas anotações. Assim percebi que o tinha lido, e de ponta a ponta. E forçando um pouco a memória, lembrei das várias vezes que Saramago ia em busca de chaves das igrejas que queria visitar, mas que nem sempre as encontrava, ou então se encontrava com pessoas muito mal humoradas e pouco dispostas em atendê-lo. Mas, afinal, o que devo dizer da releitura deste livro?

Viagem a Portugal. José Saramago. Companhia das Letras. 2010.

Uma viagem. Uma viagem que, como nos diz o próprio Saramago, é um livro de viajante e não de turista. É um livro meticuloso, voltado a detalhes de arte, de história e de cultura, com os quais vai povoando as inúmeras cidades visitadas, de norte a sul de seu país. Isso mesmo, a viagem obedece a este direcionamento. Começa ao norte, em Miranda do Douro, junto a divisa com a Espanha e termina em Lagos, cidade através da qual Portugal promoveu a sua enorme expansão. E haja paisagens geográficas, haja história e cidades históricas, arte mourisca e arte portuguesa, estilos do românico, do gótico e do barroco e, acima de tudo, haja castelos e igrejas. E sim, o estilo manuelino. Tudo isso é entremeado de análises e de críticas. Portugal e a sua história é tema das primeiras grandes obras de Saramago. Para lembrar, cito Levantando do chão, sobre os latifúndios do Alentejo e o sofrimento de seu povo na luta pelo pão de cada dia e Memorial do Convento, em que é contada a história da construção de seu famoso convento e os enormes sacrifícios do povo, no trabalho de sua construção.

O livro é longo. São 484 páginas, divididas em seis partes, ou capítulos, que correspondem às regiões visitadas. Dou, primeiramente, os títulos e as páginas. Faço isso para que se tenha uma ideia do quanto o autor dedicou a cada uma das regiões: 1. De Nordeste a Noroeste, duro e dourado (páginas 15 a 139); 2. Terras baixas, vizinhas do mar (páginas 141 a 185); 3. Brandas beiras de pedra, paciência (páginas 187 a 272); 4. Entre Mondego e Sado, parar em todo o lado (páginas 273 a 381); 5. A grande e ardente terra de Alentejo (páginas 383 a 451; 6. De Algarve e sol, pão seco e pão mole (páginas 453 a 476. Passo a dar também as principais cidades visitadas em cada região e algum detalhe a mais.

Na primeira parte o viajante se deparou com Bragança, Outeiro, Vila Real, Amarante, Guimarães (a cidade berço do país), Viana de Castelo, Braga (a Roma portuguesa e a rival de Santiago de Compostela), Barcelos (a cidade do Galo) e Porto, junto a foz do Douro.

Na segunda parte, o viajante, após a travessia do Douro, percorre Vila Nova de Gaia (a cidade do vinho), Aveiro, Figueira da Foz, Montemor e Coimbra (a capital nos séculos XII e XIII e a sua famosa universidade jesuítica).

Na terceira parte, o viajante continua pela região central do país e a região da Serra da Estrela. As principais cidades visitadas são Cidadelhe, Belmonte (a terra de Pedro Álvares Cabral e o Museu dos descobrimentos), Marialva, Covilhã, Castelo Branco e Abrantes.

Na quarta parte o viajante vem beirando o rio Tejo. As cidades pelas quais ele andou são Constância (a terra natal de Camões e do Castelo de Almourol, Tomar, a cidade dos templários, com o Convento de Cristo e também um famoso aqueduto, Fátima (cidade tomada pelo comércio e da qual, afirma ele, se salva apenas a fé), Leiria, Batalha (a batalha de Aljubarrota), Nazaré, Alcobaça, Azinhaga (a cidade natal do viajante), Santarém, Óbidos, Mafra (a cidade do convento), Estoril e Cascais e mais de vinte páginas dedicadas a Lisboa.

Na quinta parte, já feita a travessia pela  ponte Vasco da Gama ou 25 de abril, chega-se à famosa região do Alentejo. Entre as cidades visitadas estão Setúbal, Montemor-o-Novo, Pavia, Mora - Brotas, Grândola - Carvalhal, Alter do Chão, Vila Viçosa,  Évora (Templo de Diana), Beja e Mértola. Terra de latifúndios e sofrimento humano.

A sexta parte é a mais breve. É o Algarve. Duas cidades merecem destaque. Faro e o seu museu e Lagos e o museu náutico. Terra de turismo e de estrangeirismos.

Mas, deixemos o próprio Saramago falar de seu livro. Isso ele faz na sua apresentação: "Esta viagem a Portugal é uma história. História de um viajante no interior da viagem que fez, história de uma viagem que em si transportou um viajante, história de viagem e viajante reunidos em uma procurada fusão daquele que vê e daquilo que é visto, encontro nem sempre pacífico de subjetividades e objetividades. Logo: choque e adequação, reconhecimento e descoberta, conformação e surpresa. O viajante viajou no seu país. Isto significa que viajou por dentro de si mesmo, pela cultura que o formou e está formando, significa que foi, durante muitas semanas, um espelho reflector das imagens exteriores, uma vidraça transparente que luzes e sombras atravessaram, uma placa sensível que registou, em trânsito e processo, as impressões, as vozes, o murmúrio infindável de um povo".

Ao final, o viajante nos alerta que em breve ele estará de volta. "Não é verdade. A viagem não acaba nunca. Só os viajantes acabam. E mesmo estes podem prolongar-se em memória, em lembrança, em narrativa. Quando o viajante se sentou na areia da praia e disse 'Não há mais que ver', sabia que não era assim. O fim duma viagem é apenas o começo de outra. É preciso ver o que não foi visto, ver outra vez o que se viu já, ver na primavera o que se vira no Verão, ver de dia o que se viu de noite, com sol onde primeiramente a chuva caía, ver a seara verde, o fruto maduro, a pedra que mudou de lugar, a sombra que aqui não estava. É preciso voltar aos passos que foram dados, para os repetir, e para traçar caminhos novos ao lado deles. É preciso recomeçar a viagem. Sempre. O viajante volta já".

Deixo a resenha dos dois livros em que o escritor se ocupa mais diretamente com histórias de seu país. Levantando do Chão e Memorial do Convento.

http://www.blogdopedroeloi.com.br/2024/08/levantando-do-chao-jose-saramago.html

http://www.blogdopedroeloi.com.br/2024/08/memorial-do-convento-jose-saramago.html