Neste meu ciclo de releituras chegou a vez de As vinhas da ira. Muitas vezes sou solicitado para fazer indicações, tipo os dez mais, dos melhores livros que já li. Sempre resisti a isso. Não gosto de estabelecer hierarquias, especialmente em campos tão diversos, como o é o dos livros. Mas, se o fizesse, não teria dúvidas em incluir As vinhas da ira nessa lista. O livro é uma verdadeira aula magna, tanto no campo da sociologia, quanto da história, um retrato vivo do sistema capitalista em seu processo duplo, da geração da acumulação, de um lado e o do espalhar a miséria, do outro. Me lembro de uma frase de que a única coisa que o sistema capitalista efetivamente democratiza é a generalização da miséria. John Steinbeck foi Nobel de Literatura de 1962, após oito indicações para tal.
As vinhas da ira. John Steinbeck. Abril. 1972. Tradução. Ernesto Vinhaes e Herbert Caro.
O ano da publicação é o de 1938. Na minha mania de professor, vamos à contextualização. Qual é o fato histórico mais importante próximo a esta data? Por óbvio que no âmbito mundial é a aproximação da Segunda Grande Guerra. Estamos às vésperas. Mas como o cenário do romance é o dos Estados Unidos, vamos retroceder um pouco, ao ano de 1929, o ano da grande crise econômica, da quebra da bolsa de valores e da crise econômica que se segue. É também o momento em que a Revolução Industrial chega com mais intensidade ao campo. O trator, cada vez mais, substituirá os trabalhadores. E estes, endividados, vão em busca de novas fronteiras para o trabalho. Nos Estados Unidos isso representa uma grande marcha para o oeste, para a Califórnia, que fora tomada aos mexicanos.
Este é o caso da família Joad, uma família de pequenos arrendatários de terras no Oklahoma, que trabalhavam no cultivo do algodão. Endividados, são obrigados a se porem em movimento, num velho caminhão, em que tem que caber as treze pessoas da família e os pertences que lhes restaram. A família se compunha do avô e da avó, do pai e da mãe, dos filhos Tom, Al e Noah, de Rosa e o marido Connie, das crianças Ruth e Wienfield, tio John e Casy, o ex pregador, incorporado à família. Esta começa a se desintegrar já na partida, uma vez que Muley se recusa a partir. Saem de Sallisaw, tomam a famosa rota 66, no rumo da Califórnia, levando muitos sonhos e pouquíssimos dólares. Já na viagem ocorrem novas perdas na família, avô e avó morrem no percurso. E sem enterros decentes.
A primeira parte do romance se ocupa com a descrição daquilo que poderíamos chamar de revolução agrícola pela mecanização. Ela expulsa os trabalhadores do campo. Estes, endividados, veem as terras sendo tomadas pelos bancos. Numa imagem nossa diríamos que o agronegócio estava se estabelecendo. A dificuldade dos lavradores em compreender essa situação é enorme, mas o quadro de sofrimentos provocados é real. Cartazes impressos, dizendo que há muito trabalho na Califórnia, os põem em movimento. Pura ilusão. Com a chegada à Califórnia começa a segunda parte do romance. Não há trabalho, ou melhor, há pouco trabalho para milhares e milhares de trabalhadores. Na beira das estradas formam-se as favelas chamadas de Hoovervilles (alusão ao presidente Hoover, o presidente republicano da crise (1929-1933). Ele era liberal. Não admitia intervenções do Estado na economia. A família também encontra um acampamento organizado pelo governo federal. Trata-se do acampamento de Weedpatch. Lá predominava a auto organização e a polícia não entrava.
A ação da polícia é outro ponto forte do romance. Ela sempre será a grande provocadora dos conflitos e sempre atuava em favor do sistema dominante e agia com extrema violência, inclusive com mortes movidas pela impunidade. Este foi o caso do ex pregador Casy, que morre numa greve contra a redução do valor da hora trabalhada. Como a polícia não podia intervir no acampamento de Weedpatch, ali procuravam implantar infiltrados para provocarem confusão, fato que daria motivo para intervenção. Lembrando que o romance foi escrito em 1938 e que, a partir de 1933 até 1945, o presidente dos Estados Unidos passou a ser o democrata F. D. Roosevelt, a favor das intervenções estatais, especialmente em tempos de crise, em favor da geração de empregos e ajudas humanitárias. Isso explica o acampamento de Weedpatch.
Mas a situação da família Joad não melhora. Seguem a sua sina em busca de trabalho. Isso ocorre apenas esporadicamente e com salários cada vez menores, movidos pelo processo da super oferta do trabalho. Essa era a razão dos folhetos que procuravam atrair tantos trabalhadores. Desemprego parece ser um elemento estrutural do sistema capitalista. Quando não há oferta de trabalho, trabalha-se a troco de comida. O espírito da escravidão parece nunca ter sido abolido. E a família vai sofrendo novas baixas, a miséria vai desintegrando-a por completo.
