quarta-feira, 29 de novembro de 2017

Narrativas de uma viagem - 1. Chile e Santiago.

Depois de uma intensa participação no processo eleitoral da APP-Sindicato e após a metabolização de seus resultados, resolvi empreender novamente as minhas viagens. Santiago e Buenos Aires foram as cidades escolhidas. Não conhecia Santiago e em Buenos Aires eu andei em meados dos anos 1980. Alimentava boas expectativas. Considerei o final da primavera como um tempo ideal para a viagem. Creio que não errei.
Vista do alto do Cerro San Cristobal. Costanera e a Cordilheira ao fundo.

Não queria muitos incômodos, por isso não montei o meu pacote. Fui comprá-lo na CVC. Passagens, hospedagens, transfers e passeios. Tudo deveria dar certo. Seriam cinco noites em Santiago e mais quatro em Buenos Aires. Começaria por Santiago. De Curitiba a Buenos Aires existe um voo direto, com conexão para Santiago. Sairia de Curitiba as 15h10 e chegaria as 22h25. Até Buenos Aires, tudo bem. Aí começa um interminável atraso. Cheguei em Santiago as 3h00 da madrugada. As 8h00 o citty tour já começava. Serviço impecável do transfer, da Tipgroup, a agência conveniada com a CVC.

O motorista, Juan, se não me engano, mesmo neste horário, estava bem disposto e me deu as primeiras informações sobre o país. É um país unitário, não existem estados, apenas regiões, a mesma lei em todo o país. Isso dá um sentimento de ordem. Existe segurança na cidade. Pode-se andar nas ruas, seja de dia, seja a noite. Como eu estava sozinho me falou de imigração, muitos peruanos, bolivianos e venezuelanos e, em especial, belas colombianas e venezuelanas, dispostas ao amor. Chegamos ao hotel, o Panamericano, a duas quadras do Palácio La Moneda. Amanhã haverá troca da guarda, ainda teve tempo de me dizer.
Palácio de La Moneda, o Palácio do governo chileno.

O que nos oferece o Chile como atração? Vejo um release publicitário. "O Chile tem diversas aventuras a oferecer: observação espacial no deserto mais árido do mundo, geleiras milenares nas áreas mais meridionais do planeta, florestas e lagos mágicos localizados aos pés de vulcões imponentes, ilhas repletas de lendas, tradição em vinhos, grandes desafios a serem escalados, e uma Santiago que respira modernidade e acessibilidade". Conheci Santiago, os vinhos e um pouco do litoral, porto e praia. Água gélida.
Esta porta tem história. Por ela saiu o corpo do presidente Allende. A monstruosidade de Pinochet.


Meio sonolento acompanho as informações da nossa guia, Verônica. Primeiramente recolhemos as pessoas nos diversos hotéis.  Um trânsito dos infernos. Ele ainda vai impossibilitar esta forma de turismo. Não se anda nesta cidade. O motorista, Pablo, de imediato nos falou que prefere os tours fora da cidade. Todos recolhidos, começam as informações. Fernão de Magalhães, Pedro de Valdívia, Mapuches, num primeiro bloco. Estrutura da cidade de Santiago foi o próximo item. Uma grande avenida de 32 quilômetros, sentido Andes para o mar, é a sua vértebra central. Os nomes dos libertadores lhe dão nome. 1810, os primeiros momentos da emancipação, 1818 a confirmação. Bernardo O'Higgins, o grande heroi. Guerra do Pacífico, contra o Peru e a Bolívia e a definição das fronteiras ao norte, continuava Verônica, obviamente em sua versão chilena dos fatos.
Na Praça de Armas e a catedral de Santiago. Francisco estará aí em janeiro.


Nisso já atingíamos o La Moneda. Com os atrasos pegamos apenas a parte final da troca da guarda. Agora a fala é sobre o palácio e 1973. A porta por onde saiu o corpo de Allende e uma primeira parada. Antes tínhamos passado pelos Cerros San Cristobal, Santa Lucia, Universidade Católica do Chile, Universidade do Chile. Nova parada na Plaza de Armas. Catedral e o Museu Histórico Nacional, sobre o qual falarei em post especial. Rumamos para a subida do cerro San Cristobal, o ponto mais elevado da cidade. De cima, a vista da cidade, o Costanera, o principal shopping e o mais alto edifício da cidade. A Cordilheira dos Andes ao fundo. Bondinho e teleférico para passeios posteriores, foram as indicações. Em função do tempo não fomos a um loja que vendia pedras azuis, pedras chilenas. A parada final foi no Mercado Central, um famoso centro gastronômico. Não fui bem sucedido. Preços estratosféricos. Fim do citty tour. A tarde, visita à vinícola Concha y Toro. Esta visita merece um post especial e então falaremos sobre outros dados da cidade e do país.

Na volta, sobrevoando os Andes. Um olhar de cima.


Mas teve também interessantes informações sobre o sistema educacional do país, onde não existe ensino superior gratuito. Apenas em parte e caros financiamentos. Ainda algo sobre a presidente Bachelet, avaliada com mais de 80% de aprovação ao final de seu primeiro governo e menos de 40%, agora em seu segundo. E também sobre o sistema eleitoral chileno, país onde o voto não é obrigatório. No domingo (19 se novembro) haveria eleições em primeiro turno. Informo que houve uma abstenção superior a 50% dos eleitores. Dos votos válidos, o ex presidente Piñera, representando as forças conservadoras, contou com 36% dos votos, Gullier, apoiado pela presidenta (É assim que a imprensa se refere - com A) teve 22% e a candidata das esquerdas surpreendeu com mais de 20% dos votos. Em dezembro haverá segundo turno.





segunda-feira, 27 de novembro de 2017

Morangos Mofados. Caio Fernando Abreu.

"Passei os dias falando sozinho, mergulhado num texto, consegui arrancá-lo. Era um farrapo que me tinha nascido em setembro, em Sampa. Aí nasceu, sem que eu planejasse. Estava pronto na minha cabeça. Chama-se Morangos mofados, vai levar uma epígrafe de Lennon & McCartney, tô aqui com a letra de "Strawberry fields forever" pra traduzir. Zézim, eu acho que tá tão bom. Fiquei completamente cego enquanto escrevia, a personagem (um publicitário, ex-hippie, que cisma que tem câncer na alma, ou uma lesão no cérebro provocadas por excessos de drogas, em velhos carnavais e o sintoma - real - é um persistente gosto de morangos mofados na boca) tomou o freio nos dentes e se recusou a morrer ou a enlouquecer no fim. Tem um fim lindo, positivo, alegre".
Um mergulho nas angústias da existência..

Quando a gente se propõe a uma resenha de um livro tão complexo como é o Morangos mofados, do Caio Fernando Abreu, nada melhor do que recorrer ao próprio autor a falar sobre o seu livro. É o que eu fiz ao encontrar, no final do livro, uma carta endereçada a um amigo, em que fala sobre o processo da escrita do livro. Ninguém melhor do que ele para trazer este belo parágrafo sobre a sua obra. Cheguei ao livro, por ser uma indicação para o vestibular da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Estas indicações servem para mim de guias de leitura.

Caio Fernando Abreu é gaúcho, nascido na cidade de Santiago do Boqueirão, no ano de 1948 e morreu em Porto Alegre em 1996. Porto Alegre, São Paulo e depois o mundo foram as cidades em que desenvolveu as suas atividades de escritor. O livro foi lançado em 1982 e em 1995 foi relançado, após criteriosa revisão do autor. Um texto sobre o livro, publicado no Jornal do Brasil nos dias 24 e 31/10/1982 por Heloísa Buarque de Holanda, é usado como apresentação. O foco o situa no campo da contracultura, na história de uma geração.

Na orelha do livro encontramos mais dados que facilitam a compreensão. Transcrevo dois parágrafos: "O que primeiro chama a atenção na leitura de Morangos mofados é a fineza de estilo, a inteligência e a percepção de Caio Fernando Abreu para tratar do que há de mais profundo no ser humano. A busca, a dor, o fracasso, o encontro, o amor e a esperança vão se delineando nesta série de contos que se entrelaçam quase como se fossem romance.

O medo e a insegurança dominam os nove contos que compõem a primeira parte do livro, "O mofo", na qual está representada a vida sob a ditadura militar e a restrição à liberdade. Na segunda parte, "Os morangos", vemos uma saída para os traumas impostos pela sociedade. Na última, composta de um conto, que dá nome ao livro, Caio sinaliza uma esperança: os morangos estão mofados, mas ainda assim guardam o frescor em sua essência".

Como não vou resenhar os contos, chamo a atenção para dois deles. Sargento Garcia, escrito em três momentos. Ele perfeitamente poderia ter sido escrito ao longo do ano de 2017. Temas presentes no triste momento que estamos vivendo, de muito ódio, preconceitos e de moralismo. O sargento representa os "valores" praticados ao final de uma ditadura que ainda insistia em permanecer. O outro é o conto final que leva o título do livro Morangos mofados. Nele aparece a epígrafe de Lennon &McCartney: Let me take you down / 'cause I'm going to strawbery fields / nothing is real, and notting to get / hung about / strawbery fields forever. A música está sempre presente em seus contos.

Neste conto aparece o publicitário junto ao seu médico e lhe retruca o seu diagnóstico: "Não há nada errado com o seu coração nem com o seu corpo, muito menos com o seu cérebro. Caro senhor. Acendeu outro cigarro, desses que você fuma o dobro para evitar a metade do veneno, mas não é no cérebro que acho que tenho o câncer, doutor, é na alma, e isso não aparece em check-up algum". Este câncer lhe provoca uma permanente hipocondria e uma profunda Angst, angústia existencial presente em todos os contos e que tornavam mofos os morangos.

Mas, conforme o autor, o final é feliz. "Abriu os dedos. Absolutamente calmo, absolutamente claro, absolutamente só enquanto considerava atento, observando os canteiros de cimento: será possível plantar morangos aqui? Ou se não aqui, procurar algum lugar em outro lugar? Frescos morangos vivos vermelhos. Achava que sim. Que sim. Sim".

Enquanto isso, um outro menino, nascido também no Rio Grande do Sul, no ano de 1945, em Harmonia, três anos antes que o autor, se encaminhava para os seminários de Bom Princípio, Gravataí e Viamão para viver as suas harmonias e desarmonias sob os bons princípios da cultura oficial, aprendendo para fazer a sua reprodução. Mundos diferentes, mundos distantes. Rupturas. Rupturas.

Quando pego o livro tenho uma ligeira impressão de que ele exala fumaça, de tantos cigarros que são fumados.Livro indicado para o vestibular da UFRGS.





domingo, 12 de novembro de 2017

A hora da estrela. Clarice Lispector.

Cheguei ao livro A hora da estrela, de Clarice Lispector, pela indicação de livros cobrados para o vestibular, desta vez pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul e também da Universidade Estadual de Londrina. O livro, na verdade, é um pequeno livrinho. A primeira imagem que me passou pela cabeça foi a de que estes estudantes levaram vantagem. Que engano! Um dos livros mais complexos que eu já li. Clarice é considerada como uma escritora de "inflexão intimista", mas que neste romance deu "um salto na extroversão". É o que lemos na orelha do livro, escrita por José Castello.
O livro tem apenas 87 páginas, mas é um dos mais complexos que já li. Maravilhoso.

Li o livro lentamente e vi o filme atentamente (filme de 1985 com roteiro e direção de Suzana Amaral). E voltei para a leitura do pequeno livrinho. Cada frase é motivo para uma parada, uma parada para a reflexão. A hora da estrela é a última obra da consagrada estrela da literatura brasileira. O tema do livro é a morte. Ou seria a vida? As dúvidas perpassam toda a obra. Será mesmo que Macabéa viveu? A sua hora da estrela não teria sido a da sua morte, com o fim de uma vida rala, em que dá para dizer que ela não viveu? Ou então, amenizando, que ela não experimentou os sabores da vida? Nem mesmo um beijo ou um abraço. Foi a vida de um "eu" intransitivo, sem nunca ter transitado nos caminhos do amor, a não ser sob a fórmula de um namoro absolutamente ridículo.

Se Clarice, em outros romances "estava de corpo inteiro", neste, "no centro de seus relatos, agora a cena é ocupada por personagens que em nada se parecem com ela", nos afirma José Castello, na apresentação do livro, em suas orelhas. Não sei. Eu, salvo engano, a vi muitas vezes. Mesmo porque todos nós somos Macabéa em nossos múltiplos desamparos. Por mais intensamente que vivamos a nossa vida também tem os nossos momentos de Macabéa. Macabéa tem traços de universalidade.

A mulher e escritora Clarice não assume a narrativa da história. Ela explica, falando de Macabéa: "Sei que há moças que vendem o corpo, única posse real, em troca de um bom jantar em vez de um sanduíche de mortadela. Mas a pessoa de quem falarei mal tem corpo para vender, ninguém a quer, ela é virgem e inócua, não faz falta a ninguém. Aliás - descubro eu agora - também eu não faço a menor falta, e até o que escrevo um outro escreveria. Um outro escritor, sim, mas teria que ser homem porque escritora mulher pode lacrimejar piegas". O narrador será Rodrigo S. M.

A desamparada Macabéa nasceu com muitos antecedentes. Era nordestina, alagoana mais precisamente, não conheceu os pais, foi educada por uma tia beata, fez até a terceira série e a tia lhe ensinou a prática da datilografia. Assim documentada enfrenta o Rio de Janeiro, a cidade inconquistável. Arrumou emprego por menos de um salário. Mesmo assim, o seu trabalho não agradava ao patrão. Viveu numa pensão junto com quatro Marias. No trabalho havia a colega Glória. Comia sanduíches e tomava Coca Cola. Era raquítica, pouco se lavava e uma das Marias chegou a reparar em seu cheiro. Ninguém a notava. Ela era invisível. Um "eu" intransitivo.

Nem mesmo a "mulherice" brotou nela, ou apenas, tardiamente. Tinha 19 anos e era virgem. "...Embora a menina não tivesse dado mostras de no futuro vir a ser vagabunda de rua. Pois até mesmo o fato de vir a ser uma mulher não parecia pertencer à sua vocação. A mulherice só lhe nasceria tarde porque até no capim vagabundo há desejo de sol". Um dia arruma um namorado. Um namorado? Olímpico de Jesus. Seria um namoro ou o encontro de duas pessoas em absoluto estado de pobreza? Pobreza material e do espírito. Não havia diálogo, não havia assunto, não havia percepção do eu e do mundo. No livro tem uma página e meia de um diálogo no vazio. Isso irritava os namorados.