O contraste entre a acumulação e a miséria é um dos pontos mais elevados do grande romance. A solidariedade humana entre os famintos é extraordinária. Eles partilham, com grande generosidade, o alimento que guardavam para o dia de amanhã, com aqueles que não tinham o que comer no dia de hoje. Por outro lado há grande euforia e total insensibilidade para a acumulação auferida com o emprego da exploração e da violência. Gestos simbólicos são profundamente significativos. Só não há maiores ajudas entre os pobres esfaimados pela absoluta impossibilidade de os mesmos ocorrerem. Entre os personagens, eu destacaria a força de Tom Joad, um ex presidiário e, acima de todos, a mãe Joad, força impressionante e decisiva nos momentos de crise maior. A força da mulher.
Outro ponto impressionante do livro é o ódio. O mesmo ódio tão presente nos dias de hoje. O ódio aos pobres, o ódio aos diferentes, o ódio aos pobres, que imediatamente passam a ser rotulados de vagabundos, preguiçosos, desordeiros e inúteis. Pessoas sem "mérito". Naquele tempo esse ódio era dedicado aos migrantes, aos OKIES, o termo pejorativo com o qual eram chamados os habitantes do Oklahoma. Hoje esse ódio é contra as políticas afirmativas, contra os detentores de ajudas humanitárias governamentais e, especialmente aos IMIGRANTES, sem esquecer também dos próprios migrantes. Vejam o caso brasileiro dos nordestinos.
O romance não poderia ter um final mais impressionante. Uma grande enchente toma conta e inunda o acampamento onde estão alojados. Pai, Mãe e Rosa, que recém parira uma criança morta, partem em busca de um lugar ainda seco. Num galpão abandonado encontram duas pessoas. Uma criança prestes a morrer de fome é amamentada com o leite que brota dos seios de Rosa. Um hino à solidariedade. Steinbeck ganhou o prêmio Nobel de Literatura, apenas após oito sucessivas indicações. Só em 1962, quando este livro é datado de 1938. Certamente o tema desse livro lhes foi indigesto.
O livro que eu li é da coleção Os imortais da Literatura Universal, volume 34. Ele tem 629 páginas, divididas em 29 capítulos. E uma falha sem tamanho. Há a ausência das páginas 567 a 598. Tive que recorrer ao Google e encontrar um PDF. Nessas páginas há a importante informação de que Tom se vê na obrigação de fugir da polícia, desintegrando assim, ainda mais, a já tão diminuída família. Ah! A família. A instituição Mater da sociedade.
No livro de biografias que acompanha a coleção lemos o seguinte sobre esta grande obra: "Recolhido em sua casa, o escritor dedicava-se inteiramente à composição de As vinhas da ira, romance de tese que relata o calvário dos pequenos agricultores expulsos de suas terras pela industrialização e atraídos pela ilusória fartura de uma Califórnia que a propaganda lhes apresenta como sendo a 'Terra da Promissão'.
As vinhas da ira evidencia mais uma vez, a posição filosófica característica do autor: a ele importa a realidade tal como ela é, não como poderia ou deveria ser, nem por que ou para que as coisas existem. Ante o problema abordado em seu romance, ele não toma partido. Descreve uma situação, mas abstém-se de dar opiniões. Dessa forma, ao longo da obra, conjugam-se curiosamente a nostalgia da vida patriarcal do tempo dos 'pioneiros' e o apelo à revolução social. As personagens e as ideias são superficiais, como geralmente ocorre em toda a sua produção literária. A grandeza de Steinbeck está mais no fôlego épico, na força de convicção e de emoção, na generosidade.
Publicado em 1939, As vinhas da ira transformou-se logo em enorme sucesso de vendas e de crítica, e propiciou ao autor dois importantes prêmios - o Pulitzer e o troféu dos Livreiros Americanos -, além da eleição para membro do Instituto Nacional de Artes e Letras. Para coroar o êxito, Hollywood comprou a estória e transformou-a num grande filme de protesto social, que teve como intérprete principal o ator Henry Fonda".
E, as razões para o título? "E o cheiro da podridão enche o país (diante da destruição dos alimentos, para que estes mantenham os seus preços). [...] Há um fracasso nisso, que opõem barreiras ante todos os nossos sucessos. À terra fértil, às filas retas de árvores, aos troncos vigorosos e às frutas maduras. E crianças sofrendo de pelagra, têm que morrer, porque a laranja não deve deixar de dar o seu lucro. E médicos-legistas devem declarar nas certidões de óbito 'Morte por inanição', porque a comida deve apodrecer, deve ser forçada a apodrecer.
O povo vem com redes para pescar as batatas no rio, e os guardas impedem-no. Os homens vêm nos carros barulhentos apanhar as laranjas caídas ao chão, mas elas estão untadas de querosene. E eles ficam imóveis, vendo as batatas passar flutuando; ouvem os gritos dos porcos abatidos num fosso e cobertos de cal viva; contemplam as montanhas de laranjas, num lodaçal putrefato. E nos olhos dos homens reflete-se o fracasso. E nos olhos dos esfaimados cresce a ira. Na alma do povo, AS VINHAS DA IRA diluem-se e espraiam-se com ímpeto, crescem com ímpeto para a vindima". Página 480.
Por razões óbvias me lembrei dessa execração ao dinheiro. O texto é de Marx, numa citação de Shakespeare.
http://www.blogdopedroeloi.com.br/2014/03/o-dinheiro-marx-goethe-e-shakespeare.html
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