Macabéa era curiosa. Se instruía ouvindo a rádio Relógio. Horas, anúncios e cultura. Ouvia coisas que não entendia. Olímpico de Jesus não lhe esclarecia as dúvidas e se irritava mais ainda. Olímpico de Jesus passa a namorar Glória, a colega de trabalho de Macabéa. Ela era substanciosa. Tinha corpo. Se beijavam e se abraçavam. Por Glória, Macabéa chega a uma cartomante. Esta lhe faz perguntas embaraçosas e lê seu triste passado e presente. Lhe anuncia "a hora da estrela", por um futuro brilhante. Pela primeira vez sente o futuro que lhe anuncia um destino. Um namorado estrangeiro e rico.

Ao sair da consulta, exultante em alegria, é atropelada. Também o seu futuro brilhante é interditado pela morte. Mas a morte é apenas um instante. Morreu abraçada a si mesma, em posição fetal, compensando um abraço que nunca recebera em vida. "No fundo ela não passara de uma caixinha de música meio desafinada", ou bem desafinada.

PS. Ao ler o livro, fiquei com uma enorme vontade de ler uma biografia sua. Pela sua leitura a achei uma pessoa muito dolorida. Quando li Morangos mofados de Caio Fernando Abreu, apenas um único parágrafo bastou para dissipar muitas dúvidas minhas. Minhas suposições se confirmaram. Vejamos o que este escritor fala a respeito de Clarice:

"Eu conheci razoavelmente bem Clarice Lispector. Ela era infelicíssima, Zézim. A primeira vez que conversamos eu chorei depois a noite inteira, porque ela inteirinha me doía, porque parecia se doer também de tanta compreensão sagrada de tudo. Te falo nela porque Clarice, pra mim, é o que mais conheço de GRANDIOSO, literariamente falando.  E morreu sozinha, sacaneada, desamada, incompreendida, com fama de "meio doida". Porque se entregou completamente ao seu trabalho de criar. Mergulhou na sua própria trip e foi inventando caminhos, na maior solidão. Como Joyce. Como Kafka, louco e só lá em Praga. Como Van Gogh. Como Artaud. Ou Rimbaud".

sexta-feira, 10 de novembro de 2017

O complexo brasileiro de vira-lata.

Muito se tem falado no Brasil sobre o complexo de vira-lata. Por este complexo o brasileiro se consideraria inferior perante outros povos, em especial, perante os mais desenvolvidos. O termo tem a sua origem em Nelson Rodrigues, que o usou em 1950, por ocasião da derrota brasileira, em pleno estádio do Maracanã, que estava sendo inaugurado, frente ao Uruguai, na partida final da Copa do Mundo, realizada naquele ano. Vem do futebol, do perder na própria casa, este termo fortemente carregado de negatividade.

Se fosse restrito apenas ao futebol, este conceito não traria maiores consequências e afetaria apenas os torcedores mais fanáticos. O problema é que ele extrapolou do campo do futebol para se incrustar na política e na economia. Por este conceito nós mesmos nos consideramos inferiores aos países mais desenvolvidos, especialmente, na relação com os Estados Unidos e com os países europeus. Jessé Souza, em seu livro A elite do atraso - da escravidão à lava jato examina as implicações e consequências do termo.
Em A Elite do atraso, Jessé Souza desenvolve o conceito de vira-lata.

Ele inicia distinguindo a evolução histórica do conceito de racismo. Primeiramente ele se voltava apenas contra os negros, sendo determinado, portanto, pela cor. Depois ele evoluiu para o racismo cultural, pelo qual são considerados inferiores, além do negro, também os brancos, que não são calvinistas e que não são empreendedores e vencedores na sociedade aberta do livre mercado. Toda a América Latina passa assim a ser vítima deste novo racismo, o racismo cultural. Esse conceito foi largamente cultivado pela poderosa indústria cultural dos Estados Unidos. A sua tese fundamental é a da superioridade daqueles que se dedicam às atividades do espírito e da inferioridade daqueles que se dedicam às questões do corpo. Um conceito platônico que se universalizou na cultura ocidental.

O termo ganha força entre nós com as interpretações dominantes de Brasil. No livro Raízes do Brasil, que não é um livro de botânica, Sérgio Buarque de Holanda, define o homem brasileiro como o "homem cordial", ou seja, o homem que se move pelo coração, pelo corpo e não pela razão. Assim somos dominados pela sensualidade, pelas paixões, pela preguiça atávica e outros males ainda piores, presentes em nosso corpo. Ao contrário das virtudes do espírito que nos conduzem, pelas asperezas do ascetismo, às excelências do mercado e das atividades políticas. O espírito forma o homem moral e traça o perfil do vencedor.

Outras teorias contribuíram para a afirmação deste conceito. Raimundo Faoro, em Os donos do poder, afirma que o Estado corrupto brasileiro é uma herança do patrimonialismo da monarquia absoluta portuguesa, que impede que as excelências praticadas no mercado ocorram entre nós. Com um Estado inerentemente corrupto nunca conseguiremos vislumbrar um futuro promissor. Surge daí a ideia que beatifica as virtuosidades do mercado e demoniza sistematicamente as ações do Estado, onde faz ninho a corrupção. Estas teorias são ainda complementadas com o conceito desenvolvido por Roberto DaMatta, do "jeitinho brasileiro" e também por Francisco Weffort, o do populismo brasileiro, termo com o qual se demonizam as políticas públicas em favor da população mais necessitada.

Jessé Souza relaciona estas teorias com a operação lava jato, que em seus ataques seletivos e sistemáticos visa apenas governantes comprometidos com políticas públicas e com a defesa das riquezas nacionais, geridas pelo Estado brasileiro. Contra estes e somente contra estes se voltam as investigações e as condenações da lava jato. É preferível, segundo eles, que as nossas riquezas sejam administradas pelos homens superiores, mesmo que estrangeiros, do que pelo Estado brasileiro, hereditariamente corrupto.

Esse é o conceito de vira-lata que nos prejudica. Ele foi criado por teóricos que foram transformados em mitos incontestáveis pelas nossas universidades, editoras e, especialmente por uma mídia, antipopular em sua essência. Esta mídia escancara uma corrupção, a corrupção das percentagens ou a "corrupção dos tolos" na expressão de Jessé, para esconder a verdadeira corrupção, que é a da transferência de nossas riquezas, das isenções fiscais, dos REFIS e das altas taxas de juros praticadas em favor dos rentistas do capital improdutivo.

Esta situação permite que a renda dos brasileiros continue escandalosamente concentrada em favor de 1% de sua população e onde, como indicam os estudos da Oxfam seis pessoas tem a mesma riqueza que cem milhões de brasileiros. Destas teorias também brota o ódio contra aqueles que, pelos mecanismos do racismo cultural, são considerados inferiores. E haja ódio (Vejam o episódio de racismo exalado por William Waack, na Rede Globo).  Quanto a sua riqueza, afagam as consciências com as teorias da meritocracia.

Tudo isso me faz lembrar um livro de Dom Hélder Câmara, que me acompanha desde os anos 1970, O deserto é fértil. Nele, Dom Hélder chama os nossos dirigentes políticos de burguesia consular, isto é, são os cônsules dos interesses estrangeiros, em troca de miçangas para si e a miséria para o povo. É triste ver o povo de um país em que que vive sob o complexo de vira lata. Pena que este conceito não esteja restrito apenas às questões do futebol.

E já que falamos em Dom Hélder, deixo ainda a frase que Jessé Souza escolheu como epígrafe de seu livro A elite do atraso: "Se dou comida aos pobres, todos me chamam de santo. Mas quando pergunto por que são pobres, me chamam de comunista". Até parece, ou tentam fazer parecer, que no Brasil, a sua realidade não tem causas.


quarta-feira, 8 de novembro de 2017

A elite do atraso. Da escravidão à lava jato. Jessé Souza.

 "Se dou comida aos pobres, todos me chamam de santo. Mas quando pergunto por que são pobres, me chamam de comunista". Dom Hélder Câmara. Frase em epígrafe.

O Brasil está passando por uma grande reinterpretação de suas origens, de suas mazelas e, como consequência, de seu destino. O corajoso e ousado intelectual desta reinterpretação, é Jessé Souza, agora com assento na cadeira titular de sociologia da UFABC, depois da UFF e após ser desalojado da presidência do IPEA, por ação do governo golpista. Termino de ler A elite do atraso - Da escravidão à lava jato, o mais recente livro do brilhante sociólogo. Antes já havia lido A tolice da inteligência brasileira e A radiografia do golpe. Em 2016 assisti também uma aula sua na UFPR, a aula magna no curso de direito.

Mais uma vez um livro instigante e provocativo, como pode ser visto já a partir do título, com a afirmação de que a nossa elite é uma elite do atraso, formada a partir da escravidão e que se utiliza, nos dias atuais, para a sua afirmação, de mecanismos como a lava jato. A tese central do livro já está no A tolice da inteligência brasileira que é a preocupação com a elite brasileira, formada por 1%, que vive às custas dos outros 99% e que ainda consegue se legitimar perante estes 99%. Na aula magna da UFPR, o livro já estava mais nitidamente desenhado.

Jessé bate de frente com as tradicionais interpretações de Brasil, formuladas na USP e repetidas à exaustão por professores, pelos livros acadêmicos e pela grande mídia. Três teóricos são o grande alvo de sua crítica, sobrando também para outros. Sérgio Buarque de Holanda e o seu "homem cordial", Raimundo Faoro e a análise de Os Donos do poder, que com o conceito de patrimonialismo demoniza o Estado e sacraliza o dito livre mercado e Roberto DaMatta, com a teoria do jeitinho brasileiro. Estas teses conduzem ao espírito brasileiro do viralatismo, de uma inferioridade ôntica do povo brasileiro com relação ao tipo ideal, do americano branco, calvinista e empreendedor. 

Pela essência desse viralatismo, de um eterno complexo de inferioridade, seria preferível que as nossas riquezas e as nossas empresas fossem geridas pelos homens superiores do livre mercado, por homens virtuosos e não por um Estado, que na sua longa história, traz a corrupção endêmica do Estado, uma herança trazida de Portugal. Contra estas teorias propõe que a origem de todas as mazelas brasileiras está impregnado pelo conceito que nos foi relegado pela escravidão.

O autor apresenta dois tipos de racismo construídos ao longo da história, o primeiro, de raiz fenotípica, determinado pela cor e o segundo, de raiz cultural, pelo qual tanto negros e brancos, bastando que não sejam calvinistas e empreendedores e não terem vencido no chamado livre mercado, aberto e cheio de oportunidades, para serem considerados seres inferiores. Assim toda a América Latina passa a ser vítima. Busca ainda uma separação entre as virtudes do espírito e as infâmias do corpo, uma longa construção histórica, fundada em Platão e universalizada pelo cristianismo. 

Aí estão dados os pressupostos da nova interpretação de Brasil. Quando Sérgio Buarque de Holanda apresenta o brasileiro como homem cordial, isto é, do cor, do coração, este já não é um homem do espírito, da racionalidade, mas do corpo, sede de infâmias, da sensualidade, da preguiça, da concupiscência e da  malandragem. Seres inferiores, portanto. A este homem cordial soma-se a herança patrimonialista portuguesa, pela qual os homens públicos tem apenas interesses privados na administração do Estado. Eles o administram de forma corrupta, no seu interesse privado. Estas são para ele as duas grandes fontes do conservadorismo liberal no Brasil. Sobra ainda para Francisco Weffort, que demoniza o populismo, termo pelo qual são denominadas as políticas públicas e para Roberto DaMatta, o do jeitinho brasileiro.

A contraposição a estas teorias se dá pela herança do espírito escravocrata de nossa elite, elite praticamente invisível e que ainda busca legitimar a sua grande riqueza e se manter distante do povo, pelo qual sente um profundo menosprezo. Ele considera este povo como escravos e por eles nutre, além do menosprezo, um profundo ódio. Um ódio de classe. Esta elite, na sua afirmação, conta com uma classe média, basicamente formada pelo conhecimento técnico e que ocupa funções de gerência, tanto no Estado, quanto no mercado. Atuam também nas universidades e na grande mídia, buscando legitimar o status quo existente.

As análises de seu livro também passam por descrições da formação destas elites, bem como as classes médias, e a estas, ele divide em protofascistas, liberais, expressionistas e críticas. Um pouco antes examina os grandes segmentos em que se divide a sociedade brasileira: as elites, as classes médias, os trabalhadores e a ralé, termo provocativo por ele usado em livro anterior, em que estuda a formação dos novos escravos brasileiros. Espírito de inferioridade perante as nações desenvolvidas e demonização das políticas públicas em favor desta ralé, faz com que as elites e a classe média estejam em permanente alerta, em estado de golpe, para evitar qualquer possibilidade de ascensão social. O moralismo do dito combate à corrupção sempre foi o grande mote. Este combate à corrupção é extremamente seletivo, demonizando apenas a corrupção de quem promove políticas públicas. É interessante observar que em um país dominantemente cristão o moralismo não se volte ao respeito pelo ser humano e à luta por igualdade e justiça.
Autógrafo para o livro A tolice da inteligência brasileira.

 A última parte do livro é dedicada ao comportamento da mídia, Rede Globo, concessão pública, à frente, acompanhada por mídias privadas como a Revista Veja e os jornais Folha e Estado de São Paulo. Todo este seletivo combate à corrupção, que ele chama de corrupção dos tolos é para que a verdadeira corrupção se torne invisível e que é praticada pela transferência das riquezas do Estado corrupto para o beato e imaculado mercado, das isenções fiscais e pela apropriação do orçamento, construído basicamente com o trabalho dos que ganham até três salários mínimos e pelas altas taxas de juros praticadas, a remunerarem os atravessadores do capital financeiro. 20 anos de congelamento dos gastos públicos são a garantia da intocabilidade dos privilégios dos rentistas.

Sei que esta resenha é uma ousadia. Ela pode conter erros e omissões de dados essenciais. A minha intenção é de que a resenha seja um pequeno chamado para a leitura. Pensador vigoroso, corajoso e ousado, mas extremamente bem fundamentado. Jessé usa para explanar estes conceitos e fazer as suas análises 239 páginas.

domingo, 5 de novembro de 2017

Harmonia no livro A missão dos jesuítas alemães no Rio Grande do Sul.

O livro A missão dos jesuítas alemães no Rio Grande do Sul é de uma preciosidade que vai para muito além dos dados apenas históricos. São descritas as dificuldades, os costumes, as desavenças e, acima de tudo, o zelo com a questão religiosa dos imigrantes alemães, que é o objeto tema específico do livro. O livro tem uma apresentação de seu autor, o padre Ambros Schupp SJ., que nos fornece a data de sua escrita, 1912. Originariamente foi escrito em alemão. A tradução é de Arthur Blásio Rambo.
O maravilhoso livro do padre Ambros Schupp, da editora Unisinos.


Na primeira parte do livro, em seu segundo capítulo, cada uma das colônias alemãs é retratada. Assim são descritas as duas paróquias mãe, respectivamente, Dois Irmãos e São José do Hortêncio, e as então localidades de São Leopoldo, Novo Hamburgo, Montenegro, São Sebastião do Caí, Nova Petrópolis, Bom Princípio, São Salvador (Tupandi), Harmonia, Feliz, Estrela, Lajeado e Santa Cruz, entre outras.

Neste post vou me ater a Harmonia, a cidade em que eu nasci, quando ela era o 3º distrito do grande município de Montenegro. Não posso transcrever literalmente o que o padre fala de Harmonia, antes de uma pequena explicação, pois, antes de ser paróquia, Harmonia era uma capela filial de São Salvador (Tupandi). Vejamos a descrição desta situação da capela e a confusão havida entre São Salvador e Harmonia:

"A segunda capela filial de São Salvador, a Harmonia, localiza-se uma hora mais para o sul, portanto duas horas distante da igreja matriz.  Sua fundação data de 1863, sendo, portanto, três anos mais recente do que São Benedito. Em 1868, os moradores ergueram um pequeno prédio escolar, que também teve que servir para os serviços religiosos. Passaram mais dez anos para que fosse construída uma nova capela. A igreja atual existe apenas desde 1901" (página 94).
Creio que seja esta a igreja inaugurada em 1901, a qual o livro faz referência. Ela existe até hoje, junto à Igreja nova, que data dos anos 1950, que mostro abaixo.


Antes de Harmonia o livro fala de São Benedito, como a primeira capela e, ainda,  sobre Linha Bonita, a terceira, pertencentes a São Salvador. Aí o livro passa a relatar as desavenças havidas ente São Salvador e Harmonia, para sediar a paróquia, invertendo as posições de paróquia e capela. Vejamos a narrativa: "Até aquele momento reinaram paz e entendimento na paróquia. No ano de 1883 entraria em cena um acontecimento que acarretaria uma profunda cisão na comunidade e traria muitas horas amargas para o vigário.

Com grande sacrifício em dinheiro trabalhava-se num acabamento interno digno da igreja. Joseph Flach, um jovem artesão em madeira, discípulo do irmão Johan Egloff, acabara de confeccionar um altar-mor em estilo gótico. No ano seguinte deveria pintar internamente a igreja, e seu irmão Michael, também discípulo do mencionado irmão jesuíta e mestre não menos exímio, construir dois altares laterais góticos. Foi quando um grupo de homens da capela filial de Harmonia cismou que o lugar certo para a sede da paróquia estaria com eles. Fizeram de tudo e por fim conseguiram que o seu pleito fosse decidido favoravelmente pela câmara. Mas não lograram a confirmação da parte da igreja. A fim de consegui-lo, empenharam-se em vão durante cinco anos. Veriam então realizado o desejo". Páginas 94 e 95. Aí sim, começa o texto sobre:

HARMONIA. 

"Harmonia tornou-se paróquia e São Salvador (Tupandi) sua filial. A agitação em São Salvador foi extraordinária. Não se podia e não se queria acreditar que as coisas ficassem assim. E para que a convicção desse algum resultado, dois homens de respeito, Peter Heck e Joseph Nedel, dirigiram-se a Porto Alegre, o primeiro um excelente católico, o outro, além disso, um membro influente do partido do governo. Por meio de sua intermediação conseguiram que no dia 28 de novembro de 1887 as coisas tomassem um outro rumo. É verdade que Harmonia permaneceu com Linha Bonita como paróquia independente. São Salvador recebeu de volta a sua antiga autonomia, mesmo que com uma única capela filial: São Benedito. De lá em diante, Harmonia ficou inteiramente sob a direção de padres seculares.

A ferida aberta com a separação de Harmonia de São Salvador não demorou em cicatrizar, e as coisas entraram em seu ritmo costumeiro.

Em dezembro de 1901 completaram-se 25 anos desde que o P. Pfluger assumira a administração da paróquia. Nesta ocasião, os paroquianos deram uma demonstração do quanto amavam o seu pastor. Nunca, afirmam as cartas ânuas, São Salvador viu tanta gente reunida como no dia da festa. Também os colonos de Harmonia e Linha Bonita fizeram-se presentes em massa. De modo especial, participaram todos os professores com seus alunos, 440 ao todo, no solene cortejo levando suas bandeiras e bandeirinhas, a fim de dar os parabéns ao querido ancião jubilar.

Quatro anos mais tarde, o fiel pastor de almas, amado por todos e acompanhado de um luto profundo, foi conduzido ao túmulo.

Relataremos mais tarde o que o P. Pfluger realizou em favor do bem-estar corporal de seus paroquianos.

Foi sucedido pelo P. Gallus Benz".

Na página 165 encontramos outra referência a Harmonia, quando o padre Ambros narra as atividades realizadas pelos jesuítas. Entre elas estava o cuidado com os professores, congregados em associação. Vejamos a narração: " A fundação da Associação dos Professores foi fruto da primeira Assembleia Geral dos Católicos, realizada em 1898 em Harmonia", quando também foram explicitadas as finalidades da mesma. O fato lembra o destaque que Harmonia mereceu em sediar a primeira Assembleia Geral dos Católicos. Quero lembrar ainda que os colonizadores (as terras pertenciam a José Ignácio Teixeira, residente em Pareci) de Bom Princípio, São Salvador e Harmonia só vendiam terras mediante duas exigências: serem alemães e serem católicos.

Na página 166 encontramos outra referência a respeito deste Congresso: "A realização do primeiro Congresso dos Católicos foi decidido, e a realização foi marcada para 24 de março de 1898, ao mesmo tempo em que foram distribuídos os temas a serem debatidos.

Realmente, o primeiro Congresso dos Católicos aconteceu em Harmonia (na sede da paróquia) e assumiu um andamento altamente satisfatório. Os participantes, contados em alguns milhares, retornaram entusiasmados para as suas picadas. Despertaram também em outras pessoas o desejo de participar do espetáculo edificante de uma Assembleia Geral dos Católicos".

É isso. Uma bela reconstrução histórica. Em outro livro, encontrei o fato de o padre Theodor Amstad, ter estado em Harmonia no ano de 1904 para formar a Associação de Poupança. Pela importância deste padre, fundador do SICREDI em Nova Petrópolis, ou mais precisamente, em Linha Imperial, vou procurar fazer alguma pesquisa a respeito. Assim que tiver os dados eu os compartilharei. O padre Amstad era um jesuíta suíço que estimulou o crédito cooperativo nas colônias alemãs. As Sparkasse.

sábado, 4 de novembro de 2017

Um ano de golpe. Crônicas da resistência.

"Um ano de golpe completa a trilogia da série lançada pela ComPactos para encabeçar uma vertente de resistência no mercado editorial, dando voz aos cidadãos comuns que diariamente militam por um Brasil mais justo". É o que lemos na contracapa do livro Um ano de golpe - Crônicas da resistência. O livro é organizado pela jornalista Cleusa Slaviero e conta com mais de oitenta crônicas de militantes espalhados por todo o Brasil.
O livro contém uma pluralidade de vozes humanitárias e resistentes.


O livro, que completa a trilogia (os outros foram Crônicas da resistência 2016 - Narrativas de uma democracia ameaçada e A Luta continua - Crônicas da resistência - 2016. Este foi escrito seis meses após golpe), tem uma forma de organização bem peculiar, que o torna possível. Ele é financiado coletivamente. O autor paga para escrever e como compensação recebe um certo número de livros para vender ou presentear. É isso que permite a grande pluralidade de vozes. Uma verdadeira sinfonia. O facebook ajuda a arrebanhar os cronistas militantes.

Esta forma permite, por meio desta pluralidade, fazer frente ao uníssono da grande mídia que promove debates com convidados, todos apresentados como renomados especialistas, que, invariavelmente, tem a mesma opinião. Acabo de ler o magnífico livro de Jessé Souza A elite do atraso - da escravidão à lava jato, onde ele faz exatamente esta reflexão sobre o comportamento da grande mídia brasileira. Cá comigo, sempre digo que os economistas transformados em colunistas das nossas rádios e TVs, não são economistas, e sim publicitários em defesa do dito "livre" mercado e de seus supostos benefícios. Como os autores são das diferentes regiões brasileiras, o livro tem a garantia de ampla circulação nacional.

Desta vez o livro é prefaciado pela professora, escritora e psicanalista Maria Rita Kehl. (No primeiro livro a apresentação foi de Adolfo Pérez Esquivel e contracapa de Leonardo Boff e no segundo tivemos o luxo de duas apresentações: uma de Lucía Topolanski e outra de Fernanda Takai). Maria Rita apresenta o livro como um alento contra o desânimo causado pelo golpe e a indignação perante um moralismo seletivo de combate à corrupção, voltado apenas contra os governos do PT. Destaca ainda o fato de as crônicas serem a expressão de trabalhadores organizados e que foram escritas não para impressionar a academia mas para mobilizar os trabalhadores. Faz ainda um pequeno apanhado de citações de algumas das crônicas que compõem o livro.

É também absolutamente notório o esforço da organizadora do livro, a jornalista Cleusa Slaviero. Ela vai ganhando experiência junto aos trabalhos de sua editora, a editora ComPactos. Ela já tem reconhecimento nacional com o seu trabalho. É um trabalho que exige enorme esforço e empenho no sentido de arregimentar os cronistas. Acima de tudo é um trabalho de convencimento. A pluralidade de vozes não diminui em nada a qualidade do livro. Muito pela contrário, o torna ainda mais virtuoso e cheio de qualidades.

Mas quanto ao tema, qual o assunto que povoa as diversas crônicas. São um lamento pelas perdas e um destrinchar das causas do golpe. Na contracapa lemos, começando por uma interrogação: "Quanto o Brasil perdeu em um ano de golpe? Difícil precisar os números. Mas basta olhar para a nossa sociedade para perceber que o país regrediu. Nem a economia retomou o crescimento, nem os empregos voltaram. E ainda tivemos uma queda histórica no bem-estar social, na inclusão das minorias e na redução da desigualdade".

Boas leituras e, deixo uma reflexão final, ainda do grande livro do Jessé Souza, A elite do atraso: "Ora, em um contexto de sociedades influenciadas pelo cristianismo, moralidade deveria ser, antes de tudo, igualdade e fraternidade". Páginas 140/1. Em vez disso temos o combate seletivo à corrupção para ocultar a verdadeira corrupção que é a dos juros altos, do apoderar-se do orçamento, das isenções fiscais, da venda de nossas riquezas em troca de miçangas... Todo o esforço produtivo de um país em favor de 1% de sua população. E muito ódio devotado aos pobres.


sexta-feira, 3 de novembro de 2017

Tupandi no livro A Missão dos jesuítas alemães no Rio Grande do Sul.

Como ainda mantenho relações com Tupandi, onde mora o meu irmão Irineu, transcrevo para o blog as notas referentes a São Salvador, que é como se chamava a Tupandi dos dias de hoje. O livro A missão dos jesuítas alemães no Rio Grande do Sul é de autoria do padre Ambros Schupp e ele se constitui numa verdadeira preciosidade histórica. O livro, originariamente foi escrito em alemão, sendo traduzido por Arthur Blásio Rambo. Lembrando que os imigrantes alemães chegaram em São Leopoldo no ano de 1824 e as duas paróquias mãe foram Dois Irmãos e São José do Hortêncio. Mas vejamos a história de São Salvador. A narrativa ocupa as páginas 92 a 95.
O livro do padre Ambros Schpp SJ., da editora Unisinos.

"A oeste da paróquia de Bom Princípio, em ambos os lados do arroio Salvador, estendia-se uma parte das das posses de Teixeira. No ano de 1855, José Ignácio ofereceu-as para serem vendidas. A venda ficou a cargo de Peter Kuhn, que como Winter procedia da Picada dos portugueses (São José do Hortêncio) e defendia o mesmo princípio como aquele: 'católicos com católicos e protestantes com protestantes'. (o senhor Winter foi o colonizador de Bom Princípio, a então Winterschneis. Já São José do Hortêncio era a Portugieserschneis. Já o sr. José Ignácio Teixeira foi o proprietário de todas as terras da região. Ele morava em Pareci).

Apareceu gente de todos os lados com intenção de comprar, sobretudo das velhas picadas de São José (do Hortêncio) e de Dois Irmãos, onde se instalara uma tal ou qual superpopulação. Também muitos imigrantes novos fixaram-se na mata virgem.

Não demorou e foram abertas novas picadas nas mais diversas direções. Em 1860 reuniram-se diversas famílias para construir uma escola comunitária, na qual realizavam o culto divino aos domingos e em dias santificados. Em 1864 já se contavam 80 famílias, e a escola ficara pequena para a realização dos cultos. Em 1866 foi decidida a construção de uma capela maior. Durante um bom número de anos foi atendida pelos padres Sedlak e Kellner, vindos de São José. Em 1868, este último pregou uma missão de duas semanas de duração. Os bons colonos recordaram-se dela com alegria e consolo ainda anos mais tarde.

São Salvador ainda pertencia na época a Triunfo. Depois que em 1871 Montenegro foi erigida canonicamente à paróquia -civilmente já o fora em 1867 - e o P. Kellner se tornara o primeiro vigário da paróquia, ele se fez seguidas vezes presente  em São Salvador, que fazia parte de sua paróquia, ou mandava o seu coadjutor. Com a elevação de Bom Princípio a curato em 1873 e a posterior transferência da sede do curato para São Salvador em 1875, cessou essa vinculação. Depois de muitas tratativas e do especial empenho do P. Dolermann, então superior da missão, São Salvador foi finalmente constituída como paróquia, tanto religiosa como civilmente. Poucos dias mais tarde instalou-se nela o P. Pfluger como primeiro vigário, até então vigário de Dois Irmãos. O P. Mayer, que fora o 'cura' até então, partiu para Santa Cruz, e o P. Wilhelm Ley, por sua vez, veio de lá para ser o coadjutor do novo pároco de São Salvador. O irmão Stuckenberg encarregou-se da casa, da cozinha e da adega.

A moradia dos três era uma casa pequena, bastante afastada da igreja e separada pelo arroio Salvador. Servira anteriormente de residência para o P. Meyer. Havia ratos em abundância e quando durante a noite resolviam fazer as suas sessões de dança, o vigário via-se obrigado a intervir com o bordão. O pior, porém, era o caminho para a igreja. A cada chuva transformava-se em lodaçal difícil de passar e, quando o arroio enchia, o que facilmente acontecia, tornava-se quase intransponível.

Por esta razão, a comunidade paroquial movimentou-se a fim de construir uma casa paroquial nova e espaçosa perto da igreja, que ficou pronta e foi ocupada no dia 14 de julho.

O vigário tinha todas as razões para estar satisfeito com a sua paróquia. Graças ao princípio clarividente do honrado Peter Kuhn, que só pretendia vender lotes para católicos, a paróquia ficou sem mistura. É verdade que no começo encontravam-se três protestantes na picada. Aconteceu, porém, que já no mesmo ano de 1876 passaram para a igreja católica.

Uma relação extraordinariamente benéfica reinava entre o novo pároco e a sua comunidade. O P. Pfluger mostrava-se um verdadeiro pai tanto na crítica como no louvor a todos. E os bons colonos de São Salvador privavam da sua casa alegres e cheios de confiança como crianças na casa paterna e compartilhavam com ele suas alegrias e sofrimentos. E exemplar era a frequência ao culto divino, assim como os sacramentos.
Uma vista recente de Tupandi.


Como se pode deduzir do que foi dito, a paróquia de São Salvador engloba também Bom Princípio com suas capelas filiais. Depois que São Vendelino foi separada no dia 14 de novembro de 1879  e também Bom Princípio se tornou uma paróquia autônoma em 10 de maio de 1880, São Salvador ficou com apenas três capelas filiais: São Benedito, Harmonia e Linha Bonita. Destas três as duas primeiras localizam-se no sul e a terceira no sudoeste da matriz.

São Benedito, que se localiza a uma hora de São Salvador, começou a ser colonizado  em 1860. Uma velha serraria em ruínas demonstra que ali houve uma atividade humana. Sem dúvida foram braços escravos. José Ignácio Teixeira, a quem já tivemos ocasião de conhecer, instalara a serraria em questão. Possuía outra em Pareci, onde se encontrava a sua residência propriamente dita. Mandara abrir um caminho pela mata para chegar à primeira das serrarias. Com o correr do tempo, esse caminho foi totalmente tomado pela vegetação.

Entrementes apresentara-se em 1857 um belga, conde de Montravel, com intenção de fundar uma colônia nas margens do Forromeco. Mandou reabrir o caminho, prestando assim um grande serviço aos colonos que logo em seguida povoaram São Benedito. Ele próprio teve menos sorte com o seu empreendimento. Como bom católico pretendia, assim como outros antes dele fizeram com bom êxito, assentar apenas católicos em sua fundação. Cometeu, porém, o equívoco de aceitar pessoas de todas as nações: belgas, franceses, suíços,etc.

Este fato, somado a falhas na administração, foi fatal para a sua causa. Apareceram dificuldades e complicações, as quais foi incapaz de enfrentar, motivo pelo qual o governo assumiu a colônia com todos os ativos e passivos.

Os primeiros colonos que se fixaram em São Benedito procediam das antigas paróquias de São José e São Miguel (Walachei, Morro dos Bugres e Sapiranga).

No ano de 1866, seis anos depois de sua chegada, portanto, os moradores de São Benedito construíram uma capela que durante muito tempo serviu também como escola.  Quinze anos mais tarde, no dia 20 de março de 1881, o P. Eultgen  benzeu a pedra fundamental de uma bonita capela gótica e, seis anos depois, em 1887, foi construída também uma nova escola.

A segunda capela filial de São Salvador, a Harmonia, localiza-se uma hora mais para o sul, portanto duas horas distante da igreja matriz.  Sua fundação data de 1863, sendo, portanto, três anos mais recente do que São Benedito. Em 1868, os moradores ergueram um pequeno prédio escolar, que também teve que servir para os serviços religiosos. Passaram mais dez anos para que fosse construída uma nova capela. A igreja atual existe apenas desde 1901.

Linha Bonita, a terceira capela filial, localiza-se, como já foi observado, um pouco desviada da linha para o oeste. Foi povoada em 1866 e desde então desenvolveu-se magnificamente. Ostenta com razão o nome de 'Bonita'.

No início, os padres rezavam a missa na residência de Nicolau Haupental. Somente em 1882 foi construída uma capela e, quatro anos mais tarde, uma escola.

A paróquia matriz desenvolvia-se dia a dia com mais esplendor em companhia das três filiais. Um espírito realmente cristão e piedoso soprava quente pelo morros e vales. Pôde-se observá-lo quando aos domingos os sinos da igreja tocavam e o povo piedoso afluía de todas as direções.

Os bravos salvadorenhos comemoravam a cada ano com uma solenidade toda especial a festa do Natal, que ao mesmo tempo também era a festa titular de sua igreja. Não se poupavam os foguetes, que no Brasil não podem faltar em nenhuma festividade. Também no ano de 1876 foram disparados para anunciar o início da santa missa. O evento coincidiu com uma grande seca, e aconteceu que um dos foguetes caiu sobre as tabuinhas do telhado, que pegaram fogo. Enquanto no interior se achavam piedosamente reunidos, irrompeu o fogo acima de suas cabeças. Evidentemente, a devoção estava acabada. O fogo foi finalmente apagado, mas o recado fora entendido. Não demorou muito e a pedra fundamental de uma espaçosa igreja foi lançada. No dia 20 de outubro de 1879 estava concluída, e a velha capela que até então fora conservada dentro da nova, pôde ser demolida, podendo dois dias mais tarde ser realizado o primeiro solene culto divino.

Até aquele momento reinaram paz e entendimento na paróquia. No ano de 1883 entraria em cena um acontecimento que acarretaria uma profunda cisão na comunidade e traria muitas horas amargas para o vigário.

Com grande sacrifício em dinheiro trabalhava-se num acabamento interno digno da igreja. Joseph Flach, um jovem artesão em madeira, discípulo do irmão Johan Egloff, acabara de confeccionar um altar-mor em estilo gótico. No ano seguinte deveria pintar internamente a igreja, e seu irmão Michael, também discípulo do mencionado irmão jesuíta e mestre não menos exímio, construir dois altares laterais góticos. Foi quando um grupo de homens da capela filial de Harmonia cismou que o lugar certo para a sede da paróquia estaria com eles. Fizeram de tudo e por fim conseguiram que o seu pleito fosse decidido favoravelmente pela câmara. Mas não lograram a confirmação da parte da igreja. A fim de consegui-lo, empenharam-se em vão durante cinco anos. Veriam então realizado o desejo".
XXXXXX

Creio  que o que segue sobre Harmonia também interesse a Tupandi, pois relata a conciliação: "Harmonia tornou-se paróquia e São Salvador (Tupandi) sua filial. A agitação em São Salvador foi extraordinária. Não se podia e não se queria acreditar que as coisas ficassem assim. E para que a convicção desse algum resultado, dois homens de respeito, Peter Heck e Joseph Nedel, dirigiram-se a Porto Alegre, o primeiro um excelente católico, o outro, além disso, um membro influente do partido do governo. Por meio de sua intermediação conseguiram que no dia 28 de novembro de 1887 as coisas tomassem um outro rumo. É verdade que Harmonia permaneceu com Linha Bonita como paróquia independente. São Salvador recebeu de volta a sua antiga autonomia, mesmo que com uma única capela filial: São Benedito. De lá em diante, Harmonia ficou inteiramente sob a direção de padres seculares". Página 95.





quarta-feira, 1 de novembro de 2017

A missão dos jesuítas alemães no Rio Grande do Sul. Padre Ambrósio Schupp SJ.

Entrei em contato com o padre Ambrósio Schupp SJ. com a leitura de seu livro Os Muckers. O li, sabendo de sua filiação à ordem religiosa dos padres jesuítas. O livro tem o olhar de um jesuíta, mas tem também um olhar de profundidade, de um arguto observador. Narra os fatos ocorridos com muita objetividade, embora o viés de sua posição, devidamente assumida. É um livro de valor. Originariamente foi escrito em alemão. A sua tradução é de Arthur Blásio Rambo.
Uma preciosidade que vai para bem além de um livro de história. Da editora Unisinos. A missão dos jesuítas alemães no Rio Grande do Sul, do padre Ambros Schupp, SJ.

Os muckers me levou a outro livro seu, A missão dos jesuítas alemães no Rio Grande do Sul, um livro da editora da Unisinos, a universidade dos padres jesuítas. É um livro grandioso e indispensável para quem quer, minimamente, conhecer a história do Rio Grande do Sul de maneira geral, e a da imigração alemã, em particular. Mais uma vez, muita objetividade na narrativa dos fatos. O livro é uma viagem pelas colônias alemãs dos vales dos rios dos Sinos, do Caí, do Taquari e do Pardo. E para quem é nascido na região, um grande reencontro com as origens. Este foi o meu caso.

O livro é dividido em três partes: A parte I se dedica à evolução histórica dos assentamentos alemães (colonização alemã) e missão no Rio Grande do Sul; a parte II, às atividades dos jesuítas alemães na missão e a parte III, aos elementos hostis. Do ponto de vista histórico, evidentemente, que a primeira parte é a mais interessante. Li o livro, com o meu olhar constantemente voltado para Harmonia, a minha terrinha natal. E ela, de fato, aparece várias vezes na narrativa.

A primeira parte também é a mais longa e o autor a divide em três capítulos, a saber: I. História das Colônias de São Leopoldo antes da chegada dos padres alemães; II. Fundação e desenvolvimento de cada uma das colônias e residências dos padres alemães e III. Retrospectiva sobre a missão como tal.  Lembrando que os primeiros colonos alemães aportaram em São Leopoldo no dia 25 de julho de 1824, numa iniciativa do Império brasileiro recém instalado. Observem que a data está colada à da independência.

O olhar perspicaz do padre se volta neste primeiro capítulo da primeira parte sobre três temas fundamentais: sobre os primórdios da imigração, sobre a sua chegada e instalação e, ainda, sobre a situação religiosa e a vivência  em estado de absoluto abandono. Esta situação só se modifica com a chegada dos primeiros jesuítas espanhois, expulsos da Argentina. Posteriormente chegam os alemães. Também na Alemanha eles haviam sido expulsos. As revoluções de 1848.

O segundo capítulo da primeira parte, é propriamente o corpo de todo o trabalho. Cada uma das colônias é retratada com preciosos detalhes históricos. Importante não esquecer que estamos no Império, quando Igreja e Estado formavam uma unidade. Por isso os fatos históricos são mais registrados nas igrejas, nas paróquias. Duas picadas merecem atenção especial. São as chamadas paróquias mãe, das quais todas as outras se desmembraram. São elas, a Picada Baum, a São Miguel dos Dois Irmãos e a Picada dos Portugueses (portugieserschneis), a São José do Hortêncio. O padre apresenta primeiramente as colônias localizadas no rio dos Sinos e logo a seguir as do vale do rio Caí, onde se localizam as duas paróquias mãe, as de Dois Irmãos e  de São José do Hortêncio. São Leopoldo, Novo Hamburgo, Bom Jardim (Ivoti) e  Porto Alegre ganham, cada uma, um capítulo especial. Em Porto Alegre os alemães se aglutinaram em torno da igreja de São José.

Entre as colônias do vale do rio Caí merecem destaque as localidades de Montenegro, São Sebastião do Caí, Nova Petrópolis, Bom Princípio, São Salvador (Tupandi), Harmonia e Feliz. Seguem as do vale do Taquari, com Estrela e Lajeado e as do rio Pardo, onde se localiza Santa Cruz. Pelotas e Rio Grande também merecem a atenção do padre historiador, assim como São Pedro de Alcântara, São Lourenço e Nonoai. O terceiro capítulo desta parte faz uma retomada  de todo o trabalho dos padres da Companhia. Toda esta primeira parte está dividida em 14 capítulos.

A segunda parte do livro está disposta em treze capítulos onde são narradas as principais atividades realizadas pelos padres, a saber: os cultos religiosos, a construção de igrejas, o canto, as devoções domésticas, as atividades pastorais, o associativismo, as escolas (o capítulo V é dedicado ao desenvolvimento histórico da escola e do ensino no RS., uma preciosidade), os seminários, a atividade literária, o atendimento aos doentes, as atividades culturais e as iniciativas de ordem social. Também as provocações políticas ganham um capítulo.
Esta foto é do padre Oscar Francisco Mallmann, que foi pároco de Harmonia, entre os anos de 1930 a 1981. Não é da época retratada pelo livro, mas mostra a inseparabilidade do padre com o cavalo para a realização das atividades pastorais. A foto é dos arquivos de Antônio Kunzler.

A terceira parte é a mais breve, embora os elementos hostis não tenham sido poucos. O primeiro lamento neste sentido é feito em cima da enorme falta de padres para atender tão vasta região e da difícil comunicação, já que as estradas eram praticamente intransitáveis em períodos de chuva. O auxílio do cavalo era imprescindível. Mas inimigos mesmo, o padre aponta, em primeiro plano as lojas maçônicas. É o conflito provocado pela razão, pelo esclarecimento e pela formação do espírito da laicidade, especialmente, o caráter leigo das escolas no embate com o ensino religioso. Um capítulo que também é uma preciosidade. Lembrando, a edição do livro da Unisinos data de 2004, mas a pequena introdução, escrita pelo próprio padre Ambrósio, data de 1912. Portanto, é um olhar datado anterior a 1912. Os outros elementos hostis são a imprensa, dividida entre os católicos e os protestantes e a laica, que começa a se formar. Também, já neste período, começam a descer as seitas oriundas dos Estados Unidos, anglicanos e adventistas, neste primeiro momento.

Um livro de muito valor. Além da preciosidade dos elementos históricos, ricamente detalhados, temos a preciosidade da marca de um olhar. O olhar extremamente perspicaz de um sacerdote jesuíta, nos idos de 1912. Vou retornar o tema com outros posts, relatando a história de Tupandi e de Harmonia.